sexta-feira, 25 de junho de 2010

Le Nombre et la Raison: La Révolution Française et les Élections (prefácio de François Furet)


GUENIFFEY, Patrice. 1993. Le Nombre et la Raison: La Révolution Française et les Élections (prefácio de François Furet). Paris: Éd. de l'École des Hautes Études en Sciences Sociales. 560 pp.

Gabriela Scotto
Doutoranda, PPGAS-MN-UFRJ

Técnica de seleção, princípio de instituição e instância de legitimidade, a eleição ocupou um lugar central no novo sistema político instaurado na França após a Revolução de 1789. Ao subordinar toda delegação de autoridade ao livre sufrágio, ao definir a virtude, os talentos e a capacidade como os únicos critérios de admissão, os constituintes instituíram o princípio democrático de seleção. As honras e as responsabilidades deixam de ser o fruto do nascimento, do favor ou da intriga, para ser a resultante do mérito pessoal consagrado pela opinião. Em 1790, com exceção do poder executivo confiado ao rei, não existe função pública para a qual seus depositários não tenham sido eleitos.

O trabalho do historiador Patrice Gueniffey aborda um momento específico e conturbado da história política francesa: o período que se estende da Revolução de 1789 até 1795 quando, após a morte de Robespierre, instaura-se a breve experiência da República Constitucional. Período de mutação, ruptura e dissolução da ordem existente, mas durante o qual, ao contrário do que ocorre em um golpe de Estado, verificou-se um modo de instituição da autoridade e de regulação dos conflitos políticos que requeriam a construção de um consenso, ao menos relativo, acerca do caráter das novas instituições.

Gueniffey dedica-se à análise de um objeto tradicionalmente negligenciado pela historiografia: o momento do voto - o instante em que as pessoas viram cidadãos, independentemente das circunstâncias que cercam a convocação dos eleitores, e dos resultados do escrutínio. Assim, a proposta do autor é analisar o desenvolvimento das eleições nas assembléias primárias, no que elas têm de particular, e não apenas como um fator suplementar a serviço da compreensão das peripécias da história política durante a Revolução. O regime eleitoral adotado pela Constituinte repousava num modo de eleição indireta em dois níveis: o conjunto dos "cidadãos ativos", congregados em assembléias primárias reunidas num canton (distrito eleitoral), elegia os eleitores; estes, por sua vez, nucleados em departamentos, designavam os representantes. A partir de fontes e dados diversos (atas de sessão eleitoral, testemunhos de época, decretos e regulamentos eleitorais, debates consagrados à organização das novas instituições), Gueniffey analisa as modalidades eleitorais para compreender como os princípios e procedimentos foram aplicados concretamente.

O livro, abundante em dados históricos muito pormenorizados - o que torna a leitura, por vezes, um tanto densa -, ao invés de seguir a ordem cronológica das sucessivas eleições e das relações destas com os acontecimentos, organiza-se em torno de algumas questões centrais: o desenrolar de uma eleição, desde a definição das condições exigidas para votar até a proclamação dos resultados (capítulos 1-2). Quais eram os fins da "democracia das eleições"? Que representações envolviam o voto (capítulo 3)? Quantos eleitores exerciam seus direitos políticos e como explicar a abstenção nos casos em que esta era significativa (capítulos 4-6)? Quais as modalidades dos sistemas eleitorais e como era feita a escolha na ausência de candidatos declarados (capítulos 7-8)? Quais foram os resultados e como avaliar sua importância política (capítulos 9-10)? O último capítulo, dedicado ao período da República Constitucional (1795-1797), encerra o livro na forma de conclusão.

A tese principal, que entrecruza a obra, é a de que, apesar do sufrágio constituir um elemento central do imaginário político revolucionário, as eleições não tiveram, na definição dos acontecimentos revolucionários, o papel decisivo que comumente se lhes atribui. A eleição foi apenas uma técnica de seleção e legitimação e não uma forma de cada cidadão expressar sua opinião, nem uma escolha entre opções e candidatos para, com o voto, contribuir para a definição das grandes orientações políticas. Isso porque o sistema eleitoral imaginado pela Assembléia Constituinte erigiu-se sobre duas concepções diferentes de representação. Por um lado, a que repousava não apenas sobre a idéia do voto como um direito mas, também, sobre o projeto revolucionário de instituir, através do sufrágio dos cidadãos, o poder do povo soberano, enfim, de substituir a usurpação de uma monarquia absoluta. Aqui, a "representatividade" das assembléias devia ser a mais próxima possível da diversidade característica de todo o conjunto nacional. Por outro lado, uma noção de representação que repousava sobre o postulado da existência de um interesse comum ao povo. Nessa segunda concepção não importa tanto a "exatidão" da representação, mas sim encontrar os homens capazes de zelar pelo interesse coletivo. Em síntese, o sufrágio representava para cada novo cidadão o símbolo, por excelência, da soberania recuperada pelo povo. Seu exercício estava destinado a instaurar uma autoridade pública que garantisse a transparência indispensável à manutenção da soberania popular. Mas a fórmula para garantir essa transparência devia passar pelo filtro da representação, no seu segundo sentido. Isso porque o espírito público - a virtude - não está inscrito nos costumes, nem surge espontaneamente; ao contrário, a divisão do trabalho cria muitos "ignorantes" que precisam ter um governo por procuração: ser representados.

Essa concepção acerca da formação de decisões, que rejeitava a idéia de identificar a vontade geral na aritmética dos votos, estava marcada pelo racionalismo da época. Ainda que o racionalismo puro fosse alheio à Revolução, a participação igualitária e a elaboração democrática da lei foram princípios da época difíceis de serem conciliados com a necessidade, imperativa também, da formação de uma "vontade geral" que fosse o produto das vontades individuais "esclarecidas" mediante uma "deliberação racional". Essa tensão entre duas exigências contraditórias - a do "número" e a da "razão"- esteve no coração dos debates da época sobre o sufrágio. Os constituintes tentariam, através da elaboração de algumas medidas (eleição indireta em dois níveis e restrições impostas à elegibilidade dos representantes, principalmente), neutralizar a influência do número, da qual, por outra parte, não podiam subtrair-se.

Contudo, é importante salientar que, diferenciando-se da tradição historiográfica que fez dos homens de 1789 os burgueses "censitários", Gueniffey restitui às origens mesmas da Revolução sua dinâmica democrática. Apesar da Constituinte ter excluído do direito ao voto um certo número de indivíduos (mulheres, empregados domésticos, não-domiciliados, não-contribuintes e mesmo os que pagam uma contribuição direta inferior ao valor local de três jornadas de trabalho), Gueniffey os denomina de "cidadãos passivos" para marcar que não estão excluídos estatutariamente da cidadania do conjunto, nem privados da autonomia necessária à expressão da vontade. Mesmo não votando, são cidadãos, quer dizer, depositários virtuais de um direito que deverá ser alargado em função do aumento de renda, educação, esclarecimento etc. O verdadeiro caráter censitário da Revolução não consiste na distinção que opõe os cidadãos ativos dos passivos, mas a que separa eleitores de elegíveis.

Ao longo do livro, Gueniffey desenvolve essa tese de forma um tanto desordenada. Ao mesmo tempo que retoma, recorrentemente, essa linha de argumentação, o autor abre um leque de questões diversas e interessantes que nem sempre são amarradas umas às outras. Esse traço, que reduz a possibilidade de sintetizar o livro em poucos parágrafos sem injustiçar a riqueza da análise das diversas questões, é ao mesmo tempo uma das características mais estimulantes da sua leitura.

Duas dessas questões merecem especial menção: o problema da abstenção eleitoral tratado nos capítulos 4, 5 e 6; e a relação entre política e eleições no âmbito local (capítulo 9). Em relação ao problema da abstenção eleitoral, Gueniffey desmancha e rebate minuciosamente os argumentos que situam as causas da pouca participação "cidadã" na ignorância ou na falta de civismo do eleitorado. Assinala, antes, a responsabilidade do próprio espírito do sistema eleitoral que dissuade muitos cidadãos de fazer sua parte: basicamente a estrutura de assembléias (reminiscência do período pré-revolucionário), a separação entre eleição e deliberação, e a ausência de uma "oferta" política. A acepção moderna de eleição que, além de ser um procedimento para a seleção de dirigentes, permite ao eleitor - através da opção entre diversos candidatos - "expressar sua opinião" é alheia à Revolução. Nesse sentido, não é a análise dos resultados eleitorais da época o meio adequado para reconstituir as correntes de opinião, mas sim a relação entre participação e abstenção. Abster-se de votar representou, também, uma forma de manifestar a vontade individual.

A análise das relações e interações políticas no plano local no contexto do período pós-revolucionário é o tema central do capítulo 9 ("Uma Aristocracia Invisível?"). Noções caras à antropologia política tais como poder local, facções, clientelas etc., são usadas fecundamente por Gueniffey para abordar o cenário político local da época. E mais ainda, para analisar a maneira complexa pela qual essas formas "pré-políticas" não só continuaram coexistindo com os intentos para constituir um "espaço político democrático nacional", mas, e paradoxalmente, como as características do sistema eleitoral reforçaram a dimensão local da competição política. As novas formas, aplicadas aos "velhos conteúdos", geraram uma nova linguagem e estabeleceram outras regras de jogo para as lutas entre parentelas e clientelas locais, as quais passaram a ser arbitradas pelo sufrágio dos eleitores.

Le Nombre et la Raison é muito mais do que uma história das eleições durante o período revolucionário francês; o livro propõe uma abordagem metodológica no melhor sentido antropológico, um olhar de dentro que permite a restituição de uma experiência nos seus múltiplos aspectos, culturais, intelectuais, sociológicos e políticos. Assim, a compreensão do papel ocupado pelo sufrágio no imaginário

Revista Mana

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