sábado, 5 de junho de 2010

Absolutismo esclarecido e intervenção popular



Tiago C.P. dos Reis Miranda
Pós-graduando em História Social no Departamento de História/USP


SILVA, Francisco Ribeiro da. Absolutismo esclarecido e intervenção popular. Os motins do Porto de 1757. (Lisboa), Imprensa Nacional - Casa da Moeda. (1990). 190 pp. ("Temas Portugueses").

Apesar das muitas traduções na área de ciências sociais que nos últimos anos a universidade brasileira se acostumou a importar de Portugal -e para além de algumas poucas visitas de investigadores mais conhecidos -, o intercâmbio dos trabalhos acadêmicos que se produzem nos dois países mostra-se ainda bastante insatisfatório. Em determinados setores onde o diálogo deveria ser particularmente valorizado, como o da história colonial, a escassez de referências comuns chega a ser constrangedora.

A razão desse estado de coisas tem origens muito diversas. Faz-se necessário admitir, inclusive, que ainda se continuam a acumular prejuízos, dado o sentimento de "receio" que cada uma das partes parece guardar em relação à outra... No campo da história, valeria a pena referir com destaque a existência de diferentes motivações - e enfoques teóricos -, compreensíveis em face de ambas as realidades sociais e do quadro de oportunidades de pesquisa. Uma melhor divulgação dos empreendimentos editoriais de ambos os países pode entretanto ajudar a reduzir distâncias.

Em meio aos títulos de história moderna recentemente publicados em Portugal - excetuando as traduções -, devem-se talvez enfatizar algumas fontes, a reposição de "clássicos" e um interessante conjunto de novos estudos. No primeiro caso, os "relatos de viajantes" de Castelo-Branco Chaves vão encontrando companhia em preciosas edições de materiais inéditos, como as Memórias do 1º Conde de Povolide e testemunhos britânicos sobre o terremoto de 1755. A reposição de velhas e importantes obras no mercado tem vindo a tornar possível às novas gerações um convívio mais freqüente com José António Saraiva, Jorge Borges de Macedo e José-Augusto França, entre outros. Para o Brasil, cabe sublinhar a valorização das pesquisas de João Lúcio de Azevedo, contando-se reimprimir brevemente os seus dois trabalhos sobre o Pará.

Nos investigadores que têm visto os seus textos publicados para além das muitas revistas especializadas, nota-se o confirmar de uma profunda diversidade temática. "Reinventa-se" o estudo das descobertas e das navegações; escreve-se a história da mulher, do corpo, do cotidiano, do livro e da leitura, do poder e do espetáculo. Na sequência do fortalecimento de novas universidades e das instituições municipais, vai-se desenvolvendo o gosto pelos arquivos que se encontram fora de Lisboa. Começam-se a conhecer melhor as várias instâncias do complicado sistema judicial dos séculos XVII e XVIII, a forma de constituição das Câmaras e o jogo de competências que elas entretinham com a Coroa.

Absolutismo esclarecido e intervenção popular. Os motins do Porto de 1757, de Francisco Ribeiro da Silva, é um bom exemplo do trabalho que pode nascer do convívio com os arquivos municipais. Ao retomar um assunto constantemente referido na extensa bibliografia sobre o reinado de D. José, o autor descobre-lhe aspectos inéditos, esclarece a participação de alguns dos personagens envolvidos, tentando, afinal, reconstituir as motivações dos diversos setores populares e as linhas que orientaram a sua repressão.

Três foram as origens do presente estudo: uma comunicação apresentada no Colóquio Internacional que ocorreu durante as Comemorações do 2º centenário da morte de Carvalho e Melo; uma conferência proferida na Casa do Infante e, por último, um trabalho sobre o Marquês de Pombal e a viticultura do Douro, que serviu de argumento a um programa de televisão. Os esforços para conferir ao volume um sentido de continuidade parecem relativamente bem sucedidos. O estilo simples e correto do autor não impede que em certas passagens a estória ganhe ritmo e vivacidade (como, aliás, era de prever numa obra sobre levantes populares).

