quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010

Os condenados da cidade: estudos sobre a marginalidade avançada

Pânico dos pobres: convergência de preconceitos entre o Atlântico

Cristina Monteiro de Queiroz

Mestranda em Sociologia Urbana na Universidade de Brasília (UnB). E-mail: cristinaqueiroz@hotmail.com


WACQUANT, Loic. Os condenados da cidade: estudos sobre a marginalidade avançada. Rio de Janeiro: Revan, 2001. 198p.

O livro é uma coletânea de artigos do autor escritos entre os anos de 1992 a 1999 em periódicos nacionais e internacionais, acrescido de uma palestra ministrada no 17º Encontro Anual da Anpocs no ano de 1993 e de um capítulo do livro Logic of urban polarization, de 1999.

Pode-se apontar como dois os principais objetivos do autor. O primeiro é indicar que está em início um processo de marginalidade com características peculiares, típicas das sociedades avançadas e que se distingue das formas de marginalidades urbanas usualmente conhecidas desde o pós-guerra, o que o autor conceitua como marginalidade avançada. O segundo é apontar as diferenças existentes nas formas de marginalidade avançada nas sociedades norte-americana e francesa, principalmente.

Wacquant baseia sua análise em evidências empíricas, em dados coletados direta ou indiretamente por ele nas duas sociedades analisadas. Mais especificamente, a região de South Side de Chicago, que faz parte do que ele chama de Cinturão Negro norte-americano, e o Cinturão Vermelho formado pelos bairros operários da periferia parisiense, as banlieues ou cités, principalmente Courconeuve, com uma ênfase maior dada ao conjunto habitacional Quatre Mille. O autor, em todas as suas análises, tem como foco as estruturas externas pois estas, segundo ele, influenciam, mesmo que indiretamente, a produção da consciência.

O livro é constituído por duas partes, além do prólogo, a apresentação feita na Anpocs, e do epílogo. A parte I, intitulada "Transformações do gueto norte-americano na realidade e no discurso público", é composta por dois artigos e tem como objetivo analisar mais profundamente as mudanças ocorridas no gueto e no discurso – tanto político e jornalístico quanto científico sobre a pobreza e a marginalidade, e na própria sociedade norte-americana. Já a segunda parte, também composta por dois artigos, é uma comparação empírica do cinturão vermelho e do negro apontando algumas semelhanças e enfatizando as diferenças, assim como as dificuldades trazidas com a importação de conceitos e modelos de outras realidades sem a devida análise e conhecimento. O epílogo traz, de uma forma mais sistematizada, as características da marginalidade avançada e as críticas aos meios usuais utilizados pelos governos para contorná-la, sugerindo que a melhor maneira seria uma efetiva reconstrução do Estado de Bem-Estar, de forma que se permitissem políticas sociais que fossem além do paradigma de mercado.

Na primeira parte, Wacquant define o conceito de gueto como tipo-ideal da seguinte forma: "formação socioespacial delimitada, racial e/ou culturalmente uniforme, baseada no banimento forçado de uma população negativamente tipificada (...) para um território reservado, no qual essa população desenvolve um conjunto de instituições específicas que operam ao mesmo tempo como substituto das instituições dominantes da sociedade abrangente e como neutralizador contra elas" (p.50).

A partir daí, ele levanta uma série de diferenças entre o que ele chama de gueto comunal dos anos 1960 e o hipergueto, fenômeno recente que vem se configurando nas últimas décadas. Essas mudanças são atribuídas, de maneira geral, a razões econômicas e políticas, tais como: mudanças no mercado de trabalho que causaram uma sobre-representação de desempregados no gueto negro; segmentação racial da mão-de-obra de baixos salários; concentração da pobreza negra via políticas urbanas nitidamente racistas e a redução do escopo do Estado de Bem-Estar norte-americano. De forma resumida, ele atribui grande parte dos problemas que atingem os habitantes do gueto não às tendências impessoais macroeconômicas, mas às opções feitas por uma elite urbana em abandonar o gueto a essas forças e relaciona a violência observada nessas regiões às respostas de violências estruturais sofridas por esses mesmos habitantes.

Outra mudança importante foi a que ocorreu no discurso tanto do senso-comum quanto do científico que tenta entender a pobreza urbana. Houve um deslocamento do que até então era visto como impedimentos estruturais de raça, classe e pobreza para termos de motivações pessoais e patologias sociais.Toda essa nova concepção pode ser explicitada pelo conceito de underclass, "termo que pretende denotar um novo segmento dos pobres das minorias, supostamente caracterizado pela deficiência comportamental e pelo desvio cultural" (p.46). Termo cunhado pelos jornalistas, mas rapidamente apropriado por cientistas sociais.

A genealogia desse conceito é descrita por Wacquant e seu uso agrupado em três famílias segundo suas formas mais recorrentes. A conclusão a que chega o autor é que, antes de ser uma ferramenta de análise, o termo diz mais a respeito de quem o utiliza, ou seja, deve ser estudado como objeto de concepções e (pre)conceitos coletivos e não como um instrumento para mensurar a realidade.

A segunda parte do livro faz uma análise sociológica comparada de duas realidades distintas, mas que têm sido bastante aproximadas pelos discursos políticos, midiáticos e científicos: o pânico moral de que os bairros da periferia francesa se tornem guetos à americana, com uma forte concentração de imigrantes, violência generalizada, maior isolamento e caracterizados pela anomia.

De fato, segundo o autor, existem fenômenos que parecem indicar tal convergência entre as sociedades, tais como algumas características demográficas, e o estigma que os habitantes sentem por viverem em um local de exílio. Entretanto, comparando as estruturas e a formação desses locais, vêem-se grandes diferenças que são desconsideradas e muitas vezes obscurecidas por análises rápidas e superficiais.

Essas diferenças são verificadas através de divergências de tamanho, de níveis de pobreza e de taxas de criminalidade entre as duas comunidades estigmatizadas, assim como níveis de penetração diferentes do Estado nessas comunidades: o Estado francês promove políticas de reurbanização que, apesar de não atingirem as raízes dos problemas que afligem os habitantes – o desemprego e o subemprego – se responsabiliza por esses bairros, diferentemente da política de abandono do governo norte-americano. E o mais marcante é a composição étnica: diferentemente dos Estados Unidos, onde o gueto é constituído majoritariamente por negros, as banlieues são constituídas por uma grande heterogeneidade étnica e, apesar de ter aumentado o número de imigrantes nesses bairros, a maioria da população que neles vive é de famílias francesas.

Em outras palavras, vistas como fenômenos, as duas realidades se confundem: aumento das desigualdades e tensões sociais nessas comunidades, do desemprego crônico e do subemprego, assim como a ineficiência do Estado em lidar com essas questões são características comuns às duas. Entretanto, a intensidade, a forma de segregação, a composição e até mesmo a vivência do estigma pelos habitantes são distintas entre o gueto norte-americano e as banlieues francesas.

Nos Estados Unidos, a segregação é principalmente racial, amparada e / ou tolerada pelo Estado, enquanto que na França a segregação é basicamente de classe: os imigrantes estão sobre-representados nas banlieues, porque estão sobre-representados nas classes mais baixas da sociedade. Além disso, não se deve falar em uma guetização dos bairros operários franceses à medida que um dos elementos constitutivos do conceito de gueto é a presença de instituições relativamente independentes do restante da sociedade e, na realidade francesa, há uma grande participação e interação da população das banlieues com as instituições gerais. Da mesma maneira, Wacquant destaca que o uso de conceitos e modelos de análise norte-americanos, como o termo underclass, nada acrescenta para entender a problemática dos fenômenos urbanos franceses.

Uma preocupação do autor que perpassa o livro todo é mostrar como os habitantes dessas comunidades estigmatizadas passaram de conseqüência a causa, em outras palavras, de marginalizados para marginais, no sentido de serem os responsáveis conscientes por sua situação precária. Pois, em última instância, o pânico moral dos franceses de que seus bairros se tornem guetos está intimamente ligado a um discurso de culpabilização principalmente, neste caso, dos imigrantes.

A convergência, neste caso, seria, não de estruturas sociais, mas de preconceitos de uma elite política aceitos por parte de uma população acomodada que, por ineficiência de políticas públicas, ou mesmo pelo descaso dessas, tendem a encontrar uma explicação rápida e que legitime a sua (não) ação com a "satanização" dos pobres, o como o próprio autor coloca, com uma psicologização de fatores sociais.

Finalmente, no epílogo, o autor sistematiza e conceitua a marginalidade avançada: "novas formas de encerramento social excludente e de marginalização que surgiram – ou se intensificaram –, na cidade pós-fordista como resultado não do atraso, mas das transformações desiguais e desarticuladas dos setores mais avançados das sociedades e economias ocidentais, à medida que repercutem nos extratos mais baixos da classe trabalhadora e nas categorias etnorraciais dominadas, bem como nos territórios que estas ocupam na metrópole dividida" (p.165). Como características da marginalidade avançada são citadas: a forte desigualdade social; a dissociação das tendências macroeconômicas e a melhoria dos bairros pobres; o desemprego crônico; a fragmentação do Estado de Bem-Estar e a concentração da pobreza em territórios demarcados e estigmatizados.

Segundo o autor, os Estados têm agido de duas maneiras em face desse fenômeno: com um aumento do aparelho penal e através de pequenas mudanças nos programas sociais já existentes. Entretanto, segundo ele, a única forma viável para conter a marginalidade avançada seria por intermédio de uma radical reconstrução do Estado de Bem-Estar, onde políticas sociais estariam dissociadas da necessidade de se ter um emprego, como a instituição de uma renda mínima ou um salário cidadão.

Apesar de centrar suas análises em dois países ocidentais desenvolvidos, o autor tem a intenção de expandir os seus instrumentos de análise para que se possa repensar a marginalidade em várias sociedades. Para isso, ele sugere, na apresentação do livro, ferramentas para tal análise. Vale a pena ressaltar que o prefácio do livro – escrito por Luiz César de Queiroz Ribeiro – é, de forma resumida porém interessante, uma tentativa de compreensão da realidade das favelas brasileiras à luz desse instrumental disponibilizado por Wacquant.

Uma contribuição extremamente importante de Wacquant é o questionamento dos conceitos e modelos de análise que ele efetua apesar de não ser um de seus objetivos explícitos. Problematiza, dessa forma, os conceitos que muitas vezes estão em voga nas agências internacionais, mas que, em vez de realizarem trocas de conhecimentos, talvez estejam efetuando, na melhor das hipóteses, intercâmbios de visões enviesadas.

O livro traz contribuições importantes para o entendimento da nova pobreza nas sociedades avançadas alertando para o perigo de análises superficiais que vão ao encontro de interpretações jornalísticas de ampla aceitação do senso-comum. E, ao mesmo tempo em que caracteriza um novo tipo de pobreza – a marginalidade avançada –, aponta para a importância das peculiaridades históricas e culturais das sociedades analisadas a fim de melhor compreender a sua função e a sua estrutura. Apesar de não dialogar muito ao longo do livro com autores brasileiros, exceto algumas poucas citações na apresentação e no prólogo – a palestra da Anpocs –, o autor chega a conclusões semelhantes a de pesquisas recentes sobre as desigualdades sociais brasileiras, como o estudo de Medeiros (2005), quando sugere a ineficiência de políticas que tentam combater a pobreza a partir do crescimento econômico, alegando como única maneira viável a distribuição de renda, apesar de não usarem exatamente essa expressão.

Referência

MEDEIROS, Marcelo. O que faz os ricos ricos: o outro lado da desigualdade brasileira. São Paulo: Hucitec, 2005.

Revista Sociedade e Estado - UNB

Quando a cidade é objeto de pesquisa

Quando a cidade é objeto de pesquisa

Delia Dutra da Silveira

Aluna especial da disciplina Cidade e Sociabilidade Urbana, no curso de Doutorado em Sociologia da Universidade de Brasília (UnB); pesquisadora-colaboradora do Centro Scalabriniano de Estudos Migratórios (CSEM) de Brasília; mestre em Ciências da Comunicação pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos). E-mail: deliadutra@gmail.com


LEPETIT, Bernard; TOPALOV, Christian. La ville des sciences sociales. Paris: Belin, 2001. 409p.

Foi na cidade de Paris, em 1989, que dois professores da École de Hautes Études em Sciences Sociales (EHESS), Bernard Lepetit e Christian Topalov, começam a organizar um seminário ao qual denominaram "La ville de sciences sociales". Preocupava-os o estudo e o debate sobre as representações científicas da cidade, pois para eles nas ciências sociais as modalidades de construção da cidade como objeto de ciência variam profundamente.1 Durante os períodos 1995-1996 e 1996-1997, eles convidaram pesquisadores de diversas disciplinas para participarem do seminário, propondo a cada um assumir a discussão da obra de um autor considerada fundamental para os estudos da cidade, la ville. Era uma idéia comum de Lepetit e Topalov publicar um livro como resultado desse trabalho em colaboração com os pesquisadores convidados, idéia que finalmente se materializou em 2001, apesar do falecimento de Bernard Lepetit em 1996.

