domingo, 13 de junho de 2010

l'homme des Médicis


Prof. Dr. Jônatas Batista Neto
Departamento de História -FFLCH/USP

LE MOLLÉ, Roland. Giorgio Vasari, l'homme des Médicis. Paris, Grasset, 1996.

Biografias sempre foram e sempre serão populares e talvez sejam mesmo uma das melhores formas de, prazerosamente, se ter acesso a um determinado período histórico, desde que, naturalmente, à fantasia o Autor prefira a reconstituição cuidadosa do enquadramento sócio-cultural do personagem retratado.

Agora mesmo, a Companhia das Letras acaba de publicar duas obras desse gênero, um tanto diferentes entre si mas igualmente interessantes. A primeira é a biografia de Maria Callas de Arianna Stassinopoulos Hutchinson e a segunda é Santa Evita, que o seu autor, Tomás Eloy Martínez, chama de romance mas que, na verdade, se trata mais de um relato "biográfico" (ou será "tanatográfico"?), só que não do personagem vivo mas do seu cadáver.

Por outro lado, da França, nos chega este Giorgio Vasari, l'homme des Médicis, cujo título parece perfeitamente apropriado como teremos oportunidade de esclarecer mais adiante. Não se trata da primeira vida de Vasari. Ela vem precedida de pelo menos duas outras, ambas de autores britânicos: a de R.W. CARDEN, de 1910 (Life of Giorgio Vasari), e uma mais recente, de T.S.R. Boase (Giorgio Vasari, the Man and the Book, 1979). Não é de se estranhar que esses trabalhos procedam da Inglaterra. Os ingleses sempre tiveram grande apreço pela História e pela cultura florentina e muitos deles deram uma contribuição decisiva para o conhecimento do passado da cidade como, por ex., Christopher Hibbert, John Rigby Hale e Nicolai Rubinstein, este último responsável pela edição das cartas de Lourenço o Magnífico. Quanto à obra histórica de Vasari, a famosa coletânea de vidas de artistas do Renascimento, está sendo editada, desde de 1966, sob os cuidados de P. Barocchi e R. Bettarini.

Giorgio Vasari teve grande fama no seu tempo mas, hoje, se encontra injustamente esquecido. Sua contribuição, extremamente ampla, foi importante e, como verdadeiro homem do Renascimento, produziu em disciplinas diversas, que vão da literatura às artes plásticas. Sob certos aspectos ele se assemelha a Miguelângelo, com a ressalva de que este foi poeta, e a Benvenuto Cellini, que ditou a um ajudante a própria biografia, com a diferença, talvez em favor dele, de que a sua criação literária, além de ser monumental, foi elaborada com um rigor que talvez não seja exagerado chamar de científico.

Em 1511, quando nasceu, os Médicis se preparavam para retornar a Florença, de onde haviam sido expulsos na última década do século XV. Em 1512, Juliano, duque de Nemours, filho do Magnífico, se instala na cidade, no ano seguinte seu irmão Giovanni é eleito papa com o nome de Leão X, graças ao apoio dos cardeais Hipólito d'Este e Ghismondo Gonzaga e, finalmente, concluindo o restabelecimento dos Médicis como casa principesca reinante, o pontífice despacha Lourenço, duque de Urbino, neto do Magnífico, para a sua cidade natal, onde este reorganiza de forma adequada o poder originário dos ancestrais com base nos antigos vínculos políticos com as famílias tradicionais e com os grupos populares de sustentação.

Quando o duque de Nemours e o duque de Urbino desaparecem vitimados pela tuberculose e pela sífilis, os bastardos Hipólito e Alexandre se tornam os herdeiros dos direitos e das expectativas da dinastia. Vasari, que era filho de um oleiro de Arezzo, cidade a essa altura já súdita de Florença, foi educado juntamente com os jovens citados, sob o controle vigilante de um preceptor, o cardeal Silvio Passerini. Por que razão não sabemos exatamente. Talvez porque tivesse revelado precocemente alguma faceta dos seus múltiplos talentos. De qualquer forma, um dos aspectos mais relevantes do seu destino, qual seja a vinculação com os Médicis, já se estava revelando desde a mais tenra idade e deveria ser duradouro, pois se manteve até a morte de seu derradeiro mecenas, o duque Cosme I (1574).