Logo nas primeiras páginas, fica clara uma certa intenção de diálogo com a moderna historiografia européia. Quanto ao método de análise empregado, sobressai o interesse pelos trabalhos de Yves-Marie Bercé e J. H. Elliot. A caracterização dos fatores políticos e econômicos do Portugal setecentista mostra grande afinidade com a tradição liberal. Prova disso é o relevo conferido ao testemunho dos "estrangeirados" e à temática da "dependência" (pp. 12-15). Infelizmente, embora se cheguem a referir elementos para versões menos "negativistas" (n.7, p. ex.), acaba-se evitando questionar alguns pressupostos.

A originalidade do trabalho de Francisco Ribeiro da Silva ganha corpo no seu quarto capítulo, intitulado "pré-condições dos tumultos". Servindo-se do Arquivo Histórico do município, o autor mostra que até 1757 verificaram-se diversas medidas no sentido de controlar a atividade dos taberneiros do Porto (pp. 39-42). A última ocorreu no ano do grande terremoto de Lisboa, fazendo surgir um confronto entre comerciantes e artesãos - representados na Casa dos Vinte-e-Quatro - e os fidalgos da Câmara. Por outro lado, Ribeiro da Silva faz notar o descontentamento portuense com as pesadas obrigações fiscais que desde há muito recaiam sobre a cidade. "Impostos civis, tributação eclesiástica, foros, fintas...". No correr da guerra pelo trono de Espanha, o quadro agravou-se com a imposição de um elevado subsídio militar. Embora o conflito terminasse em 1714, a taxa foi relançada em 1717, provocando uma baixa no comércio de alguns dos produtos que normalmente entravam pelo Douro. "Curiosamente, (...) o vinho era, de entre as mercadorias de consumo corrente, das mais oneradas, se não mesmo a mais tributada. Um encarecimento do produto, por razões da raiz político-econômica (concessão de monopólio), a juntar a agravamentos seculares de natureza fiscal, parece constituir argumento forte a considerar quando se estudam as pré-condições dos motins de 1757." (p. 52).

Ao se referir a instituição da Companhia Geral da Agricultura das Vinhas do Alto Douro e o julgamento que mais tarde mereceu o levante popular, recorre-se freqüentemente à correspondência enviada pelas autoridades portuenses para Lisboa. Esse material (que já fora explorado por Susan Schneider) encontra-se no núcleo do Ministério do Reino, da Torre do Tombo. Entre outros aspectos, permite ajudar a esclarecer as primeiras atitudes do Desembargador João Pacheco Pereira de Vasconcelos e de seu filho, José Mascarenhas. Carta após carta, afirma-se a imagem de uma primavera intencionalmente mergulhada no signo do terror...

O fato de muito se ter escrito sobre o governo "pombalino" e a conhecida existência de várias polêmicas a esse respeito, vão obrigando o autor a posicionar-se de acordo com os indícios que reuniu - mesmo que eles lhe pareçam algo insuficientes. É o que acontece, por exemplo, com o problema do envolvimento de comerciantes ingleses nos tumultos: juntando três ou quatro ofícios, Ribeiro da Silva acaba por supor que Francisco Luiz Gomes tinha razão, ao dizer que o assunto fora ignorado para evitar conflitos com a Grã-Bretanha (pp. 69-70). Essa relativa falta de elementos torna a verificar-se em outras passagens... Afinal, o que é que realmente teria levado João Pacheco Pereira a atuar com a severidade que o autor denuncia (pp. 91-92)? Chegou-se mesmo a realizar a prisão coletiva dos Vinte-e-Quatro (n. 84)? A que "instruções" se referiu o Presidente da Alçada, quando mais tarde assegurou a Carvalho e Melo que lhe explicaria oralmente alguns dos resultados da devassa (pp. 67-68)?