La ville des sciences sociales é o resultado desse trabalho conjunto onde entram em cena nove pesquisadores para analisar a obra de um autor cujo referente comum é a problemática urbana. Levando em conta a abrangência deste empreendimento, considerando que estamos perante um livro que refere a tantos outros, faremos aqui a nossa navegação seguindo a ordem proposta pelos capítulos.

Maurice Halbwachs, sua obra e as suas marcas, são objeto do primeiro capítulo escrito por Christian Topalov,2 que explicita como sendo resultado de uma pesquisa onde ele visava esclarecer a construção do objeto "cidade" em Halbwachs, partindo basicamente de dois documentos fundamentais: o livro resultado da tese de doutorado que Halbwachs defendeu com 32 anos, em 1909, intitulada Les expropriations et le prix des terrains à Paris (1860-1900), e uma brochura publicada em 1908, La politique foncière des municipalités, a número três da coleção "Les Cahiers du Socialiste".

Topalov analisa questões instigantes para a compreensão do pensamento de Halbwachs e que, já na época, se levantavam a propósito dessas duas publicações: por que um professor de filosofia e membro da "escola de sociologia", escreve uma tese para a Faculdade de Direito sobre a história dos terrenos em Paris?; qual o lugar em que o autor pretende se colocar na topografia das disciplinas e de que tipo de estudo dos fenômenos urbanos pode se tratar?; finalmente, que "socialista" é esse "sociólogo" cujo trabalho nos ensina as relações entre socialismo e "urbanismo", disciplina que está nascendo?

Questões reveladoras que ajudam a melhor compreender sua obra, seu lado de sociólogo e seu lado de militante, mas não sem antes Topalov nos introduzir num contexto de produção em que Halbwachs acabou sendo considerado a maior figura da denominada "segunda idade do durkheimismo" e, para alguns de forma tardia, o precursor da sociologia urbana francesa. Além da sua proximidade ao pensamento de Durkheim e de Simiand, pode-se encontrar nele influências de pensadores alemães, país onde esteve pesquisando como bolsista em duas oportunidades. Destaca-se, também, a importância do seu estágio em 1930 no Departamento de Sociologia da Universidade de Chicago, e as posteriores publicações, nos anos 1960, de sociólogos americanos formados pela Escola de Chicago onde reconhecem a estreita afinidade entre a morfologia francesa – na qual se inclui a Halbwachs junto com Durkheim e Mauss – e a ecologia humana, assim como a antecipação das hipóteses de Halbwachs sobre crescimento urbano.

Toda essa sorte de reivindicações tão diversas, segundo Topalov, promoveu Halbwachs ao lugar de clássico, etambém, desde os anos 1990 mobilizou o mundo acadêmico de historiadores e sociólogos como o pensador da memória coletiva. Claramente inspirado na proposta durkheimiana, em Les cadres sociaux de la mémoire (1925), Halbwachs demonstra a impossibilidade de conceber o problema da evocação e da localização das lembranças abrindo mão dos quadros sociais reais que servem de pontos de referência nesta reconstrução que chamamos memória.3 Em La mémoire collective (1950), seu livro póstumo, o autor defende o caráter social da memória, no sentido de que ela existe em relação a pessoas, momentos, palavras, idéias; isto é, a memória individual conformada a partir de uma memória coletiva demarcada pelo tempo e pelo espaço, entendidos pelo autor como construções sociais seguindo a proposta de Durkheim. De acordo com Topalov, Halbwachs foi um intelectual que só aos 41 anos obteve seu primeiro cargo de professor universitário, porém, ele conseguiu ultrapassar as paredes da universidade para dialogar com o mundo dos urbanistas franceses e dos arquitetos italianos que se interessaram por suas propostas metodológicas para o estudo das cidades.

Die Stadt, texto célebre de Max Weber sobre a cidade, é o objeto de análise no segundo capítulo escrito por Hinnerk Bruhns.4 O autor realiza uma retomada do texto de Weber confrontando-o com o conjunto de comentários e análises que deste vêm se fazendo ao longo da sua vida ainda incerta, lembrando que este texto – não datado e publicado um ano depois da morte de Weber – estima-se que foi escrito entre 1913-1914. Trata-se de um manuscrito inacabado encontrado pela esposa de Weber e que hoje está perdido, cujas várias publicações posteriores, por exemplo em Economia e Sociedade, foram reproduzindo e até multiplicando alguns erros como resultado dos problemas surgidos ao decifrá-lo, traduzi-lo, assim como também problemas de redação próprios do texto, considerando que Weber não teria chegado a realizar uma última revisão.

Ancorado no seu profundo conhecimento da obra weberiana, Bruhns adota uma posição bem clara durante todo o capítulo apontando os erros de leituras e de interpretações generalizados de uma obra cuja complexidade dificulta poder delimitá-la a uma única disciplina. O autor realiza um interessante percurso buscando responder a três questões que, na sua visão, tornam-se essenciais e ajudam a evitar confusões: primeiro, o que nós sabemos da história do texto em si mesmo e das circunstâncias de redação; segundo, qual a função que devemos lhe atribuir no conjunto da obra de Weber e quais as relações com outras partes da sua obra, observando o lugar que nela ocupa a cidade, incluindo a cidade moderna; e, por último, quais os laços com a pesquisa urbana da época de Weber e com os debates contemporâneos sobre a cidade, em particular sobre a cidade medieval.

Passando agora ao terceiro capítulo, Donatella Calabi6 propõe um reencontro com Marcel Poëte e sua obra, resgatando a sua importância para a história urbana na França, na Europa e na América Latina. Poëte é para alguns uma espécie de pai fundador do urbanismo historicista e também um dos grandes protagonistas do pensamento europeu do início do século XX em matéria de urbanismo. Contudo, conhecer sua atividade durante os anos da juventude, como bibliotecário, arquivista, organizador de exposições e como historiador, torna-se fundamental, segundo Calabi, para medir a originalidade da sua posição tanto no mundo científico quanto o mundo prático-profissional.

Suas duas obras mais referenciadas são: Une vie de cite: Paris de sa naissance à nos jours, quatro volumes publicados entre 1924 e 1931, e Introduction à l'urbanisme : l'évolution des villes, publicado em 1929, no qual o autor vai definir o urbanismo como ciência da observação – ele defendia a necessidade do contato direto com o objeto de estudo. Seu ponto de partida conceitual em Une vie de cité é a cidade hoje; nela Poëte busca descobrir os traços do passado, salientando especialmente o quarto volume, pela sua abordagem original para a época, onde ele se centra na análise de uma iconografia extremamente rica.

A autora dá uma ênfase especial ao trabalho crítico do qual Poëte foi objeto e os ciclos pelos quais vem passando sua obra, isso como uma porta de entrada à compreensão da dimensão da obra do autor. Nessa linha, ela identifica três ondas sucessivas de estudos e interpretação: uma primeira como aquela de um Poëte pioneiro do "urbanismo" na França e para além de suas fronteiras, notadamente a Argélia e a América Latina; uma segunda como iniciador da análise urbana, tendo muito eco nos anos sessenta entre arquitetos italianos e do resto da Europa, denominando a sua contribuição teórica de "geografia urbana"; e, uma terceira e última onda nos anos oitenta, onde Poëte é resgatado no âmbito da historiografia do urbanismo francês.

The Ghetto, tese de doutorado em Sociologia defendida em 1926 por Louis Wirth na Universidade de Chicago, é o tema central do capítulo quatro onde Catherine Rhein6 enriquece a análise desta obra – publicada pela primeira vez em 1928 aprofundando os principais elementos do contexto social, econômico e político no seio do qual Wirth a escreveu. Logo, concentra-se na apresentação crítica do livro para encerrar analisando as condições e formas de recepção desta obra que, de acordo com Rhein, amiúde é julgada como sendo menor por causa de leituras rápidas e completamente descontextualizadas; porém, ela está sendo constantemente reeditada e referenciada.

Wirth na sua tese determina por objeto o gueto como instituição e como forma urbana e social; ele pesquisa sobre sua formação e institucionalização na Europa cristã, e logo sobre sua transplantação para as cidades do Novo Mundo. No entanto, sua obra transcende pela sua tese sobre o judaísmo, sua história e o seu porvir assim com também, pelo seu artigo O urbanismo como modo de vida, publicado em 1938 e atualmente considerado essencial para os estudos da problemática urbana. Nele o autor desenvolve uma teoria sociológica e sociopsicológica do urbanismo7 com o intuito de construir um referencial de análise que, por momentos, se inspira e dialoga com a proposta de Simmel, sobre a "metrópole e a vida mental", e com a de Park e as suas "sugestões para a investigação" da problemática urbana. Para Wirth o modo de vida urbano ultrapassa os limites da própria cidade, por ele definida como "um núcleo relativamente grande, denso e permanente, de indivíduos socialmente heterogêneos".8

Falar em Wirth e no seu contexto de produção implica desvendar os bastidores do trabalho desenvolvido pelos docentes e estudantes da denominada "Escola de Chicago", as suas pesquisas de caráter monográfico e geralmente subordinadas às demandas das autoridades da época, assim como o contexto político no início de século numa sociedade onde correntes como o anti-semitismo e o anticomunismo se instalaram com força. Elementos esses que nos ajudam a compreender o porquê da centralidade nestas pesquisas de questões relacionadas ao acelerado processo de urbanização das metrópoles norte-americanas, e nos ajudam a compreender os contornos, interesses e silêncios aparentes da Sociologia de Chicago. Implica, também, reconhecer neles as influências do pensamento europeu, pois muitos auatores que o influenciaram formaram-se na Alemanha com Weber e Simmel, e o seu diálogo com as origens da sociologia urbana francesa. De acordo com Rhein, a verdadeira recepção desta obra nas ciências sociais francesas se produz quando as questões ligadas à imigração e ao "risco do gueto" chegaram na agenda política no início dos anos 1980.

Marie-Claire Robic9, autora do capítulo cinco, busca compreender em que condições gerais acontece a emergência da análise que realizou Walter Christaller ao desenvolver sua conhecida teoria dos "lugares centrais", apresentada no livro Die zentralen Orte in Süddeutschland, publicado em 1933. Clássico da geografia urbana contemporânea, produto da sua tese de doutorado, este livro somente foi consagrado uns trinta anos após a sua publicação; várias são as razões desta consagração tardia, mas haveria uma razão principal vinculada à pessoa de Christaller, não à sua teoria em si mesma, pela sua vinculação a instituições do regime nazista.

O livro se desenvolve em quatro momentos: um primeiro onde se expõe a fundamentação teórica de uma geografia das cidades; um segundo que propõe articular teoria e um conjunto observável de cidades; um terceiro de caráter "regional", no qual descreve em detalhe diversos "sistemas" de cidades que estuda na Alemanha do Sul; e um quatro onde conclui com uma "verificação da teoria" a partir de resultados obtidos e os "resultados metodológicos" para a geografia do povoamento, apontando para a pertinência do método econômico. Christaller é considerado o "padrinho" da new geography, movimento dos geógrafos anglo-americanos que defendem a vontade de teorização e construção de uma nova problemática geográfica que substituiria a problemática do 'espaço' e do 'lugar' da geografia clássica, trazendo a teoria dos lugares centrais como paradigma principal do movimento.

Paul-André Rosental e Isabelle Couzon,10 apresentam o capítulo dedicado ao chamado 'historiador das populações', Louis Chevalier e ao seu clássico Classes laborieuses et classes dangereuses, publicado em Paris em 1958. Obra qualificada de insólita e inclassificável, única no seu gênero e rapidamente concebida como um clássico da história urbana de Paris, apesar de algumas críticas duras provenientes de nomes consagrados na academia.

Os autores advertem sobre o perigo de ficar restrito a Classes laborieuses quando se quer apreender o pensamento de Chevalier; trata-se de uma obra inovadora em que o autor assume o risco de dar conta da articulação entre história, literatura e estatística, algo julgado como inconciliável pela historiografia do século XX. À sua formação de historiador, ele se esforça por acrescentar a de demógrafo, disciplina cujo processo de institucionalização ele acompanha na França.

O seu objeto de pesquisa privilegiado é provavelmente a repartição da população e sua evolução temporal sob o efeito das migrações. Ele considera a França como um mosaico de pequenos países, apontando para a relevância do estudo da psicologia dos povos, elemento que, de acordo com Rosental e Couzon, aparece ao longo da sua obra como princípio explicativo indubitável, sem por isso se transformar em determinista. Em síntese, a marca pessoal da obra de Chevalier seria o lugar de centralidade dado ao estudo da migração e, mais geralmente, às dinâmicas dos fenômenos sociais, servindo-se para isso do recurso de combinação de fontes quantitativas e qualitativas, todas convergindo para construção de um mesmo objeto.

Dominique Lorrain11 faz uma retomada crítica e detalhada do livro de Manuel Castells e Francis Godard: Monopolville, publicado em 1974, hoje praticamente esquecido e que foi, nos anos 1970, um emblema da Sociologia Urbana Marxista da França. O livro estuda o caso de uma cidade, Dunkerque, e sua organização a partir da transformação radical da base produtiva. Aborda-se a função do Estado na produção urbana e sustenta-se a tese da sua estreita articulação aos interesses do capital monopolista. Os pesquisadores buscaram elucidar as contradições que os planejadores da época não souberam prever, fazendo emergir a complexidade de uma realidade social que não dava conta dos planos, explica Lorrain, que para realizar sua análise, parte da seguinte pergunta: qual é, então, a contribuição de Monopolville ao pensamento sobre a cidade? Para se dar conta do livro de forma equilibrada e, assim, tentar responder a tal provocação, ele fará um percurso pelo projeto que o engendra, o conteúdo e os seus limites.

O livro foi o resultado de uma pesquisa financiada diretamente pelo Estado. Seus críticos apontam para o problema de ele ter se transformado mais num projeto militante do que científico: a dificuldade está na mistura permanente entre o trabalho empírico e uma retomada ideológica onde interpretação não se articula com o material levantado, explica Lorrain. Poder-se-ia falar num excesso de ortodoxia que buscou articular um projeto de pesquisa científica com uma reflexão político-militante, às vezes cheio de trivialidades falsamente teóricas, segundo Lorrain, fazendo-o extremamente velho no seu estilo e que apenas atingidos os resultados, logo eles foram criticados como ultrapassados.

Os autores do livro hoje estão por caminhos bem diferentes ao que transitaram em Monopolville. Castells partiu, logo na época, para os Estados Unidos, entorno que contribuiu para mudanças no seu pensamento, agora menos estruturalista e para quem já não mais o marxismo daria conta de explicar tudo; e Godard passou logo depois a se interessar pos estudos das práticas sociais, estudando modos de vida, o consumo, a família. No entanto, resulta interessante o capítulo como proposta de retomada de contato com uma obra representativa de uma corrente que ficou conhecida fora da França como "a nova Sociologia Urbana Marxista francesa".

Jean-Claude Perrot é autor apresentado por Isabelle Backouche12 no último capítulo deste livro, onde analisa sua obra Genèse d'une ville moderne: Caen au XVIII siècle, publicada em 1975 na França, produto da sua tese de doutorado. A autora propõe realizar o percurso em duas direções: primeiro, a análise do texto levantando neste ponto a complexidade do objeto devido à sua posição na historiografia dos anos 1960-1970 e à ambição do projeto e do seu método; segundo, a autora discute sobre a diversidade de leitores do livro como elemento que viria a colocar em cena a questão da evolução da história urbana, campo ainda mal definido, e sobre a posição intelectual e institucional de Perrot após a publicação da sua tese.

Na sua pesquisa sobre Caen, Perrot demonstra uma grande preocupação com a construção do objeto na historiografia urbana, partindo da constatação de que esta disciplina, privilegiando a análise estética das formas, esquece a observação da vida cotidiana, abandonando-a para outras ciências sociais, como a Sociologia, a Ecologia ou a Economia. Sua ambição primeira é a construção do objeto cidade partindo para pesquisa do objeto já construído pelos homens do passado, interessando-se nas modalidades de construção do discurso sobre a cidade onde procura compreender quem fez a cidade e por quê. Logo, ele vai estabelecer um diálogo com a fase da urbanização contemporânea da cidade.

Perrot renuncia a levar adiante um projeto de uma 'história total', que marcava toda uma geração de historiadores, colocando a cidade mais do lado do método do que do objeto. Para Backouche a promoção do objeto urbano não é mais do que uma manifestação particular e pontual de uma reflexão epistemológica sobre o trabalho do historiador, mostrando o caminho da ruptura com a história econômica e social de pós-guerra.

Para encerrar o livro, Topalov reconhece que a motivação desta publicação não gira em torno de pesquisas centradas num único problema, uma época, uma escola ou um autor. O livro é um convite a nos determos sobre obras singulares, sobre objetos particulares e em momentos históricos específicos e bem diversos. Poderíamos falar numa metanarrativa, no sentido de em cada capítulo um pesquisador contemporâneo toma a palavra e 'navega' pela obra de um outro que o precede. Essas navegações assumem formas particulares que, no dizer de Topalov, não propõem mais do que interpretações que dão seguimento a muitas outras e que não serão, certamente, as últimas.



Notas

1 Lepetit; B.; Topalov, C. La ville des sciences sociales. Paris: Belin, 2001. p. 7.
2 Maurice Halbwachs et les Villes – Les expropriations et le prix des terrains à Paris (1909). p.11-45.
3 Duvignaud, Jean. Prefácio. In: Halbwachs, M. A memória coletiva. São Paulo: Vértice, 1990. p.9-10.
4 La ville bourgeoise et l'émergence du capitalisme moderne: Max Weber – Die Stadt (1913/14-1921). p.47-78.
5 Marcel Poëte: pionnier de l'urbanisme, militant de l'histoire des villes – Une vie de cité (1924-1931). p.79-109.
6 Le ghetto de Louis Wirth: forme urbaine, institution et système social – The Ghetto (1928). p.111-149.
7 Velho, Otávio G. (Org.). O fenômeno urbano. Rio de Janeiro: Zahar, 1979. p.8.
8 Idem, p.96.

9 Walter Christaller et la théorie des 'lieux centraux' – Die zentralen Orte in Süddeutschland (1933). p.151-189.
10 Le Paris dangereux de Louis Chevalier: un projet d'histoire utile – Classes laborieuses et classes dangereuses (1958). p.191-226.
11 Un livre extrême, Manuel Castells et Francis Godard – Monopolville (1974). p.227-266.
12 À la recherche de l'histoire urbaine: Jean-Claude Perrot – Genèse d'une ville moderne (1975). p.267-305.

Revista Sociedade e Estado - UNB

Teorias da cidade

Teorias da cidade

Magda de Lima Lúcio

Doutora em Sociologia. E-mail: magda@unb.br


FREITAG, Bárbara. Teorias da cidade. Campinas (SP): Papirus, 2006. 192p.

A autora é alemã, tendo migrado para o Brasil com a família logo após o fim da Segunda Guerra, em 1948. Retornou ao país natal para freqüentar os cursos de graduação e pós-graduação. Na Universidade Livre de Berlim cursou a graduação, o mestrado e o pós-doutorado; na Universidade Técnica de Berlim, o doutorado. Atualmente é professora associada do Departamento de Sociologia da Universidade de Brasília e coordena um Programa de Pesquisa do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) intitulado "Capitais migrantes, poderes peregrinos, representações nômades". Tem mais de 20 livros publicados, sendo três especificamente voltados para a elaboração de uma análise sobre a questão urbana: Cidade dos homens (2002), Itinerâncias urbanas (2004), no qual apresenta artigos relacionados ao desenvolvimento do programa de pesquisa homônimo; e Teoria das cidades (2006).

A construção de uma teoria das cidades capaz de constituir hábeis caminhos reflexivos para a entendimento do fenômeno urbano, em toda a sua extensão, é o intento sobre o qual a última obra se estrutura. O percurso analítico se elabora pela investigação do fenômeno sob diferentes escolas. Nesse livro o termo "escola" é tomado como um conjunto de teóricos que pensam a questão urbana e o fenômeno das cidades no contexto de suas culturas, de seu tempo, de suas tradições filosóficas e sociológicas. Cada "escola" analisada pressupõe um pensamento que pode ser expresso em uma teoria mais ou menos convergente, de tal forma que pode ser compreendida por pensadores de outra escola.

O livro encontra espaço privilegiado na seara da Sociologia Urbana em virtude do acelerado processo de urbanização mundial que levou, em 2006, em escala planetária, à superação da população rural, pela primeira vez na história, pela população urbana. Esse ritmo veloz de migração do campo em direção às cidades tem alavancado a concentração de pessoas em espaços urbanos, muitas vezes, saturados, o que fomenta a afluência de problemas sociais. Essa sistemática de ocupação urbana não é recente, pois alguns estudiosos alertavam para a questão já na década de 60. Esses problemas são atribuídos em sua maior parte ao rápido e intenso processo de urbanização de países periféricos, processo esse caracterizado pelo aumento da desigualdade social e do crescente desamparo de grupos sociais cada vez mais significativos.

Em obra anterior (Cidade dos homens. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2002) e em outros trabalhos, inscritos em outros temas, a autora apresenta o conceito de megalópole como uma possibilidade compreensiva para esse fenômeno. Esse conceito faz parte de uma arquitetura analítica onde um tipo específico de urbanização ocorrido na segunda metade do século XX propicia a emersão de cidades de países do Hemisfério Sul como espaços empobrecidos de tipos sociais, em particular mulheres, crianças, idosos e deficientes, dentre outros. Esse empobrecimento se apresenta como face visível do ajuste estrutural em nível mundial, trazendo como conseqüência o acentuamento da vulnerabilidade social de alguns grupos.

Algumas cidades do Hemisfério Sul são citadas como exemplos de transformação de metrópole em megalópole, como São Paulo. O critério basilar para essa caracterização é o "crescimento descontrolado, desregrado da população urbana, que faz transbordar os limites naturais e administrativos da cidade, tornando-a insustentável" (p. 153). Esse crescimento é acompanhado de um decréscimo da qualidade de vida e de um alto comprometimento ambiental.

Diante dessa paisagem urbana, o estabelecimento de "teorias da cidade" pretende demonstrar o esforço de conceituação do espaço citadino como um fenômeno universal da vida em sociedade. Esse vigoroso processo se realiza na Sociologia por meio do entendimento e de eventuais explicações para o fenômeno urbano enquanto lugar onde a vida surge permeada pelos conflitos, ansiedades e desejos. A análise da subjetividade não abrange integralmente o estudo acerca da vida citadina, pelo contrário, outros elementos a compõem e a transformam, a saber, as intervenções urbanas, a revitalização de determinados espaços em detrimento de outros, a definição estratégica dos investimentos públicos e privados no ambiente urbano, a criação e consolidação de espaços públicos, o modelo de organização política de determinada sociedade, enfim, a análise dos processos econômicos nacionais e internacionais que produzem inflexões nas cidades e em seus habitantes.

Esses elementos perpassam e se estruturam ao longo do livro enfatizando diversos moldes analíticos, com ênfase para produções alemãs, francesas, inglesas e estadunidenses. A análise teórica a partir de construções datadas e fixadas temporal e culturalmente apresentam um modo consciente de compreensão fundado no preceito de que esses estudos representam a herança que possuímos para construir uma análise sociológica do momento em que vivemos. Essa estratégia enseja vislumbrar teoricamente a cidade como um fenômeno em constante construção, passível de ser interpretado por meio de sua cultura e tradição teórica. Tendo os alemães como pioneiros na análise do tema das cidades, constata-se sua influência nos trabalhos de teóricos norte-americanos, como é o caso de Robert Park, um dos fundadores da Escola de Chicago, ex-aluno de Walter Benjamin. E, por seu turno, o pensamento da Escola de Chicago provoca influência na produção de sociólogos franceses, dentre eles, Maurice Halbwachs, Alain Touraine e Henri Lefèbvre.

Segundo a autora, as "escolas" produziram forte influência também no pensamento de vários teóricos da cidade, arquitetos e urbanistas brasileiros. O livro se referencia em estudos extramuros para verificar o grau dessa influência na construção do pensamento brasileiro nacional, e encontra duas grandes linhas analíticas: a repercussão do pensamento internacional no pensamento urbano brasileiro; e a receptividade dessa produção, sua modificação e realização no contexto nacional. Como exemplo da recepção das teorias e as transformações urbanas por elas inspiradas ocorridas no país, pode-se citar, a reforma na cidade de Santos, em São Paulo, uma espécie de "hausmanização" da cidade (traçando uma analogia reveladora com a remodelagem empreendida em Paris, entre 1853-1870, pelo então planejador urbano e prefeito da cidade, Barão de Haussman) atribuindo semelhança à remodelagem urbana empreendida em Paris. Assim como a Cidade Luz, a cidade de Santos passou por drenagem das águas, construção de canais e saneamento de territórios alagados. A partir dessa reforma, a cidade adquiriu uma nova função socioeconômica, deixando de ser conhecida como a cidade com o maior porto do país, para ser referência também em turismo de veraneio.

A leitura do livro apresenta, mesmo ao leitor mais leigo em questões urbanas, um panorama instigante do tema cidades, entremeado por fios teóricos que se emaranham. No seu conjunto, o livro reflete a rica trajetória da socióloga. As marcas de seus itinerários se incorporam às conexões estabelecidas entre autores, correntes e escolas. O convite que nos é feito no fim de sua introdução não surge como retórica ou mera formalidade. Emerge como oportunidade fecunda de embarcarmos em uma longa viagem que, aos poucos, se transforma em uma fluida e suave flânerie pelas ruínas, pelos edifícios suntuosos, pelos monumentos, praças e ruas, tendo como bússola as teorias da cidade.

Revista Sociedade e Estado - UNB

A distinção: crítica social do julgamento

Pierre Bourdieu: a distinção de um legado de práticas e valores culturais

Emiliano Rivello Alves

Doutorando em Sociologia pelo Programa de Pós-Graduação (PPG-SOL) da Universidade de Brasília. E-mail: emilianorivello@yahoo.com.br

BOURDIEU, Pierre. A distinção: crítica social do julgamento. São Paulo: Edusp; Porto Alegre, RS: Zouk, 2007.

