Denise Soares de Moura
Doutora em História Social - DH-FFLCH/USP Professora Depto. História - UNESP/Franca
FRENCH, John D. Afogados em leis: a CLT e a cultura política dos trabalhadores brasileiros. Trad. Paulo Fontes. São Paulo, Ed. Fundação Perseu Abramo, 2001.
Os problemas atuais enfrentados pelas relações de trabalho no Brasil e no mundo vêm suscitando discussões nos vários âmbitos da sociedade. Temas como reforma previdenciária, diminuição ou extinção de muitos postos de trabalho e crescentes pressões pela flexibilização da legislação trabalhista, que podem levar as férias remuneradas, o 13º salário e a remuneração das horas extras ao fim, são alguns dos mais polêmicos.
Com o objetivo de contribuir para este debate a Fundação Perseu Abramo lançou o livro Afogados em leis: a CLT e a cultura política dos trabalhadores brasileiros, de autoria do historiador norte americano John French, professor associado da Universidade de Duke (Durham, Carolina do Norte) e que vem se dedicando, dentre outros estudos, a investigações na área da história do trabalho.
Combinando visão abrangente com pesquisa empírica e rigor historiográfico, Afogados em leis... leva ao conhecimento de um público mais amplo debates que costumam permanecer exclusivos aos meios acadêmicos. Neste caso, o autor divulga discussões que, desde meados dos anos noventa do século XX, vêm colocando em questão idéias relativas à de subordinação e cooptação dos sindicatos e trabalhadores na história do movimento operário pós-1930, estudos estes que demonstraram uma realidade trabalhista mais complexa, permeada por conflitos, negociações e autonomia1.
O livro de French examina esta realidade a partir da Consolidação das Leis do Trabalho, dos impasses no seu funcionamento e do modo como esta foi apropriada pelos trabalhadores. Conforme o próprio título do livro sugere, o trabalhador brasileiro vive, desde a promulgação da CLT em 1º de maio de 1943, o paradoxo de estar afogado em leis trabalhistas e injustiças, ou seja, o país que tem umas das legislações relativas aos direitos trabalhistas mais densas, possui, ao mesmo tempo, um dos índices mais altos de exploração no trabalho, em virtude da inserção específica desta legislação no jogo político e na estrutura do estado.
Conforme escreve o autor ao analisar a atuação dos inspetores do trabalho, dos tribunais, das juntas de conciliação e julgamento, tal inserção foi marcada pela negligência no cumprimento das leis. Nos locais de trabalho o descumprimento da legislação envolveu questões relativas à segurança do trabalho, trabalho feminino, da criança e salários.
Esta execução limitada da CLT, French atribui à atitude política clientelística, paternalista e autoritária do governo de Getúlio Vargas que se colocava como mediador dos conflitos entre a burocracia estatal e os grandes interesse privados. O autor sugere ainda que tais limites possam advir do fato da CLT ser "simplesmente outro exemplo de bacharelismo liberal e de 'idéias fora do lugar' em um país onde o liberalismo sempre foi um mal entendido" (p. 37). Nesse caso, a legislação trabalhista no Brasil pode ter nascido mais como um novo ramo da ciência jurídica, negligenciando formas asseguradoras do seu cumprimento, ensejando uma "política do jeitinho" (p. 42), através da qual a interpretação desta legislação passava a atender parcialmente os interesses dos industriais de São Paulo (p. 44). Deste modo, conclui o autor, os industriais paulistas não precisaram temer as leis trabalhistas porque não acreditavam na sua execução (p. 44).
Este quadro aparentemente desanimador quanto à aplicabilidade da legislação trabalhista é desfeito a partir do momento em que French passa a focalizar esta legislação pelo "prisma da subjetividade", chamando atenção para a consciência legal dos trabalhadores (p. 57). Invocando o conceito de Azis Simão, o autor salienta o processo de formação de uma "consciência jurídica de classe"2 entre os trabalhadores, tendo cabido aos militantes e lideranças sindicais transformar esta "consciência jurídica de classe" em "consciência de classe" voltada para projeto coletivo mais amplo de organização (p. 66), viabilizando a própria aplicabilidade da legislação.
O enfoque desta dimensão subjetiva das disposições legais da CLT é uma das contribuições mais importantes do livro, avançando em relação à interpretações – e em relação àquilo que acredita o senso comum - que apontam para o predomínio das relações de outorga-obediência na história dos trabalhadores no Brasil. Assim, seu estudo mostra como necessitamos desenvolver uma melhor compreensão do modo como a legislação interferiu na consciência individual, coletiva e no comportamento de líderes sindicais e trabalhadores, especialmente nos anos 40 e 50 do século XX.