Não é novidade que o estado de muitos arquivos portugueses ainda constitui um sério obstáculo ao bom andamento do trabalho de pesquisa. Em dada altura do seu livro, o próprio Ribeiro da Silva lamenta a impossibilidade de descobrir o processo de 1757 nos depósitos do Tribunal da Relação, por motivos de ordem funcional (n. 249). Mas para além da desordem, da ausência de critério ou da falta de verbas que durante largos anos governaram alguns acervos, o problema da localização de documentos também supõe o conhecimento das práticas administrativas do Estado moderno: sobreposição de competências, fronteiras pouco rígidas entre o "público" e o "privado", e a observância de uma política de conservação dependente dos interesses da Coroa. Em face de tantas variáveis, pode-se tornar mesmo bastante difícil o encontro de um elemento documental. No entanto, alguns indícios de relevo acabam aparecendo como que "por acaso", no meio do caminho...

O acervo da velha Secretaria dos Negócios Estrangeiros guardado no Arquivo Nacional da Torre do Tombo ainda conserva muitos papéis do reinado de D. José que, em princípio, deveriam ter sido encaminhados através de outras repartições. Neste instante, talvez interesse referir especialmente um caderno de minutas sobre os motins do Porto, anotado com a inconfundível caligrafia de Carvalho e Melo (Cx. 67, Mº 7, doc. 35 e 36); ao todo, vinte e sete "peças" remetidas a várias autoridades do norte, entre 28 de fevereiro de 1757 e 21 de março do mesmo ano (52 ff., 42 mss. e numeradas). Sua existência foi registrada em 1926, por Luiz Teixeira Sampayo, e é provável que fosse conhecida de Francisco Luiz Gomes (Arquivo do Ministério dos Negócios Estrangeiros Subsídios para o estudo da história da diplomacia portuguesa. Coimbra Imprensa da Universidade, pp. 56, 75 e 136).

O primeiro ofício desse conjunto ia dirigido a João Pacheco Pereira de Vasconcelos, detalhando as ordens da conhecida "Carta Régia". Nele, o Secretário explicava o comportamento que o Desembargador deveria adotar para com os diferentes moradores do Porto. Inicialmente, a principal diretriz a obedecer era cultivar boa inteligência com as "Pessoas notáveis de ambos os Estados", "deitando os insultos abomináveis (...) sobre a Plebe bárbara, e incapaz de admitir razão".

Caso se descobrisse que havia estrangeiros entre os "criminosos", as instruções mandavam-nos castigar como reinóis, embora os seus livros de contabilidade se devessem entegar aos cuidados do Cônsul. No que se refere aos de origem eclesiástica, Pacheco Pereira deveria colocá-los sob custódia, para, em seguida, remetê-los a Lisboa "com o traslado \e informação/ das culpas que forem achadas". Sendo porém regulares, apenas se comunicariam as provas coligidas. De resto, já se previa também que as cerimônias de execução ocorressem nos locais mais públicos da cidade. Nesse particular, Carvalho e Melo admitia explicitamente "... que estas execuções senão fazem para vingança, mas sim para terror, e (...) terão demais significantes \para o fim do exemplo/ o que tiverem de mais horrorosas \aos olhos do povo:/...". Dias depois, ordenava-se que as forcas se erguessem de noite, quando "...não haja gente pelas ruas, para que amanheçam levantadas, e causem assim mayor horror aos que as virem", sem as esperar.

Aos 4 de março, o Secretário tornaria a escrever uma longa carta a João Pacheco Pereira. Seu objetivo era analisar algumas das "vozes" que se começavam a reproduzir entre os próprios ministros da Coroa. Três Comissários que voltavam do pagamento das tropas, por exemplo, diziam que o Comandante do Regimento do Porto "fugira do tumulto com cobardia injurioza", e que, afinal, o levante agrupara uma multidão de trinta mil pessoas. Carvalho e Melo rebateu energicamente as duas histórias. Para ele, semelhantes rumores destinavam-se a engrandecer a facção dos revoltosos (protegendo os seus líderes), além de conterem aspectos notoriamente falsos e muito inverossímeis ("...porque a razão dita que era impossível Conservarse o segredo entre taõ numerozos Conjurados; e igualm.te impossível que entre tantas pessoas de animo corrompido, e pessimo naõ houvesse alguma Christam e temente a Deos, e a El Rey N S.or, que na Confissaõ \Sacramental/ declarasse hum tão detestavel projecto como o da ruina de huma Cidade, a segunda do Reino: e qe na mesma Conficçaõ não encontrasse hum Menistro Evangelico capaz de intimidarlhe a obrigaçaõ que tinha de declarar hum taõ infame intento.").

Sobre o andamento da devassa, lembrava-se ao Desembargador que nos crimes de lesa-majestade não era costume encontrar testemunhos oculares; portanto, o Direito via-se obrigado a recorrer a "presunções". Dessa maneira, mostrava-se conveniente explorar o fio das animosidades registradas na Sé e na Misericórdia, o envolvimento da Mesa do Bem Comum, dos grandes taberneiros e dos oito regulares que ultimamente haviam incitado o Bispo Deão de Vila Viçosa a desobedecer ao espírito das instruções reais. A margem, acrescentava ainda Carvalho e Melo: "Na dita Cidade (...) se tem arrogado o tittulo de Missionario hum Clerigo loco, temerario e manifesto Hip(ocr)ita :(chamado Angello Siqueira (?), ou por anthonomazia o Missionário de N. S.ra da Lapa): o qual he capacissimo de fazer hum Corpo de Fanaticos, e de concitar toda a Sidiçaõ. He natural das Minas onde vmce sabe qe os motins qe se fizeraõ foraõ compostos de pessoas vestidas com trages disfarçados, da mesma sorte qe se praticou agora no Porto, onde todos os amotinados consta qe apareceraõ vestidos de mulheres, marinheiros &c o que tem alguma aparencia de idea do tal Clerigo Americano o qual certamente consta que tem Cabalado com pessoas do seu mesmo genio e mal intencionados contra o governo de Sua Mag.de" (grifo do texto).

Este reconhecimento de uma semelhança formal entre os motins do Porto e as primeiras revoltas do século XVIII em Minas (com destaque para a de 1720) abre espaço a duas ou três problematizações. Antes de mais, seria interessante notar que para compreender os acontecimentos de fevereiro, o Secretário do Reino esqueceu boa parte da conflitualidade portuense com a Coroa no século XVII, em favor de uma referência mais próxima no tempo. Em certa medida, negou-se ao "populacho" qualquer reação que tivesse por base a memória ou a racionalidade; moustrou-se acreditar, pelo contrário, que os tumultos se originavam através da organização e do incitamento dos "grandes". Na ótica da Coroa, "devassar uma revolta" pressupunha interpretar as evidências de maneira a descobrir os "personagens ilustres" que a haviam planejado.

Se se admitir um verdadeiro empenho popular (atuando obviamente em conjunto com outros interesses), a citação de Carvalho e Melo pode ganhar um relevo diferente. Nesse caso, o que passa a despertar atenção é o próprio indício que ele registra: o disfarce - hábito comum nas festividades religiosas, que aqui aparece no seio de uma manifestação geralmente identificada por sua natureza política.

Valeria a pena recordar que o motim de 1757 ocorreu em época de carnaval. Gravuras posteriores realçariam o aspecto alegre e contagiante do movimento. Embora Francisco Ribeiro da Silva reproduza uma delas no seu livro (p. 31), de maneira geral, o caráter "festivo" da revolta apenas se entrevê no desdobramento de alguns de seus comentários. É o caso, por exemplo, das observações dedicadas à importância da taberna como centro de convívio (p. 54) ou do leve colorido da "descrição factual" dos motins (pp. 32-35). Seria interessante descobrir se ainda há outros elementos a explorar nesse sentido.

A edição da Imprensa Nacional vê-se enriquecida por um apêndice de dez documentos e três diferentes índices. Destaque-se também a reconstituição do itinerário dos amotinados de 1757, sobre um mapa da cidade do Porto (Nele, aliás, verifica-se uma das poucas distrações do revisor: "forças" por "forcas"). Como um todo, a obra de Francisco Ribeiro da Silva é relevante e correta, propondo novas questões para futuros trabalhos.

Revista de História - USP

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