A obra mais conhecida e mais prestigiada de Pierre Bourdieu, segundo vários autores, traz em boa parte de sua exposição as preocupações decorrentes de anos de estudos sobre a elaboração de uma teoria geral das classes sociais. A distinção: crítica social do julgamento estruturada em três partes, além de introdução, conclusão e post-scriptum, publicada originalmente em 1979 pela editora Minuit, e só agora traduzida para o português, atende às expectativas dos leitores brasileiros não familiarizados com o idioma original, apresentando ricas contribuições aos mais variados campos das ciências humanas.

Bourdieu constrói seu argumento através de um estilo literário refinado e prolixo, com forte tendência ao elitismo, mas justificável pelas pretensões teóricas e práticas alicerçadas no "ideal" que poderia ser encontrado em Questões de Sociologia: "Romper com os automatismos verbais (...) é romper com a filosofia social inscrita no discurso espontâneo" (1983, p. 30). Quando da publicação na França, foi alvo de críticas contundentes e sagazes dos mais distintos segmentos intelectuais e da mídia por, supostamente, projetar uma forte inclinação reducionista, resultando na primeira polêmica pública em torno da obra e da biografia de Bourdieu. Em 1981, Bourdieu passa a ocupar a cadeira de Sociologia no renomado Collège de France pelas grandes realizações no campo das ciências sociais, das quais A distinção é parte considerável de seu reconhecimento.

A distinção é uma denúncia violenta e, ao mesmo tempo, uma inspiração para um modelo de compreensão dos mecanismos sociais e culturais, que retira os fatores econômicos do epicentro das análises da sociedade porque remete as práticas de consumo culturais a uma estrutura relacional.

Bourdieu busca estabelecer desde cedo que as práticas culturais juntamente com as preferências em assuntos como educação, arte, mídia, música, esporte, posições políticas, entre outros, estão ligadas ao nível de instrução, submetidas ao volume global de capital acumulado, aferidas pelos diplomas escolares ou pelo número de anos de estudo e, secundariamente, à herança familiar. Na verdade, trata-se de desmistificar afirmações da ordem do senso comum quando se assevera que o gosto sobre determinada matéria não se discute; mais do que isso, o gosto classifica e distingue; aproxima e afasta aqueles que experimentam os bens culturais. Mas, de que maneira as preferências culturais dos agentes são estruturadas? Bourdieu responde a esta questão traçando correlações que se iniciam com a transmissão do capital cultural inculcado na escola e aquele herdado pela família, efetuadas de maneira precoce ou através do aprendizado tardio. Pelas ações de imposições positivas de valores – exercidas pela instituição escolar, objetivadas pelo diploma, lembre-se, nas Grandes Écoles –, garantem aos agentes a aptidão para adotar a disposição estética associada a uma origem social. Dito de outro modo, as práticas culturais incentivadas por essas duas instâncias, distinguem aquilo que será reconhecido como gosto legítimo burguês, de classe média ou popular. Assim, é suficientemente importante esclarecer que um gosto da mais alta cultura burguesa em matéria de música é mais freqüentemente associado às classes dominantes do que às classes populares e vice-versa.

Nada é tão imperativo quanto o campo de estrutura de relações objetivas que distingue a disposição exigida pelo consumo legítimo das diferentes classes. O esteticamente admirável ou simbolicamente vulgar, por exemplo, em matéria de vestuário ou decoração, é, tão-somente, para os agentes, o socialmente construído pelos capitais acumulados em uma história relativamente autônoma que aprenderam a reconhecer os signos do admirável ou de uma "pseudo-arte", por meio da lógica do campo de poder. Afirma-se a dependência da disposição estética em relação às condições materiais de existência, legada pelo passado ou transmitida no presente, através das condições econômicas e sociais do exercício pedagógico da instituição escolar ou da família.

O gosto ou as preferências manifestadas através das práticas de consumo é, então, o produto dos condicionamentos associados a uma classe ou fração de classe. Tais preferências têm o poder de unir todos aqueles que são o produto de condições objetivas parecidas, distinguindo-os todavia de todos aqueles que, estando fora do campo socialmente instituído das semelhanças, propagam diferenças inevitáveis. O gosto, dirá Bourdieu, é a aversão, é a intolerância às preferências dos outros.

A família e a escola tomadas como mercados simbólicos, funcionam como espaços instituidores de competências necessárias aos agentes para atuarem nos diferentes campos. Desse modo, aquela classe ou fração de classe detentora de um elevado capital escolar – portanto, herdeira de um elevado capital cultural –, opõe-se a todas as classes sociais desprovidas desses capitais, pois os gostos são constituídos por capitais metaforicamente dissonantes.

É percebida desta forma que a reprodução moral, ou seja, a transmissão dos valores, virtudes e competências, maneira de ver o mundo simbólico, serve, invariavelmente, de fundamento à filiação legítima de habitus distintos e desiguais, fortalecendo e intensificando a hierarquia do culturalmente aceito ou execrável; do autêntico ou do inautêntico exemplificados tais como no cardápio, na decoração do apartamento, na compra de um carro ou mesmo na escolha de um amigo — porque o habitus encontra-se no princípio das afinidades imediatas que coordenam os encontros e as aquisições sociais.

Bourdieu tem o mérito de desvelar de maneira voraz, destarte, que a igualdade de oportunidades e a importância do sistema escolar – ideologicamente incentivadas pelo regime republicano – não garantem, necessariamente, igualdade social a todos.

A posição socialmente ocupada pelos agentes detentores de um poder específico em um campo particular de existência depende, antes de qualquer coisa, dos capitais objetivados nas práticas distinguidos em três dimensões "clássicas": o econômico, o cultural e o social. É a forma assumida pelos capitais objetivados em uma relação e incorporados (habitus) que determinam as classes sociais e, conseqüentemente, constituem as práticas que classificam as distinções.

O habitus é, com efeito, responsável pelas práticas objetivamente classificáveis, sem, contudo, deixar de ser um sistema de classificação. O mundo social, por seu intermédio, é representado nos espaços ou nas posições ocupadas pelos agentes e é ele que estrutura os estilos de vida do campo simbólico. No habitus encontra-se inserida toda a estrutura do sistema de condições ou disposições possíveis, fundamentando as estruturas das diferenças. O habitus é o que faz um agente ser detentor de um gosto, porque as preferências estão associadas às condições objetivas de existência.

Os agentes apreendem os objetos ofertados simbolicamente através dos esquemas de percepção e de apreciação de seus habitus. Por isso, é de suma importância deixar claro que cada agente confere sentidos e significados distintos a suas práticas. Praticar a mesma atividade física ou consumir os mesmos estilos de filmes não denota, jamais, que o habitus seja gerador de tendências irredutíveis. Bourdieu se defende de uma possível visão determinista contida em sua obra, afirmando que as práticas das diferentes classes ou frações de classes, distribuem-se ao longo de um campo infinito de possibilidades, de tal modo que o número de espaços de preferências será tão grande quanto o universo de possibilidades objetivas.

Em torno dos conceitos de habitus e campo reside uma contribuição importante de Bourdieu ao pensamento sociológico. Tais conceitos têm sido utilizados como instrumentos conceituais que possibilitam pensar as relações entre os condicionamentos sociais exteriores e as subjetividades dos agentes. Eles adquirem um alcance universal na apreensão de certa homogeneidade nas disposições ou nos gostos em matérias que podem ir, por exemplo, da música sertaneja aos hábitos alimentares, das cirurgias estéticas ao comportamento político, das preferências religiosas aos conflitos urbanos juvenis, pois procedem ao reconhecimento dos processos históricos que demarcam a gênese e ampliação das práticas culturais na modernidade.

Em uma época marcada por grandes teorias e trabalhos ensaísticos no campo intelectual francês, Bourdieu se destaca pelo emprego da teoria em nome da pesquisa empírica, possibilitando ao leitor iniciado compreender que as incessantes interpretações e revisões das escolhas individuais não são frutos de ordenamentos isolados ou decorrentes do acaso. A distinção põe em evidência que a lógica intrínseca aos gostos e preferências culturais é aquela submetida à lógica interna de cada campo tomado numa relação simbólica.

É notório destacar que as disputas por posições hierarquizam, igualmente, as oportunidades estatutárias das classes em matéria de valores e concepções políticas. Isso leva a crer que mesmo a fração da classe popular com maior capital cultural está submissa às normas e valores dominantes. Os agentes menos competentes – pela perspectiva da cultura legítima – estão à mercê dos efeitos da imposição do campo de produção ideológico influente, acarretando tomadas de posições ligadas às representações "legítimas" do mundo social. Falta-lhes capital escolar, diria Bourdieu, mas que é compensado no blefe inconsciente de uma linguagem que disfarça, sobretudo, posições políticas "desencontradas", "ingênuas" ou "ignorantes".

Ao diploma escolar é reservado um elevado poder simbólico transformando a escola em uma das instâncias sine qua non da manutenção da ordem social. A obtenção do diploma, por definição, "fixa" as disposições dominantes. Trata-se de uma delegação simbólica que desapossa e separa os menos competentes em favor dos mais competentes; os menos instruídos, em favor dos mais instruídos.

As distinções críticas das preferências manifestadas pelos agentes – portanto, as formas de classificação e desclassificação de valores e práticas culturais – são aplicadas em todo e qualquer ponto da distribuição e reprodução dos habitus. As experiências incorporadas do mundo social – a doxa – adesão às relações de ordem aceitas como evidentes, definem os limites, as posições e os legados daquilo que será objetivamente pensado nas estruturas das classes sociais.

Devido ao caráter inovador e interdisciplinar, revolucionário e crítico, ousando no esforço da integração da observação etnográfica e da análise estatística, Bourdieu transforma a própria estrutura conceitual da Sociologia da Cultura, porque cria uma teoria dos fatos culturais comparada às grandes realizações teóricas de Marx, Durkheim e Weber. A distinção, assim sendo, desnuda e explica, ao mesmo tempo, os estudos sobre linguagem, grupos sociais, política, educação, arte ou comunicação, pois oferece uma análise do mundo social de maneira coerente e instigante.

Revista Sociedade e Estado - UNB

A idéia de cultura

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Cultura: a palavra e as idéias

Augusto Rodrigues da Silva Junior

Doutor em Literatura Comparada pela Universidade Federal Fluminense (UFF), membro do Laboratório Transdisciplinar de Estudos sobre a Performance (Transe) da Universidade de Brasília (UnB)


EAGLETON, Terry. A idéia de cultura. São Paulo: Ed. Unesp, 2005.

Atualizar o caminho da idéia de cultura a partir da modernidade e sua utilização na pós-modernidade é o que propõe Terry Eagleton nesta obra. Um imenso "conceito-chave" tecido com a acuidade de um estilo dialético e a leveza de uma crítica literária lapidada. Da junção entre Shakespeare, Marx, Nietzsche e Freud, constrói um arcabouço teórico complexo e fluente sobre uma concepção exaustivamente discutida: A idéia de cultura. Consciente de que ela necessita de revisão pelo desgaste natural de sua indiscriminada utilização em várias áreas do conhecimento e sua sobrevivência na pós-modernidade, ele tece um sentido diferente sem se desconectar completamente de conceitos históricos fundamentais.

Na longa carreira do filósofo e crítico, essa obra situa-se em um momento peculiar. Mais conhecido pelos trabalhos de crítica literária nas décadas de 70 e 80, o professor de Literatura Inglesa da Universidade de Oxford posiciona-se, a partir da década de 90, como um "crítico da cultura". Na análise e teoria literária preocupou-se em demarcar sua posição dentro da tradição marxista. Isso fica expresso no livro Teoria literária: uma introdução (1983), no qual faz um estudo da literatura dos séculos XIX e XX e traça paralelos com o estruturalismo, o pensamento lacaniano e mostra afinidades com a desconstrução. A partir de As ilusões do pós-modernismo (1996), mesmo sem perder de vista "as virtudes da educação literária", ele se volta para a cultura. Nesse livro produz uma crítica teórica e política da contemporaneidade e mostra as origens e a emergência da pós-modernidade. Denuncia as ilusões que o "movimento" conseguiu derrubar, suas ambivalências e contradições internas. De algum modo, A idéia de cultura é uma retomada dessa discussão, visto que o livro de 1996 foi uma compilação de artigos publicados ao longo da década de 90.

Antes de adentrarmos nas especificidades dos capítulos, é importante analisar alguns elementos pré-textuais. Por exemplo, a dedicatória autoconsciente para Edward Said. Como uma pista, no sentido mais dialógico de uma referência, o nome do amigo e professor anuncia questões ligadas ao imperialismo, à colonização e às relações contraditórias entre Norte e Sul. Partindo da idéia de que as culturas são híbridas, Eagleton retoma a idéia de Said em Cultura e Imperialismo de que as culturas "estão envolvidas umas com as outras" e que "nenhuma delas é mais heterogênea que o capitalismo" (p. 28-29). Sintomática também é a data de lançamento da obra: o ano 2000. O tom revisional coaduna com um momento limiar: a passagem do milênio. Circunstância sugestiva para a análise e revisão das transformações do século XX e, por extensão, da idéia de cultura e seu futuro. A organização de seu pensamento perpassa as lições do "orientalista": a cultura como campo de batalha está nas "versões", na "crise" e nas "guerras culturais". Depois, o autor extrapola essas questões e aprofunda-se filosoficamente ao discutir cultura e natureza e a direção de uma "cultura comum". A atualidade dessa análise confirma que o tema ganhou importantes dimensões políticas diante dos eternos velhos problemas vividos pela humanidade.

Muitos nomes são trazidos no desenrolar das idéias. Raymond Williams é o pivô dialógico dessa construção. Os capítulos funcionam como diálogos com o crítico inglês. É latente a presença de Cultura e Sociedade de 1780-1950 e de Conceitos-chave, principalmente o conceito "Cultura". Chama a atenção para os pontos de dispersão entre as suas abordagens e destaca um ensaio escrito na mesma época em que terminava o verbete: texto cujo nome é igual ao do seu livro – The idea of culture – o que reafirma sua importância.

No primeiro parágrafo, o leitor fará a conexão com o conceito-chave "Cultura". A relação entre cultura e natureza, dentre as palavras "mais complexas da língua inglesa", leva-o à análise semântica do termo a partir de sua transformação mais latente, a passagem de uma esfera completamente material para uma outra espiritual (e o fato de a palavra acompanhar o processo de urbanização do Ocidente). Cultivar deixa de ser apenas cuidar da terra, mas passa a ser autocultivar-se. Como se a cultura tivesse surgido da necessidade de complementar as limitações da natureza, ele mostra as tensões do termo. Tensão no sentido de o conceito superar-se à medida que acompanha as transformações sociais e políticas, ocasionando constantes viradas dialéticas: "a natureza produz cultura que transforma a natureza" (p. 12).

No capítulo 1, "Versões de cultura", o autor faz uma abordagem semântica das transformações temporais do conceito e aponta os caminhos construídos ao longo da história. Desde seu aparecimento, ligado ao manejo da terra, até momentos em que foi quase deixado de lado (modernidade), ou foi mais utilizado (pré-modernidade e pós-modernidade). O desafio é encontrar uma forma de tornar-se autocrítico dentro de um sistema (o capitalista globalizado) que não permita à "cultura" excluir a reprodução material e as identidades.

Uma vez que a população já não se relaciona com as atividades da terra e a manufatura torna-se um impedimento para a "cultura", a visada marxista seria a precursora da compreensão da relação entre cultura e natureza. A primeira realça as diferenças, a segunda estabelece uma contigüidade entre o Indivíduo e o ambiente. Ao introduzir a relação entre cultura e Estado, Eagleton mostra também que os interesses políticos governam os culturais. Com isso, constrói uma visão peculiar mostrando como o conceito é "pré" e pós-moderno e como foi um problema para a modernidade. Ao mesmo tempo é ele quem institui o Estado-nação moderno ao atribuir sentido à herança, à linguagem e aos valores compartilhados.

Nas sociedades tradicionais ela era um meio universal em que a sexualidade, organização política, produção material etc. estavam ligados a uma ordem simbólica e não apareciam como sistemas distintos. No horizonte pós-moderno, vida social e cultura estão ligadas na "forma da estética da mercadoria". Uma conjunção de elementos valoriza a localidade, o corporal, a identidade e unem-se à centralidade da imagem e à integração cultural "dentro da produção de mercadorias em geral". Na tensão no interior da idéia reside uma forma de superação para a crise. Sua capacidade de agregar as ações aponta para o perigo de se pensar cultura no campo das ciências humanas, sociais e das artes tornando-a restrita a uma parte da população. Para Eagleton, a cultura sobreviverá se não perder sua capacidade crítica e a especificidade de dialogar com a produção de bens materiais de forma consciente.

No capítulo 2, intitulado "Cultura em crise", Eagleton realça o momento em que o termo caminha para uma transformação ou para um ponto culminante: uma total inoperância de significados (mesmo que continue exaustivamente utilizado). Escreve contra a noção herdada da antropologia, ampla demais, e diverge de outra muito rígida, ligada à estética. Mostra que, na contemporaneidade, a especialização e seu elogio são problemáticos, porque tendem a afastar os homens. Isso quer dizer que discuti-la significa fazer parte da crise cultural e política que assola a pós-modernidade.

Mais uma vez Raymond Williams está presente. Seu pensamento de que a cultura é um elemento constitutivo de outros processos sociais e não apenas sua representação, é atualizado por Eagleton ao aproximá-la das idéias de religião e de imaginação. No primeiro caso, ele demonstra que o poder simbólico da religião está em queda, e que a cultura, ao fazer parte da política e da economia, não tem conseguido cumprir o papel de unificadora da sociedade. No segundo caso, a imaginação tem uma imagem dúbia: capaz de centralizar, pela sua gama semântica e de fácil aceitação, ela também descentra a identidade, pois tende a esvaziá-la de um referencial palpável e concreto. Isso é complexo uma vez que o Ocidente se vê como totalizador e capaz de alterar outras culturas. Essa relação marcadamente de poder entre um Eu e o Outro – denúncia num tom marxista –, está em germe no início do milênio. O uso da coerção, o perigo de um capitalismo amuralhado em defesa de privilégios mostra que a crise da idéia de cultura tornou-a frágil e incapaz de tomar uma posição de destaque na luta contra essas posturas totalizantes e totalitárias.

No capítulo 3, o autor aprofunda a questão da crise utilizando o termo "Guerra". O choque entre Cultura e cultura tornou-se um conflito global: o Ocidente será o palco principal das "Guerras", uma vez que o Ocidente considera-se a Cultura primordial e confronta as outras (nações, religiões, "raças" etc.). Os conflitos são respostas aos "bárbaros que invadem" com forte suporte político e religioso. Utilizando a religião, a ideologia, o mercado e a economia, a cultura pós-moderna, fortemente sustentada pelo consumismo, depara-se com o mito da integração simultânea pelos meios de comunicação. Mas encontra um Mundo dividido por outros mundos distantes entre si. Nesse caso, existe o risco de o Estado-nação deixar de fazer sentido, uma vez que se prega uma comunidade internacional. Esse risco é exatamente o estopim que promove o conflito entre a economia ocidental e as outras identidades.

O embate entre Cultura e cultura é global, porque o conceito passou por mudanças radicais. Se cultura preconizava algo particular e identificável na figura do sujeito universal que compartilhava valores com outros sujeitos universais, na pós-modernidade ela significa o contrário, e afirma identidades específicas. Nesse caso, ela é muito mais um produto da política e "esse admirável cosmopolitismo novo" assiste a conflitos geopolíticos porque o Ocidente é incapaz de equiparar sua "civilidade" com o que é diferente. Nossa época precisa encontrar um meio termo entre sua capacidade de afirmação e sua capacidade geradora de novas formas de domínio. Diante dessa questão política, o ideal é que os movimentos diferentes da alta cultura, da cultura pós-moderna e a cultura de identidade consigam ir além dos movimentos de contracultura, superando assim, a dialética da natureza e da cultura.

O capítulo 4, "Cultura e natureza", é o ponto culminante da reflexão de Eagleton. A partir da dialética entre esses termos, ele aborda questões do corpo, da morte, do discurso e os perigos do relativismo cultural. A síntese acontece na afirmação: "estamos imprensados entre natureza e cultura" (p. 141). Enfim, não somos apenas seres naturais ou culturais, mas fruto da junção dessas duas marcas humanas transformadas pela capacidade simbólica e criativa. A compreensão humana aproxima-se da linguagem e elas oferecem correlatos para explicar o outro na medida em que conseguimos nos explicar. Como a linguagem, as culturas são porosas e imprecisas, podem comunicar entre si, mas se mantém indeterminadas porque se transformam continuamente: "Se o 'outro' encontra-se além da minha compreensão, não é por causa da diferença cultural mas porque ele é, afinal de contas, ininteligível para si mesmo também" (p. 139).

Com acuidade literária e filosófica Eagleton mostra que a relação humana é "desjuntada" porque os seres se movem "na conjunção do concreto e do universal, do corpo e do meio simbólico" (p. 140) e a soma desses elementos faz com que o homem tenha a capacidade de ir além de seus limites sensíveis nos campos da sociedade, da tecnologia e da história. Entendendo a história como a ferramenta que nos permite enxergar nossas determinações e que nos faz transcender a natureza, justamente pela linguagem que nos liberta e nos abstrai nocivamente do natural, as vidas humanas são determinadas por necessidades culturais que, por sua vez, perpassam necessidades naturais e materiais.

Da interação conflitante entre cultura e natureza surgem forças – como violência, vingança, paixão e ironia – que podem "levar à escuridão". A cultura é algo aberto e contraditório: não leva a um desenvolvimento harmonioso e pode levar o homem à autodestruição. Essa dialética é demonstrada em Rei Lear (Shakespeare) e os conflitos da modernidade e da pós-modernidade anunciados. Na relação limiar entre corpo/linguagem e a funcionalidade de ambos, sua análise literária ganha estatutos "humanísticos" e ilustra uma força percebida posteriormente por Marx, Nietzsche e Freud. Força que mostra que há mais no mundo do que a cultura e que seria importante que o homem conseguisse "viver da cultura" sem precisar dominar a história ou permanecer em um estado permanente de "mal-estar". A marca de nossa humanidade nos leva a transgredir o conceito e a noção de que a natureza humana é comunitária e culturalmente mediada apontam as bases para uma política de resistência global em uma época em que a dominação tornou-se profundamente importuna (p. 158).

No quinto e último capítulo, Eagleton aponta o "Rumo para uma cultura comum". A partir da idéia de que a cultura perdura se partir de uma maioria popular e do pressuposto de que ela se divide em consciente e inconsciente, ele analisa as posturas de T. S. Eliot e de Raymond Williams. Para Eliot, a cultura comum deveria nascer de forma elitista e autoconsciente e a aristocracia e a intelligentsia seriam naturalmente as principais criadoras do processo que depois se dissemina. Raymond Williams se distingue dele, porque coloca que os valores que realmente importam nascem das camadas populares organizadas em um movimento consciente de classe. Nesse caso, ele valoriza a participação comum e inclusiva e prevê transformações culturais de acordo com as classes. Eliot, por sua vez, subestima tudo aquilo que não é aristocracia.

Eagleton, como discípulo de Williams, destaca as distinções entre formas residuais, dominantes e emergentes que permeiam seu pensamento. De certa forma atualiza esses conceitos e discute o abalo nas noções de identidade e os diversos modos de vida convivendo e ameaçando os valores civilizados. As culturas fechadas nascem para confrontar a ordem política e econômica ocidental que prega a diferença para afirmar-se hegemonicamente. De modo geral, ele politiza opções estéticas com discernimento intelectual e uma coerência arraigada à sua trajetória. Seu livro contribui para a reflexão sobre literatura, pós-modernidade e "idéias de cultura" diante de uma ordem que se anuncia no novo milênio.

O pensador extrapola o senso comum literário e ideológico e constrói as mais difíceis relações entre as idéias do seu tempo e a cultura. Sua capacidade de harmonizar e de aproximar temas aparentemente díspares, tendo como base a contradição como motor do mundo, levam-no a escrever contra o imobilismo. Disso decorre a problematização da idéia com o intuito de superar um positivismo dominante, uma dicotomia redutora e a discussão da ordem colonizadora. Essa problematização desvelada se coloca como liberdade discursiva e vontade de transformação a partir de uma inserção crítica na história. Ao discutir a idéia de cultura tem a consciência de que contribui dialeticamente para as idéias vindouras e afirma sua importância política no próximo milênio.

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Ritual, risco e arte circense: o homem em situações-limite

A sociologia do homem em situações-limite: redomas sensoriais, risco, performance e circo

Roberto Moreira

Pesquisador Associado do Departamento de Sociologia da Universidade de Brasília


ALMEIDA, Luiz Guilherme Veiga de. Ritual, risco e arte circense: o homem em situações-limite. Brasília: Ed. da Universidade de Brasília, 2008. 314 p.

Imagine-se suspenso, de cabeça para baixo, a alguns bons metros do chão, balançando no ar e saltando na esperança de ser agarrado pelos braços do companheiro que está do outro lado. Porém, você não está se preparando para ser trapezista, mas para escrever uma tese de doutorado.

Há muitos modos de um cientista aproximar-se de seu objeto de pesquisa expondo seu próprio corpo a nenhum ou a um grande risco: observar microorganismos em um microscópio, ser alvo de elementos radioativos, embrenhar-se numa floresta, conviver com um povo desconhecido, inocular-se uma substância... Mas, sem dúvida, arriscar-se num picadeiro, sob a lona de um circo, deve ser algo único.

Pois foi isto que fez Luiz Guilherme Veiga de Almeida como trabalho de campo para escrever a tese de doutorado defendida no Departamento de Sociologia da Universidade de Brasília e agora publicada em livro pela editora da mesma Universidade, sob o título Ritual, risco e arte circense: o homem em situações-limite, no qual o autor se assina apenas Guilherme Veiga.

