segunda-feira, 7 de março de 2011

Comissão Científica do Império: 1859-1861

De herbário a dromedário

Livro resgata memória da primeira expedição científica feita por brasileiros no país e argumenta: embora lembrado principalmente por acontecimentos pitorescos, o grupo produziu coleções importantes para museus nacionais.

Por: Isabela Fraga

Publicado em 22/03/2010 | Atualizado em 22/03/2010

De herbário a dromedário

Desenhos e aquarelas da paisagem cearense foram um dos legados da Comissão Científica do Império. A arte é de José dos Reis Carvalho, pintor da expedição (reprodução / 'Comissão Científica do Império: 1859-1861').

Interior do Ceará, 1859. Em meio aos vilarejos e comunidades rurais, um grupo de ‘doutores’ viajava, catando amostras de pedras, plantas, insetos e outros bichos. Com equipamentos modernos para a época que pareciam “arte do demônio” aos olhos dos locais (como conta o escritor cearense Domingos Olímpio em seu romance), eles observavam o céu e fascinavam a população com máquinas fotográficas. Tratava-se dos integrantes da chamada Comissão Científica do Império, a primeira expedição exploratória feita por brasileiros no país.

Historiadores da ciência comentam os feitos – e desfeitos – do grupo que ajudou a sedimentar uma ciência brasileira

Com o objetivo de acabar com os erros cometidos por naturalistas estrangeiros em suas descrições e estudos sobre o Brasil, esse grupo de “científicos” – como eram chamados pelos cearenses – produziu, após dois anos e cinco meses de viagem, coleções que integram até hoje museus brasileiros. Uma grande ambição, entretanto, não foi concretizada: a produção de uma publicação científica com os resultados da expedição.

É de certa forma para preencher essa lacuna de dois séculos que a historiadora Lorelai Kury, da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), organizou o livro Comissão Científica do Império: 1859-1861. Para comemorar os 150 anos da comitiva, completados em 2009, Kury convidou um time de estudiosos em história da ciência para debater e comentar os feitos – e desfeitos – do grupo que ajudou a sedimentar uma ciência brasileira.

Capa do livro 'Comissão Científica do  Império'Entre os nomes que assinam os artigos, estão a geóloga Silvia Figueiroa, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), e a bióloga Magali Romero Sá, da Fiocruz, além da própria Kury. Os temas abordados vão desde os trabalhos etnográficos realizados por membros da Comissão até a formação de coleções para museus brasileiros.

O resultado, afinal, é um livro ‘de mesa’, imponente, no qual a densidade acadêmica dos textos é equilibrada pelas belas ilustrações e pinturas feitas por membros da comitiva no decorrer da viagem. “Por isso, pode interessar tanto a pesquisadores com um foco específico como a pessoas que apreciem a arte e o século 19 em geral”, comenta Kury.

Confira uma galeria com imagens do livro
Comissão Científica do Império: 1859-1861

Os museus agradecem

A Comissão era composta por pesquisadores importantes do Museu Imperial (atual Museu Nacional) e membros do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) – como o poeta Gonçalves Dias, o botânico Francisco Freire Alemão, o engenheiro Guilherme Capanema e o ornitólogo Manuel Ferreira Lagos.

Embora estudiosos argumentem que é difícil precisar quando se deu o estabelecimento da ciência no país, a formação de uma comunidade científica brasileira teve um propulsor claro. “Uma das grandes realizações da Comissão se deu no sentido de ajudar a expandir um grupo nacional de cientistas”, explica Kury.

Ao final da viagem, o grupo trouxe uma extensa coleção zoológica, botânica e geológica, além de exemplares de artesanato cearense, desenhos e aquarelas, que ilustram as páginas do livro. Todo esse legado resultou em um aumento significativo das coleções do Museu Nacional e do Museu Imperial. O primeiro, por exemplo, ficou com o denso e até hoje consultado herbário do botânico Freire Alemão.

Martim-pescador-pequeno
O martim-pescador-pequeno (‘Chloroceryle americana’), comum à beira de rios, manguezais e lagos, em ilustração feita a partir da coleção de zoologia reunida pelo ornitólogo Manuel Ferreira Lagos (reprodução / 'Comissão Científica do Império: 1859-1861').

