quarta-feira, 30 de junho de 2010

Nobres e Anjos. Um Estudo de Tóxicos e Hierarquia


VELHO, Gilberto. 1998. Nobres e Anjos. Um Estudo de Tóxicos e Hierarquia. Rio de Janeiro: Fundação Getulio Vargas Editora. 214 pp.

Lívia Barbosa
Profª de Antropologia, UFF


Escrever a resenha de um livro que originalmente foi uma tese de doutorado defendida em 1975 impõe, de imediato, discutir as razões pelas quais só foi publicada mais de vinte anos depois, em 1998. Isto se justificaria por um, ou mais, dos seguintes motivos: pertinência do tema, relevância das informações, atualidade das questões teóricas e metodológicas, valor histórico no interior da disciplina, importância da obra na trajetória do autor. Nobres e Anjos preenche pelo menos três desses requisitos. O livro oferece-nos uma boa etnografia sobre o estilo de vida e a visão de mundo das camadas médias da cidade do Rio de Janeiro da década de 70, dando-nos uma perspectiva histórica dos processos de reprodução, diferenciação e hierarquização social da época. Ele pode ainda ser considerado um marco nos estudos de antropologia urbana no Brasil. Por último, sem dúvida alguma, ele representa um passo importante na trajetória intelectual de Gilberto Velho, finalmente resgatado com essa tardia publicação.

Nobres e Anjos tem como um de seus objetivos principais o mapeamento dos estilos de vida e visões de mundo de dois grupos das camadas médias cariocas da Zona Sul da cidade do Rio de Janeiro. Primeiro, os vanguardistas-aristocratas, que pertencem ao que o autor denominou de "roda intelectual-artístico-boêmia". Segundo, um grupo de jovens surfistas, cujo ponto de referência era uma lanchonete em Ipanema, mas com origem social estruturalmente semelhante à do outro - burguesia empresarial e profissionais liberais com projeto de ascensão social -, os "nobres" e os "anjos", respectivamente.

Os "tóxicos" funcionam nesse contexto mais como porta de entrada para esses estilos de vida e visões de mundo do que como tema central. Sua importância é conjuntural, ou seja, funcionam basicamente como demarcador de fronteiras e de hierarquias em determinadas situações, não se constituindo em elemento central na construção da identidade dos dois grupos.

O livro divide-se em seis capítulos, nenhum exclusivamente teórico. Etnografia e teoria misturam-se ao longo de todo o texto, com um predomínio da etnografia. Os três capítulos iniciais dedicam-se à etnografia dos vanguardistas-aristocratas. No primeiro, temos a descrição da composição do grupo, o período de observação, as situações descritas e consideradas importantes pelo autor e o detalhamento do estilo de vida do grupo. O segundo, dedicado ao uso dos tóxicos, descreve padrões de consumo, tipos de tóxicos consumidos, estratégias de compra, hierarquias estabelecidas, categorias sociais associadas ao seu uso e depoimentos. O terceiro apresenta uma descrição da formação cultural e visão política do grupo, sustentada por oito depoimentos, nos quais as perspectivas de mundo aparecem com mais clareza, permitindo-nos entender as vinculações das diferentes percepções e atitudes políticas com o estilo de vida anteriormente descrito.

Por meio dessa etnografia, ficam claros para o leitor os diferentes projetos culturais construídos através do consumo de drogas e o início do processo de "cosmopolitização" das camadas médias altas da sociedade brasileira. Nesse sentido, Nobres e Anjos fornece material valioso para os interessados em uma antropologia do consumo ou em ampliar a discussão sobre estilos de vida como uma forma de segmentação social. Os processos de hierarquização descritos e as categorias utilizadas inter e intragrupos indicam como os sistemas de status eram (e ainda são) protegidos e reproduzidos através do conhecimento dos princípios de classificação dos bens, da hierarquia e da noção de "apropriado", ou seja, do gosto. As viagens e os roteiros turísticos, os tipos de programas de lazer, as roupas, o uso do corpo, os tipos de conhecimentos valorizados, os dias selecionados para jantar fora, as cidades estrangeiras mais "consumidas", os tipos de bebidas preferidas, o jornal estrangeiro lido - todos servem como marcadores sociais, tornando possível mapear o universo de gosto e de estilos de vida e as oposições estruturais e diferenças que operavam na nossa sociedade na década de 70.

Neste contexto, os trabalhos de Bourdieu, Mary Douglas e Isherwood acerca do papel desempenhado pelas mercadorias do setor terciário na reprodução social dos segmentos no ápice da pirâmide social são adequados para entender os vanguardistas-aristocratas. Esses autores observam que o tempo e o investimento em capital simbólico e cultural se tornam uma necessidade permanente à medida que subimos na pirâmide social, a fim de que as atividades de consumo e o estilo de vida possam ser mantidos como marca conspícua de diferenciação social. Informações sobre bens e mercadorias (como, quando, por que e com quem usá-los) tornam-se fundamentais na criação de barreiras de ingresso, técnicas de exclusão e pontes com pessoas e visões de mundo semelhantes.

A etnografia dos vanguardistas-aristocratas permite uma outra linha de reflexão bastante fértil. Refiro-me aos primeiros passos das camadas médias e altas da sociedade brasileira em direção a um consumo cosmopolita, com o objetivo de se integrarem em um circuito e em um projeto cultural que hoje poderíamos denominar de "globalizado". Esse circuito permite que os "nobres" brasileiros se sintam em casa em solo europeu e estrangeiros em sua própria terra. A etnografia registra bem essa vontade de "pertencer ao mundo", uma marca hoje bem mais disseminada entre camadas médias urbanas brasileiras.

O quarto capítulo é dedicado inteiramente ao grupo dos jovens surfistas. Em comparação com o primeiro grupo, as informações sobre os surfistas são, infelizmente, limitadas. Em nenhum momento sabemos quantas pessoas foram consideradas "membros", nem o motivo exato pelo qual esse grupo de jovens foi escolhido, nem quanto tempo duraram as observações, nem como o estudioso abordou os seus informantes etc. Há a descrição de alguns incidentes, mas não de qualquer "situação" formal, como no caso dos vanguardistas-aristocratas. Predominam no texto citações esporádicas das falas de membros do grupo, e não depoimentos mais estruturados, como no exame do primeiro grupo. O desequilíbrio nas abordagens dos dois grupos é evidente e nunca chega a ser inteiramente explorado de forma consistente pelo autor.

No quinto capítulo o autor propõe-se a fazer uma comparação entre os dois grupos e inicia esta tarefa procurando resolver precisamente o problema do desequilíbrio entre as etnografias de forma a legitimar a comparação. Sua estratégia é explicitar as diferentes circunstâncias em que as pesquisas foram realizadas e refletir sobre as conseqüências delas. No que concerne ao grupo vanguardista, ficam claros os laços afetivos íntimos que existem entre os seus membros e o autor. Ele revela que as pessoas do grupo "representam parte considerável do meu círculo de relações", admitindo que se considera parte do universo investigado, compartilhando das mesmas visões de mundo (:185). Portanto, quanto a esse grupo ficam claras para o leitor tanto as facilidades do acesso como as dificuldades metodológicas e teóricas que daí podem resultar, embora o autor se resguarde de elaborá-las.

Em relação aos surfistas, a situação de pesquisa é descrita como difícil. O acesso foi, no mais das vezes, indireto. O autor admite que falou pouco com esses jovens e que as entrevistas foram obtidas com dificuldade (:186). Mesmo com esse esclarecimento, o autor é muito econômico na discussão das conseqüências das diferenças entre os dois grupos e não tira as dúvidas que persistem no leitor.

De toda forma, a comparação é feita e o procedimento crucial que a viabiliza é a atribuição, por parte do autor, da classificação de "grupo de status" para ambos os grupos. A partir de uma mesma matriz socioeconômica, legitimada pela educação, Velho procura demonstrar que se desenvolveram duas visões de mundo distintas, representadas pelos dois grupos, que se relacionam com tendências mais amplas existentes na sociedade, como a roda intelectual-artístico-boêmia e a "contracultura carioca".

Embora distintos em termos etários, em estilos de vida, em percepções políticas, nas formas praticadas de hedonismo, os dois grupos apresentam, contudo, pontos de contato. Um deles é o uso de tóxicos e os "problemas decorrentes da ilegalidade da atividade e do desvio em relação à cultura dominante". Outro ponto de contato é o aristocratismo que, embora com formas diferentes e conteúdos específicos, expressa um princípio hierarquizador ativo, tanto para os vanguardistas-aristocratas como para os jovens surfistas.

No entanto, pareceu-me que a forma como a comparação foi levada a cabo e o caminho encontrado pelo autor para legitimá-la acaba por ocultar um aspecto que, em textos posteriores, se tornou um dos principais projetos intelectuais de Gilberto Velho e uma das suas mais importantes contribuições: o mapeamento das diferentes expressões do individualismo existentes no interior das camadas médias. Em Nobres e Anjos esse interesse se esboça claramente. A preocupação com as biografias individuais - com a noção de talento e criatividade associada à competição, a busca pela autenticidade e pela expressividade interiores, a busca pelo autoconhecimento via psicanálise e um hedonismo assentado na busca por "prazeres" dos vanguardistas-aristocratas - contrasta com a maneira pela qual os jovens surfistas constroem as noções de individualidade, de liberdade, de igualdade e de um hedonismo centrado em sensações e oferece-nos sugestões importantes através dos múltiplos caminhos que o individualismo pode encontrar no seio das camadas médias.

O autor conclui, chamando a atenção para que não se tome rigidamente a noção de visão de mundo. A analisada é cheia de ambigüidades e suas fronteiras flutuantes. Ao mesmo tempo que é importante demarcar grupos, mais ainda é entender as suas trocas e influências recíprocas. Nesse sentido, Velho considera importante observar que, se do ponto de vista socioeconômico esses grupos poderiam estar associados a uma cultura dominante/oficial, eles também podem ser considerados "oprimidos", na medida em que não se encontram inteiramente livres para expressar suas respectivas visões de mundo e posições em relação ao "tóxico". Do ponto de vista de uma cultura oficial, ele pode funcionar como um elemento englobante, abarcando no seu interior segmentos inteiramente distintos em suas respectivas visões de mundo a partir da categoria "desviante". Entretanto, categorias abrangentes, como "consumidores de tóxicos", podem ser enganosas, tendo em vista que, não é o fato do uso dessas substâncias que dá unidade a essas pessoas, mas a maneira como são utilizadas.

Revista Mana

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