O objetivo era compreender as performances, manifestações que ele considera típicas do mundo contemporâneo, as quais, por sua vez, ajudam a compreender a sociedade que as gerou. Para isto, Guilherme Veiga matriculou-se como aluno da Escola Nacional de Circo (ENC), no Rio de Janeiro. Ele não chegou ao trapézio de vôo, como descrito no primeiro parágrafo, mas diversas outras modalidades circenses praticadas por Guilherme Veiga e primorosamente descritas ao longo do livro passam ao leitor a noção – melhor dizer a sensação –, das experiências vividas e a profunda adequação da escolha do objeto ao propósito da obra.

Porém, o inusitado do trabalho de campo está longe de ser o único mérito do livro. Em primeiro lugar chama a atenção a solidez da base histórica e teórica do autor, no que se refere ao teatro, às artes cênicas, ao espetáculo, à relação entre palco e platéia, à formação ocidental do modo de olhar a arte. Guilherme Veiga, além de artista, músico, compositor, fez mestrado em Filosofia na PUC do Rio de Janeiro, com uma dissertação sobre teatro e teoria na Grécia Antiga.

Essa consistente fundamentação na prática e na teoria surge nos dois primeiros capítulos, onde ele faz um denso mergulho na questão do olhar. Trata-se de uma questão central do pensamento sobre a arte no Ocidente: a separação entre o artista e o espectador, a concepção da arte como algo para ser visto, a divisão palco/platéia.

Guilherme Veiga retorna aos filósofos e ao teatro da antiga Grécia para demonstrar a gênese dessa noção de arte como espetáculo. Traz sua análise histórica até os meios de comunicação modernos, cinema, televisão, internet e suas tentativas de romper a barreira da quarta parede, criar a interação entre o espectador e o espetáculo. Finalmente chega à idéia de performance como uma espécie de espetáculo participativo. Vale notar a complexidade e as sutilezas do problema. O autor insere como questão central compreender como a atividade do espectador altera a natureza do que ele observa. Quando uma forma de expressão visa a um público, ela é um espetáculo; mas, há formas de expressão que não visam a um público e sim ao próprio praticante e, aqui, essa atividade ganharia o nome de ritual. O ritual pode ter uma assistência, mas ele não se realiza para ela.

Questiona-se assim a hegemonia do olhar passivo na forma ocidental de pensar a arte que tem origem na concepção da expressão humana do ponto de vista do espectador. "Mas – diz o autor – quando se procura pensar eventos rituais, atividades de risco ou performances que ocorrem, por exemplo, de forma solitária, o pressuposto do espetáculo deixa de ser válido, pois tais performances nem sempre se explicam como atividades concebidas para serem vistas por uma platéia".

Guilherme Veiga tem a competência de mobilizar uma enorme quantidade de recursos (formação da noção de arte, especialmente do teatro, encontro da Europa com a América, grutas paleolíticas, o jogo, a guerra, os rituais, a caça, o cinema etc., além da pesquisa na Escola Nacional de Circo) a fim de sustentar uma proposta de conceitos (redoma sensorial – comunidades sensoriais – comunhão sensorial) para explicar certos fenômenos que seriam chamados de performance. Conjuga teóricos de antropologia, sociologia, história, filosofia e psicologia, valendo-se da teoria da arte, da história do teatro e da etimologia para questionar a noção de espetáculo e a cisão artista/espectador

De todo modo, a par de tantos méritos, a contribuição mais original é a criação do conceito de redoma sensorial. Para isso, ele parte da constatação de que o cotidiano de todos nós é multissensorial, já que envolve uma enorme quantidade de sons, sensações táteis, odores, visões, sabores, temperaturas, distâncias, cinestesia e sinestesia. O senso ou sentido comum é determinado então pelo horizonte da segurança sensorial ou pelo conjunto de sensações conhecidas e dominadas pela experiência de sua prática. A isto ele chama de redoma sensorial ordinária. No fundo, são coisas que fazemos automaticamente, sem precisar pensar, e que podem envolver simultaneamente dois ou mais sentidos, que interagem mas não produzem um efeito especial. Ele ressalva que nada impede que uma atividade cotidiana, como cozinhar, possa ser executada de modo extraordinário; entretanto, usualmente, ela não é desenvolvida com esse intuito.

Ele mostra também que elementos absolutamente triviais quando combinados de certa maneira ou transportados de seu ambiente de origem e inseridos em outro completamente diferente podem criar um efeito extraordinário e performático. A este processo ele chama de manipulação sensorial. De certo modo, é o mesmo mecanismo que se usa para obter o efeito ao contar uma piada ou o resultado intrigante dos desenhos de Escher.

O livro apresenta inúmeros exemplos interessantes da manipulação que, momentaneamente, confunde a percepção e os sentidos, produzindo um efeito sensorial extraordinário. O cinema, com sua aura de magia, foi e é ainda um campo fértil para a produção desses efeitos, desde realizações de seus primórdios (Guilherme Veiga lembra Voyage dans la lune, de Georges Méliès, Metropolis, de Fritz Lang, até 2001: uma odisséia no espaço, de Kubrick, Guerra nas estrelas, passando pelos documentários da cineasta Leni Riefenstahl na Olimpíadas de Berlim).

Também não se esquece de efeitos sensoriais extraordinários que podem ser obtidos quando se adentra lugares históricos excepcionais, como as ruínas de Pompéia, a cidade mexicana de Theotiucatán ou Ouro Preto. Basicamente altera-se a sensibilidade por deslocamentos no espaço ou no tempo.

Na parte dedicada à pesquisa na Escola Nacional de Circo, Guilherme Veiga se atém à idéia de redoma sensorial extraordinária. Além de se expor como aluno de circo, o autor dedicou-se a colher depoimentos, entrevistas, que lhe permitem formular idéias e mesmo tirar conclusões que aos olhos de um simples observador e até mesmo dos próprios entrevistados não seriam interpretadas com esta riqueza teórica.

Por exemplo, ele percebeu que para os acrobatas a redoma sensorial extraordinária é compreendida como um processo de aprendizagem e um evento limite. Os acrobatas sabem que seus sentidos estão todos voltados para o aprendizado daquela nova atividade até que ela seja dominada e passe a ser corriqueira e, portanto, as deixar de ser extraordinária, passa a ordinária. Só que o processo é infinito porque o acrobata busca sempre novos desafios, cada vez mais extraordinários.

Assim, surge a noção de risco que pode ser afastado iniciando-se o treinamento pelas atividades mais simples até chegar às mais complexas. É nesse processo de absorção de atividades extraordinárias e arriscadas que, diante de um público, por exemplo, o que para ele não passa de uma segunda natureza é visto como performance pelo observador externo. O mesmo se poderia dizer de um virtuose que, ao executar seu instrumento, "esconde" do público o imenso esforço feito durante anos para chegar àquela qualidade de execução.

Porém, diz o autor, é importante notar que, ao se submeter ao treino, o indivíduo se torna performático mesmo que jamais se apresente a um público; a origem da performance está no processo de transformação pela conquista de redomas sensoriais extraordinárias. A eventual apresentação a um público é apenas um evento secundário.

Ainda sobre a noção de risco, Guilherme Veiga ressalta que a palavra deve ser entendida em primeiro lugar como risco físico, envolvendo a possibilidade de lesões e, até mesmo, uma fatalidade. Mas, para efeito da análise, excluem-se as situações de risco que estejam fora do controle do indivíduo, como acidentes, efeito da poluição e outros. O risco físico analisado é aquele absolutamente necessário para a sobrevivência (exemplo da caça, em sociedades de caçadores) ou o que é assumido consciente e voluntariamente para a prática de certos rituais. Ele vai mais longe, mostrando como nas sociedades contemporâneas a questão do risco assume novas feições em virtude da ampliação da capacidade humana de conhecer os riscos (controle de doenças, acidentes de trabalho, etc.) e também pelo efeito paradoxal de que a mesma tecnologia que permite controlar melhor os riscos produz ela própria novos riscos. Nesse ponto, Guilherme Veiga percorre a relação de sociedades de diversas épocas com o risco (jogos, esportes, rituais, guerras) e menciona uma questão filosófica que sugere que os homens e a sociedade parecem não ter como objetivo obter uma sociedade isenta de riscos – não porque ela não possa ser realizada, mas porque não é desejada.

Isto o faz voltar ao circo como redoma sensorial extraordinária, dizendo que, em certo sentido, a acrobacia envolve destreza física (esporte), risco (guerra) e beleza (arte). Assim, o acrobata se aproxima do dançarino pela beleza, do esportista pela destreza física e, ainda, contém algo de guerreiro pela exposição ao risco. Claro que para cada uma dessas atividades altera-se a ordem de importância das habilidades.

O capítulo final do livro pode ser considerado o caderno de campo de um etnólogo e a primeira observação é que a própria tenda do circo é uma redoma sensorial isolada do que se passa do lado de fora e, no caso da Escola Nacional de Circo, um lugar particularmente conturbado da cidade, que é a Praça da Bandeira, na cidade do Rio de Janeiro. Em seguida, descreve as pessoas que freqüentam a Escola, cada uma das formas de acrobacias e malabarismos e as experiências sinestésicas a elas associadas. Por exemplo, as acrobacias de solo se ligam à redoma sensorial da percepção interna, pois o acrobata não tem nenhuma referência externa sobre o que está executando e a possibilidade de risco, portanto, é maior.

Outro exemplo é a conhecida perna-de-pau e a redoma sensorial de domínio da vertigem, algo que a princípio parece fácil mas não é, mesmo que a altura da perna-de-pau seja de poucos centímetros. O malabarismo, por sua vez, se relaciona com a redoma sensorial da visão periférica e da intuição manual; a cama elástica está referida à redoma sensorial de alteração da gravidade.

Por fim, Guilherme Veiga observou que o envolvimento com experiências sensoriais extra-cotidianas é tão impregnante que, nas entrevistas, houve vários relatos dos acrobatas descrevendo sonhos com suas atividades: sonhos de execuções perfeitas de atividades que ele já domina, sonhos de execução de atividades que ele ainda não sabe executar, sonhos com exercícios impossíveis de serem executados.

Guilherme Veiga conclui pela possibilidade de através da teoria das redomas sensoriais poder se estabelecer uma relação teórica entre ritual e espetáculo, cotidiano e extra-cotidiano e que, afinal, performance pode ser o nome dado a toda e qualquer transformação no campo sensorial ordinário, isto é, a construção de uma redoma sensorial extraordinária.

A percepção de quem resenha o livro é que o inusitado do empreendimento de Guilherme Veiga proporcionou uma contribuição inovadora aos estudos sobre performance, ainda tão mal entendidos apesar de consolidados pelo pioneirismo de Richard Schechner, Robert C. Corrigan, Victor Turner e outros.

Outro ponto é que, em determinada passagem, o autor afirma que a performance diz respeito a uma espécie de crise cultural e expressiva pela qual passa a sociedade contemporânea. Ele não se detém para desenvolver a idéia, mas o ponto chama a atenção para o fato de que depois das vanguardas do início do século XX seguiu-se uma sucessão infindável – e que não se pode considerar como bem-sucedida –, de tentativas de recriar o novo, conseguir o impacto que criasse o sensorial extraordinário.

Experimentalismos os mais variados, todos impotentes diante de um mundo saturado de signos, símbolos, sinais, códigos, criados pela publicidade, pela tecnologia, pela simples necessidade de achar onde é o banheiro em um aeroporto, onde se pode virar o carro à direita ou atravessar a rua com segurança.

Na verdade, a indústria da cultura radicalizou a separação artista/espectador instaurada desde a Grécia Antiga e as vanguardas que tentam quebrar esta dicotomia esbarram no esgotamento da arte diante de tal tarefa. Exceções individuais e isoladas à parte, parece que o espetáculo triunfou sobre o ritual e a arte, incorporando até mesmo campos antes imunes, como as religiões. Há excesso de espetáculo em todos os campos (política, arte, cultura, religião), os rituais vazios, a falência da representação política – ela também transformada em espetáculo.

Não parece que o indivíduo contemporâneo esteja buscando o estranhamento, o olhar diferenciado. Pelo contrário, nada suscita seu espanto, sua suspeita, sua desconfiança. Sabe que é enganado e assim quer ser. O caso das festas de jovens, uso de drogas, esportes radicais são também busca de algo num ambiente saturado, onde não há mais o extraordinário. Talvez a busca de suprir a falta de coesão social pelo artifício. A dificuldade de encontrar redomas sensoriais alternativas.

Embora sem a devida ênfase, essas considerações finais de caráter mais melancólico e desesperançado não estão ausentes do livro de Guilherme Veiga. Mas, talvez, a aposta dele seja a de que a performance, tão cheia de possibilidades, possa vir a preencher esta falta. Não seria nada mau.

Revista Sociedade e Estado - UNB

Globalização, democracia e terrorismo

Uma resenha de um mestre: Hobsbawm e a globalização, democracia e terrorismo

Marcelo Paula de Melo

Doutorando em Serviço Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Pesquisador do Coletivo de Estudos de Política Educacional (Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio – EPSJV / Fiocruz). E-mail: marcelaomelo@gmail.com

HOBSBAWM, Eric J. Globalização, democracia e terrorismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

O historiador Eric J. Hobsbawm pode ser considerado um dos maiores pensadores ainda em ação, bem como um dos mais longevos. No ano em que completou 90 anos (2007), o autor de A Era dos Extremos lançou um novo livro. Em Globalização, Democracia e Terrorismo, Hobsbawm apresenta, em dez pequenos artigos, questões relevantes para entendermos os desdobramentos do mundo neste início de século XXI.

Como o próprio autor faz questão de ressaltar, o que se convencionou chamar de globalização não pode ser entendido como um tempo de igual divisão internacional política, econômica e militar entre os diferentes países. Os processos de intercâmbio comercial, informacional, cultural e financeiro são marcados pelas novas formas de relação desigual entre países.

Nesta obra, um conjunto de conferências e textos produzidos entre 2000 e 2006, o autor afirma que as questões centrais dizem respeito às

[...] preocupações internacionais específicas desse período, que foi dominado pela decisão tomada pelo governo dos Estados Unidos em 2001 de afirmar uma hegemonia unilateral sobre o mundo, condenando convenções internacionais até então aceitas, reservando-se o direito de fazer guerras de agressão ou outras operações militares sempre que o desejasse e levando-as à prática (Hobsbawm, 2007, p. 13-14).

A conjuntura internacional após os eventos de 11 de setembro de 2001, como também a posição da economia norte-americana, com momentos de crises anunciadas, são fundamentais para a análise de nosso tempo.

A natureza das guerras e conflitos bélicos do século XXI é um tema central nessa obra, sobretudo, em um momento em que as diferenças entre combatentes e não-combatentes são diluídas, fato provado pela grande percentagem de mortos nas guerras atuais ser de civis não envolvidos diretamente na guerra. Comparando os dados sobre mortes das duas Grandes Guerras Mundiais e das guerras atuais, Hobsbawm mostra como, atualmente, mais de 80% dos mortos e atingidos em uma guerra são não-combatentes, o que contrasta fortemente com os números relativos aos conflitos já citados. Como afirma o autor:

No início do século XXI, encontramo-nos num mundo em que as operações armadas já não estão essencialmente nas mãos dos governos ou dos seus agentes autorizados, e as partes distantes não têm características, status e objetivos em comum, exceto quanto à vontade de utilizar a violência (ibid., p. 23).

Para nosso autor, as razões para tal mudança estariam no fato de que,

[...] a partir do fim da guerra fria, porque a maioria das operações militares desde então não foi conduzida por exércitos regulares, e sim por grupos diminutos de soldados, regulares ou não, operando, em muitos casos, armas de alta tecnologia e protegidos contra o risco de sofrer baixas (ibid., p. 24),

o potencial destrutivo se intensifica, sobretudo, com danos sérios para os não-envolvidos.

Se podemos afirmar que há uma diminuição dos conflitos entre países, no início do século XXI, também é possível afirmar que aumentaram drasticamente os conflitos armados internos em muitos países do mundo. As preocupações com a natureza, as mudanças e as conseqüências das formas contemporâneas de guerra são desenvolvidas nos dois primeiros capítulos do livro.

A natureza dos conflitos e das guerras do último quartel mostra uma característica: uma inegável diminuição dos choques entre países e menos ainda disputas envolvendo a definição de fronteiras internacionais. Por outro lado, têm sido recorrentes distúrbios internos em que há participação de outros países, seja em ações unilaterais/individuais ou mediante ações conjuntas de vários Estados sob a coordenação da Organização das Nações Unidas (ONU), da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) ou mesmo de um país que esteja no comando, mas com soldados de muitas nacionalidades.

Em seguida, nos caps. 3 e 4, Hobsbawm inicia uma discussão acerca da especificidade da dominação estadunidense em nosso tempo. Reconhecendo características imperiais no papel que os Estados Unidos desempenham no sistema internacional, o autor aponta a necessidade de não se confundir essa atuação com a de outros impérios, não só de épocas pré-capitalistas, como também do século XIX e início do século passado, como foi o caso do império britânico.

Ao mesmo tempo, este início de século XXI ratifica os indícios de que, com o fim da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), os Estados Unidos assumem a conotação de única superpotência mundial, em termos de capacidade militar, política e econômica, ainda que, neste último tópico, haja indícios de que a China possa vir a ameaçar a liderança estadunidense.

Todos os perigos dessa condição têm sido provados pelas incursões dos Estados Unidos, sobretudo, a partir do 11 de Setembro. A ânsia imperialista assume um caráter mais público e menos "eufemizado"com as ações observadas ao longo da década, mas não pode ser ignorada, de modo algum, a contribuição dos outros países nesse sentido. Tem sido alardeado quase que semanalmente não apenas o papel desempenhado pela Inglaterra, sobretudo nos anos Tony Blair, como também o de outros países europeus e asiáticos, como corolários dessa nova ordem mundial. Ainda que se observem algumas fissuras nesse bloco, como a rejeição russa ao programa militar de uma base de lançamentos de mísseis de longo alcance a ser implantada pelos norte-americanos próxima a seu território, isso não é suficiente para sequer arranhar a liderança e a condução do processo.

Nem mesmo os organismos internacionais têm força para tentar barrar essa dominação unilateral estadunidense, embora tenhamos provas recorrentes de que, em momento algum, esse tenha sido o objetivo de algum deles. Como afirma Hobsbawm acerca de organismos como Banco Mundial, Organização Mundial do Comércio, Fundo Monetário Internacional, Nações Unidas,

Nenhum desses órgãos tem algum poder efetivo além daquele que lhes é conferido voluntariamente pelos Estados, ou por acordos entre eles, ou graças ao apoio de países poderosos. [...] Como apenas os Estados têm poder real, o risco é que as instituições internacionais se mostrem ineficazes ou carentes de legitimidade ao tentarem lidar com questões como os crimes de guerra (ibid., p. 29).

A especificidade do papel de relevo ocupado pelos Estados Unidos, hoje, na dinâmica de funcionamento do sistema capitalista mundial não advém apenas de seu inconteste poderio militar. Ser a economia-chefe do mundo, com enorme peso em todo o processo de funcionamento do sistema econômico mundial, com impactos em todos os grandes indicadores econômicos de nosso tempo, permite aos Estados Unidos exercer um papel central nesse sentido. Como afirma Hobsbawm (2007), isso confere uma especificidade para o tipo de imperialismo praticado pelos Estados Unidos nos séculos XX e XXI, o que lhes permite, inclusive, ser um caso único de grande império devedor, haja vista seus recorrentes déficits na balança comercial e conta corrente.

No cap. 5, Hobsbawm se dedica a uma temática por muitos considerada fora de lugar com a globalização: a nação e o nacionalismo no século XXI, que dá nome ao capítulo. Aqui, temas como migração em massa, xenofobia, identidade nacional e cultural são analisados por ele. Como pano de fundo, o autor de História Social do Jazz analisa o futebol como portador de um duplo potencial de identificação coletiva. Em nível local, os clubes regionais desempenham tal função, assim como as seleções nacionais, em nível mundial. Contudo, afirma o autor, a intensificação do mercado mundial de jogadores, como também dos próprios clubes, faz com que conflitos econômicos e empresariais sejam a tônica desse esporte em nosso tempo, embora não apenas dele. Assim, é possível entender que

[...] o negócio global do futebol é dominado pelo imperialismo de umas poucas empresas capitalistas com nomes de marcas também globais – um pequeno número de superclubes baseados em alguns países da Europa, que competem entre si tanto nas ligas nacionais quanto, preferivelmente, nas internacionais. Seus jogadores são recrutados em todo o mundo (ibid., p. 93).

Nos caps. 6 e 7, o debate gira em torno da questão da democracia no século XXI. O reconhecimento de sua suposta universalidade faz com que Hobsbawm se dedique a apresentar como não é possível esquecer que os chamados regimes democráticos contemporâneos não abrem mão de formas de dominação e exploração, tanto interna como externamente. Assim como se nota uma expansão de regimes formalmente democráticos pelo mundo, observa-se um movimento de separação e afastamento dos cidadãos comuns dos processos políticos, salvo um diminuto envolvimento em processos eleitorais, sendo que estes também estão em declínio.

A desqualificação da política se conjuga com a diminuição crescente do interesse do conjunto da população pela participação política stricto sensu. Como diz Hobsbawm (2007), se o critério primeiro da democracia representativa e sua conseqüente legitimidade têm sido a eleição popular, fica a pergunta da representatividade de um processo que envolve cada vez menos o conjunto da população:

[...] houve um declínio na vontade dos cidadãos de participar da política, assim como na efetividade da maneira clássica – a única legítima, segundo a teoria convencional – de exercer a cidadania, ou seja, a eleição, por sufrágio universal, dos que representam 'o povo' e estão por isso mesmo autorizados a governar em seu nome. Entre as eleições – ou seja, por vários anos, normalmente –, a democracia existe apenas como ameaça potencial à sua reeleição ou à dos seus partidos (ibid., p. 107).

Nesse contexto, para consolidação e manutenção da dominação burguesa, nada mais funcional do que manter as tomadas de decisão longe dos olhos do público, ou, então, próximo, mas em uma linguagem hermética e incompreensível.

O terceiro aspecto do título do livro, Terrorismo, é o tema dos caps. 8 e 9, com a preocupação central de analisar as mudanças no terrorismo político do fim do século XX, motivo de interrogação para nosso autor. Para além da abordagem mais comum do tema, Hobsbawm resgata debates acerca dos grupos que buscavam fazer política por meio de ações terroristas no mundo, como Sendero Luminoso (Peru), Brigadas Vermelhas (Itália), Pátria Basca e Liberdade (ETA, da Espanha), Exército Republicano Irlandês (IRA), além de outros, sobretudo para marcar a diferença com a lógica de ação da Al-Qaeda, ainda que igualmente condenáveis. Aqui, o autor chama atenção para o fato de que, a despeito da publicidade das ações dos grupos terroristas mais recentes, bem como dos eventos ocorridos em Nova York, Madrid e Londres, o sistema internacional de poder – bem como as estruturais internas – não foi sequer abalado por tais atos. Como afirma o autor,

[...] se ocorreram efeitos negativos posteriores, eles não se deveram as ações dos terroristas, mas sim à do governo Americano. [...] isso ressalta a fraqueza relativa e absoluta dos movimentos terroristas da fase atual. Eles são sintomas, e não agentes históricos significativos [...]. Operando em países estáveis, com regimes estáveis e sem apoio de setores relevantes da população, eles são um problema policial e não militar (ibid., p. 135).

Por último, mas não menos importante, nosso autor retoma a análise sobre o imperialismo estadunidense em nosso tempo. Começando pelo reconhecimento de que "os Estados nacionais ainda são dominantes", Hobsbawm afirma que o império norte-americano tem não apenas pretensões, mas necessidade de operar em todo o globo. O próprio autor, porém, alerta que os Estados Unidos nunca exerceram um colonialismo clássico, visto terem ocupado diretamente outros países apenas por curto período de tempo. Sua lógica de atuação sempre foi mediante países dependentes e satélites, com apoio de governantes eleitos ou não, mas com forte apoio norte-americano.

O que torna nosso tempo mais dramático é a inexistência de qualquer outra potência capaz de fazer frente, militar e economicamente, contra os Estados Unidos, o que deve perdurar por algum tempo, que não é possível determinar. Enquanto isso, o perigo da desestabilização política do mundo é real, até mesmo pela natureza e voracidade recente das ações e gestões norte-americanas em contextos em que seus interesses são contrariados em qualquer parte do globo. A doutrina de guerra preventiva adotada por George W. Bush é seu retrato mais fiel. Hobsbawm, entretanto, defende que o imperialismo norte-americano pode não ser tão duradouro, em vista da fragilidade da economia estadunidense.

Contudo, as possibilidades de salto para a frente no sentido de aprofundamento da lógica de exploração, combinada com essa inconteste supremacia militar, abrem portas para um futuro muito pouco róseo. É isso que o novo livro do mestre Eric Hobsbawm nos lega. Ainda que menos brilhante do que A Era dos Extremos e do que sua magistral biografia Tempos Interessantes, este novo livro nos fornece relevantes questões para entendermos nosso tempo. Às portas de completar 91 anos, Eric Hobsbawm, mais uma vez, acerta na mosca.


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Confiança e medo na cidade

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Cidades líquidas

Patrícia Cabral de Arruda
Doutoranda em Sociologia pela Universidade de Brasília (UnB)


BAUMAN, Zygmunt. Confiança e medo na cidade. Tradução por Miguel Serras Pereira. Lisboa: Relógio D'Água, 2006.

Depois de fazer parte das preocupações de importantes sociólogos clássicos, tais como Weber e Simmel, o tema da cidade volta ao centro das discussões na sociedade contemporânea. O espaço urbano é o cenário por excelência da vida pública, do trabalho, da geração de renda e riqueza, da produção e do consumo, mas também das aglomerações, do desconhecido, do caos, dos medos visíveis e invisíveis. Atualmente, muitos estudiosos têm voltado sua atenção para a análise do fenômeno urbano, entre eles, um dos mais producentes da atualidade: Zygmunt Bauman.