‘Comissão das Borboletas’ e outros apelidos

Mas por que, com tanto investimento do Império, a Comissão não conseguiu levar adiante o projeto de uma grande publicação? Para Kury, os motivos para esse relativo fracasso vieram de várias instâncias. “Além de não haver uma comunidade de cientistas brasileiros que desse continuidade à produção da Comissão, houve também imprevistos que prejudicaram os materiais da viagem”, conta a historiadora.

A memória da expedição ficou mais marcada por acontecimentos pitorescos e picantes

A sociedade, em geral, também não se mobilizou muito em relação à Comissão. Muito pelo contrário: havia total descrédito perante seus integrantes e objetivos. “Naquela época, se tinha uma visão da ciência totalmente aplicada a um objetivo concreto e econômico, como a busca por ouro”, explica Kury. “Por isso, todo o trabalho de pesquisa mais básica era visto como supérfluo.” Não à toa, um dos (muitos) nomes jocosos conferidos ao grupo foi ‘Comissão das Borboletas’, numa alusão à suposta superficialidade à qual ela se dedicava.

A própria memória da expedição ficou muito mais marcada por alguns acontecimentos pitorescos e picantes do que pelas coleções que formou e textos que produziu. Uma das histórias mais comentadas é sobre a tentativa de aclimatação de dromedários no Brasil, que trouxe 14 desses animais, acompanhados de quatro argelinos, à capital cearense. Também a fama dos membros da Comissão de namoradores lhes conferiu um apelido inusitado: ‘Comissão Defloradora’.

Dromedários no Ceará
A Comissão Científica do Império trouxe da África 14 dromedários e tentou aclimatá-los no Ceará, sem sucesso. O episódio é uma das histórias mais contadas sobre a expedição (reprodução / 'Comissão Científica do Império: 1859-1861').

Bem-sucedida ou não, a Comissão Científica do Império sem dúvida contribuiu para a ideia de que o Brasil podia ele mesmo fazer ciência. “A elite do país, porém, não estava convencida disso, e só valorizava a ciência que tivesse aplicação evidente e imediata”, comenta Kury. “Hoje, pelo menos, conseguimos perceber a importância e o espírito de vanguarda da Comissão.”


Comissão Científica do Império: 1859-1861
Lorelai Kury (org.)
Rio de Janeiro, 2009, Andrea Jakobsson Estúdio Editorial
Ciência Hoje/RJ

Entre a oralidade e a escrita: a etnografia nos candomblés da Bahia

A escrita nos terreiros

A transmissão do saber no candomblé é tida como tarefa quase exclusiva da oralidade. Partindo do estudo de cadernos e textos de autoridades religiosas, contudo, um livro constata o forte papel da escrita para as religiões afro-brasileiras.

Por: Sergio Ferretti

Publicado em 17/05/2010 | Atualizado em 17/05/2010

A escrita nos terreiros

Cerimônia de candomblé no terreiro da Mãe Laura, em Rio Branco, no Acre (foto: Talita Oliveira – CC BY-NC 2.0).

No livro Entre a oralidade e a escrita: A etnografia nos candomblés da Bahia, Lisa Earl Castillo, norte-americana radicada em Salvador há quinze anos, analisa com brilhantismo a interação entre oralidade e escrita nos processos de transmissão do saber nas comunidades religiosas afro-brasileiras.

A publicação deste texto é fruto de uma parceria entre a CH On-line o Jornal de Resenhas. A cada nova edição do jornal, reproduziremos aqui uma de suas resenhas.

A obra desafia a velha ideia de que os terreiros sejam concebidos como espaço exclusivo da oralidade, constatando sua convivência inescapável com a escrita. Com grande habilidade no trabalho de campo, apresenta críticas sutis tanto a determinadas categorias de praticantes quanto a colegas da academia.

Castillo visitou mais de vinte terreiros e entrevistou dezenas de pessoas entre 1998 e 2005, quando defendeu a tese de doutorado que deu origem ao livro na Universidade Federal da Bahia (Ufba). Aprendeu que dentro do candomblé é preciso observar e não fazer perguntas, pois quem pergunta não é bem visto, sobretudo se faz a pergunta errada.

Confirma que o saber no candomblé é esotérico, de difícil acesso e divulgação restrita, constituindo um mistério pouco compreensível à modernidade ocidental. Que a posse do conhecimento religioso produz status, portanto saber e poder estão relacionados.

Secretos e adquiridos ao longo do tempo, os fundamentos desse saber requerem um sistema hierárquico com pequeno número de conhecedores

Secretos e adquiridos gradativamente ao longo do tempo, os fundamentos desse saber requerem um sistema hierárquico com pequeno número de conhecedores. Tornam-se um bem de alto valor que gera complexa rede de poder dentro da comunidade.

A lógica do segredo, que também existe no culto aos orixás na África, no Brasil seria ampliado pelas condições da escravidão e do ambiente de perseguição em que surgiu o candomblé.

A autora discute as interações complexas entre referências iorubás, muçulmanas e cristãs no uso da escrita pelo povo de candomblé no século 19. Indica que usos da escrita (e também da fotografia) desde então nos candomblés são mencionados, embora marginalmente, em todos os antigos estudos.

Mas constata a tendência da etnografia, em geral, a desconhecer a escrita nos terreiros como aspecto relevante, o que relaciona à ideia enraizada de que esse meio de transmissão e registro de saber seria uma deturpação da pureza original e de que as culturas ágrafas estariam congeladas no tempo, não teriam história.

Adepta do candomblé durante ritual
Uma adepta do candomblé durante ritual (foto: Talita Oliveira – CC BY-NC 2.0).

Produção textual ‘para-etnográfica’

Castillo, em contrapartida, constata e analisa a existência na prática privada de 'cadernos de fundamento', usados como auxílio à memória, os quais se assemelham a um diário pessoal, embora sem que se observe seu uso sistemático como na 'santeria' cubana, onde muitos eram comercializados, enquanto na Bahia tinham circulação clandestina.

Livro: 'Entre a oralidade e a escrita: A etnografia nos candomblés da Bahia'
A capa do livro de Lisa Earl Castillo (imagem: reprodução).

Ela lembra que Ruth Landes, já na década de 1930, teve conhecimento de um desses cadernos e analisa detidamente o caso de legendário manuscrito, conhecido no Axé Opô Afonjá do Rio de Janeiro a partir de 1920, que circulou entre sacerdotes mais elevados.

Informa que ele contém setenta contos da versão afro-brasileira dos versos de Ifá e começou a ser publicado em diferentes edições a partir dos anos 1960. Teve edição integral, em inglês, na Nigéria na década de 1980, sendo divulgado definitivamente no Brasil na década seguinte.

A autora argumenta que as diversas contestações sobre a originalidade desse texto mostram que a polêmica quanto a suas origens é tão interessante quanto sua existência e valorização. E indaga como tantas pessoas chegaram a ter cópia de um texto guardado com tanto sigilo por ser tido como portador de segredos rituais.

O livro também analisa textos escritos e publicados na atualidade por um número crescente de sacerdotes e praticantes de diversos ramos das religiões afro-brasileiras, alguns vendidos até em bancas de jornal.

Segundo Castillo, classificar os textos, em geral, que surgem dentro dos terreiros implica problemas semânticos e ideológicos. Seus autores ocupam posições subalternas em relação à academia, mas pertencem à elite dos terreiros. Na falta de termo melhor, a autora denomina essa produção textual de para-etnografia.

A inalcançável ‘verdadeira realidade’

Na entrevista etnográfica, como na física nuclear, os dados acabam sendo modificados pelo próprio processo da coleta

Trata-se de um estudo muito rico em subsídios teóricos e metodológicos. Castillo discute os conflitos epistemológicos decorrentes da metodologia de pesquisa antropológica e constata, por exemplo, que na entrevista etnográfica, como na física nuclear, os dados acabam sendo modificados pelo próprio processo da coleta, fazendo com que a “verdadeira realidade” permaneça fora do alcance do pesquisador.

Discutindo, por outro lado, as influências da etnografia nos terreiros baianos especificamente e o efeito supostamente poluidor do antropólogo sobre seu objeto, ela mostra que tal problema se relaciona com a conhecida oposição entre pureza e deturpação rituais em um número pequeno de casas de culto.

Apesar da existência de numerosos terreiros na Bahia, constata que a bibliografia se concentra no estudo de três casas de tradição ketu que se tornaram famosas e acabaram se constituindo numa espécie de Vaticano da “Roma Negra” que seria Salvador.

As fronteiras entre narrativas produzidas por antropólogos, missionários e viajantes sempre foram mutáveis e inseridas no projeto colonial e de expansão cultural do Ocidente

Com domínio da bibliografia específica, a autora demonstra grande conhecimento sobre o tema pesquisado. Expõe controvérsias, avanços e recuos nas explicações da antropologia com base em aportes teóricos diversos.

Faz rigoroso exercício de análise da literatura sobre candomblé, passando por todos os brasileiros e estrangeiros que realizaram pesquisas na Bahia, a partir dos trabalhos do maranhense Nina Rodrigues no final do século 19.

Castillo lembra que as fronteiras entre narrativas produzidas por antropólogos, missionários e viajantes sempre foram mutáveis e inseridas no projeto colonial e de expansão cultural do Ocidente, produzindo um discurso de fora – com perspectiva etnocêntrica ou incompleta.

Como disse um amigo, há coisas melhores na vida, mas é sempre estimulante a leitura de um bom livro como este: um trabalho de fôlego elaborado por quem tem vivência intensiva e maturidade na observação.

Lamentamos que trate, em profundidade, apenas do candomblé da Bahia, pois nas demais religiões afro-brasileiras há muitas situações similares. Tal fato justifica-se pelos limites de temas e de prazos das teses acadêmicas (o livro resulta de sua pesquisa de doutorado).

Devido ao grande interesse da obra, deixamos até de reparar que os serviços gráficos de nossas editoras universitárias deveriam ter melhor resolução.

Sergio Ferretti
Professor da Universidade Federal do Maranhão
Autor de Querebentã de Zomadonu: Etnografia da Casa das Minas (Pallas Editora).

Entre a oralidade e a escrita:
a etnografia nos candomblés da Bahia

Lisa Earl Castillo
Salvador, 2008, Edufba
CIÊNCIA HOJE

Amantes e bastardos: as relações conjugais e extraconjugais na alta nobreza portuguesa do século 14 e início do século 15

Passado de amantes e bastardos

Os hábitos conjugais da alta nobreza de Portugal na Idade Média passavam longe do moralismo cristão vigente. Um livro expõe a profusão de filhos ilegítimos, laços consanguíneos e matrimônios políticos nas árvores genealógicas da época.

Por: Júlia Dias Carneiro

Publicado em 01/06/2010 | Atualizado em 02/06/2010

Passado de amantes e bastardos

Detalhe da capa do livro mostra o casamento de D. João I com D. Filipa de Lancaster. Iluminura da 'Chronique de France e d'Angleterre', de Jean Wavrin, século 15, Museu Britânico, Londres (imagem: reprodução).

No imaginário popular, costuma-se associar a nobreza a alguma linhagem de ‘sangue azul’. Depois de ler Amantes e bastardos: As relações conjugais e extraconjugais na alta nobreza portuguesa no final do século 14 e início do século 15, de Sérgio Alberto Feldman, vê-se o quão híbrido pode ser o sangue dos nobres. Pelo menos no momento histórico analisado no livro: o período tardio da Idade Média.

O cristianismo ditava as regras para os laços conjugais. Para a igreja medieval, o prazer carnal era pecado, a castidade era valorizada como um caminho para a elevação espiritual e o matrimônio era o ‘mal menor’ em que, fosse o espírito fraco demais para resistir ao celibato, as relações sexuais eram permitidas com fins à procriação.

Batalha de Aljubarrota, Portugal medieval
Batalha de Aljubarrota: Nos campos de guerra, filhos ilegítimos enfatizavam seu 'caráter' nobre (imagem: reprodução).

A partir do Concílio de Latrão, de 1215, “as relações extraconjugais, a poligamia e o divórcio serão definitivamente proibidos, mantendo-se o eixo que começou com Jesus e (o discípulo) Paulo”, relata Feldman.

O historiador parte da descrição dos valores em que se baseava a sociedade feudal, “com uma rígida concepção de casamento monogâmico e indissolúvel, e sua firme condenação do adultério”, para mergulhar nas contradições da vida como ela de fato era: “com a existência de um sem número de filhos ilegítimos no seio da nobreza e da casa real”.

No princípio, o adultério

Feldman começa por citar dois exemplos emblemáticos: tanto a casa de Avis (uma das dinastias vigentes no período estudado pelo livro) quanto a de Bragança, posterior, são originadas por filhos ilegítimos de reis portugueses.

"O verdadeiro amor ocorria fora do casamento e os filhos naturais eram às vezes mais amados pelos seus pais"

O adultério, claro, era fortemente condenado – desde que fosse cometido pela mulher. A traição por parte do homem não parecia se enquadrar como tal, e poucos eram os reis que não tinham amantes ou barregãs (concubinas). Os filhos bastardos, por mais que em teoria fossem condenáveis, podiam ser aceitos por méritos diversos – como atos heroicos nos campos de batalha.

O casamento era uma aliança política, forjada de acordo com interesses estratégicos do reino, fosse para selar acordos de paz ou agregar terras. Enquanto isso, as relações extraconjugais eram o refúgio para o prazer.

“O verdadeiro amor ocorria fora do casamento e os filhos naturais eram às vezes mais amados pelos seus pais, pois eram o fruto de relações espontâneas e de fundo afetivo e não de meros casamentos cuja motivação era dinástica”, escreve Feldman.

João 1º de Portugal
João 1º (1385-1433), fundador da dinastia Avis (imagem: Wikimedia Commons).

O escritor percorre as relações das dinastias de Borgonha e de Avis. Acompanhar as novelas que foram os casamentos e descasamentos da época já seria o bastante para justificar o livro, mas o escritor vai muito além, descrevendo todo o pano de fundo da época.

Ele dedica capítulos à tradição cristã e à forma como os casamentos (e o sexo) eram vistos pela igreja; aos costumes e à política de casamentos; às relações extraconjugais fora da nobreza, nas práticas do ‘povo miúdo’; e à forma como o amor era retratado na literatura medieval portuguesa. Ainda que de forma disfarçada, trovadores aludiam às relações extraconjugais: “a Arte espelha a realidade da vida, ainda que fizesse uso de sutis metáforas e hábeis disfarces líricos”, aponta ele.

Novelas reais

O livro tem seus trechos mais interessantes ao passar do geral para o particular e contar histórias individuais. Acompanhar a sucessão de casamentos, traições, manobras para anular matrimônios, ciúmes entre irmãos legítimos e bastardos, ou entre esposas e amantes... É aí que temos acesso à matéria-prima bruta e humana que compõe a história.

O caso mais célebre é o romance de D. Pedro 1º e Inês de Castro. Ela era dama de companhia de sua esposa, D. Constança Manuel, e depois virou sua amante. A esposa legítima morreu e o caso prosseguiu por mais de dez anos, até o que o rei D. Afonso 4º, “desejoso que o príncipe tornasse a casar-se com alguma princesa digna de sua linhagem e estado”, manda matar Inês.

Livro 'Amantes e bastardos'

D. Pedro é feito rei, manda arrancar o coração dos dois algozes de sua amante e queimá-los à sua frente, e nunca mais se casa. Passa a punir de forma truculenta os envolvidos em casos de adultério. A história marcou a literatura portuguesa, sendo retratada em Os Lusíadas, de Camões, na tragédia Castro, de Antônio Ferreira, e numa trova de Garcia de Resende.

Com Inês, D. Pedro 1º tivera quatro filhos. Mas é seu primogênito legítimo, D. Fernando, que o sucede, e gera uma crise que põe fim à dinastia de Borgonha. Veja a trajetória amorosa de D. Fernando: primeiro, ele tem um caso com sua meia-irmã Beatriz, filha de Inês de Castro. Depois, acerta um casamento político com D. Leonor de Aragão.

Como o casamento não se consuma devido à pouca idade da infanta, rompe a união e combina de se casar com D. Leonor de Castela, interessado em obter um acordo de paz com Castela. Durante os arranjos para o casamento, se apaixona por uma terceira Leonor, D. Leonor Teles, que era casada e já tinha um filho.

Não conseguindo torná-la sua amante, D. Fernando desfaz mais um laço de matrimônio e consegue desposá-la. O povo se revolta: além de tomar para si uma mulher que já fora casada, objeto de suma reprovação, ele se deixa levar pela paixão em vez de firmar um casamento político. D. Fernando se safa em vida, mas após a sua morte a sucessão de seus herdeiros é questionada, e é então que desponta a dinastia Avis.

Inclusão de bastardos nos registros históricos “reforça a impressão de que as relações extraconjugais eram comuns e aceitas"

Tendo reunido matéria-prima tão saborosa, é pena apenas que Feldman a tenha exposto de forma bastante árida, com um texto pouco fluido e revisão nem sempre cuidadosa.

A sucessão de ‘Leonores’ acima é emblemática da repetição de ‘Pedros’ e ‘Joões’ e ‘Afonsos’ que compõem as dinastias portuguesas, o que às vezes torna um desafio a tarefa de acompanhar a história. Vêm à mente os 17 Aurelianos de Cem anos de solidão, de Gabriel García Márquez.

Mas o fato de amantes e bastardos serem mencionados nas crônicas e documentos da época ilustra o quanto essa prática era aberta. Feldman diz que a inclusão dos bastardos nos registros históricos justamente “reforça a impressão de que as relações extraconjugais eram comuns e aceitas ‘na prática’ antes dos séculos 14 e 15”. Isso, pelo menos, nos escalões superiores da sociedade, completa.

Amantes e bastardos: as relações conjugais e extraconjugais na alta nobreza portuguesa do século 14 e início do século 15
Sérgio Alberto Feldman
Ciência Hoje On-line

Expedição jovem à Antártica

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Inspirado em viagem real à Antártica, ‘Mistério sob o gelo’ narra uma história de aventura em que dois amigos superam tempestades, monstros e outros desafios, e descobrem – levando os leitores consigo – a natureza surpreendente do continente gelado.

Por: Larissa Rangel

Publicado em 28/06/2010 | Atualizado em 29/06/2010

Expedição jovem à Antártica

O acampamento na ilha James Ross, na Antártica, onde a expedição liderada por Alexander Kellner passou 37 dias em 2006: aventuras e desventuras da viagem inspiraram o livro (foto: Alexander Kellner).

Os amigos João e Marcelo estão de volta. Os protagonistas de Na terra dos titãs, romance de aventura lançado em 2007 pelo paleontólogo Alexander Kellner, agora partem rumo à Antártica, onde encontrarão fósseis de árvores, de pinguins e até de dinossauros.

Com pitadas de paixão, desafios e muitas surpresas, a nova aventura da dupla –Mistério sob o gelo – é uma boa pedida para leitores que querem se divertir e aprender um pouco mais sobre o passado e o presente do continente gelado.

Livro: 'Mistério sob o gelo'
A capa do livro retrata momento dramático da expedição, que teve barraca destruída após forte tempestade (reprodução).

Pesquisador do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro e titular da coluna Caçadores de Fósseis, da CH On-line, Kellner escreveu o livro em seis semanas e se inspirou em uma experiência real.

No fim de 2006, ele comandou uma expedição à Antártica que durou dois meses e meio, dos quais 37 dias foram passados em um acampamento na ilha James Ross (mais tarde, a viagem foi objeto de uma exposição no Museu Nacional).

Eis o ponto de partida de Mistério sob o gelo: um grupo de adolescentes é selecionado para o projeto Pesquisador Júnior na Antártica, liderada pelo professor Adalberto, do Museu Nacional. João precisa esconder seu namoro com Lu, que começara na expedição ao Mato Grosso (retratada em Na terra dos titãs).

Marcelo e Paty se detestam, mas precisam cooperar para vencer os desafios. Carlos é o pirralho chato, porém talentoso, e que contribui com uma importante teoria sobre os ataques dos monstros.

A trama é o pretexto para que os leitores também descubram curiosidades surpreendentes

Com cada aventura vivida, os personagens aprendem sobre aquecimento global, programas militares, sobrevivência num lugar inóspito e, principalmente, a importância do trabalho em equipe.

A trama é o pretexto para que os leitores também descubram curiosidades surpreendentes. O livro introduz informações sobre os equipamentos usados na expedição, como as piquetas, barracas e marfinetes. Mostra ainda como a natureza, para se proteger, pode ser tão hostil à vida humana.

Você sabia que o tempo máximo de sobrevivência nas águas da Antártica é de 90 segundos? Ou que na era dos dinossauros, os répteis marinhos eram osplesiossauros, mosassauros e ictiossauros?

No vídeo abaixo, Alexander Kellner fala sobre seu novo livro e lê um trecho da obra.



Vida real

Nos 37 dias em que ficou acampado com sua equipe na ilha de James Ross, Alexander Kellner enfrentou condições extremas de temperatura e viveu situações de grande perigo. Essas experiências deram origem a alguns dos desafios enfrentados pelos protagonistas do livro.

“A viagem guarda várias surpresas para os jovens, que encontram muito mais do que apenas fósseis na Ilha James Ross”, garante o autor.

Árvore fossilizada na Antártica
A descoberta de uma árvore fossilizada durante a expedição foi incorporada ao livro (foto: Alexander Kellner).

O monstro que eles enfrentam, por exemplo, foi inspirado pelas dezenas de focas mortas e crateras no gelo que Kellner avistou assim que chegou à ilha. “São três os aspectos mais impressionantes da Antártica: a beleza, a fragilidade e agressividade”, conta.

Com uma narrativa dinâmica, marcada por diálogos ágeis e bem-humorados, Mistério sob o gelo prende a atenção do leitor por toda a trama ao mesmo tempo em que transmite informações científicas de uma maneira original e acessível ao público de várias idades.

E a aventura está longe de terminar: Kellner avisa que outro livro está a caminho. O cenário da próxima aventura será o Irã: que mistérios aguardarão a dupla João e Marcelo?

Ciência Hoje On-line

A música no seu cérebro: a ciência de uma obsessão humana

Feitos para a música

Livro investiga como os seres humanos vivenciam a música e por que ela é tão importante em nossas vidas. Teria a ver com a evolução?

Por: Thiago Camelo

Publicado em 21/09/2010 | Atualizado em 21/09/2010

Feitos para a música

Afinal, qual é o segredo dos Beatles? Livro ajuda a responder (foto: Wikimedia Commons).

"Qual é o papel da música na evolução da espécie humana?", pergunta o neurocientista Daniel J. Levitin em determinada passagem de seu mais recente livro: A música e o cérebro: a ciência de uma obsessão humana (Civilização Brasileira / 2010).

Por que certas músicas grudam como chiclete em nossa cabeça, enquanto outras são esquecidas como jornal de ontem?

De fato, o conteúdo das 364 páginas do livro condiz com o título de Levitin – que, antes de se tornar cientista, trabalhou como músico, engenheiro de som e produtor musical: o cara é obcecado por como a música é produzida, entra nos tímpanos e chega até as células que regulam a emoção no cérebro.

O livro investiga, por exemplo, por que certas músicas grudam como chiclete em nossa cabeça, enquanto outras são esquecidas como o jornal de ontem.

Capa do livro a música no seu cérebro

Às vezes, soa como um "à procura da batida perfeita", porque Levitin tenta destrinchar "agudo/grave", "o fá sustenido menor op. 66 de Chopin" e "a guitarra de One of these nights, dos Eagles".

É um detalhamento e uma busca que encontram no funcionamento do cérebro a resposta – a música, para o autor, é praticamente uma necessidade física (tal qual a linguagem), tamanha a sua importância nas nossas vidas.

E daí, há vários detalhamentos científicos, como a explicação minuciosa dos cálculos que nosso lobo frontal faz para dizer: "gostei" ou "não gostei" da canção.

Sobre Beatles, Levitin diz:

Em Lady Madonna, os quatro Beatles cantam com as mãos em forma de concha diante da boca numa pausa instrumental, e nós juramos que estamos ouvindo saxofones, em virtude ao mesmo tempo do timbre diferente que produzem e de nossa expectativa (de cima para baixo) de que faria sentido incluir saxofones numa canção desse tipo.

A graça da obsessão de Levitin está justamente aqui. Quando ele consegue misturar sua verve científica – que se traduz com o uso de conceitos novos da neurociência, como, por exemplo, neurônios-espelho – com um tratamento pop no conteúdo e na linguagem.

A pergunta inicial de Levitin – "Será que determinadas regiões e caminhos evoluíram em nosso cérebro especificamente para produzir e ouvir música?" – é respondida pela metade na obra. A ciência, segundo o próprio, ainda está caminhando para a solução da questão. O livro é uma tentativa mais consolidada de dizer "sim", nós fomos feitos para a música, e não a música foi feita para nós.

A música no seu cérebro: a ciência de uma obsessão humana
Daniel J. Levitin
Rio de Janeiro, 2010, Civilização Brasileira

Ciência Hoje On-line

A busca pela compreensão cósmica

Para ler e entender estrelas

Crônicas sobre física e astronomia permitem ao leitor saber mais sobre as perguntas que a ciência já respondeu. Elas estão no livro ‘A busca pela compreensão cósmica’, de nosso colunista, o físico Adilson de Oliveira.

Por: Debora Antunes

Publicado em 22/07/2010 | Atualizado em 22/07/2010

Para ler e entender estrelas

Os segredos das estrelas e outros mistérios desvendados pela ciência são contados em forma de crõnica no livro ‘A busca pela compreensão cósmica’ (foto: Nasa, ESA e Hubble Heritage Team).

Entender estrelas costuma ser motivação tanto para cientistas quanto para poetas. O físico Adilson de Oliveira recorre a versos de Olavo Bilac para introduzir um capítulo sobre o assunto: “Pois só quem ama pode ter ouvido/ capaz de ouvir e de entender estrelas”.

Pensando em tornar acessível ao público leigo não só o que se sabe sobre as estrelas, mas também sobre o cosmos e outros temas da física e da astronomia, Oliveira escreveu o livro A busca pela compreensão cósmica.

Capa: 'A busca pela compreensão cósmica'A obra é uma compilação de crônicas escritas pelo autor ao longo dos últimos anos para a internet – além da coluna naCH On-line, Física Sem Mistério, ele tem um blogue, Por Dentro da Ciência, e é editor da revista digital de divulgação científica Click Ciência.

“A ideia era reunir textos já publicados e construir uma obra nova, que mostrasse quantas coisas interessantes a física abrange”, diz o físico, professor da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar).

Dentre a diversidade de temas possíveis, o autor escolheu os seus favoritos: o saber, a matéria, o cosmos, o espaço e o tempo, e a vida. Cada um inspirou uma seção com entre cinco e oito crônicas.

Nos textos, ele discorre sobre assuntos como o surgimento dos astros, a descoberta do magnetismo e a teoria da relatividade, e mostra como o conhecimento científico ajudou a construir a sociedade atual. Mudanças na forma de entender a natureza ao longo dos anos são associadas a descobertas que, embora complexas, não deixam de ser fascinantes para qualquer um.

Ponte para a ciência

Os textos procuram aproximar o leitor da ciência, resgatando uma relação que, de acordo com Oliveira, já viu dias melhores. “No século 19, as pessoas conseguiam ler textos sobre ciência sem dificuldades. A divulgação científica era feita sob forma de literatura”, explica Oliveira.

“A ideia é recriar o conhecimento e voltar a encantar as pessoas”

Para o físico, a crescente aridez na linguagem dos textos científicos estaria relacionada à complexidade do conhecimento que se tem hoje, e que tende a se refletir na linguagem utilizada pelo meio acadêmico.

Assim, as crônicas são simples, mas sem a superficialidade em que às vezes incorrem textos para leigos. O autor também adota ilustrações para complementar as informações e saciar a curiosidade dos mais detalhistas sobre as descobertas da ciência.

“A ideia é recriar o conhecimento e voltar a encantar as pessoas”, diz o físico. Afinal, interessante a ciência nunca deixou de ser. Mais do que um argumento, um convite à leitura.

A busca pela compreensão cósmica
Adilson J. A. de Oliveira
São Carlos, 2010, EdUFSCar
Ciência Hoje On-line