Conforme conclui o autor, quando o trabalhador recorre aos canais jurídicos exigindo o cumprimento da lei, ele anula esta relação de outorga-obediência. Assim, mesmo constatando certo ceticismo entre muitos trabalhadores e líderes sindicais entrevistados quanto à legislação trabalhista, o autor mostra que inegavelmente a esfera jurídica passou a ser mais uma de suas armas de resistência à exploração no trabalho.
No estudo da sociedade brasileira, nunca é demais insistir no impacto do caráter autoritário de alguns segmentos economicamente dominantes, e as conseqüências disto nas suas relações com o Estado e sua histórica prática de desrespeito aos direitos alcançados pelos trabalhadores. Focalizar com atenção este problema não leva a vitimização da classe trabalhadora, mas ao melhor entendimento do processo de transformação histórica, a partir das tensões entre as diferentes classes. Neste sentido, "Afogados em leis..." contribui para esta melhor compreensão. Outra virtude do livro é ampliar a análise do conceito de República Populista, abordado, até os anos setenta e oitenta do século vinte, na perspectiva teórica de um Estado outorgante da legislação trabalhista e desmobilizador da consciência e da prática de luta dos trabalhadores.3
Sobre a relação dos trabalhadores rurais com a legislação, contudo, o leitor continua sendo muito pouco informado, pois o autor não se deteve no assunto, apresentando apenas um poema sertanejo dos anos 40 e uma pequena entrevista realizada nos anos 70 (p. 55) que indicam uma visão da CLT a partir do campo.
A sedimentação de uma cultura jurídica entre sindicalistas e trabalhadores é um dos temas mais significativos do livro, contudo, não estão bem explicitados os mecanismos geradores desta cultura. Tais mecanismos estariam situados no próprio Ministério do Trabalho, ou seja, no próprio Estado? Entretanto, o livro sugere que a intensa divulgação dos benefícios trabalhistas pelo Ministério do Trabalho, no final do Estado Novo, pode ter funcionado como um dos mecanismos sedimentadores de uma consciência jurídica entre a classe trabalhadora.
As palestras proferidas semanalmente pelo Ministro do Trabalho e Justiça, Alexandre Marcondes Filho, através dos microfones do programa Hora do Brasil, a publicação do seu conteúdo no jornal oficial do estado – A Manhã - , suas falas diárias na rádio Mauá tratando do novo direito social4 embora tivessem o propósito de acentuar o caráter protetor do Estado inegavelmente instruíram os trabalhadores na legislação social. Neste sentido, o próprio Estado pode ter sido um dos meios de fortalecimento do poder e organização dos trabalhadores.
Ainda como aspecto importante e inovador do livro destaca-se a advertência do autor quanto à negligência dos estudiosos em relação a dimensão individual da lei. Ou seja, para ele o campo da legislação trabalhista não é essencialmente uma experiência coletiva sendo importante o estudo do impacto dos mecanismos de dissídio individual estabelecidos por indivíduos e pequenos grupos que contestam injustiças.
O ensaio bibliográfico apresentado no final do livro (pp. 75-93) contribui com uma sugestão de pesquisa ao indicar a necessidade de estudos que comparem as leis do trabalho entre os países da América Latina.
Confrontado com a realidade atual o livro de French permite o melhor entendimento e questionamento de problemas, tais como os esforços para a flexibilização das relações de trabalho e seus significados e conseqüências para a classe trabalhadora, o aumento do trabalho informal e suas implicações, o histórico desrespeito aos direitos dos trabalhadores e o crescimento das demandas judiciais na justiça do trabalho. Trata-se, portanto, de leitura relevante diante de um contexto inquietante em que está mergulhado o atual sindicalismo de contestação e liberalização das leis trabalhistas.
1 Dentre tais estudos cf. SILVA, Fernando Teixeira. A carga e a culpa. Os operários das Docas de Santos: Direitos e cultura de solidariedade, 1937-1968. São Paulo/Santos, Ed. HUCITEC, Prefeitura Municipal de Santos, 1995; PONTES, Paulo. Trabalhadores e cidadãos. Nitro Química: a fábrica e as lutas operárias nos anos 50. São Paulo Annablume/Sindicato Químicos e Plásticos, 1997.
2 SIMÃO, Azis. O sindicato na vida política do Brasil. In: Revista de Estudos Sócio Econômicos (DIEESE). I, n. 9, 1962.
3 Debates relativos a esta importante problemática estão em: FERREIRA, Jorge. O populismo e sua história. Debate e crítica. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2001.
4 Cf. GOMES, Angela de Castro. A invenção do trabalhismo. São Paulo, Vértice, Ed. Revista do Tribunais; Rio de janeiro, IUPRJ, 1988.
Revista de História - USP
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