Sociólogo polonês, professor da Universidade de Leeds, na Inglaterra, esse estudioso dedica-se intensamente a pensar a era atual, denominada por ele de "modernidade líquida". Tem produzido obras sobre os mais variados temas de nossa época: o amor, a comunidade, o Holocausto, a globalização, o medo, a cidade. O estilo ensaístico e fluente, permeado por referências a diversos autores, traz um tom quase apocalíptico, mas curiosamente otimista. Provocativo e instigante, foge de qualquer "enquadramento" teórico, principalmente, dos que se referem à "famigerada" pós-modernidade.

Quase todos os escritos mais recentes de Bauman enfatizam a idéia de "liquidez", o que demonstra como ele percebe a existência na modernidade: fluida, efêmera, amorfa. A obra em questão, embora não estampe no título, retoma a idéia da passagem da "modernidade sólida" para a "modernidade líquida", já desenvolvida em obras como Modernidade Líquida, Tempos Líquidos, Medo Líquido, entre outras. O autor demonstra como a complexidade da vida urbana transforma os indivíduos em seres aterrorizados por medos reais ou imaginários, em sujeitos sós, amedrontados e inseguros.

O livro Confiança e Medo na Cidade, ainda sem edição brasileira, é composto por dois ensaios e pela transcrição de intervenção em um congresso (Milão, 2004). Em todos os textos – Confiança e Medo na Cidade, Em Busca de Refúgio na Caixa de Pandora e Viver com Estranhos –, o autor discute as relações entre os seres que habitam a cidade. Segundo ele, nos últimos anos, o medo e a obsessão por segurança ganham espaço, sobretudo, na Europa. Paradoxalmente, ao citar Robert Castel, afirma que vivemos em algumas "das sociedades mais seguras que jamais existiram" (p. 9). Ainda mais contraditoriamente, nos sentimos cada vez mais "ameaçados, inseguros e assustados".

Confiança e Medo na Cidade remete a Freud, ao mencionar que o nosso sofrimento, bem como o medo de sofrer, resulta da precariedade e efemeridade do nosso corpo, diante da "supremacia da Natureza", além da nossa incompetência na elaboração de métodos eficazes de regulação das relações sociais. Quanto aos limites físicos, não temos outra saída a não ser contentarmo-nos com o fato de que nunca poderemos dominar por completo a natureza. Porém, no tocante aos sofrimentos de origem social, não aceitamos limites no que diz respeito às nossas próprias ações.

Vivemos em uma sociedade que "se organizou em torno de uma procura infinita de proteção e da insaciável aspiração à segurança" (p. 11). Precisamos sempre de alguém "mau". Por isso, nossos medos estão continuamente relacionados a crimes e malfeitores, e, assim, desconfiamos das pessoas e de suas intenções. Bauman lembra como Castel vincula essa situação ao individualismo contemporâneo, pois, ao suprimirmos a importância das comunidades e corporações, obrigamos os homens a cuidarem apenas de si mesmos, o que gera incertezas e, conseqüentemente, medo. Segundo Castel, esse sentimento de insegurança surge devido a dois fenômenos típicos da modernidade: por um lado, a supervalorização do indivíduo, ao libertá-lo do "peso" imposto pelas redes e laços sociais em demasia; por outro, a exacerbação dessa liberdade levou esse mesmo indivíduo a se sentir frágil e vulnerável.

Para Bauman, na "modernidade sólida", o indivíduo temia a "impossibilidade de se adequar à norma geral", mas, "com o advento da modernidade líquida, o fantasma mais aterrador é o representado pelo medo de ficar para trás" (p. 18). Agora, os medos e perigos se proliferam e advêm de todas as partes: da comida industrializada que consumimos, da depressão, do estresse, das doenças cardiovasculares, da vida sedentária, da falta de emprego ou do excesso de trabalho, da exposição ao sol e das relações sexuais sem preservativos. Por isso, temos a impressão de que o caos está instaurado e de que não nos resta alternativa senão instalar câmeras de segurança, blindar os carros e construir muros. Essas sensações são reforçadas pelos anúncios publicitários que lucram com a venda de equipamentos de segurança e do próprio terror. Em uma interessante passagem, Bauman cita Ray Surette, segundo o qual "o mundo tal como aparece na televisão assemelha-se a um rebanho de 'cidadãos-cordeiros' protegidos dos 'delinqüentes-lobos', por 'policiais cães-pastor'" (p. 53).

O diálogo com Robert Castel surge, novamente, ao remeter às "classes perigosas", que, originalmente, eram compostas pelo excedente de pessoas que estavam temporariamente fora do mercado de trabalho. Agora, porém, essa camada não é mais considerada apta a integrar-se à vida social e essas pessoas são declaradas "inassimiláveis". Não são apenas excedentes, mas supérfluas [redundant]. Serem excluídas permanentemente é seu destino irrevogável. Por isso, transformam-se em classes perigosas. Estar sem trabalho significa que o indivíduo deixou de ser imprescindível. Bauman critica o termo "desempregado", que, segundo ele, sugere mais do que diz ou indica que a norma é o emprego e que, portanto, estar desocupado é uma anormalidade.

Na medida em que não são mais necessários, os componentes das classes perigosas tornam-se os "desclassificados" [underclass]: pessoas que não pertencem a qualquer grupo social, situadas à margem. Não se trata de um grupo "inferior", mas de pessoas que estão "fora", "que não servem para nada" (p. 79). Não possuem conta bancária nem cartão de crédito e, por isso, podem passar facilmente de supérfluas a delinqüentes. O tratamento que recebem é o mais conveniente: "tolerância zero", pois é preciso mantê-las longe, por meio da segregação territorial. Assim, surgem muralhas para separar "nós" e "eles", ordem e caos, paz e guerra. Tudo isso para evitar incômodos. Bauman remete-se a Frederik Barth para demonstrar que as fronteiras não separam as diferenças, pelo contrário, quando são traçadas, as diferenças surgem abruptamente.

O cenário dessa segregação e das lutas por ela engendradas é o espaço urbano. É no âmbito citadino que os problemas de origem global se acumulam, "depósitos de lixo" dos problemas criados pela globalização: distúrbios de ordem macro que se manifestam em nível micro, pois terminam por afetar a população local, o bairro. Paradoxalmente, o autor afirma que é nas próprias cidades que se devem procurar as soluções para os problemas globais.

Para Bauman, há uma característica da cidade que sempre estará presente: ela é um espaço cheio de desconhecidos convivendo em extrema proximidade. Esse traço é uma contínua fonte de incertezas e medo, visto que é impossível evitar a presença de estranhos – e estrangeiros – nos espaços públicos. A propósito, os estrangeiros são a própria encarnação do imprevisível. O estranho é, portanto, o perigo: "O desconhecido é uma incógnita variável de todas as equações" (p. 34). Os espaços públicos, por sua vez, são lugares por excelência em que os desconhecidos se concentram e onde irrompem as características da vida urbana, onde ela alcança sua expressão máxima e onde percebemos tudo "o que a diferencia de outros tipos de existência coletiva" (p. 67).

Os estranhos, transformados em indivíduos supérfluos, convertem-se em imigrantes econômicos e representam as "assustadoras forças da globalização" (p. 75). Como os personagens de Brecht, os indivíduos trazem consigo todas as mazelas sociais que são cotidianamente "varridas para debaixo do tapete": guerras, fome, privações. Trazem à tona a fragilidade e a precariedade humanas e aumentam o temor de que sejamos os próximos a nos tornarmos supérfluos.

Ao citar o estudo de Teresa Caldeira sobre São Paulo, o autor mostra como a miríade de condomínios fechados se tornou ghettos voluntários, pois representam "oásis de calma e segurança" em meio aos perigos da vida coletiva urbana (p. 36).

Além dos condomínios fechados, Bauman elenca outras inovações da arquitetura e do urbanismo modernos que moldam os espaços à imagem e semelhança do medo, tais como os observados pelo geógrafo Steven Flusty. São os espaços vetados [interdictory spaces], os espaços fugidios, os espaços espinhosos ou os espaços do medo. Em geral, são lugares dedicados a filtrar, a segregar, a excluir os visitantes inconvenientes. São locais aonde não se pode chegar por falta de vias de acesso, ou onde não se pode estar à vontade em virtude da presença de mecanismos de vigilância. Espaços em que ninguém pode passar despercebido e que revelam uma forma de comportamento que é fruto da diversidade cultural encontrada nas metrópoles: a "mixofobia", ou seja, uma "reação previsível e generalizada perante a inconcebível, arrepiante e aflitiva variedade de tipos humanos e de costumes que coexistem nas ruas das cidades" (p. 40). Assim, há uma "tendência que impele a procurar ilhas de semelhança e de igualdade no meio do mar da diversidade e da diferença" (p. 40).

Outro autor com quem Bauman dialoga sobre os medos típicos dos habitantes das cidades é Richard Sennett, segundo o qual a uniformidade do meio faz com que as pessoas "desaprendam" como criar formas de conciliação com os estranhos e aumente o medo delas. Daí, o pavor diante do encontro com os estrangeiros e a tendência à segregação que tanto alimenta os comportamentos "mixofóbicos".

Por outro lado, essa realidade urbana é uma experiência que provoca sentimentos diversos, pois "atrai e repele ao mesmo tempo", e talvez seja justamente por isso que a paisagem seja tão aterrorizante e tão irresistível, simultaneamente, uma vez que nunca faltam novidades e surpresas. Prova disso é que, além da "mixofobia", a cidade causa também a "mixofilia", ou seja, a forte atração pela diferença, um desejo de misturar-se com o diverso porque ele é interessante ou fascinante. Segundo Bauman, os dois comportamentos opostos coexistem no íntimo dos indivíduos urbanizados. Sendo a cidade um lugar tão sedutor, locus da aventura – sensação potencializada pela insegurança e pelo medo –, o autor identifica um dilema contido na seguinte questão: "será possível eliminar o medo suprimindo igualmente o tédio?" (p. 65).

A modernidade líquida é marcada pelo triunfo do progresso econômico, do livre câmbio, do livre consumo e da livre concorrência. É o triunfo da civilização moderna. A esse respeito, Bauman cita Diken e Lausten, que afirmam a inversão do "vínculo milenar entre civilização e barbárie". Para eles, "a vida urbana transforma-se numa selva onde impera o terror" (p. 59). As fontes de perigo passaram a existir dentro da cidade.

Paralelamente, os símbolos do capitalismo, as grandes corporações mudaram-se para áreas afastadas, deixaram de ter interesses centrados na cidade e, agora, o mínimo que desejam é que os seus habitantes "os deixem em paz". Pedem muito pouco e por isso "não se sentem igualmente obrigados a devolver muito" (p. 62).

Bauman cita Nan Ellin, para quem a pluralidade de problemas e sensações suscitados pela vida urbana demonstra a importância de se construírem "cidades que respeitem as comunidades", tarefa difícil, mas essencial à convivência humana (p. 70).

Depois de pintar um cenário aterrorizante e pessimista, Bauman imprime às suas conclusões um tom conciliador e, de certa maneira, otimista, para que o "líquido" não se desfaça no ar. Segundo ele, o que podemos e devemos fazer é contribuir para aumentar a "mixofilia" e reduzir a "mixofobia" (p. 83).

Ao citar Madeleine Bunting, o autor lembra que o "espírito da cidade" é formado pela gama de interações que acontecem no cotidiano: entre motoristas e passageiros, comerciantes e consumidores, empregados e patrões, e também por encontros fugazes, por gestos apressados que modelam e atenuam a brutalidade da existência humana e urbana. Para tanto, é preciso que (re)aprendamos a conviver com as diferenças, promovendo não a tolerância, mas, acima de tudo, o respeito.

As últimas páginas de Confiança e Medo na Cidade trazem uma reflexão muito apropriada para a discussão proposta. Recorda o tempo em que Bauman, ainda estudante, ouviu de um professor de Antropologia a explicação sobre a datação de um fóssil humano e as conclusões sobre a existência da comunidade em que essa criatura viveu, pois se tratava de um ser que apresentava marcas de uma imperfeição física, mas que resistiu cerca de trinta anos. A partir do exemplo, Bauman afirma que a nossa sociedade se distingue de qualquer outro rebanho de animais porque é possível a ela a convivência com inválidos, em virtude da compaixão e dos cuidados prestados a eles, característica exclusivamente humana (p. 86-87). A questão, segundo o autor, é levar esse sentimento de compaixão e solidariedade para além dos muros de nossas casas.

Assim, essa obra torna-se leitura indispensável a todos os pensadores da contemporaneidade, sobretudo, aos que se dedicam a refletir sobre o contexto urbano e sobre como a vida condiciona relações singulares. É indicada, em especial, aos estudiosos da violência, dos medos e fobias característicos dos seres que vivem nas cidades modernas. Destina-se, também, a todos os moradores amedrontados ou inquietos com os problemas gerados pela vida cotidiana, confiantes de que a solução está em nossos atos na casa, no bairro, enfim, na cidade que habitamos e que nos habita a cada um de nós.

Revista Sociedade e Estado - UNB