Se é verdade que o duque Cosme, a quem recorreu igualmente Benvenuto Cellini, foi não só o último como também o maior de todos os protetores de Vasari, é preciso não esquecer que, durante os seus 63 anos de vida, nunca lhe faltou trabalho dado que recebeu sempre, e de forma ininterrupta, encomendas nos domínios da pintura, da arquitetura e da decoração de papas, de membros da família Médicis, de príncipes diversos e ainda de instituições religiosas. Sua imensa obra se explica por dois fatores bem conhecidos: uma facilidade, uma fluência natural e a utilização de equipes de ajudantes.

Como pintor, Vasari trabalhou, por ex., no retábulo da Imaculada Conceição da Igreja dos Santos Apóstolos e na decoração do Salão dei Cinquecento bem como em outras dependências do Palazzo Vecchio. É seu também o notável retrato póstumo de Lourenço o Magnífico, em que o governante florentino aparece curvado, crispado pelas dores da gota, a doença tradicional dos Médicis. Em Roma, trabalhou na sala Regina do Vaticano e na "Sala dos Cem Dias" do palácio da Chancelaria, assim chamada pelo curto tempo que levou para completá-la. A tradição registra que, quando Vasari mostrou a sala a Miguelângelo, gabando-se de tê-la concluído em tão breve período, este teria murmurado: "Percebese!" Foi também arquiteto, como já se disse, deixando sua contribuição nos Uffizi de Florença e no Palácio dei Cavalieri de Pisa.

Paralelamente a essa produção pictórica e arquitetônica, Vasari concluiu em 1550, uma coletânea monumental de biografias de artistas do Renascimento, as "Vidas dos mais excelentes pintores, escultores e arquitetos". Trata-se, segundo muitos, da primeira História narrativa e crítica da arte, na qual muitas opiniões e juízos interessantes são emitidos como, por ex., os relacionados com os conceitos de proporção, traçado, esquema e maneira, padrões pelos quais os artistas são avaliados. O impulso filosófico que deu origem ao trabalho é o mesmo que animou Maquiavel e Guicciardini, ou seja: a idéia de que o relato de carreiras notáveis e de grandes realizações encoraja e instrui. Vasari queria dar ao artista um status respeitável e ao mesmo tempo discutir questões formais e técnicas. No prefácio, por ex., ele se estende sobre os diversos materiais e procedimentos. Por outro lado, a maneira pela qual elaborou a obra é particularmente interessante: viajando pela Itália, entrevistou artistas e amigos sobreviventes de artistas falecidos, examinou a correspondência de muitos deles e fez leituras variadas. De um modo geral - mas não totalmente - a informação que veicula é correta.

Giorgio Vasari incorpora nas suas "Vidas" a noção de progresso nas artes e a de autonomia da evolução da pintura, da escultura e da arquitetura. Estabelece também uma periodização para a História da Arte Ocidental. Segundo ele, após a queda de Roma a arte declina e esse declínio dura até pelo menos 1250, quando começa a renascer. Sua avaliação da produção bizantina é severa: trata-se de manifestação

pouco importante, caracterizada pela insipidez. A partir de 1250, há uma primeira fase, chamada de Infância e marcada pela figura do Giotto, cuja característica principal é a imitação da Natureza; a seguir, vem a Juventude, com Masaccio, quando a experimentação, a perspectiva e a anatomia se afirmam; finalmente, num terceiro e último momento, com Leonardo, Rafael e Miguelângelo, conseguese ir "além da Natureza". Vasari considerava que a Época Renascentista transcorrera entre 1300 e 1560, ano da morte de Miguelângelo, periodização que podemos ainda considerar válida e que não é basicamente contrariada em obras do nosso tempo como, por ex., A Civilização do Renascimento de Jean Delumeau. Outra contribuição de Vasari foi a fixação do termo "Renascimento" (Rinascita) na historiografia, um resultado das suas especulações sobre todas essas questões históricas e artísticas.

A biografia de Roland Le Mollé faz jus à injustiçada grandeza do artista-biógrafo aretino. Todos os aspectos da sua existência e do seu labor são examinados e a sua época ressurge na sua esplêndida beleza. A nosso ver, uma biografia se justifica dessa forma, ou seja: se ela for suficientemente minuciosa e acurada e se conseguir recriar o período em que o personagem se insere ao menos nos seus aspectos fundamentais.

Revista de História - USP

Nenhum comentário: