tag:blogger.com,1999:blog-49690400450505102462024-03-14T02:09:30.925-07:00Resenhas Brasil"O valor das coisas não está no tempo que elas duram, mas na intensidade com que elas acontecem. por isso existem momentos inesquecíveis, coisas inexplicáveis e pessoas incomparáveis" Fernando Pessoa
"A esperança é um sonho que caminha" AristótelesEduardo Marculinohttp://www.blogger.com/profile/09461824103400566723noreply@blogger.comBlogger1245125tag:blogger.com,1999:blog-4969040045050510246.post-3912297178797144402022-10-25T00:55:00.003-07:002022-10-25T00:55:36.388-07:00A sociologia do corpo<div style="text-align: center;"><img src="https://www.scielosp.org/media/assets/icse/v15n36/a25img01.jpg" /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Ana Maria Canesqui</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Departamento de Medicina Preventiva e Social, Faculdade de Ciências Médicas, Universidade Estadual de Campinas. Rua Tessália Vieira de Camargo,126. Barão Geraldo, Campinas, SP, Brasil. 13083-887. <a href="mailto:anacanesqui@uol.com.br">anacanesqui@uol.com.br</a></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Le Breton, D. A sociologia do corpo. 4.ed. Rio de Janeiro: Vozes, 2010.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">A vasta obra de David Le Breton sobre a sociologia e antropologia do corpo, originalmente publicada em língua francesa, está pouco disponível em português e foi parcialmente divulgada em espanhol. O autor tem formação em sociologia, antropologia e psicologia, é professor de sociologia da Universidade Marck Block de Estrasburgo, França, e membro do laboratório Cultures et Sociétés en Europe. Desde a década de 1980, dedica-se à sociologia e antropologia do corpo, passando, também, sua produção científica pela dor; a paixão pelos riscos e aventura; as identidades e as marcas corporais; o silêncio; o uso de remédios e outros temas.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">O assunto recebeu atenção de um clássico da antropologia no século XX, Marcel Mauss (1950), que deixou seguidores, e, posteriormente, de autores como: Merleau-Ponthy; Norbert Elias; Bernard Michel; Luc Boltanski; Michel Foucault, dentre outros. Feministas, na década de 1970, reclamaram o controle sobre o próprio corpo, concedendo-lhe status político na luta contra sua exploração.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">A sociologia interessou-se, mais intensamente, pela corporeidade na década de 1980, sendo nítida sua importância para a sociologia da saúde e doença, à medida que "a enfermidade limita o funcionamento "normal" do corpo, com profundas conseqüências sociais, políticas, econômicas e psicológicas, assim como o corpo é objeto das intervenções médicas" (Nettleton, 2003).</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Adeus ao corpo: antropologia e sociedade (2003) foi o primeiro livro de Le Breton editado em português e comentado por Gomes (2004), onde o autor reflete sobre o corpo moderno: acessório, modelado, fabricado, parceiro (alter ego); administrado, marcado, rascunho, transexualizado e body art. Chama a atenção para a forte intervenção das tecnociências nos rearranjos corporais, como a interferência do biopoder, que submete e aprisiona os sujeitos às ideologias dominadoras do aprimoramento corporal, que certamente ultrapassa a dimensão física, para inseri-la também em novas representações do corpo na ordem dos valores.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Objeto incerto e ambíguo, o fenômeno da corporeidade é complexo, conclama a interdisciplinaridade entre as ciências sociais e humanas (etnologia, psicologia, sociologia, psicanálise) e as ciências biomédicas. Isto porque o "corpo é a interface entre o social e o individual, a natureza e a cultura, o psicológico e o simbólico" (Le Breton, 2003, p.97). Esta ambiguidade complexa requer prudência e precisão do sociólogo ou do antropólogo na delimitação das fronteiras de seu objeto de investigação simultânea à manutenção do diálogo e interlocução interdisciplinar.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">O pequeno livro comentado nesta resenha, A sociologia do corpo - editado originalmente na França, em 1992, e disponível em português, na sua quarta edição - é leitura obrigatória aos que querem investigar e compreender a corporeidade humana, como fenômeno cultural e social, repleto de simbolismo, representações e imaginários, inscrevendo-se o corpo nas moldagens social e cultural, tanto no plano do sentido e do valor, quanto no âmbito relacional, lugar e tempo do homem, imerso na singularidade de sua história.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Le Breton recusa a sociologia do corpo como disciplina autônoma da reflexão sociológica, uma vez tributária de sua epistemologia e metodologia. Antes de apontar uma agenda de investigações sobre o corpo, alguns capítulos reconstroem, detalhadamente, as diferentes epistemologias das reflexões sociológicas e etnológicas do corpo, introduzindo o leitor na síntese do estado da arte deste objeto.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">O capítulo I dedica-se às etapas históricas da reflexão da corporeidade humana, nos primórdios das ciências sociais no século XIX, destacando três etapas: a primeira é a sociologia implícita ao corpo, ignorando-o e mostrando a miséria física e moral da classe trabalhadora na Revolução Industrial. A segunda etapa concentra-se na supremacia biológica do corpo, à qual se opuseram Hertz e Mauss e outros autores que desenvolveram pesquisas e inventários etnológicos sobre os usos sociais do corpo, enquadrados na terceira etapa, designada, pelo autor, de sociologia detalhista.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">O capítulo II indaga, pertinentemente, sobre as ambiguidades dos discursos sociológicos sobre o corpo, perguntando-se: de que corpo se está falando? "Corpo não é fetiche, omitindo o homem", diz o autor (Le Breton, 2010, p.25), sendo imprescindível referir-se ao ator que o porta. Um conjunto de estudos etnográficos demonstra: as representações do corpo e da pessoa, inseridas na visão de mundo; a fisiologia simbólica da mulher e suas relações com o contexto; as concepções modernas do corpo, separadas do cosmos; as concepções anatômicas e fisiológicas do pensamento ocidental; o corpo enquanto imaginário social; a corporeidade humana e seus elos com a natureza; o corpo nas medicinas chinesa e indígena. O argumento central do capítulo reforça a imersão da corporeidade no imaginário, nas representações e condutas que variam segundo as diferentes sociedades.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Para definir o corpo de que se fala, dos pontos de vista sociológico e antropológico (capítulo III), distancia-se da ideia de ser ele atributo da pessoa, um pertencimento da identidade em recusa à ideologia individualista. O autor abraça a ideia da realidade construída do corpo, com múltiplas significações culturalmente operantes e associadas aos atores, vistos como corporeidade.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">O corpo inexiste em estado natural, insere-se na trama dos sentidos, inclusive naquelas manifestações mais físicas, como na dor e na enfermidade, expressas nas percepções sensoriais e corporais dos atores. A análise sociológica distingue-se das intervenções corporais terapêuticas (médicas, xamânicas, religiosas, outras medicinas) que buscam reinserir o homem em sua comunidade. Nas palavras do autor, "a sociologia aplicada ao corpo distancia-se das asserções médicas que desconhecem as dimensões pessoal, social e cultural de suas percepções sobre o corpo" (Le Breton, 2010, p.36).</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Ao detalhar as investigações das lógicas sociais e culturais do corpo (capítulo IV), o autor parte de Marcel Mauss (1950), sobre as técnicas corporais e as expressões dos sentimentos, das emoções e da dor. Acrescenta contemporâneos que estudaram assuntos como: os especialistas das técnicas corporais circenses, desportivas, artesanais; de ars amandi; a gestualidade; as etiquetas corporais e infrações às regras; as percepções sensoriais, as inscrições corporais e as traduções físicas da enfermidade (sintomas ou comportamentos).</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">O corpo, como universo das representações, dos valores e do imaginário social, ocupa o capítulo V, distinguindo esta abordagem dos enfoques biológicos e sociobiológicos, percorrendo-se estudos antropológicos clássicos e contemporâneos sobre: sexualidade; o uso do corpo; o corpo como suporte de valores e o corpo incapacitado. O capítulo VI enfoca os estudos sobre o corpo como reflexo do social-coletivo: suporte das relações de poder e do controle social; das apresentações das aparências corporais; da modernidade; do estigma; do gosto pelo risco e aventuras; o envelhecimento do corpo e o imaginário do descartável ou das mudanças imprimidas ao corpo pelas tecnologias médicas, que nem sempre suscitam reflexões éticas pertinentes.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Ao concluir sobre a situação da sociologia do corpo, no último capítulo, Le Breton reafirma a pertinência da corporeidade, a amplitude das pesquisas sociológicas e antropológicas no assunto, onde o pesquisador, como um verdadeiro artesão prudente e competente, é desafiado a entrecruzar saberes, diante de sua complexidade.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Enfim, a sociologia aplicada ao corpo, segundo o autor, deve produzir muitas investigações significativas, cuja agenda inclui, dentre os vários itens: o inventário e a comparação das diferentes modalidades corporais, significações, representações e valores nos distintos grupos sociais; as mudanças das atitudes frente ao corpo em certas enfermidades, assim como as intervenções das novas tecnologias médicas sobre o corpo. A sociologia do corpo refere-se ao "enraizamento físico do ator no universo social e cultural" (Le Breton, 2010, p.99), não naturalizando o corpo.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Recomenda-se a leitura deste pequeno e denso livro aos que pretendem iniciar-se nas abordagens sociológicas e etnológicas do assunto.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div> <div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Referências</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">GOMES, R. Resenha: LE BRETON, D. Adeus ao corpo: antropologia e sociedade. Cienc. Saude Colet., v. 9, n.1, p.247, 2004.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">LE BRETON, D. Adeus ao corpo: antropologia e sociedade. Campinas: Papirus, 2003.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">______. A sociologia do corpo. 4.ed. Rio de Janeiro: Vozes, 2010.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">MAUSS, M. Sociologie et Anthropologie. Paris: PUF, 1950.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">NETTLETON, S. The Sociology of health & illness. Cambridge: Polity, 2003.</div><div style="text-align: justify;"><ul style="background-color: white; box-sizing: border-box; color: #403d39; font-family: Arial, sans-serif; font-size: 12.6px; margin: 0px; padding: 0px; text-align: start;"><li style="box-sizing: border-box; list-style: none; position: relative;"><a class="dropdown-toggle" data-toggle="dropdown" href="https://www.scielosp.org/article/icse/2011.v15n36/321-323/pt/" style="animation-duration: 0.1s; animation-fill-mode: both; background-color: transparent; box-sizing: border-box; color: #00314c; font-weight: 700; text-decoration-line: none; transition: color 0.1s ease-out 0s, text-indent 0.1s ease-out 0s;"><span class="truncate" style="box-sizing: border-box; overflow: hidden; text-overflow: ellipsis; white-space: nowrap; width: 450px;">Interface - Comunicação, Saúde, Educação </span><span class="sci-ico-arrowDown" style="-webkit-font-smoothing: antialiased; box-sizing: border-box; display: inline-block; font-family: scielo-glyphs !important; font-variant-east-asian: normal; font-variant-numeric: normal; font-weight: 400; line-height: 1em; speak: none; vertical-align: middle;"></span></a></li></ul></div>Eduardo Marculinohttp://www.blogger.com/profile/09461824103400566723noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4969040045050510246.post-45298986244445102072022-10-19T19:28:00.006-07:002022-10-19T19:28:56.527-07:00El trabajo de cuidado<div style="text-align: justify;"><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjtBDQHs1azUiyRcCPg-ui_wcqRMHDUQE2hoO2IaLNEctxhaT3bfg3xZ62f2B6Xrn-F7yCdwj_7NhTc6U9wtmQ6DNKN0vsjzppYlhCfgbGwO1Qpqb36p3ujrs99JPnnXi-GkHO6LXYCe9eU4ZeMpst5IllP3nYuVyFF0Svf_FckWtUv4nMXhftWoSY52g/s500/el%20trbalho.png" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="500" data-original-width="331" height="320" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjtBDQHs1azUiyRcCPg-ui_wcqRMHDUQE2hoO2IaLNEctxhaT3bfg3xZ62f2B6Xrn-F7yCdwj_7NhTc6U9wtmQ6DNKN0vsjzppYlhCfgbGwO1Qpqb36p3ujrs99JPnnXi-GkHO6LXYCe9eU4ZeMpst5IllP3nYuVyFF0Svf_FckWtUv4nMXhftWoSY52g/s320/el%20trbalho.png" width="212" /></a></div><br /><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><br /></div></div><div style="text-align: justify;"><br /></div> <div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">O cuidado como trabalho: entre desafios e avanços</div><div style="text-align: justify;">Care as work: challenges and advances</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Silvana Maria Bitencourt</div><div style="text-align: justify;">Cristiane Batista Andrade<br /></div><div style="text-align: justify;">BORGEAUD-GARCIANDÍA, Natacha. ) El trabajo de cuidado, Buenos Aires, Fundación Medifé Edita2018</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">A obra, organizada por Natacha Borgeaud-Garciandía (2018), garante aos leitores/as um apanhado significativo de temáticas correspondentes ao trabalho de cuidado, destacando-se os estudos empíricos na América Latina, além das reflexões que contribuem para a complexidade do tema. É importante salientarmos que, apesar das críticas direcionadas ao essencialismo da obra In a different voice, de Carol Gilligan (1982), a mesma é referenciada neste campo de estudos por inaugurar uma nova fase no debate sobre cuidado, pois é a partir de seus trabalhos empíricos, que a presença de uma “voz diferente” possibilita questionar os modelos abstratos e princípios imparciais de justiça. Gullian concebe ética do cuidado, como um modelo alternativo para as concepções de moral clássicas. Outra autora que também recebe destaque neste campo de estudos é Joan Tronto, que, ao desvincular ética de cuidado, conforme Gilligan, desenvolve uma discussão que evidencia a desvalorização do trabalho de cuidado, o qual resultaria de uma divisão do trabalho moral.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">A coletânea organizada em nove capítulos versa sobre pesquisas contemporâneas referentes ao cuidado, a partir de um sofisticado corpo empírico de artigos movidos pela reflexão sobre o que é cuidar e quem cuida, além das dimensões do cuidado, que implicam nas relações sociais. Na primeira pesquisa, há quatro capítulos. O primeiro deles, de Maria José Magliano, intitulado “Mujeres Migrantes y empleo doméstico en Córdoba: luchas y resistencias frente a formas de explotación y violencia laboral”, analisa as formas de resistências e de mobilização de empregadas domésticas peruanas, que trabalham em Córdoba/AR. O trabalho doméstico é problematizado como uma atividade temporária, feita pelas mulheres migrantes peruanas, a fim de contribuir para um projeto familiar migratório. Contudo, os achados demonstram que essas mulheres tendem a permanecer neste tipo de emprego, podendo vivenciar problemas como informalidade, precarização e discriminação, que operam nas interseccionalidades de gênero. O texto mostra como as fortes naturalizações de gênero, vinculadas ao trabalho doméstico, contribuem para que esse tipo de trabalho não seja reconhecido por meio de conhecimentos necessários, possuídos pela trabalhadora para realizá-lo. Neste sentido, o texto aponta que as empregadas domésticas sentem a necessidade de articulação coletiva - tanto por serem domésticas, como por serem migrantes - para que o debate seja efetivado no âmbito das instituições, a fim de que elas sejam tratadas como trabalhadoras formais e, consequentemente, com direitos trabalhistas.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">O texto “Los itinerarios de cuidadores remunerados en el Gran Buenos Aires”, de Liliana Findling, Maria Lehner e Estefania Cirino, problematiza o envelhecimento populacional e as estratégias que as sociedades têm adotado para cuidar de idosos com alto grau de dependência, analisando que o trabalho de cuidado dentro das famílias tem sido historicamente delegado, em grande parte, às mulheres - filhas e esposas. Contudo, com a entrada massiva delas no mercado de trabalho, as famílias começaram a comprar o trabalho de cuidado de um cuidador formal, que, na grande maioria dos casos, continua sendo uma mulher. As autoras apontam que, para cuidar, é necessário que quem cuida também seja cuidado, atentando-se, assim, para o trabalho que as próprias cuidadoras desempenham, e que compreende tanto a dimensão prática, quanto a afetiva, exigindo de seus corpos grande esforço físico e emocional.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Segundo as autoras, nos últimos anos, os órgãos do Estado têm formado cuidadoras domiciliares em instituições educativas e sanitárias, além de organizações da sociedade civil. Neste sentido, elas questionam se, nas trajetórias das cuidadoras para o atendimento de idosos/as, seus serviços apresentavam uma qualidade diferenciada, comparando as que receberam formação ou não, como também seu próprio entendimento sobre o que é saúde, para além da perspectiva biologicista.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">As autoras destacam, ainda, as modalidades de emprego e as trajetórias laborais das cuidadoras e abordam as qualidades necessárias para a atividade, sem deixarem de considerar a questão do autocuidado. A pesquisa constatou a inserção das entrevistadas em clínicas privadas e geriátricas, nas quais, após adquirirem experiência, elas optam por se tornarem “empresárias de si mesmas”. Há, porém, contradições nisso, pois, quando indagadas sobre os motivos dessa opção, embora elas enfatizem a importância da questão salarial, afirmam que estão na profissão por uma questão de vocação, havendo, portanto, uma romantização da atividade de cuidado.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Sobre a formação para o cargo, as entrevistadas comentam que a mesma contribuiu muito para seu desejo de fazerem o curso de enfermagem. Apesar de se sentirem seguras por disporem dessa formação, dizem que só com a experiência é que aprendem a cuidar. Em relação ao autocuidado, muitas vivenciam problemas de saúde e associam suas doenças às atividades de trabalho: doenças musculares e estresse; dormir pouco, ter alimentação desregrada, não fazer exercícios físicos, automedicar-se e tomar suplementos alimentícios. Nesse contexto, “cuidar do outro” pode significar deixar de cuidar de si. A fim de confrontar esse paradoxo, as autoras sugerem uma política integral de cuidado para idosos e cuidadoras remuneradas, com a finalidade de diminuir as desigualdades sociais e de gênero.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Por sua vez, o texto de Natacha Borgeaud-Garciandía, “Intimidad, sexualidad, demencias: Estrategias afectivas y apropriación del trabajo de cuidado en contextos desestabilizantes”, analisa, no contexto argentino, o trabalho de cuidado em residências de idosos/as com alto grau de dependência e investiga a possibilidade de conflito entre cuidadoras. A autora realizou entrevistas com cuidadoras provenientes da Argentina, Paraguai e Peru, mas focalizou essencialmente as peruanas. Ela explicita que as paraguaias e as peruanas chegam à Argentina em busca de uma situação de vida melhor, e ingressam majoritariamente em trabalhos domésticos e de cuidado. O texto expõe que o trabalho de cuidado destinado a lidar com corpos que apresentam demência senil escancara a ideia de finitude corporal e animalidade presentes na condição humana; assim, fenômenos como as doenças crônicas degenerativas e a morte são analisados, reafirmando como é fundamental o trabalho de cuidado para lidar com corpos nestas condições de dependência total. O texto também apresenta os desafios diante da complexidade de corpos que se comunicam de maneira diferenciada, levando as cuidadoras a criarem, por meio da prática, estratégias para lidar com outras formas de linguagem no cuidado de idosos com demência senil.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">O texto de Helena Hirata, intitulado “Subjetividad y sexualidad en el trabajo de cuidado”, destaca a emergência dos temas da sexualidade, da subjetividade e das emoções, partindo de uma investigação realizada em três países: Brasil, França e Japão. Hirata apresenta a centralidade da sexualidade e da subjetividade, no trabalho de cuidado, a fim de pensar a formação dos/as cuidadores/as, além das táticas que eles/as tendem a adotar para se manter no emprego. A autora destaca os estudos de referência sobre sexualidade e emoções no trabalho de cuidado e problematiza os conflitos que este tipo de trabalho pode gerar na identidade dos/as trabalhadores/as do cuidado, de maioria feminina. Assim, para a autora, os aspectos prático e teórico do trabalho de cuidado envolvem sofrimento, racismo, doenças, morte e uma qualificação pouco discutida entre os/as trabalhadores/as, devendo-se considerar e analisar a sua dimensão emocional e subjetiva.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Nesta primeira seção do livro apresentada, os estudos apontam que são as mulheres que ainda realizam este tipo de trabalho, com uma série de significados permeando poderes e saberes no cuidado (Andrade, 2015). Nos últimos anos, eles também referem que as análises assumem uma perspectiva interdisciplinar, que dialoga diretamente com os estudos de gênero e feministas, politizando o debate acadêmico, especialmente dando visibilidade às emoções e à sexualidade, aspectos que não podem ser ignorados neste tipo de trabalho que envolve o corpo de quem cuida e de quem é cuidado (Soares, 2012).</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Em sua segunda seção, o livro apresenta três capítulos. O primeiro deles, intitulado “Mujeres migrantes y la gestión de los cuidados. La enfermería en el horizonte laboral”, de Ana Barral, põe em debate a questão de imigrantes na Argentina, que trabalham em enfermagem, ou aspiram ao exercício dessa atividade. É por meio das análises da complexidade do cuidado (reprodução da vida, assalariamento, trabalho doméstico não remunerado e força de trabalho desempenhada especialmente por mulheres), que a autora coloca em debate a importância do processo migratório no trabalho de enfermagem. As entrevistas em profundidade, realizadas com docentes, enfermeiras/as e estudantes estrangeiras, descrevem os fluxos migratórios de paraguaias, bolivianas e peruanas na enfermagem argentina, e apontam o trabalho de cuidado como uma possibilidade de acesso ao trabalho formal e aos direitos trabalhistas, bem como de reconhecimento social em contraposição ao “peso de ser imigrante” (p. 130). A discussão sobre as exigências da profissionalização da categoria das cuidadoras na Argentina, assim como ocorreu no Brasil, expressa as contradições entre a (des)valoração social, as possibilidades de mobilidade ascendente e as representações de exercício da atividade pela “vocação”. Um dos aspectos interessantes deste capítulo é o fato de a autora considerar as particularidades dessa profissão e suas relações com o processo migratório, o que traz avanços na discussão sobre a invisibilidade do uso da mão de obra de migrantes em uma sociedade que vive e precisa do trabalho de cuidado.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">O capítulo de autoria de Silva Balzano, “Cuidado y identidad en el que hacer enfermero en la Colonia Montes de Oca”, analisa o trabalho de enfermeiras argentinas na área de cuidado em saúde mental, sob a perspectiva das identidades profissionais e suas construções sociais quanto à disciplina no trabalho e à imagética da docilidade, da subserviência e da religiosidade. A autora desenvolve sua pesquisa por meio de entrevistas que possibilitam reconhecermos quais são as dificuldades e contradições relativas ao cuidado de pessoas com doenças psiquiátricas: lidar com o sujo, com a nudez de alguns pacientes, com os surtos psicóticos, com os estigmas vividos pelos/as pacientes, a despeito da doença psiquiátrica. Ao mesmo tempo, as entrevistadas desprendem carinho e afeto como uma atividade terapêutica do cuidado. Os depoimentos das enfermeiras corroboram a ideia de que há um auxílio e uma prontidão da enfermagem, em ajudar as outras profissões no cuidado aos pacientes de psiquiatria.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">O terceiro capítulo da segunda seção, “La profesión enfermera y el trabajo de cuidado”, de Wlosko e Ros, tem como finalidade analisar o trabalho de cuidado de enfermeiras, sob a ótica da psicodinâmica do trabalho e as teorias do “care”. As autoras discutem a diminuição do número de pessoas na enfermagem, em decorrência da flexibilização e precarização do trabalho, da sobrecarga das atividades, da desvalorização profissional e das violências sofridas no cotidiano laboral. Além disso, elas destacam as relações de poder entre os grupos profissionais e, portanto, o pouco reconhecimento entre os pares, ao mesmo tempo em que ocorre a valorização social das enfermeiras pelas pessoas que recebem o cuidado. A pesquisa avança na compreensão das construções das estratégias coletivas de defesa e que são, portanto, diferenciadas de acordo com o gênero. Apoiadas em Molinier, as autoras salientam que tais estratégias, construídas coletivamente para lidar com os sofrimentos no trabalho, estão relacionadas com as construções sociais sobre ser enfermeira, em que o sofrer com o outro e ter empatia pelos pacientes são meios para permanecer no trabalho e lidar com os sofrimentos. Assim, os achados de Wlosko e Ros oferecem subsídios para entender as maneiras como a enfermagem se ocupa do sofrimento do outro e, também, os desafios da própria categoria profissional diante das condições de trabalho adversas, contribuindo para as reflexões sobre os modos de ressignificar e enfrentar as atribuições prescritas pela organização do trabalho.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Os três capítulos desta seção corroboram a ideia da complexidade do trabalho de cuidado e suas interfaces com as relações sociais, tal como aponta Kergoat (2016). Chamamos atenção para o fato de que a complexidade do trabalho de cuidado pode estar atrelada aos fluxos migratórios, tal como apontado na pesquisa realizada por Barral. Ainda que essa autora não tenha aprofundado a questão das discriminações e das possíveis violências laborais, pelo fato de as entrevistadas serem imigrantes, este enfoque merece ser verificado em futuras pesquisas. A importância dos fluxos migratórios na profissão de enfermagem já vem sendo problematizada, haja vista um estudo sobre a relação entre a imigração e o trabalho de enfermagem na América do Sul, entre 2011 e 2016, que aponta que os motivos da imigração estão relacionados com o desejo de melhoria das condições de vida e de salário, independência econômica e estabilidade laboral. Por sua vez, os obstáculos encontrados no país de destino dizem respeito às dificuldades econômicas iniciais e às discriminações enfrentadas pelas entrevistadas por serem estrangeiras, embora elas consigam, ao longo do tempo, respeito e reconhecimento de suas atividades (Paho, 2011).</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Por outro lado, o conjunto dos textos nos faz refletir sobre os saberes necessários para o cuidado na esfera produtiva e suas imbricações, a partir da síntese apresentada por Barral: “La tensión entre saberes ‘naturales y professionales” (p. 124). Ou seja, as formas como as cuidadoras constroem os saberes para lidar com os desafios do cuidado profissional e as relações de poder entre grupos profissionais distintos (Andrade, 2015), na área de saúde, parecem ser centrais para desvendar as formas pelas quais as enfermeiras lidam com as hierarquias da profissão, com as relações com a medicina e com as técnicas/auxiliares de enfermagem, que nem sempre possuem o diploma de ensino superior.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Além disso, o conjunto de textos contribui para evidenciar as escassas discussões sobre a presença de homens no trabalho do cuidado e como eles constroem suas carreiras no cuidado em saúde (Kluczyńska, 2017). Por isso, ressaltamos a importância de os estudos serem mais aprofundados, com a intenção de se descobrir as diferenciações entre ser homem e mulher em uma profissão predominantemente feminina.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Na última seção, o capítulo de Pascale Molinier, “El cuidado puesto a prueba por el trabajo: vulnerabilidades cruzadas y saber-hacer discreto”, entende, por meio da psicodinâmica, o trabalho de cuidado como aquele que envolve aspectos emocionais, subjetivos e aprendizagens, técnicas ou não, de quem cuida. Há construção de saberes e fazeres para lidar com os constrangimentos, antecipar atividades, dissimular emoções e esforços, proporcionar conforto e escuta às pessoas cuidadas, dentre outros aspectos, além do fato de que o trabalho de cuidado é, por vezes, invisível e permeia um saber-fazer discreto. Diante disso, a autora apresenta as estratégias construídas pelas cuidadoras em face das dificuldades no trabalho de cuidado, aprofundando a questão da complexidade do cuidar, como uma atividade em que as construções sociais e históricas de ser mulher e cuidadora influenciam nos saberes e fazeres, na ética e nos desafios de cuidar do outro, em situação de vulnerabilidade ou não.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">O capítulo de Patrícia Paperman, “La ética del cuidado y las voces diferentes de la investigación”, traz a discussão pautada em Gilligan, que critica diretamente o modelo universalista de justiça e moral, que excluiu as “vozes diferentes” que não ouvimos e que, historicamente, teriam muito a falar sobre o cuidado, especialmente as mulheres cuidadoras. A autora também traz a crítica feminista de Joan Tronto, que irá politizar o trabalho de cuidado. Saindo do plano individual, Paperman sugere a necessidade de conceituar o que é cuidado, buscando maior aprofundamento sobre os saberes que possuem suas protagonistas, que foram excluídas como sujeitos desta narrativa (Perrot, 2017).</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">A coletânea apresentada pelo livro é um convite para pesquisadoras e profissionais de diversas áreas de conhecimento refletirem sobre as emoções e as condições de trabalho no cuidado. Enfermeiras e/ou técnicas, empregadas domésticas e cuidadoras de idosos constroem, no e pelo trabalho, as emoções para lidar com as limitações corporais com o outro, bem como suas próprias limitações em uma atividade que exige disposição física e emocional, socialmente desvalorizada e precarizada. O conhecimento sobre o cuidado pode oferecer uma nova epistemologia sobre a realidade social, não só questionando modelos universais e generalistas, mas trazendo à luz os saberes que foram ocultados sobre o contexto social e os conhecimentos e experiências das pessoas que cuidam (Paperman, 2013). Historicamente, o trabalho de cuidado ficou delegado às mulheres, logo é evidente uma feminização nesta atividade, especialmente entre mulheres pobres, migrantes e que não se destacam no mercado de trabalho capitalista.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Ademais, a obra contribui para expor e expandir as análises latino-americanas sobre o cuidado enquanto trabalho, dando voz às mulheres e proporcionando pistas sobre como elas constroem seus saberes nas contradições da sociedade capitalista que as explora. Nesse sentido, concordamos com Federici (2019), ao problematizar o trabalho reprodutivo como aquele que alicerça o capitalismo e, portanto, contribui para a exploração das mulheres, ainda em dias atuais.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">BIBLIOGRAFIA</div><div style="text-align: justify;">ANDRADE, Cristiane Batista (2015), O trabalho de cuidar e educar: gênero, saber e poder, Curitiba, Appris.</div><div style="text-align: justify;">FEDERICI, Sílvia. (2019), O ponto zero da Revolução: trabalho doméstico, reprodução e luta feminista. Tradução de Coletivo Sycorax, São Paulo, Elefante.</div><div style="text-align: justify;">GILLIGAN, Carol. (1982), In a different voice: psychological theory and women development, Massachussettss, Harvard University Press.</div><div style="text-align: justify;">KERGOAT, Danièle. (2016), “O cuidado e a imbricação das relações sociais”, in H. S. Hirata & N.A. Guimarães (org.), Gênero e trabalho no Brasil e na França: perspectivas interseccionais, São Paulo, Boitempo.</div><div style="text-align: justify;">KLUCZYŃSKA, Urszula. (2017), “Motives for Choosing and Resigning from Nursing by Men and the Definition of Masculinity: a qualitative study”. Journal of Advanced Nursing, 73 (6): 1366-76.</div><div style="text-align: justify;">PAHO. Pan American Health Organization. (2011), Migración de Enfermeras en América Latina área de América del Sur Washington, Serie Recursos Humanos para la Salud no 60.</div><div style="text-align: justify;">PAPERMAN, Patricia. (2013), Care et sentiments, Paris, PUF.</div><div style="text-align: justify;">PERROT, Michèle. (2017), Os excluídos da História: operários, mulheres e prisioneiros, São Paulo, Paz e Terra.</div><div style="text-align: justify;">SOARES, Ângelo. (2012), “As emoções do care”, in H.S. Hirata & N.A. Guimaraes (org), Cuidado e cuidadoras: várias faces do trabalho do care, São Paulo, Atlas.</div><div style="text-align: justify;"><a class="dropdown-toggle" data-toggle="dropdown" href="https://www.scielo.br/j/rbcsoc/a/wshBthFN8wK9mwSk54KVSxQ/?lang=pt" style="animation-duration: 0.1s; animation-fill-mode: both; background-color: white; box-sizing: border-box; color: #00314c; font-family: Arial, sans-serif; font-size: 12.6px; font-weight: 700; text-align: left; text-decoration-line: none; transition: color 0.1s ease-out 0s, text-indent 0.1s ease-out 0s;"><span class="text" style="box-sizing: border-box;"><span class="truncate" style="box-sizing: border-box; overflow: hidden; text-overflow: ellipsis; white-space: nowrap; width: 450px;">Revista Brasileira de Ciências Sociais</span></span></a></div>Eduardo Marculinohttp://www.blogger.com/profile/09461824103400566723noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4969040045050510246.post-36328990263555720872022-10-19T19:21:00.003-07:002022-10-19T19:21:15.864-07:00Rethinking liberalism for the 21st Century: the skeptical radicalism of Judith Shklar<div style="text-align: justify;"><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEigsO2Is0eHeo-J0yee3E8AZOs9-NQ-JU4kKi8NaejyX8mtARezju-1DWxpC2gSknu4uDgrs_lAZAqEWlS0tswnpqfyDWuDhZhbG9Rz28S1Erxl6WmbiNeO-Z3MsJp5iFYX7Cp5Mh8zlLsjJEt-fC3zXiz6SCPCAbzeUU_0i4rCjSPS_VQr5qO0lppjnA/s500/lib.png" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="500" data-original-width="331" height="320" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEigsO2Is0eHeo-J0yee3E8AZOs9-NQ-JU4kKi8NaejyX8mtARezju-1DWxpC2gSknu4uDgrs_lAZAqEWlS0tswnpqfyDWuDhZhbG9Rz28S1Erxl6WmbiNeO-Z3MsJp5iFYX7Cp5Mh8zlLsjJEt-fC3zXiz6SCPCAbzeUU_0i4rCjSPS_VQr5qO0lppjnA/s320/lib.png" width="212" /></a></div><br /><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><br /></div><br /></div> <div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">QUEM TEM MEDO DO LIBERALISMO?</div><div style="text-align: justify;">WHO IS AFRAID OF LIBERALISM?</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Bruno Camilloto<br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">GATTA, G.. Rethinking liberalism for the 21st Century: the skeptical radicalism of Judith Shklar. New York: Routledge, 2018a</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Freedom is no fear, disse Nina Simone. Mas qual o papel do medo na contemporaneidade? Diante da tarefa de pensar sobre o tema, a professora italiana Giunia Gatta1 publicou Repensando o liberalismo para o século 21: O ceticismo radical de Judith Shklar.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">A partir da foto de Omran Daqneesh, Gatta convida o leitor a refletir sobre o medo. Omran era uma criança de cinco anos de idade quando o edifício em que estava foi atingido por um ataque aéreo na cidade de Aleppo, na Síria, no dia 17 de agosto de 2016. A foto que circulou nos meios de comunicação revela o menino no banco de uma ambulância, atônito, coberto pela poeira dos escombros e em estado de choque. Provocativamente, Gatta (2018a, p. 06) pergunta: “[...] deve o liberalismo ficar silente diante daquelas circunstâncias trágicas?”. Para a autora, a obra da filósofa Judith Shklar responde negativamente à questão.2</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">O conceito de crueldade é o centro do pensamento de Shklar. Está fundado no sofrimento dos indivíduos e nas suas vozes. Gatta (2018a, p. 02) defende que Putting cruelty first3 é algo que deve ser levado a sério pelo pensamento liberal contemporâneo. É a crueldade que permite a articulação entre o ceticismo e o comprometimento político, assumindo a centralidade na vida dos indivíduos, especialmente daqueles marginalizados.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Nascida numa família judia de cultura alemã, em Riga, capital da Letônia, Shklar foi profundamente afetada pela Segunda Guerra mundial, especialmente por ter tido de migrar para Suécia, Japão e Canadá em sua adolescência. Antes de chegar ao Canadá, Shklar passou por um centro de detenção para imigrantes ilegais em Seattle. Seu pensamento político é atravessado pela condição de refugiada, marca de sua compreensão sobre a liberdade. Vida e obra de Shklar são articuladas por Gatta na defesa do argumento mais poderoso do liberalismo do medo: como maior mal e vício supremo na política, a crueldade deve ser reconhecida como o fundamento do medo que justifica o pensamento liberal enquanto forma de proteção dos indivíduos, especialmente em relação àqueles vulneráveis e marginalizados.4 Crueldade é “a inflição deliberada de dor física a um ser mais fraco para causar angústia e medo” (Shklar, 1984, p. 08). Mesmo que o comprometimento contra a crueldade seja insuficiente para ofertar soluções específicas aos problemas da vida política, ele é um dever do pensamento liberal. A “crueldade é sempre absolutamente intolerável para os liberais, porque o medo destrói a liberdade.” (Shklar, 1984, p. 02).</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Diante da retomada de perspectivas liberais, bem como do ressurgimento de movimentos ultranacionalistas, xenófobos e conservadores nas esferas públicas nacionais e internacionais, o que o liberalismo deve dizer sobre as injustiças sociais, especialmente sobre as que vitimam e violam o indivíduo? Esta é a colaboração de Repensando o Liberalismo para o Século 21 ao atual debate público. Gatta mobiliza os conceitos de ceticismo e comprometimento como alicerces do liberalismo do medo e defende que a obra de Shklar é progressista, transitando entre um pessimismo incorrigível e um otimismo ingênuo. O ceticismo se relaciona com a descrença de Shklar em relação ao projeto iluminista. O comprometimento é seu endosso a um projeto teórico e prático de proteção aos indivíduos frente às opressões que configuram injustiças. É pela radicalização do ceticismo que a relação entre Política e Direito pode se apresentar comprometida com uma proposta liberal protetiva às minorias contra a crueldade e o medo.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">No capítulo 01, Gatta apresenta os eventos biográficos que marcaram o pensamento da filósofa, com destaque para a experiência da Segunda Guerra mundial e as aproximações com outros autores que também viveram os horrores do holocausto.5 Com diálogos e debates com professores e filósofos, Shklar teve uma carreira exitosa.6 Apesar de seu talento, somente em 1970 se tornou professora em Harvard. Sua produção intelectual, sempre ocupada com as barbáries do nazifascismo, é uma ode contra o totalitarismo.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">O ceticismo de Shklar é verificado em atitudes práticas,7 como em 1982, quando vários professores foram convidados a apoiar uma manifestação contrária à associação de mulheres pró-vida8 ao Princeton Women’s Center. Em resposta ao convite, Shklar foi assertiva: “Eu devo dizer que apoio fortemente os direitos das mulheres ao aborto, e de fato os direitos dos cidadãos de terem serviços médicos decentes.” (Shklar, apudGatta, 2018a, p. 29). Em seguida, Shklar exercitou seu ceticismo:</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">No entanto, me parece que essas questões são problemas altamente controversos, e as mulheres que não compartilham minhas convicções religiosas e políticas têm sempre o direito de falar, e falar como mulheres, em suporte à grande parte substancial da população gestante. (Shklar, apudGatta, 2018a, p 29-30)</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">A manifestação de Shklar ilustra seu ceticismo como fundamento do liberalismo. Sua carta explicita a impossibilidade de dar apoio por compreender que deve haver diversidade nas manifestações e que é impossível excluir alguém do Princeton Women’s Center somente pela posição moral pró-vida. O comprometimento de Shklar com sua proposta teórica produz uma resposta dura: “Eu penso que práticas de exclusão são insensatas bem como repressivas, e eu não posso apoiar você, apesar de eu concordar profundamente com você na questão de mérito.” (Shklar, apudGatta, 2018a, p. 30).</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Após a introdução e o capítulo 1, Gatta divide sua obra em duas partes, sendo a primeira composta pelos capítulos 2 e 3 e a segunda composta pelos capítulos 4, 5 e 6. A parte I é dedicada à reconstrução do pensamento de Shklar sobre a Modernidade e propõe uma leitura entremeada pelos conceitos de ceticismo, iluminismo e modernidade propriamente dita. A parte II apresenta o argumento central de Gatta: a defesa do liberalismo do medo no século XXI a partir da relação entre ceticismo e comprometimento.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">“No começo, era o Iluminismo” é a frase de Shklar, 2015, p. 03, que inaugura o capítulo 2. Para Gatta, Shklar propõe uma compreensão do Iluminismo para além da ideia da Idade da Razão. After Utopia discute o totalitarismo a partir de uma revisão cética dos valores do Iluminismo. Essa releitura reafirma a autonomia e a dignidade das políticas de resistência contra as forças da fé e da futilidade (Gatta, 2018a, p. 48). O ‘indivíduo ordinário’ é um dos conceitos centrais, sendo mobilizado contra o conceito de massa. Shklar refuta a individualidade como uma abstração, colocando-a como uma concretização das reivindicações individuais por igualdade.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">O capítulo 03 trata do conceito de everyman como resistência às políticas de abstração, ou seja, seu pensamento liberal é voltado para o indivíduo como ser concreto. Audaciosamente, Gatta (2018a, p. 65) diz que After Utopia traz uma argumentação antimoderna que se refletirá nos trabalhos posteriores de Shklar relacionados à resistência contra a ideia do individualismo como abstração.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Sobre Rousseau e Hegel, Gatta destaca a proposta da utopia como um instrumento de crítica de um determinado tempo/lugar. Afasta-se, assim, da ideia de utopia como um esforço deliberado para transformar a história. Gatta sublinha que os escritos de Shklar sobre Hegel são anteriores ao contemporâneo debate entre liberais e comunitários que marca as décadas de 70 e 80 na teoria política.9</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Se After Utopia inaugurou a tensão entre esperança e desespero, Legalism10 é uma defesa do pluralismo, da tolerância e da legalidade11 tratados no capítulo 04 do livro. Em Legalism, há um destaque para a relação entre a Política e o Direito a partir do contraste entre a dura realidade contemporânea e alguma forma de nostalgia de lugares e tempos diferentes. O ceticismo de Shklar é definido por Gatta (2018a, p. 92) como a possibilidade de manutenção da tensão entre desespero, a partir de uma leitura antimoderna do Iluminismo, e esperança, sem as ilusões da modernidade. Shklar não se rende às críticas lançadas às principais ideias do Iluminismo, a ponto de cair num niilismo, nem propõe uma perspectiva ingenuamente otimista fincada na fé da razão. Fazendo uma crítica ao liberalismo conservador,12 como uma perspectiva que se mantém inerte a respeito do curso dos eventos e das crenças determinadas por forças fora do controle humano, Shklar aposta que o indivíduo deve ser capaz de realizar a ação política a partir de suas próprias experiências.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Sendo a crueldade “a imposição de dor física sobre um ser frágil como forma de causar angústia e medo” (Gatta, 2018a, p. 95), Shklar a coloca como pilar do liberalismo do medo. Em Ordinary Vices, Shklar trabalha os vícios humanos e a condição de vítima ou de ser frágil. Ser frágil é assumir a condição de caminhante que anda pelo campo minado e que em algum momento se tornará vítima diante da inevitável explosão. E quem anda pelo campo minado? Ou, mais literalmente, quem são as vítimas das opressões das diversas formas de poder – públicas e privadas? A incerteza sobre quem são os seres frágeis passíveis de serem considerados vítimas leva Shklar à seguinte resposta: a condição de vítima é um atributo de toda humanidade, ou seja, todo ser humano possui a capacidade de indignação diante de um ato de crueldade, porque nós somos capazes de perceber que esse ato pode estar potencialmente direcionado a nós. Disso, segue que as vítimas da crueldade são indivíduos ordinários, comuns (Gatta, 2018a, p. 96).</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">A tensão entre a inevitabilidade dos vícios humanos e a impossibilidade de consentir com eles sobressai como uma tarefa permanente de todo indivíduo, especialmente quando o vício é perpetrado pelos fortes ou poderosos contra os fracos ou vulneráveis. Olhando para o catálogo de vícios humanos, Shklar reivindica Putting cruelty first como exercício fenomenológico direcionado a desestabilizar categorias políticas ossificadas na ideologia, buscando construir um conceito capaz de mobilizar os elementos centrais de seu liberalismo na proteção do indivíduo ordinário (Gatta, 2018a, 98-99).</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Shklar faz uma dura crítica ao liberalismo, destacando que ele possui um grande débito com a misantropia. O corolário liberal do governo das leis nasce da observação de que seres humanos, em geral, não são criaturas virtuosas. Relembrando Maquiavel, Shklar considera a misantropia como um vício político tão pernicioso quanto a crueldade, vez que ela não se importa com os danos causados aos indivíduos, que, aliás, não são nada além de miseráveis espectadores de sua própria glória ou ruína. Daí a necessidade de um comprometimento com alguma perspectiva progressista e legalista que não tolere a crueldade e que não se acomode diante das situações de injustiça. Aliado ao ceticismo, esse compromisso desafia a inércia conservadora da crença de que os eventos estão determinados por forças alheias ao controle humano. Desafiadoramente, Gatta (2018a, p. 104) propõe:</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Minha sugestão provocativa é: Shklar realmente nunca viu seu ceticismo em contraste com seus comprometimentos progressistas para abandonar a crueldade e o medo. E isto é uma importante contribuição para a reconceituação do liberalismo para nossos dias.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">O capítulo 5 trata de uma perspectiva agonística para o uso das categorias medo e crueldade. Cotejando Ordinary Vices e Legalism, Gatta (2018a, p. 110) sugere que a instância agonística da política de Shklar é resultado da articulação entre comprometimento e ceticismo. Essa tensão coloca ao indivíduo o desafio prático de mobilizar suas convicções no campo político, tornando-se um ser capaz de produzir intervenções, sem, contudo, a pretensão de que suas convicções sejam tomadas como verdade ou como uma espécie de ordem natural das coisas ou da história.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Na tentativa de pensar sobre as conexões entre a moralidade, a Política e o Direito no campo do liberalismo, o ceticismo de Shklar coloca a ética, enquanto espaço não-neutro em relação à compreensão das situações de injustiça, em perspectiva política. Esse movimento intelectual também é fundamental para compreensão do Direito como um espaço que não pode ser caracterizado pela neutralidade em relação à paisagem política que ajuda a construí-lo (Gatta, 2018a, p. 110).</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Não existindo por si mesmo, o Direito não é autojustificável. Ele deve sempre ser visto e revisto em conexão com a moralidade e a Política. Legalism é uma crítica (i) ao Direito Natural como ideologia de consenso, (ii) à inabilidade do Positivismo Jurídico13 de reconhecer sua própria posição como uma forma de ideologia e (iii) à geral exposição da legalidade como ideologia ‘por si mesma’ nos julgamentos políticos internacionais (Gatta, 2018a, p. 111). Rejeitando a ilusão da neutralidade do Direito, Legalism defende a legalidade como uma posição ideológica dentre outras: a proteção de ‘minorias permanentes’. Não estando fundado numa concepção de indivíduo forte, independente e empoderado, a legalidade deve estar voltada à proteção dos sujeitos não-empoderados, abusados e intimidados (Gatta, 2018a, p. 111). Shklar propõe que a legitimidade da legalidade deriva da possibilidade de ela ser instrumento de políticas de tolerância e de pluralismo prioritárias num Estado de Direito.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">O capítulo 6 argumenta sobre como uma leitura agonística contribui para dar sentido à centralidade das vozes marginalizadas na perspectiva do liberalismo do medo. São essas vozes que redimensionam os conceitos de justiça e cidadania por meio da ação prática na dimensão política. Retomam-se o indivíduo e o liberalismo como as melhores perspectivas para empoderar e proteger os vulneráveis e excluídos. A luta por proteção jurídica:</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">[...] nasce num contexto específico, um contexto que é afetado pelas configurações morais e políticas do poder. Que ele [o Direito] seja um instrumento indispensável em uma sociedade liberal não significa que ele não deva ser discutido criticamente. (Gatta, 2018a, p. 127)</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">A partir do pensamento de Montaigne sobre as guerras religiosas, Shklar faz análise das atrocidades (torturas e massacres) resultantes das duas guerras mundiais. O liberalismo do medo é cético em relação à possibilidade de a realidade ser conformada por uma ordem normativa estável, tal como proposto pelo liberalismo de direitos. Para Gatta (2018a, p. 118), em Shklar as vítimas são capazes de desafiar a gramática e a semântica da realidade que as constituem. As vozes das vítimas são o esforço político que ecoam na esfera pública, denunciando politicamente a crueldade a que estão submetidas. Por isso, o liberalismo do medo não é um liberalismo sem esperança, mas um liberalismo sem ilusões, no qual os direitos são instrumentos indispensáveis para proteção das vítimas.14</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Relacionando o radicalismo cético ao conceito de cidadania das obras The Faces of Injustice e American Citizenship, Gatta (2018a, p. 125-126) afirma que, numa sociedade liberal, a cidadania deve significar olhos e ouvidos atentos aos abusos de poder do Estado e das Corporações. Em suas palavras:</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Aqui, literal e diretamente, as margens falam, suas vozes reivindicam, e suas reivindicações – de acordo com Shklar – devem ser simples e diretamente ouvidas, seus valores transcendem aquilo que está estabelecido conforme o Direito, fazendo uma rica contestação política. (Gatta, 2018a, p. 127)</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Observando a história das injustiças produzidas pela escravidão nos EUA e tendo em conta sua condição de mulher branca, refugiada, esposa, mãe e professora, Shklar mantém os olhos abertos e os ouvidos atentos às injustiças dentro e fora do contexto da sociedade norte-americana.15American Citizenship explicita as contradições da ideia de cidadania a partir dos conceitos de trabalho, status social e classe. Além do exercício das liberdades negativas, a cidadania deve estar comprometida com a ação protagonizada pelos cidadãos, especialmente por aqueles à margem. Essa proposta indica que, além da necessária dimensão formal, os direitos ao trabalho e ao voto devem ser compreendidos como possibilidade teórica e prática de eliminação das situações de crueldade. À dimensão formal alia-se a dimensão econômica da cidadania, vez que “o direito de ganhar sua própria vida, efetivamente aumenta o escopo da cidadania para incluir a independência econômica.” (Gatta, 2018a, p. 136). Cidadania é um estado de alerta sobre as avenidas que podem ser abertas pela crueldade, especialmente em relação aos mais vulneráveis. Se, por um lado, instituições como o Direito são cruciais para a defesa dos indivíduos, por outro, elas não são suficientes.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">O liberalismo do medo reivindica proteção ao indivíduo por meio de direitos para minorias permanentes e se preocupa com as vozes das vítimas das opressões (Gatta, 2018a, p. 127). O ceticismo radical é direcionado para a opinião predominante sobre o que é justo, o que é possível e o que é inescapável, como forma de abrir espaços de contestação ao status quo. Shklar põe foco no potencial de falibilidade da justiça em vez de buscar a crença no seu triunfo. Os direitos não são apenas fronteiras neutras entre indivíduos iguais, mas, também, instrumentos de defesa dos mais fracos frente aos mais poderosos.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Como elemento agonístico, o sentimento de injustiça pode ser produzido de formas diferentes como, por exemplo, pela fortuna da vida, por um desastre natural ou por condições sociais. Contudo, em todas essas experimentações humanas há uma pergunta fundante e inquietante: o que é um sentimento de injustiça? (Ventura, 2018, p. 80-81). Na mobilização das respostas possíveis à questão da injustiça, Gatta (2018a, p. 123) argumenta que “O liberalismo é justificado por ser o melhor equipamento (instrumento) para empoderar e proteger os vulneráveis e excluídos.”. Não por acaso que The Faces of Injustice aponta para tarefa política de transformar em injustiça aquilo que é ‘apenas’ hostilidade e má sorte. A partir da ênfase na distinção entre injustiça e má sorte, Shklar novamente traz ao centro do liberalismo do medo seu protagonista: a vítima.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">O século XXI é inaugurado pelos atentados às torres gêmeas do World Trade Center em 2001, em Nova York, seguido da invasão do Iraque em 2003. Em 2008 a crise financeira do mercado imobiliário norte-americano impactou a economia mundial interferindo na situação social de vários indivíduos ao redor do mundo. As diversas guerras no oriente médio, em especial da Síria e da Líbia em 2011, e os desastres naturais, como o terremoto no Haiti em 2010 e o Tsunami no Japão em 2011, também se destacam como situações sociais que podem ser compreendidas como hostilidade e má-sorte. Em 2015 a crise dos refugiados impactou o mundo, especialmente a Europa, cujo símbolo foi a chocante foto do menino Alan Kurdi,16 morto por afogamento numa praia da Turquia. Por fim, ainda sem a pretensão de apresentar um catálogo completo de situações dramáticas experimentadas pela humanidade no século XXI, a pandemia produzida pelo Coronavírus (COVID-19) que matou 654.309 pessoas no mundo.17</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Se o liberalismo é um conceito em disputa ao longo do tempo, não seria diferente no século XXI (GATTA, 2018b). Pensar e repensar os fundamentos de uma sociedade que possa ser denominada ‘liberal’ é uma tarefa que se impõe a toda pessoa que se coloque a refletir sobre a legitimidade do uso do poder e da coerção. Shklar cumpriu essa tarefa a partir de sua experiência/pensamento ao longo do século 20. A partir da pergunta “o liberalismo do medo pensado por Shklar tem alguma coisa a dizer sobre a crueldade infligida às pessoas, especialmente às minorias permanentes, na contemporaneidade?” Gatta cumpre aquela tarefa como reflexão prospectiva para o século XXI.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">É possível ser cético e comprometido ao mesmo tempo? Com Gatta (2018a), podemos responder afirmativamente à pergunta. Putting cruelty first é apostar num ceticismo radical diante da história dos indivíduos e das sociedades, identificando as vulnerabilidades a que todos os seres humanos comuns estão submetidos. Mas é, também, não se conformar com uma ordem natural das coisas, nem com um determinismo histórico, para reivindicar na esfera pública a eliminação das circunstâncias de opressão impostas às minorias permanentes.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">As vozes das minorias devem ser escutadas, viabilizadas e levadas em consideração como forma de revisão política da estrutura jurídica e proteção dos indivíduos comuns ante às opressões oriundas das estruturas de poder. Sendo o medo um sentimento comum a todos os indivíduos, a crueldade é a raiz conceitual que fundamenta o ceticismo radical apontando para a necessidade de proteção do indivíduo.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">A foto de Omran simboliza um tema da contemporaneidade: o medo oriundo da crueldade a que a vítima, uma criança, foi exposta. Se a definição Freedom is no fear fizer algum sentido para o leitor, o livro de Giunia Gatta é uma obra indispensável para lançar luzes no debate público sobre o liberalismo no século XXI.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Agradecimentos</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Agradeço à editora Routledge que disponibilizou um exemplar do livro Rethinking Liberalism for the 21st Century. The Skeptical Radicalism of Judith Shklar para elaboração desta resenha. Agradeço também aos diálogos com Elydia Monteiro, Giulle Vieira, Hélio Oliveira Júnior, Lucas Petroni, Ludmilla Camilloto, Marcus Paulo Barbosa, Raíssa Ventura e Sérgio da Mata.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">1</div><div style="text-align: justify;">Giunia Gatta é professora do Departamento de Análise Política e Gestão Pública da Universidade de Bocconi, Itália.</div><div style="text-align: justify;">2</div><div style="text-align: justify;">Gatta (2018a) apresenta uma vasta bibliografia sobre Shklar. Para os objetivos desse trabalho, o foco será nas obras: After Utopia: The Decline of Political Faith (Shklar, 2015); Legalism: Law, Morals, and Political Trials (Shklar, 1964), The Liberalism of Fear (Shklar, 1989a), The Faces of Injustice (Shklar, 1990) e American Citizenship (Shklar, 1991). Daqui em diante utilizarei nomenclatura abreviada para duas obras: After Utopia e Legalism.</div><div style="text-align: justify;">3</div><div style="text-align: justify;">Putting Cruelty First é o título do primeiro capítulo de Ordinary Vices. Inicialmente, fiz a tradução deste título por ‘colocando a crueldade em primeiro lugar’. Contudo, ao longo do texto, a tradução literal não foi capaz de expressar o sentido do conceito de Shklar, motivo pelo qual preservei o termo no original.</div><div style="text-align: justify;">4</div><div style="text-align: justify;">Liberalism of permanent minorities.</div><div style="text-align: justify;">5</div><div style="text-align: justify;">Por exemplo, Primo Levi.</div><div style="text-align: justify;">6</div><div style="text-align: justify;">Shklar possuía grande habilidade para lecionar aos seus alunos.</div><div style="text-align: justify;">7</div><div style="text-align: justify;">Nos dizeres de Gatta (2018a, p. 26), a trajetória acadêmica de Shklar é o exercício da “teoria política como vocação.”.</div><div style="text-align: justify;">8</div><div style="text-align: justify;">Movimento de mulheres contrárias ao aborto.</div><div style="text-align: justify;">9</div><div style="text-align: justify;">Como estabelecido na literatura da filosofia política, especialmente na teoria política norte-americana, as décadas de 70 e 80 foram marcadas pelo debate entre o liberalismo e o comunitarismo. O primeiro, sob a influência do pensamento de Kant, se sustenta no princípio da autonomia individual sendo caracterizado criticamente pela ideia de ‘atomismo’. O segundo, sob a influência do pensamento de Hegel, se sustenta no argumento da organicidade da sociedade sendo caracterizado pela ‘totalidade da comunidade’. Gatta alerta que a leitura de Shklar do pensamento de Hegel é um movimento crucial para o estabelecimento de seu argumento no tocante às ‘margens do liberalismo’, sem, contudo, fazer parte daquele contexto dos debates entre liberais e comunitários.</div><div style="text-align: justify;">10</div><div style="text-align: justify;">O termo legalism utilizado em minúsculo no texto de Shklar será traduzido aqui por legalidade.</div><div style="text-align: justify;">11</div><div style="text-align: justify;">Legalism é uma defesa da legalidade como forma de proteção das minorias permanentes contra as opressões, especialmente aquelas produzidas pelo Estado.</div><div style="text-align: justify;">12</div><div style="text-align: justify;">Para Shklar (2015) são expoentes do liberalismo conservador Wilhelm Röpke, Friedrich Von Hayek, Bertrand de Jouvenel, Michael Polanyi, Alfred Cobba, e Ludwig von Mises. Para aprofundar no contexto dessa proposta conceitual ver o capítulo VI de After Utopia.</div><div style="text-align: justify;">13</div><div style="text-align: justify;">Shklar fez um interessante debate com Austin, Kelsen e, especialmente, Hart.</div><div style="text-align: justify;">14</div><div style="text-align: justify;">Reivindicar que os indivíduos possuem direito de falar só faz sentido se considerarmos que aquelas vozes possuem esperança. Citando Wittgenstein, Ventura (2018, p. 09) sustenta que “Pode falar quem tem esperança, e vice-versa.”.</div><div style="text-align: justify;">15</div><div style="text-align: justify;">Shklar (1989b, 1990) não teorizou nem o racismo nem o feminismo. Esses temas, contudo, não passaram desapercebidos aos seus olhos, especialmente em American Citizenship.</div><div style="text-align: justify;">16</div><div style="text-align: justify;">Omran e Alan, duas imagens de crianças e um mesmo sentimento: a crueldade.</div><div style="text-align: justify;">17</div><div style="text-align: justify;">Dado quantitativo de 29 de julho de 2020.</div><div style="text-align: justify;">GATTA, G. Rethinking liberalism for the 21st Century: the skeptical radicalism of Judith Shklar. Routledge: New York, 2018a.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">REFERÊNCIAS</div><div style="text-align: justify;">GATTA, Giunia. (2018a), Rethinking liberalism for the 21st century. The skeptical radicalism of Judith Shklar. Routledge: New York.</div><div style="text-align: justify;">GATTA, Giunia Valeria. (2018b), Shklar made me do it! The liberalism of fear and international intervention. Rivista quadrimestrale” 2/2018, pp. 261-282. Disponível em: <https://www.rivisteweb.it/doi/10.4479/90792>. Acesso em: 05.01.2020.</div><div style="text-align: justify;"><a href="https://www.rivisteweb.it/doi/10.4479/90792">» https://www.rivisteweb.it/doi/10.4479/90792</a></div><div style="text-align: justify;">SHKLAR, Judith N. (2015), After Utopia: The Decline of Politcal Faith. Princeton: Princeton University Press. Disponível em: muse.jhu.edu/book/43403. Acesso em: 05.01.2020.</div><div style="text-align: justify;">SHKLAR, Judith N. (1964), Legalism (an essay of Law, Morals and Politics). London: Oxford University Press.</div><div style="text-align: justify;">SHKLAR, Judith N. (1984), Ordinary Vices Massachusetts: Harvard University Press.</div><div style="text-align: justify;">SHKLAR, Judith N. (1989a), Liberalism of fear. In: ROSENBLUM, Nancy L. Liberalism and the Moral Life HARVARD UNIVERSITY PRESS: Cambridge, Massachusetts, 1989, p. 21-38.</div><div style="text-align: justify;">SHKLAR, Judith N. (1989b), A life of learning. Charles Homer Kaskins Lecture of 1989 American Council of Learned Societies. Washington, D.C. April 6, 1989 ACLS OCCASIONAL PAPER, No. 9. Disponível em: https://publications.acls.org/OP/Haskins_1989_JudithNShklar.pdf Acesso em: 03.01.2020.</div><div style="text-align: justify;"><a href="https://publications.acls.org/OP/Haskins_1989_JudithNShklar.pdf">» https://publications.acls.org/OP/Haskins_1989_JudithNShklar.pdf</a></div><div style="text-align: justify;">SHKLAR, Judith N. (1990), The Faces of Injustice Yale University Press.</div><div style="text-align: justify;">SHKLAR, Judith N. (1991), American Citizenship. The quest for inclusion Massachusetts: Harvard University Press.</div><div style="text-align: justify;">SHKLAR, Judith N. (2015), After Utopia: The Decline of Political Faith Princeton: Princeton University Press. Disponível em: https://muse.jhu.edu/book/43403 Acesso em: 20.01.2020</div><div style="text-align: justify;"><a href="https://muse.jhu.edu/book/43403">» https://muse.jhu.edu/book/43403</a></div><div style="text-align: justify;">VENTURA, Raíssa Wihby. (2018), O outro nas fronteiras. Para uma teoria política da migração Tese (Doutorado em Ciência Política) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2018. doi:10.11606/T.8.2019.tde-09052019-103345. Acesso em: 2020-02-10.</div><div style="text-align: justify;"><a href="https://doi.org/10.11606/T.8.2019.tde-09052019-103345">» https://doi.org/10.11606/T.8.2019.tde-09052019-103345</a></div><div style="text-align: justify;"><ul style="background-color: white; box-sizing: border-box; color: #403d39; font-family: Arial, sans-serif; font-size: 12.6px; margin: 0px; padding: 0px; text-align: start;"><li style="box-sizing: border-box; list-style: none; position: relative;"><a class="dropdown-toggle" data-toggle="dropdown" href="https://www.scielo.br/j/rbcsoc/a/747zGBsLKdTdhcdWWsc9wCy/?lang=pt" style="animation-duration: 0.1s; animation-fill-mode: both; background-color: transparent; box-sizing: border-box; color: #00314c; font-weight: 700; text-decoration-line: none; transition: color 0.1s ease-out 0s, text-indent 0.1s ease-out 0s;"><span class="truncate" style="box-sizing: border-box; overflow: hidden; text-overflow: ellipsis; white-space: nowrap; width: 450px;">Revista Brasileira de Ciências Sociais </span><span class="sci-ico-arrowDown" style="-webkit-font-smoothing: antialiased; box-sizing: border-box; display: inline-block; font-family: scielo-glyphs !important; font-variant-east-asian: normal; font-variant-numeric: normal; font-weight: 400; line-height: 1em; speak: none; vertical-align: middle;"></span></a></li></ul></div>Eduardo Marculinohttp://www.blogger.com/profile/09461824103400566723noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4969040045050510246.post-7957934221971241482022-10-19T19:14:00.001-07:002022-10-19T19:14:45.355-07:00Negros nas Cidades Brasileiras (1890-1950)<div style="text-align: justify;"><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhVpTip2oI3Ht4LV3Q7LK3Ge4c-kRVh7028t4btML-AiDPO1WbcauJ7UipWlKerFiK1hqYOr9f0Um3Em8RyLFycFj2Ducj94x_m8GkD5JEa2EcmHpMPXpdPMwPp82mOYVU7TlQWAfQqabzinDC45JMy7taJYyFyDkFCqt3eDUs-iih809NIExgrIWKCsg/s1000/raci.png" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="1000" data-original-width="646" height="320" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhVpTip2oI3Ht4LV3Q7LK3Ge4c-kRVh7028t4btML-AiDPO1WbcauJ7UipWlKerFiK1hqYOr9f0Um3Em8RyLFycFj2Ducj94x_m8GkD5JEa2EcmHpMPXpdPMwPp82mOYVU7TlQWAfQqabzinDC45JMy7taJYyFyDkFCqt3eDUs-iih809NIExgrIWKCsg/s320/raci.png" width="207" /></a></div><br /><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><br /></div><br /><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div> <div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">RACIALIZAÇÃO URBANA</div><div style="text-align: justify;">URBAN RACIALIZATION</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Danilo França<br /></div><div style="text-align: justify;">BARONE, Ana; RIOS, Flavia. Negros nas Cidades Brasileiras (1890-1950). São Paulo: Intermeios, Fapesp. 2018. 358p</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Tanto as hierarquias raciais presentes na nossa sociedade quanto as características da nossa estruturação urbana fazem da questão racial e da questão urbana temas-chave para discussões sobre as especificidades da modernização no Brasil. No entanto, cada uma destas problemáticas possui suas respectivas tradições de investigação em subcampos específicos das ciências sociais, não havendo grandes vias de diálogo e articulação entre ambas. O livro Negros nas Cidades Brasileiras (1890-1950), organizado por Ana Barone e Flavia Rios, desponta como uma importante contribuição para a construção dessas pontes. Trata-se de uma coletânea composta por onze capítulos oriundos de comunicações apresentadas por seus respectivos autores em Simpósio igualmente intitulado realizado em 2015 na Universidade de São Paulo.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Em sua introdução, as organizadoras ressaltam que o recorte temporal dos estudos que integram a coletânea compreende o “período inicial de absorção urbana dos grupos negros no pós-abolição e na primeira fase de urbanização do país” (p. 15). A obra visa os arrojados objetivos de adentrar o campo pouco explorado das disputas pelo espaço por grupos étnico-raciais, ampliar o domínio de estudo das relações raciais e recompor o debate sobre produção e ocupação das cidades a partir da perspectiva racial. Nesse intento, as organizadoras ressaltam a diversidade disciplinar, temática, teórica e metodológica contida na coletânea que congrega estudos acerca de cidades como Rio de Janeiro, São Paulo, Campinas e São Luís do Maranhão. Além disso, tal como destaca o prefácio de Mônica Junqueira de Camargo, a obra condensa trabalhos de recuperação de vestígios culturais (materiais e imateriais) negros apagados ou escondidos no processo de modernização.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Não é a primeira vez que se organizam coletâneas com propostas análogas. Exemplos são Questões Urbanas e Racismo, organizada por Renato Emerson dos Santos (2012) e A Cidade e o Negro no Brasil, organizada por Reinaldo José de Oliveira (2013). Não obstante, a principal virtude do objeto desta resenha está para além de ter posto em evidência uma articulação de temáticas ainda incipiente nas ciências sociais. A coletânea o faz reunindo textos de autores consagrados, cuja obra tem relevância central em seus respectivos campos, com trabalhos de pesquisadores mais jovens, mas já com produções e agendas de pesquisa inquestionavelmente promissoras. Isso contribui para conferir legitimidade e acentuar a importância do desenvolvimento de tal articulação temática nas ciências sociais.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Como um primeiro apontamento crítico deve-se notar que, talvez devido ao fato de a maior parte dos autores ser proveniente de campos de estudos sobre relações raciais, faltam formulações sobre problemáticas propriamente urbanas. Em particular, não são referenciadas grandes teorias urbanas e não são formuladas as especificidades do urbano brasileiro e sua relação com as questões raciais. Os capítulos do livro tratam de negros nas cidades – são abordados aspectos da vida social da população negra em contextos urbanos, de modo que o urbano se apresenta mais na forma de cenários ou contextos nos quais se desenrolam os fenômenos aprofundados nos capítulos. Não estão formuladas questões mais gerais que concernem a uma problemática ao mesmo tempo racial e urbana: qual seria a questão racial da cidade?1</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Isso revela o que, talvez, seria a principal lacuna da coletânea, decorrente da própria condição de incipiência da conjunção de questões raciais e urbanas. Da falta da formulação de um conjunto mais unívoco de problemáticas de pesquisas raciais e urbanas resulta não apenas a pouca interlocução (apesar do recorte histórico similar) entre os capítulos, mas também uma certa falta de homogeneidade na incorporação de temas que sejam ao mesmo tempo raciais e urbanos: enquanto alguns capítulos podem ser lidos como exemplos inegáveis dessa articulação (como “Espaço, cor e distinção social em São Luís (1850-1888)”, de Matheus Gato), outros, no máximo, a tangenciam (como “Brincando de índio... e muito mais: atravessando espaço (e tempo) com os Oito Batutas, dentro e fora da cidade”, de Marc Hertzman).</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">É verdade que uma resposta à lacuna aqui apontada não foi uma tarefa à qual a coletânea se propôs. Contudo, o livro teria sido uma boa oportunidade para o esboço de alguma formulação nesse sentido na forma de um epílogo, uma vez que diversos capítulos insinuam elementos para tal elaboração, em especial os três primeiros, de viés mais teórico. Os dois primeiros capítulos, de autoria de Valter Roberto Silvério (“Uma releitura do ‘lugar do negro’ e dos ‘lugares da gente negra’ nas cidades”) e de Antonio Sérgio Alfredo Guimarães (“Formações nacionais de classe e raça”), respectivamente, abordam magistralmente as especificidades do processo de racialização no Brasil. O terceiro, de Renato Emerson dos Santos (“Expressões espaciais das relações raciais: algumas notas”) dá mais ênfase a questões espaciais.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">O núcleo do argumento de Antonio Sérgio Guimarães reside na oposição entre os conceitos de racialização e de formação racial, como dois lados do processo histórico de construção social da raça. A racialização diz respeito a processos de dominação e exploração nos quais categorias raciais são atribuídas para designar os grupos em situação de subordinação. Já a formação racial designaria um tipo de resistência à racialização, no qual os grupos subordinados assumem o pertencimento racial visando uma inversão dos estigmas. Sem a mesma profundidade da apresentação dos conceitos acima, processos ocorridos no espaço urbano, como a segregação ou a desvalorização de áreas habitacionais, são apontados como mecanismos e rotinas que reproduzem e institucionalizam a racialização.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Valter Silvério, por sua vez, avança mais em formulações acerca da formação de territórios e espacialidades negras como decorrência do processo de racialização. Um dos resultados da racialização seria a construção de uma representação de lugar do negro que informa percepções, experiências e ações no espaço urbano, bem como a produção deste. Ademais, o autor aponta, como consequência da não proteção de ex-escravos no pós-abolição,</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">a concentração de população negra em áreas urbanas (desprovidas de equipamentos urbanos essenciais ou de boa qualidade) e rurais (quilombos, terras de negros etc.), a regulação policial e política dos espaços ocupados e a cooptação/negação dos conteúdos das práticas culturais singulares das espacialidades negras. (p. 39)</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">No capítulo de Renato Emerson dos Santos há uma articulação teórica mais explícita entre relações raciais e espaço. Uma de suas ideias chave é a de que as “relações raciais grafam o espaço”. O espaço é pensado como uma acumulação de tempos, ou seja, as formas espaciais (ou “rugosidades do espaço”) são engendradas a partir da acumulação de processos histórico-sociais. Assim, as relações raciais instituem “geo-grafias” com duração variada, por exemplo, territorialidades definidas por grupos culturais como as posses de hip-hop, padrões de segregação espacial ou territórios quilombolas. Estas geo-grafias racializadas organizam as experiências de indivíduos e grupos no espaço. Daí a segunda ideia desenvolvida no capítulo, a de uma “organização espacializada das relações raciais”. Nela, os diferentes espaços, pensados enquanto conformadores de “contextos de interação”, podem ou não ensejar a mobilização do dado racial enquanto princípio de classificação, seja para instaurar ou reforçar barreiras e hierarquias, seja para favorecer processos de resistência à dominação. Desses princípios decorre que “a espacialidade de um ator é de suma importância” (p. 91) para definir suas possibilidades de ação, interlocução e articulação.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">A convergência dos argumentos dos três primeiros capítulos pode ser sumarizada a partir da menção que Valter Silvério faz a W. E. B. DuBois: a população de origem africana tornou-se negra na Filadelfia urbana. Isto é, o processo de racialização foi marcado por uma forma específica de inserção na urbanidade. A partir da desagregação do regime escravocrata, os ex-escravos e seus descendentes, ao mesmo tempo em que eram transformados em mulheres e homens livres, foram também racializados, ou seja, categorizados como grupo a partir de atributos raciais considerados inferiores, de características morais, intelectuais, estéticas e culturais negativas. Desse modo, indivíduos, grupos ou mesmo bairros são classificados como negros e a eles são imputados estigmas negativos. É parte fundamental desse processo de racialização a fixação de populações negras em determinados territórios urbanos ou rurais, representados como “lugar de negro”, condensando estigmas negativos e contribuindo para a consolidação da racialização. A racialização institui, portanto, “geo-grafias”, ou seja, formas espaciais são constituídas a partir dos processos históricos que envolvem classificações raciais. Em contrapartida, as distintas configurações espaciais são elemento ordenador das relações raciais, podendo favorecer tanto a racialização quanto a formação racial.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Em que pese tais enunciados não serem suficientes para constituir uma problemática unívoca para um campo de pesquisas sobre raça e espaço urbano, eles permitem, no mínimo, uma leitura mais convergente dos diversos estudos que compõem a obra, pavimentando as vias de interlocução entre os capítulos da coletânea.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Um traço que distingue o livro aqui resenhado de outras coletâneas sobre raça e espaço urbano é o seu enfoque num determinado período passado. Contudo, a despeito do recorte histórico enunciado ser 1890 a 1950, dois dos capítulos retrocedem a períodos anteriores à extinção formal da escravidão (1888), épocas, contudo em que já se observava a desarticulação do regime escravocrata. As análises de fenômenos socio-históricos desse momento crucial para a transição das populações de origem africana do status de escravo ao de cidadão possibilitaram aos autores identificar características do processo de racialização da população negra ainda em seus estágios preliminares.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Em “Escravas e libertas na cidade: experiências de trabalho, maternidade e emancipação na cidade de São Paulo (1870-1888)”, Maria Helena Pereira Toledo Machado e Marília Bueno de Araújo Ariza propõem uma análise da história de mulheres escravizadas, libertas e, mais especificamente, libertandas, sob a perspectiva do trabalho e da maternidade. A partir na década de 1870, proliferaram na cidade de São Paulo – que tinha como peculiaridade um maior contingente de mulheres e crianças dentre os escravizados – os contratos de aquisição de alforria por parte dessas mulheres e, num segundo momento, de seus filhos e parentes. Tratava-se de um longo processo de aquisição da liberdade pois, dado que os senhores teriam direito a uma indenização pela perda da trabalhadora, as libertandas adquiriam sua alforria contraindo dívidas com terceiros, os quais seriam pagos através de anos de serviços semelhantes àqueles exercidos na condição de escravizada (como o trabalho doméstico) em contratos que restringiam sua autonomia. Uma vez obtida a liberdade, iniciava-se um novo ciclo para superar obstáculos ao exercício da maternidade e manter a tutela sobre seus filhos.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">As interdições sobre a autonomia familiar e materna das libertandas, libertas e escravas [além do] investimento permanente de economias e trabalho na sua alforria e na de seus familiares, levando-as a adentrar o mundo da liberdade formal em condições de continuada exploração e enorme pobreza, e as diversas barreiras impostas à sua autonomia impactaram profundamente não apenas os termos de sua saída da escravidão, mas a própria substância da liberdade que conquistavam. (p. 142)</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">No capítulo “Espaço, cor e distinção social em São Luís (1850-1888)”, Matheus Gato parte da constatação de que a racialização – ou, em seus termos a “correlação entre cor e status” (p. 219) – foi heterogênea no território nacional, e dedica-se a revelar as peculiaridades desse processo na São Luís do Maranhão da segunda metade do século XIX, com especial acento na relação entre “cor, condição social, circulação e moradia” (p. 228). Ou seja, as hierarquias sociais com base na cor são refletidas nos espaços de habitação e deslocamento dos indivíduos distintamente classificados segundo categoriais raciais. Isso é demonstrado no capítulo através de uma rica descrição dos espaços de moradia e dos hábitos e usos do espaço urbano por parte de grupos da população ludovicense que que representam posições-chave para a compreensão das hierarquias sociais, raciais e espaciais em um momento de crise da ordem senhorial: a (branca) família tradicional maranhense e o mundo dos sobrados da 1ª freguesia, onde também se concentrava a população de “pretos” escravizados; os comerciantes portugueses dessa mesma freguesia em suas lutas materiais e simbólicas para consolidar sua ascensão social; “a cidade negra”, ou seja, a 2ª e 3ª freguesias, onde predominavam “pretos” e “pardos” livres; e, por fim, os “últimos africanos de São Luís”.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Três dos capítulos da coletânea exploram temas relativos ao transporte por ferrovias, que podemos considerar um fenômeno essencialmente urbano (e moderno), seja porque a implementação dessas foi decisiva para a consolidação dos principais núcleos urbanos do país, seja pela significativa importância do transporte de massas sobre trilhos nas cidades em crescimento.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Os textos assinados por Andrelino Campos e por Lília Moritz Schwarcz abordam, ambos, as linhas férreas que faziam a conexão do Rio de Janeiro com os seus subúrbios. As descrições dos subúrbios – sempre enfatizando o fato de agregarem grande população negra, principalmente após as reformas urbanas do início do século XX – são reveladoras não só de como a raça está grafada no espaço mas também, e principalmente, de como os subúrbios, suas estações de trem e seus distintos vagões em diversos horários conformam contextos de interação que permitem certas conexões, aproximações e distanciamentos condicionados pela mobilização de classificações raciais por parte dos agentes.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">No primeiro (“A produção da cidade em ‘tons’ de preto: do assentamento dos trilhos ferroviários à permanência dos campos negros na produção do subúrbio carioca (2000-2010)”), Andrelino Campos – falecido pouco antes da publicação do livro – aborda os subúrbios cariocas localizados às margens das estradas de ferro a partir da noção de “campos negros” designados como “(a) região – um conjunto de bairros que detêm alguma homogeneidade na forma conteúdo, formando (b) lugares que funcionam como produtores e retentores de identidades, ou (c) grandes territórios/complexos, loci de conflitos estruturais” (p. 98). Essa noção de campos negros foi originalmente empregada nas análises de Flávio Gomes (1995) sobre redes de relações que tinham como núcleo territórios quilombolas na zona rural do Rio de Janeiro oitocentista. Campos aponta que muitas freguesias rurais cariocas agregavam um significativo contingente populacional negro já no século XIX e, a partir de instalação das linhas férreas, esse contingente só fez aumentar com a migração de população negra em direção aos subúrbios.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Em “Lima Barreto e a Central do Brasil: uma linha simbólica a separar o subúrbio da capital”, Schwarcz apresenta a “geografia íntima e pessoal” (p. 179) que Lima Barreto descortina enquanto passageiro dos trens da Central do Brasil em seus deslocamentos diários do subúrbio até o centro do Rio de Janeiro.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Os subúrbios não eram, pois, regiões homogêneas, mesmo para Lima Barreto. Se, por oposição ao centro, pareciam muito semelhantes entre si, olhados de dentro deixavam perceber outras hierarquias e diferenciações internas. A combinação das estações de trem – ora mais elegantes, ora mais simples – cor e classe era fundamental. (p. 211)</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">O capítulo de James Woodard (“‘Por essa estrada da justiça e da liberdade’: aspectos da mobilização afrodescendente em Campinas”) pode ser lido como exemplar da importância da “espacialidade do ator” em processos de formação racial. O líder negro e ferroviário Armando Gomes é a figura central do capítulo que descreve sua atuação na greve dos ferroviários campineiros de 1920, seu contexto e consequências. O texto apresenta uma rede de relações marcada por alianças e dissensos políticos e ideológicos que envolve diferentes segmentos da comunidade de ativistas negros de Campinas, e os – não menos politicamente diversos – republicanos radicais, também descritos pela expressão racially progressive white allies.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">A leitura da espacialidade de processos de formação racial evidencia-se ainda mais nos capítulos assinados por Petrônio Domingues e Mario Augusto Medeiros da Silva. Esses dois capítulos abordam formas de sociabilidade também essencialmente urbanas – clubes de futebol e clubes sociais –, mas com a especificidade de serem organizações com o objetivo de agregar a população negra, impedida de participar como membros e atletas de outros clubes. Em “‘O esporte da raça’: o futebol no meio afro-paulista”, Domingues enfoca a trajetória do São Geraldo, o alvinegro da Barra Funda, bairro que abriga importante estação ferroviária e um dos principais “territórios negros” paulistanos do início do século XX. Entre as décadas de 1920 e 1940, o São Geraldo foi um destacado time de futebol formado apenas por jogadores negros, cujas conquistas foram motivo de celebração por parte de organizações e da imprensa negra da época.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Mesmo impedidos de tantas maneiras de participar do corpo simbólico, político e social da nação, os autodeclarados ‘homens de cor’ procuraram cavar espaços de inserção e visibilidade, inclusive nas atividades desportivas, interagindo e competindo com os brancos no campo de jogo. (...) Cada êxito de um clube ou selecionado dos ‘pretos’ era festejado como uma conquista de toda a população negra. (p. 296)</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Mário Medeiros, no seu “Clubes Sociais Negros Paulistas (1890-1950)”, apresenta um cuidadoso levantamento desses clubes, inscrevendo-o num quadro analítico sobre o associativismo negro. Ao final do capítulo, o autor fornece uma interessante pista empírica que conecta várias das contribuições a esta coletânea:</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Há uma forte hipótese de que a organização do trabalho ferroviário tenha sido uma das formas possíveis de acesso à cidadania do ex-escravizado e do liberto. (...) Quase todas as sedes dos Clubes visitados estavam próximas às estações de trem de suas cidades. (...) grande parte dos fundadores dessas Sociedades tiveram entre seus membros trabalhadores dessas companhias. (...) Todos necessitados, nos momentos de alta discriminação social em suas cidades, de espaços de lazer e convivência político-cultural. Espaços de sociabilidade e também de socialização negra, onde, de diferentes maneiras, se ritualizava uma luta antirracista. (p. 331)</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Por fim, mesmo o capítulo de Marc Hertzman acerca das performances do Oito Batutas – conjunto musical liderado por Pixinguinha e Donga – em suas turnês na década de 1920, que apenas resvala em problemáticas urbanas, permite-nos vislumbrar uma leitura de como diferentes espaços condicionam diferentes modalidades da racialização. Nele, o autor mostra a variedade de representações – sempre vinculadas a determinados estereótipos raciais – pelas quais os Oito Batutas eram percebidos de acordo com o local onde iriam se apresentar.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Com a organização de Negros nas Cidades Brasileiras (1890-1950), Ana Barone e Flavia Rios oferecem à literatura das ciências sociais uma importante perspectiva sobre modernização, urbanização e raça na sociedade brasileira. As formulações teóricas enunciadas nos três primeiros capítulos ressoam nos estudos empíricos apresentados nos oito capítulos seguintes configurando uma chave de leitura original acerca dos aspectos urbanos (e/ou espaciais) do processo de racialização (e de formação racial) no Brasil. Tais virtudes fazem dessa obra uma referência incontornável para a construções de confluências entre as problemáticas racial e urbana.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">1</div><div style="text-align: justify;">Evoco, dessa maneira, uma diferenciação tradicionalmente formulada em argumentos legitimadores da especificidade da antropologia urbana enquanto campo de pesquisa. Trata-se da distinção entre uma antropologia na cidade, que aborda fenômenos que se passam no contexto urbano, e uma antropologia da cidade, que visa tomar o urbano “como tema substancial de reflexão” (Frugoli Jr, 2005).</div><div style="text-align: justify;">Este trabalho foi apoiado pela Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo).</div><div style="text-align: justify;">DOI: 10.1590/3610716/2021</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">BIBLIOGRAFIA</div><div style="text-align: justify;">FRUGOLI JR., Heitor. (2005), “O urbano em questão na antropologia: interfaces com a sociologia”. Revista de Antropologia, 48, 1: 133-165.</div><div style="text-align: justify;">GOMES, Flávio dos Santos. (1995), História de quilombolas: mocambos e comunidades de senzalas no Rio de Janeiro – século XIX. Rio de Janeiro, Arquivo Nacional.</div><div style="text-align: justify;">OLIVEIRA, Reinaldo José de (org). (2013), A Cidade e o Negro no Brasil: Cidadania e Território. São Paulo, Alameda.</div><div style="text-align: justify;">SANTOS, Renato Emerson dos (org.). (2012), Questões Urbanas e Racismo. Petrópolis, RJ, DP et Alii; Brasília, DF, ABPN.</div><div style="text-align: justify;"><a class="dropdown-toggle" data-toggle="dropdown" href="https://www.scielo.br/j/rbcsoc/a/XFP69Jv8mr7XQH7Lz48swhL/?lang=pt" style="animation-duration: 0.1s; animation-fill-mode: both; background-color: white; box-sizing: border-box; color: #00314c; font-family: Arial, sans-serif; font-size: 12.6px; font-weight: 700; text-align: left; text-decoration-line: none; transition: color 0.1s ease-out 0s, text-indent 0.1s ease-out 0s;"><span class="text" style="box-sizing: border-box;"><span class="truncate" style="box-sizing: border-box; overflow: hidden; text-overflow: ellipsis; white-space: nowrap; width: 450px;">Revista Brasileira de Ciências Sociais</span></span></a></div>Eduardo Marculinohttp://www.blogger.com/profile/09461824103400566723noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4969040045050510246.post-60325496575655091772022-10-19T19:04:00.002-07:002022-10-19T19:04:36.982-07:00Por uma política antirracista<div style="text-align: justify;"><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/a/AVvXsEjfXtTCEqB2mCifGqpW4pHZPtn2oInmGqlMXld5ojXvA00C2OuDB-7PXdIDBF9a-R0nDQaTRweEJoCVvd7z4-5wCd3RIwJzZ8oy8-IQYoQRJ9Ch_o__CzjOcGGhXIvuJ0pub93nJucs_FjLIXHqxAVXsiFsQbWdurUcV8ZvxZAWH14A8gpamPLMYX1pGA" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img alt="" data-original-height="183" data-original-width="275" height="213" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/a/AVvXsEjfXtTCEqB2mCifGqpW4pHZPtn2oInmGqlMXld5ojXvA00C2OuDB-7PXdIDBF9a-R0nDQaTRweEJoCVvd7z4-5wCd3RIwJzZ8oy8-IQYoQRJ9Ch_o__CzjOcGGhXIvuJ0pub93nJucs_FjLIXHqxAVXsiFsQbWdurUcV8ZvxZAWH14A8gpamPLMYX1pGA" width="320" /></a></div><br /><br /></div><div style="text-align: justify;">Por uma política antirracista</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Eliane Alves da Silva</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Em dezembro de 2019, nove jovens foram mortos em consequência de uma ação malsucedida da Polícia Militar, durante um baile funk, na favela de Paraisópolis, em São Paulo, uma das maiores da cidade e do país. A polícia alegou que bandidos em fuga se infiltraram na multidão reunida no baile, para se esconderem. A ação envolveu perseguições, tiros, pânico e correria, entre as quase 5 mil pessoas concentradas na estreita viela D17 e seus arredores, ocasionando pisoteamentos, asfixia e a morte de nove jovens, a maior parte deles negros, quatro deles menores de idade. As mortes teriam sido apenas o efeito colateral de uma ação policial legítima de perseguição de bandidos, versão defendida pelo próprio governador do estado de São Paulo, João Dória. O episódio, largamente noticiado pela imprensa, não mobilizou protestos de rua. Alguns dias depois, em ato organizado para exigir apuração dos fatos, apenas familiares e amigos das vítimas marcharam pelas ruas do luxuoso bairro do Morumbi, em direção à sede do governo estadual. Em contraste, meses mais tarde, em pleno contexto de isolamento social causado pela pandemia de Covid-19, cerca de três mil pessoas se reuniram no Largo da Batata, na esteira das manifestações que tomaram o mundo após o assassinato de George Floyd, um homem negro, morto pela polícia da cidade de Minneapolis, nos Estados Unidos da América.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Tragédias como a de Paraisópolis, exemplo do cotidiano violento que vitimiza especialmente jovens negros e periféricos nas cidades brasileiras, tornam pertinente a leitura do livro Como ser antirracista, de Ibram X. Kendi, lançado nos Estados Unidos, em 2019, e recém-lançado no Brasil. Com semelhanças e diferenças nos efeitos das histórias coloniais e escravocratas de Brasil e Estados Unidos, a realidade crua do racismo perdura nos dois países, fazendo do antirracismo uma luta necessária.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Em função das reações geradas pelo assassinato de George Floyd, o livro ocupou o posto de título mais vendido nos Estados Unidos, ao longo de semanas, evidenciando a urgência de discutir o racismo e de decifrar as estratégias de luta antirracista. Atraente pelo título, Como ser antirracista, o livro sugere uma espécie de “manual” oferecido ao leitor. Por conta da assertividade, concisão e clareza com que descreve e explica práticas racistas e antirracistas, o livro até permite uma leitura de manual, mas não sem que antes o leitor atento compreenda a complexidade da trama sócio-histórica que engendra o racismo, bem como a vigilância permanente que seu enfrentamento exige. Ser antirracista implica identificar como o racismo opera na nossa sociedade e, a partir disso, determinar, igualmente, por que meios ele pode e deve ser enfrentado. Esse é basicamente o percurso que Ibram X. Kendi traça no livro.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Negro, professor da American University − onde fundou e dirige o Antiracist Research And Policy Center −, e oriundo de família de classe média, Kendi apresenta a discussão sobre antirracismo a partir de sua trajetória pessoal e acadêmica nos Estados Unidos, abordando o tema por meio de experiências cotidianas, que permitem elucidar a possibilidade de práticas antirracistas. O livro consiste em 18 capítulos relativamente curtos, escritos em estilo fluido e quase informal, permeado de ironias e autoironias, com referências à sua própria relação com o racismo sofrido e praticado (conforme se verá adiante). A obra consiste numa espécie de “duelo de consciências” do próprio autor, para usarmos os termos do sociólogo norte-americano W. E. B. Dubois, uma de suas principais referências.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">A linguagem simples utilizada na narrativa não impede (talvez até potencialize a possibilidade de) um diagnóstico agudo do racismo, das políticas que o produzem e das ideias que buscam legitimar, sustentar e naturalizar as práticas racistas. O autor enfatiza que não existem políticas não racistas ou neutras em relação à raça (p. 345). Assim como não existem ideias não racistas, mas apenas ideias racistas e antirracistas (p. 379). Em suma, tratando-se de racismo não existe lugar de neutralidade.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">O livro não está organizado em partes distintas, mas, para efeitos de apresentação, é possível agrupar os 18 capítulos em 5 blocos principais de argumentação.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Uma primeira parte dos argumentos envolve os capítulos de 1 a 4. O autor inicia o primeiro capítulo defendendo a importância de definir os conceitos. Para Kendi, ser antirracista exige estabelecer definições claras, uma vez que o racismo se comporta de modo a alterar constantemente sua definição, impedindo ou dificultando, com isso, o seu enfrentamento. O autor mostra que a prática antirracista consiste em uma luta constante, que ele mesmo, homem negro, também foi obrigado a travar a partir do “duelo de consciências” (capítulo 2), no qual os negros enxergam a si mesmos e ao seu povo pelos olhos do outro (branco) e, simultaneamente, buscam afirmar sua própria negritude. Nesse capítulo, Kendi se coloca em franco diálogo com W. E. B. Dubois, interlocutor presente ao longo de todo o livro.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Raça, racismo e antirracismo estão entre as principais definições iniciais. A raça consiste, antes de tudo, em um constructo de poder (capítulo 3). Ao fazer essa definição, Kendi refuta qualquer possibilidade de definição racial pela biologia. Para tanto, o autor retoma a discussão, já bastante estabelecida no campo científico, sobre a inexistência de quaisquer diferenças biológicas entre grupos raciais (capítulo 4). No entanto, aponta para o uso paradoxal do conceito de raça para sustentar o combate ao racismo. Nesse capítulo, ele realiza crítica aguda sobre uma suposta era pós-racial, que ganhou o discurso estadunidense, nos anos da presidência de Barack Obama (2009-2017). Para Kendi, contrariamente, torna-se necessário falar de raça e acionar o conceito para reafirmar a sua inexistência, pois mesmo sabendo-se que raça não existe como suporte natural de desigualdade entre seres humanos, ela funciona como constructo de poder, como categoria operante no mundo social. Abolir simplesmente o termo, diz Kendi, é o último movimento da luta antirracista, não o primeiro.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Dois elementos são fundamentais para a definição que o autor elabora sobre racismo e, por consequência, antirracismo: trata-se da combinação entre políticas e ideias. Racismo “é a união de políticas racistas e ideias racistas que produzem e normalizam desigualdades raciais” (p. 338). Ser antirracista implica, simultaneamente, empenhar-se na construção de políticas antirracistas e enfrentar e combater (em si mesmo e no outro) ideias que afirmam hierarquias e desigualdades. O plano de ação política é central na discussão feita por ele, reafirmado em várias passagens do livro.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Em um segundo bloco, poderíamos agrupar os capítulos 5, 6, 7, 8 e 13. Nesses capítulos, Kendi discute os mecanismos pelos quais o racismo opera e as superfícies (ou categorias) sobre as quais se sustenta. O racismo opera pela produção de hierarquias e valorização/desvalorização de grupos sociais delas decorrentes. Opera, ainda, por meio da generalização de comportamentos individuais atribuídos e naturalizados como características de determinado grupo racial. Tem lugar o mecanismo da racialização, “que serve à principal função da raça: criar hierarquias de valor” (p. 1051). O autor demonstra como a racialização incide sobre diferentes domínios da vida social, por meio de políticas e de ideias intrinsecamente combinadas. O racismo hierarquiza grupos étnicos distintos (capítulo 5), estabelecendo desigualdades que são incorporadas pelos próprios grupos racializados. Tal mecanismo é capaz de opor e de dificultar o convívio entre diferentes culturas (capítulo 7).</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">O corpo também ganha capítulo específico na discussão do livro (capítulo 6), ao ser compreendido como superfície de incidência das políticas e ideias racistas. O corpo suspeito ou violento dos homens negros, o corpo sexualizado das mulheres negras, e todas as atribuições criadas pelo ideário racista incidem na valoração social a partir de características pretensamente biológicas. A combinação entre argumento biológico e valoração social está igualmente presente na compreensão do comportamento de grupos sociais racializados (capítulo 8): trata-se de deduzir determinados comportamentos do fator racial. Aqui, Kendi aponta a armadilha que esconde, nas falas sobre os efeitos da escravidão, duas práticas aparentemente opostas, mas igualmente racistas: aquela que atribui ao negro liberto um “comportamento desmoralizado pela liberdade”; e aquela que percebe o negro liberto “desmoralizado pela escravidão”. Mesmo que esta última condene o instituto da escravidão, não deixa, contudo, de reafirmar a suposta degradação do povo negro.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Um terceiro bloco de argumentos abrange os capítulos 9 (intitulado “Cor”), 10 (“Branco”) e 11 (“Negro”), e apresenta uma importante discussão sobre a noção de colorismo e o racismo engendrado pelos próprios negros, tocando em questões sensíveis e polêmicas. A discussão sobre a cor (capítulo 9) desloca, supostamente, a questão da raça para a cor da pele, mas o faz produzindo hierarquias nas tonalidades da pele negra, tão mais valorizadas quanto mais próximas se encontrem da pele branca, tida como padrão e referência. E assim opera a lógica racista do colorismo: fazendo subsumir a leitura racial sob a cor da pele. Kendi lembra que se trata de uma das principais armadilhas do racismo entre os negros: ao acusar irmãos de pele mais clara de não serem “negros suficientes”, de não serem representantes legítimos do povo negro.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">O capítulo 10 (intitulado “Branco”) anuncia que o racismo pode ocorrer entre os próprios negros, sempre que estes utilizarem da mesma lógica de generalização que vai do indivíduo (racista) ao povo (todos os brancos são racistas), o que faz desviar a atenção das relações de poder e das políticas racistas para determinado povo, naturalizado como racista. Mas, é no capítulo 11 (“Negro”), que a crítica se torna mais contundente, quando, o autor rebate a ideia de que os negros não poderiam ser racistas por não terem poder, no que ele chama de “defesa impotente”. Kendi nega isso duplamente: tal discurso − afirma − sobrevaloriza os brancos, atribuindo-lhes um poder absoluto, enquanto subestima os negros, supostamente desprovidos de poder. Os negros têm poder muito limitado na sociedade racista, mas isso não quer dizer que não tenham nenhum poder, inclusive institucional:</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">a defesa impotente diz que mais de 700 juízes negros em tribunais estaduais e mais de 200 juízes negros em tribunais federais não tiveram poder durante os processos de julgamento e condenação que criaram nosso sistema de encarceramento em massa. (p. 2343).</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">O debate sobre racismo não pode prescindir da discussão interseccional que articula diversos eixos produtores de desigualdades. Tal discussão está presente nos capítulos 12 (“Classe”), 14 (“Gênero”) e 15 (“Sexualidade”), que poderíamos chamar de quarto bloco de argumentação. Esta, talvez, seja a parte do livro menos aprofundada pelo autor, em termos de exploração teórica de uma discussão já consolidada nas Ciências Sociais. As assertivas de que não se pode ser, ao mesmo tempo, antirracista e sexista ou homofóbico, por exemplo, careceriam de maior aprofundamento, ainda que imediatamente se recoloque a afirmação de que o antirracismo consiste, antes de tudo, em se posicionar contra quaisquer hierarquizações de grupos sociais, seja por gênero, sexualidade, ou classe. Ao discutir classe social, em consonância com outros autores contemporâneos dedicados aos temas raciais, de que são exemplos, no Brasil, estudiosos como Djamila Ribeiro (2019) e Silvio Almeida (2019), Kendi faz uma das suas assertivas mais contundentes: a luta antirracista é também uma luta anticapitalista. Historicamente, o capitalismo nasce juntamente com o racismo, são “irmãos siameses”, gerados na combinação entre expansão capitalista comercial e mercado escravagista. O enfrentamento de um implica no enfrentamento do outro, concomitantemente, como produtores e reprodutores de desigualdades de várias ordens.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Conforme exposto na abertura do presente texto, a luta antirracista passa por identificar como o racismo opera e, a partir daí, compreender, então, como ele pode ser enfrentado. Assim, o autor se detém mais precisamente sobre essas questões, nos três capítulos finais do texto (quinto bloco de argumentação), ao discutir o que pode levar as lutas políticas ao fracasso ou ao sucesso. A prática antirracista implica, obrigatoriamente, a desracialização de quaisquer grupos sociais e suas hierarquias correlatas de valor. Porém − e este ponto é fundamental no argumento de Kendi −, faz-se necessário entender que a luta antirracista não se dá apenas no plano das ideias (buscando persuadir pessoas brancas sobre os horrores do racismo), mas, sobretudo, e primeiramente, no plano da política: “a persuasão moral e educacional defende o pressuposto de que as mentes racistas devem mudar antes da política racista, ignorando a história, que diz o contrário” (p. 3441). Na realidade, afirma Kendi, à implementação de políticas antirracistas corresponde a alteração de ideias, na medida em que as políticas ajudam a desfazer os receios que o pensamento racista afirma (o autor cita, por exemplo, o apoio crescente dos brancos às políticas de dessegregação racial, décadas após sua implementação nos Estados Unidos; o mesmo se aplica aos casamentos inter-raciais e outras tantas políticas antirracistas norte-americanas). Se a raça é um constructo do poder, a luta antirracista consiste também em uma luta de tomada do poder; ou seja, está profundamente implicada com a política.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Por políticas antirracistas, entendam-se políticas que enfrentem e combatam as hierarquias e desigualdades sociais e estejam diretamente comprometidas com a promoção da igualdade entre grupos sociais. Por exemplo, se, por um lado, o autor faz o elogio das políticas de cotas no acesso ao ensino superior, por outro, ele diz que é preciso estar atento aos perigos de políticas educacionais que visam padronizar currículos escolares desconsiderando as diferenças culturais e experiências próprias dos diferentes grupos sociais, tomando a cultura hegemônica como referência a ser aprendida e reproduzida.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Não se trata apenas de reivindicar políticas antirracistas, mas de implicar-se diretamente nelas, com participação ativa e comprometida, mobilizando, para isso, recursos humanos e financeiros (apoio a candidaturas com representantes negros e demais minorias, maior investimento em áreas como saúde e educação etc.). Nesse ponto, ao chamar para o engajamento dos sujeitos, Kendi retorna ao tema já antes levantado, e dialoga criticamente com os conceitos de racismo institucional ou racismo estrutural, consagrados na literatura sobre questões raciais. Para o autor, trata-se de redundâncias, uma vez que o racismo constituiu em si algo institucional, estrutural e sistêmico (p. 352). O autor reconhece a importância dos conceitos que buscam reagir e se contrapor às forças que tentam explicar o racismo como fruto de atos individuais. Contudo, o uso de conceitos redundantes e abstratos impede as pessoas comuns de compreenderem e identificarem claramente agentes e sujeitos. O mais adequado, nesse caso, é falar em políticas racistas, identificando seus produtores, promulgadores, legisladores e defensores, para que se possa agir concretamente por meio de políticas antirracistas tangíveis.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Por fim, o livro argumenta que ser antirracista não consiste em uma condição permanente, mas em um vir a ser, que exige vigilância constante, autoanálise e autocrítica, assim como requer a ação e a implicação no fomento de políticas e ideias antirracistas.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Como ser antirracista se apresenta como um livro acessível ao público em geral, e não apenas aos estudiosos do tema, e cobre a maior parte dos elementos pelos quais se percebe o funcionamento da lógica racista. Tal escolha pode, por vezes, ocasionar certa falta de profundidade no desenvolvimento de alguns argumentos, mediações e relações. O estilo narrativo adotado atende aos apelos editoriais, com frases curtas capazes de causar efeito em um grande público, mas também aproxima as Ciências Sociais (em especial os estudos de relações raciais) do público geral e ajuda a romper preconceitos que acusam a incompatibilidade entre pensamento científico e ativismo político, supostamente contaminado pela ideologia.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Nesse sentido, a tradução do livro é muito bem-vinda ao Brasil, somando-se ao debate e discussões sobre as variadas formas pelas quais o racismo opera no país, levantados por obras como Pequeno manual antirracista (RIBEIRO, 2019), Racismo estrutural (ALMEIDA, 2019), Racismo recreativo (MOREIRA, 2019), para ficarmos apenas em alguns nomes importantes dedicados ao tema.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Realizado o percurso de Ibram X. Kendi, voltemos ao começo, com a cena que abre essa resenha: a morte de 9 jovens no baile funk de Paraisópolis. O evento trágico ilustra a lógica racista de que trata o autor: espaço racializado da favela, convertido em lugar de perigo e de crime, ao mesmo tempo em que fornece mão de obra doméstica negra para as mansões do abastado bairro do Morumbi, seu vizinho; racialização das práticas culturais da juventude negra e periférica, nesse caso representadas pela música funk, como objeto de condenação moral e criminalização, substrato que tornou possível a ação indiscriminada das forças repressivas do Estado, no acontecimento narrado.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Infelizmente, este é apenas mais um episódio de morte e violência estatal, que vitimiza jovens negros periféricos nas cidades do país, o que reforça a urgência de políticas antirracistas que se combinem e se somem ao combate às desigualdades em suas manifestações raciais, de classe e de gênero. Isso implica pensar, por exemplo, na desmilitarização das polícias (SOARES, 2019), como elemento constituinte das políticas de segurança pública. Trata-se, ainda, de implementar políticas urbanas que orientem recursos para as áreas mais pobres e segregadas das cidades, enfrentando sua precariedade urbanística e insuficiência de equipamentos e serviços; políticas culturais e educacionais que ofereçam aos moradores periféricos condições mínimas de igualdade de formação e oportunidades de desenvolvimento intelectual e subjetivo; políticas redistributivas capazes de fazer frente às enormes desigualdades de renda, o que envolve taxar as grandes fortunas como forma de redistribuir a riqueza social.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Mas, se bem compreendermos os argumentos propostos por Ibram X. Kendi, será igualmente importante o envolvimento de todos na criação, fomento e apoio de políticas antirracistas. Eventos trágicos como o ocorrido em Paraisópolis, que custou a vida de nove jovens, devem mobilizar a população, não somente como manifestação espontânea e passageira, conforme alerta Kendi, mas como forma de protesto engajado e de luta permanente, que não apenas deem visibilidade às políticas e práticas racistas, mas que se coloquem aberta e incansavelmente a favor de políticas antirracistas. Tal tarefa não diz respeito apenas ao povo negro. Todos sofremos as consequências de políticas racistas. Como lembrado pelo rapperEmicida (2020): o corpo suspeito (e esse corpo é negro) não está protegido pela democracia. Portanto, a bandeira antirracista não se resume à situação do povo negro. É uma tarefa que envolve, necessariamente, todos os membros de uma sociedade que se pretenda verdadeiramente democrática.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">KENDI, Ibram X. (2020), Como ser antirracista, Rio de Janeiro, Ed. Alta Books, E-book.</div><div style="text-align: justify;">DOI: 10.1590/3610715/2021</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Bibliografia</div><div style="text-align: justify;">ALMEIDA, Silvio Luiz de. (2019), Racismo estrutural, São Paulo, Sueli Carneiro; Pólen.</div><div style="text-align: justify;">EMICIDA. Entrevista ao Programa Roda Viva, TV Cultura, 27 de jul. de 2020. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=pDV3SGzV3m4>. Consultado em 10/06/2021.</div><div style="text-align: justify;"><a href="https://www.youtube.com/watch?v=pDV3SGzV3m4">» https://www.youtube.com/watch?v=pDV3SGzV3m4</a></div><div style="text-align: justify;">MOREIRA, Adilson. (2019), Racismo recreativo, São Paulo, Sueli Carneiro; Pólen.</div><div style="text-align: justify;">RIBEIRO, Djamila. (2019), Pequeno manual antirracista, São Paulo, Ed. Schwarcz S.A.</div><div style="text-align: justify;">SOARES, Luiz Eduardo. (2019), Desmilitarizar: segurança pública e direitos humanos, São Paulo, Boitempo.</div><div style="text-align: justify;"><ul style="background-color: white; box-sizing: border-box; color: #403d39; font-family: Arial, sans-serif; font-size: 12.6px; margin: 0px; padding: 0px; text-align: start;"><li style="box-sizing: border-box; list-style: none; position: relative;"><a class="dropdown-toggle" data-toggle="dropdown" href="https://www.scielo.br/j/rbcsoc/a/MCb6wczC8dX3yH6VXzhgm5g/?lang=pt" style="animation-duration: 0.1s; animation-fill-mode: both; background-color: transparent; box-sizing: border-box; color: #00314c; font-weight: 700; text-decoration-line: none; transition: color 0.1s ease-out 0s, text-indent 0.1s ease-out 0s;"><span class="truncate" style="box-sizing: border-box; overflow: hidden; text-overflow: ellipsis; white-space: nowrap; width: 450px;">Revista Brasileira de Ciências Sociais </span><span class="sci-ico-arrowDown" style="-webkit-font-smoothing: antialiased; box-sizing: border-box; display: inline-block; font-family: scielo-glyphs !important; font-variant-east-asian: normal; font-variant-numeric: normal; font-weight: 400; line-height: 1em; speak: none; vertical-align: middle;"></span></a></li></ul></div>Eduardo Marculinohttp://www.blogger.com/profile/09461824103400566723noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4969040045050510246.post-50853911664073817632022-10-19T18:58:00.000-07:002022-10-19T18:58:06.051-07:00Economias políticas da doença e da saúde: uma etnografia da experimentação farmacêutica<div style="text-align: justify;"><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/a/AVvXsEiEz0CZLYfwZfqlFNkinVLM7iW6ukgYZDn8XEr9boF14KXwPNlJ-q1lgGMpRFdkqOhyT5zpGQvyX7rKNk3uYtlDrcC8AjcvtmVFVj2ctcrTmTnVetJJQGp952C0uf--O2FarHJ8YwbIORgVz3d-LC8ZTG9nuG4nUABX6X_O0nJ9bTreseah8lGg7QmRKA" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img alt="" data-original-height="2530" data-original-width="1653" height="240" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/a/AVvXsEiEz0CZLYfwZfqlFNkinVLM7iW6ukgYZDn8XEr9boF14KXwPNlJ-q1lgGMpRFdkqOhyT5zpGQvyX7rKNk3uYtlDrcC8AjcvtmVFVj2ctcrTmTnVetJJQGp952C0uf--O2FarHJ8YwbIORgVz3d-LC8ZTG9nuG4nUABX6X_O0nJ9bTreseah8lGg7QmRKA" width="157" /></a></div><br /><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div> <div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">A exploração da precariedade na pesquisa clínica</div><div style="text-align: justify;">The exploration of precariousness in clinical research</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Lucas Freire</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">CASTRO, Rosana. (2020), Economias políticas da doença e da saúde: uma etnografia da experimentação farmacêutica. São Paulo, Hucitec.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">O que acontece com os pacientes de doenças crônicas que não encontram nos sistemas público ou privado de saúde as tecnologias, medicamentos e serviços básicos para o controle dos seus sintomas? Quais as estratégias acionadas e itinerários percorridos por esses sujeitos na tentativa de manejar seu estado de saúde e melhorar suas condições de vida? De que maneira a escassez infraestrutural e generalizada é operacionalizada, explorada e transformada em oportunidade de negócios por multinacionais farmacêuticas? Como se dão as perversas e quase inextricáveis conexões entre a precariedade de uma população e a produção do conhecimento científico no campo da biomedicina? Quais corpos são “preferenciais” no processo seletivo de sujeitos de pesquisa na indústria global de estudos clínicos? Qual é o lugar ocupado pelo Brasil em uma rede internacional de produção e testagem de medicamentos? São essas algumas das muitas perguntas que podem orientar a leitura do magistral livro de Rosana Castro, Economias políticas da saúde e da doença: uma etnografia da experimentação farmacêutica. Lançado em dezembro de 2020, a obra resulta de um trabalho vencedor, em 2019, dos prêmios de melhor tese de doutorado da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (anpocs) e da Associação Brasileira de Estudos Sociais das Ciências e das Tecnologias (esocite).</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Além das valiosas contribuições teóricas e metodológicas apresentadas pela autora, algumas questões contextuais tornam a sua publicação ainda mais relevante, e precisam ser assinaladas. Nesse sentido, inicialmente é necessário destacar sua importância no que diz respeito ao conjunto de bibliografias sobre a temática. Uma rápida busca pelas expressões “ensaio clínico”, “pesquisa clínica” e “estudo clínico” na plataforma SciELO revela que a esmagadora maioria dos artigos sobre o assunto está concentrada nos periódicos de medicina e, quando fora destes, em revistas de saúde pública/coletiva. Assim, o livro de Rosana Castro representa a primeira investigação ampla e sistemática dos Ensaios Clínicos Randomizados Internacionais Duplo-Cego Controlados (mais conhecido pelo acrônimo ECR) realizada por uma cientista social brasileira no âmbito de um programa nacional de pós-graduação em antropologia.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Sobre esse ponto, cabe destacar também que, embora ainda pouco explorados, os ensaios clínicos não são necessariamente um objeto novo entre os pesquisadores das ciências humanas e sociais. Além da vasta produção bibliográfica na área de estudos sociais da ciência e tecnologia, os estudos clínicos e a experimentação no campo farmacêutico vêm sendo especificamente discutidos há mais de uma década por autores como Fisher (2009), Petryna (2009), Dumit (2012) e Graboyes (2015), entre inúmeros outros. Nesse universo, o lançamento de Economias políticas da doença e da saúde constitui um importante marco no cenário nacional, já que é a primeira grande publicação em língua portuguesa1 na área de antropologia sobre a experimentação farmacêutica conduzida no Brasil.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Outra razão conjuntural que reforça a pertinência da obra de Castro tem a ver com o momento de sua publicação. Vivemos em um contexto no qual os efeitos dos medicamentos, a segurança de um fármaco e as percentagens de eficácia de uma vacina figuram como temas de interesse não somente de cientistas, companhias farmacêuticas e agências reguladoras, mas da população em geral. Entre os atuais embates narrativos em torno da pandemia de Covid-19, observamos discussões inflamadas sobre a legitimidade e/ou necessidade de prescrição de cloroquina e outras medicações como “tratamento precoce” para a doença (ainda que sua ineficiência tenha sido cientificamente comprovada); ou sobre as eventuais consequências da utilização de uma vacina ou de outra. De um modo geral, o debate sobre tais assuntos é atravessado por questionamentos, desconfianças e incertezas provocados por campanhas de desinformação disseminadas nas redes sociais e orquestradas por grupos militantes, conglomerados empresariais, veículos de comunicação e até mesmo instituições governamentais.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Em um cenário como esse, em que nós, cientistas socais, nos vemos acuados e constrangidos a defender uma ideia de “ciência” que vem sendo interpelada e desconstruída há décadas pela sociologia e pela antropologia, o trabalho de Rosana Castro nos municia com argumentos bem desenvolvidos, fatos históricos e dados empíricos sobre o rigoroso padrão metodológico que orienta a realização dos ECR e a produção de evidências científicas no mercado farmacêutico contemporâneo, bem como sobre as severas e inflexíveis exigências colocadas pelas agências estatais para o registro e liberação da comercialização de um medicamento em um dado país. No entanto, como toda boa ciência social, o livro também impede que adotemos uma posição reducionista e/ou maniqueísta de compreender a ciência, os cientistas e as práticas científicas necessariamente como “boas”, éticas ou moralmente comprometidas com o “bem”.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Como o próprio título sugere, ao tratar das “economias políticas da doença e da saúde” – e o fato de “doença” aparecer antes de “saúde” não é casual, mas uma escolha bem fundamentada –, a autora mostra como a observação da precariedade dos serviços de saúde, da alta prevalência de doenças e de uma acentuada desigualdade social é imprescindível para a execução de um protocolo de pesquisa clínica. Isto é, os ECR são marcados por dinâmicas científicas e exploratórias que refletem não a degeneração ou as falhas da regulação ética dos ensaios clínicos, mas sim as bases constitutivas desse método de investigação. Em suas palavras,</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">se os procedimentos metodológicos obedecem à lógica científica convencional calcada na objetividade, neutralidade e quantificação, por outro lado, a capitalização da indústria sobre as condições letais de vida de diferentes populações configura a própria condição de possibilidade de concretização desses princípios e, portanto, de realização do ECR (Castro, 2020, p. 27).</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Contrariando uma certa tendência “presentista” da etnografia contemporânea, Castro se preocupa em demonstrar como a forma atual de execução dos ECR foi se configurando ao longo dos anos. Longe de se limitar somente ao que viu, ouviu e acessou durante o trabalho de campo no Cronicenter,2 a autora rastreia a história da experimentação farmacêutica a partir da literatura especializada, além de lançar mão de outras duas estratégias de pesquisa: 1. a busca por dados públicos sobre os ECR e a frequência a eventos abertos sobre o tema, como as audiências públicas realizadas na Câmara dos Deputados e no Senado; e 2. entrevistas com profissionais que atuam em empresas responsáveis por intermediar o contato (e os contratos) entre centros de pesquisa locais e laboratórios detentores das patentes de moléculas em fase de testes, as CROs (Clinical Research Organizations).</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Assim, no segundo capítulo da primeira parte do livro, Castro apresenta os caminhos pelos quais o ECR tornou-se o “padrão-ouro” da investigação farmacêutica, sendo tratado como sinônimo de pesquisa e desenvolvimento de novas terapêuticas. Com a intenção de ocupar os conceitos da farmacologia e aproximá-los da antropologia – propondo o que ela chama de farmacografia –, ela analisa o ECR como uma espécie de “princípio ativo”, ou seja, como “um dispositivo mobilizador e articulador de pessoas, objetos, instituições, regras, valores, posturas e afetos” (p. 81). A autora ressalta também alguns marcos históricos importantes nessa trajetória, como o estabelecimento da randomização como mecanismo capaz de comprovar que as terapêuticas podem e devem ser definidas a partir de evidências científicas robustas e objetivas – e não da opinião do médico responsável pelo tratamento –, o que Dumit (2012) descreve como o início de um movimento de “massificação da saúde”, promovido pelos números, e de transformação dos diagnósticos em uma espécie de linha/limiar a ser cruzado. Outros episódios elencados no livro são o julgamento e a publicação do Código de Nuremberg, após a Segunda Guerra Mundial, e o escândalo da talidomida, no final dos anos 1950, ambos fundamentais para a consolidação dos atuais padrões ético e científico na condução de experimentos com seres humanos.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">No esforço de descrever o processo de construção do ECR como o único método aceitável para a produção de evidências que condicionam a aprovação de um medicamento para comercialização, a autora revela como a pesquisa e o desenvolvimento de novos remédios e tratamentos passaram quase que inteiramente para as mãos das grandes empresas privadas do setor farmacêutico. Dado que o gasto médio com a realização de estudos pré-clínicos e clínicos para cada substância testada pode chegar à cifra de US$ 1,4 bilhões, as pequenas empresas e centros de pesquisa públicos da maior parte dos países do mundo são incapazes de arcar com seus custos. Como colocado por Dumit (2012), isso representa um importante dilema, já que o principal objetivo de laboratórios patrocinadores não é curar, mas sim assegurar os ganhos de seus acionistas.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">É nesse cenário que emerge propriamente uma “indústria global da pesquisa clínica”. A partir da investigação de Rosana Castro, é possível perceber como a “industrialização” da testagem de medicamentos faz do lucro uma “prioridade inevitável” dos laboratórios, pois seus executivos afirmam que precisam planejar a alocação de recursos e a realização de um ECR de modo a garantir a “sobrevivência da empresa” (Dumit, 2012). Desse modo, os estudos são sempre desenhados a partir da especulação de quão rentável será um produto após sua aprovação para comercialização. Como em outras empresas, seus dirigentes procuram alocar “investimentos” nos territórios que ofereçam o melhor cálculo de custos e benefícios, no que diz respeito à produção. Assim, se uma companhia de eletrônicos instala suas fábricas em países que ofereçam mão de obra barata, regras trabalhistas vantajosas para os contratantes e incentivos fiscais variados, no mercado dos estudos clínicos essa decisão se baseia na oferta de pessoas adoecidas, na disposição desses sujeitos de participar de um ECR e no grau de dificuldade, para o início do recrutamento, colocado pelas regulações éticas que balizam a condução de experimentos farmacêuticos no país, o que se reflete diretamente no tempo que os protocolos de pesquisa levarão para ser executados. Isto é, explora-se não a precariedade laboral de uma população, mas suas vulnerabilidades e fragilidades no que toca ao acesso a serviços e tecnologias de saúde.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Para apreender as relações entre precariedade e produção de dados que sejam, ao mesmo tempo, científicos e rentáveis na testagem de medicamentos, Castro elabora um dos principais conceitos de seu trabalho: o de morbiodisponibilidade. Tal ideia é cunhada a partir da caracterização dos brasileiros como uma população que apresenta alta prevalência de diversas enfermidades (morbio) e que é facilmente recrutável – e se dispõe diligentemente a – participar de um ensaio clínico (disponibilidade). A diversidade populacional e o perfil epidemiológico plural são elementos centrais na construção da noção de morbiodisponibilidade. De acordo com os profissionais da pesquisa clínica, o Brasil funciona como um “representante global” dos grupos humanos, pois reúne, em um mesmo território, contingentes consideráveis de pessoas de diferentes raças e etnias, o que permite que os dados produzidos aqui sejam exportados e utilizados para a aprovação de um medicamento em diferentes partes do globo. Além disso, a miscigenação é encarada como fator que predispõe a doenças variadas, em geral concentradas em determinadas regiões e grupos étnicos. Logo, na percepção desses atores, a miscigenação não leva à homogeneização da população, mas constrói um caleidoscópio dos distintos agrupamentos humanos. Esse é um dos fatores que torna o Brasil “biovalioso” no mercado biotecnológico global, uma vez que, nas palavras da autora, “sua população é uma espécie de efígie epidemiológica do mundo” (p. 145).</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Se, por um lado, o Brasil é um país altamente interessante para o mercado farmacêutico, por fornecer, ao mesmo tempo, sujeitos de pesquisa e consumidores (Petryna, 2009), por outro é preciso atentar para quais corpos constituem o público-alvo dos ensaios clínicos. É sobre esse ponto que repousa outro componente fundamental da morbiodisponibilidade da população brasileira: o acesso precarizado de milhões de sujeitos a tecnologias biomédicas, o que os torna não apenas corpos disponíveis e dispostos a participar da experimentação farmacêutica, mas também preciosos, no que diz respeito à qualidade dos dados fornecidos. Castro argumenta que uma das vantagens propagandeadas pelas CROs em relação ao país é a presença de uma imensa população treatment naïve, isto é, pessoas que nunca receberam nenhum tipo de tratamento médico para sua condição de saúde/doença. Tais indivíduos são extremamente biovaliosos, já que, para que um medicamento seja considerado como primeira linha de tratamento, é preciso testá-lo em pessoas que não passaram por nenhuma intervenção médica anterior, seja pela inexistência de opções (portadores de doenças raras e sem terapêutica definida, por exemplo), seja pela impossibilidade de acesso a tratamentos, situação comum em países onde o sistema público de saúde é precário ou praticamente inexistente. Nesse cenário, a inclusão em um protocolo de pesquisa é apresentada pelos administradores locais de estudos clínicos como uma oferta, uma “oportunidade única” de obter tratamentos e assistência médica indisponíveis para o grande público.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Ao discutir essa questão, Castro nos mostra como o racismo opera diretamente na construção dos ECR, visto que a grande maioria dos pacientes atendidos no Cronicenter são pessoas negras (e também mais velhas). Assim, além dos indicadores clínicos e biológicos que definem a possibilidade de um sujeito ser incorporado a um “projeto”,3 avalia-se quem tem o potencial e o “perfil” necessários para participar de um estudo clínico. Isso inclui verificar se a pessoa se encaixa em uma complexa equação de acesso a serviços e cuidados em saúde: ela deve poder realizar consultas e exames complementares por conta própria (seja pagando do próprio bolso ou recorrendo a planos de saúde privados), mas, ao mesmo tempo, não pode ter “pleno acesso”, pois isso geraria demandas que os profissionais do Cronicenter não estão dispostos a atender. Ou seja, os corpos preferenciais dos ensaios clínicos não são aqueles que dependem completamente do Sistema Único de Saúde (SUS), nem os que têm condições de arcar inteiramente com seu tratamento, mas sim sujeitos intermediários, com acesso precário à saúde, e portanto, desesperados por atendimento, além de propensos e desejosos de ser incluídos em uma pesquisa clínica.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Por fim, mas não menos importante, a etnografia de Rosana Castro nuança ainda mais o debate sobre a experimentação farmacêutica ao evidenciar o outro lado dos ECR: o das pessoas que se voluntariam para fazer parte dos estudos. Em When experiments travel, Petryna (2009) trata de como a participação em um ensaio clínico pode ser encarada como 1. uma forma de obter cuidados médicos de melhor qualidade; 2. uma via de acesso a tratamentos de custo elevado; e 3. uma fonte de renda. Atenta às complexidades envolvidas no plano nacional, Castro aprofunda as discussões levantadas por Petryna ao tratar de como, de fato, os pacientes do Cronicenter acionam determinadas estratégias para obter os “benefícios” apontados nos itens 1 e 2, já que o Conselho Nacional de Ética em Pesquisa (conep) veda qualquer modalidade de remuneração a participantes de pesquisas no Brasil.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Ao narrar os casos de seu Evaristo, dona Eunice e seu Mateus, entre outros, a autora mostra que, para muitos dos participantes de um ECR, o “acompanhamento” no Cronicenter é a única forma de assistência médica recebida. Esse acompanhamento se materializa no atendimento de pedidos de encaminhamento a serviços de saúde, fornecimento de amostras-grátis, recomendações dietéticas, renovação de receitas etc. Assim, o centro de pesquisa figura como um tipo de pit stop no itinerário terapêutico dos participantes de pesquisa: funciona como facilitador da circulação pelas unidades de saúde, ao produzir os documentos necessários para a retirada de medicamentos e agendamento de consultas ou exames, tanto na rede pública quanto na particular.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Em suma, identificar o Brasil como país de população amplamente morbiodisponível é a principal estratégia das CROs para atrair pesquisas clínicas para o território nacional. Como no mercado internacional, para a indústria farmacêutica global o Brasil ocupa o lugar de exportador de commodities (dados brutos enviados aos laboratórios e posteriormente analisados e transformados em evidências científicas) e importador de produtos de maior valor agregado (medicamentos patenteados). Nesse processo, diversas conversões são operacionalizadas: pessoas adoecidas são encaradas como pacientes potenciais; doenças são vistas como áreas terapêuticas; a residência em grandes centros é apresentada como facilidade para o recrutamento de sujeitos de pesquisa; a dificuldade para acessar serviços de saúde de qualidade é convertida em indicativo da disponibilidade e interesse na participação em estudos clínicos; e a inclusão em um protocolo de pesquisa é alardeada como uma oportunidade de tratamento. Enfim, ocorre a exploração da precariedade e sua transformação em uma oportunidade de negócios.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">1</div><div style="text-align: justify;">Ao tratar dos global multisited trials, a antropóloga norte-americana Adriana Petryna (2009) discute o cenário brasileiro e a posição do país em relação ao fenômeno de descentralização e terceirização da pesquisa clínica em escala global. Entretanto, assim como quase toda a literatura antropológica sobre o tema, o livro foi publicado somente em inglês.</div><div style="text-align: justify;">2</div><div style="text-align: justify;">O nome da instituição e de todos os interlocutores que aparecem no livro são fictícios. Por se tratar de um campo perpassado por segredos industriais e acordos de confidencialidade, a autora também não revela o local onde fica o Cronicenter e omite quaisquer informações que possam identificar as substâncias testadas, os sintomas tratados, as taxas avaliadas etc. Para isso, ela utiliza pequenas tarjas pretas – o que remete aos controlados “remédios tarja preta” – como essa: ******.</div><div style="text-align: justify;">3</div><div style="text-align: justify;">A autora argumenta que chamar as pesquisas de “projetos” pode ser encarado como um elemento que auxilia a construção dos ECR como uma “oferta de tratamento”, já que pode fazer com que o Cronicenter seja visto como instituição que opera como organização não-governamental (ONG) ou órgão assistencial filantrópico.</div><div style="text-align: justify;">DOI: 10.1590/3610717/2021</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Bibliografia</div><div style="text-align: justify;">CASTRO, Rosana. (2020), Economias políticas da doença e da saúde: uma etnografia da experimentação farmacêutica São Paulo, Hucitec.</div><div style="text-align: justify;">DUMIT, Joseph. (2012), Drugs for life: how pharmaceutical companies define our health. Durham/Londres, Duke University Press.</div><div style="text-align: justify;">FISHER, Jill. (2009), Medical Research for hire: the political economy of pharmaceutical clinical trials. Nova Jersey, Rutgers University Press.</div><div style="text-align: justify;">GRABOYES, Melissa. (2015), The experiment must continue: medical research and ethics in East Africa, 1940-2014. Athens, Ohio University Press.</div><div style="text-align: justify;">PETRYNA, Adriana. (2009), When experiments travel: clinical trials and the global search for human subjects. Princeton University Press.</div><div style="text-align: justify;"><a class="dropdown-toggle" data-toggle="dropdown" href="https://www.scielo.br/j/rbcsoc/a/nQLryhSSh6F3YC6KFkVwJMh/?lang=pt" style="animation-duration: 0.1s; animation-fill-mode: both; background-color: white; box-sizing: border-box; color: #00314c; font-family: Arial, sans-serif; font-size: 12.6px; font-weight: 700; text-align: left; text-decoration-line: none; transition: color 0.1s ease-out 0s, text-indent 0.1s ease-out 0s;"><span class="text" style="box-sizing: border-box;"><span class="truncate" style="box-sizing: border-box; overflow: hidden; text-overflow: ellipsis; white-space: nowrap; width: 450px;">Revista Brasileira de Ciências Sociais</span></span></a></div>Eduardo Marculinohttp://www.blogger.com/profile/09461824103400566723noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4969040045050510246.post-23705726638661392222022-10-19T18:36:00.005-07:002022-10-19T18:36:59.538-07:00Ceux qui restent: faire sa vie dans les campagnes en déclin<div style="text-align: justify;"><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/a/AVvXsEhynvbx_VH47BWCbVJ7t9Q5F-_OQZF_rzkWp-ifUieufMCmFrOnSddqOOzmTLFn54cngWANTpFNsIMhMDJQC9ucV-jS5BUhUb8cO_q_9bxccfKKFfh4xthA6_diZF2KNRglTPq35o39fuMUlrg1TbZlylrJ-aRzK1LaXgaRPLDqNVXQd0TLMDfqbCyJEQ" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img alt="" data-original-height="340" data-original-width="340" height="240" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/a/AVvXsEhynvbx_VH47BWCbVJ7t9Q5F-_OQZF_rzkWp-ifUieufMCmFrOnSddqOOzmTLFn54cngWANTpFNsIMhMDJQC9ucV-jS5BUhUb8cO_q_9bxccfKKFfh4xthA6_diZF2KNRglTPq35o39fuMUlrg1TbZlylrJ-aRzK1LaXgaRPLDqNVXQd0TLMDfqbCyJEQ" width="240" /></a></div><br /><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div> <div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">ZONAS RURAIS EM DECADÊNCIA: TRABALHO E JUVENTUDES</div><div style="text-align: justify;">DECAYING RURAL AREAS: WORK AND YOUTH</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Patrícia Alves Ramiro</div><div style="text-align: justify;">COQUARD, Benoît. (2019), Ceux qui restent: faire sa vie dans les campagnes en déclin. Paris, La Découverte. 211 págs.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">O livro Ceux qui restent: faire sa vie dans les campagnes en déclin, de Benoît Coquard,1 publicação mais recente da coleção L’Envers des faits, organizada por Stéphane Beaud, Paul Pasquali e Fabien Truong, dá sequência à tradição das pesquisas que fazem, no ambiente familiar de origem do pesquisador, um exercício sociológico de compreensão de determinada realidade social. O precursor dessa vertente foi Pierre Bourdieu (2002), ao escrever Célibat et condition paysanne (1962), ainda no início de sua carreira.2</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Na obra, Coquard retorna à região rural do grande leste da França, inserindo-se no cotidiano de adultos jovens das classes populares3 com o objetivo de compreender como o processo de desindustrialização vivido naquele contexto, na década de 1990, alterou o convívio social de uma geração de maneira brusca e intensa. Ressalte-se que esta região é hoje reduto eleitoral da Frente Nacional, partido da extrema direita francês, e que seus índices de consumo de heroína por pessoas dessa faixa etária estão entre os mais elevados do país.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Através da análise densa das formas de construção e de manutenção de vínculos de amizade desse grupo, e de suas práticas matrimoniais, o autor traz ao texto o sentimento de conflito vivenciado permanentemente por seus membros em sua busca por reconhecimento social. Tal conflito expõe a maneira atual de fixar hierarquias dos jovens das classes populares rurais, e é acirrado pela desestruturação abrupta do mercado de trabalho, que, em um passado recente, produzia o sentimento de coletividade e regia a reciprocidade local. Hoje, pessoas do mesmo círculo de convívio são colocadas em situação de rivalidade.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">A expressão campagnes en déclin, apropriada do senso comum pelo autor e utilizada desde o título da obra – e que traduzirei aqui como zonas rurais em decadência – faz referência a uma realidade específica com o intuito de permitir distinguir, a partir de critérios demográficos e econômicos, dois tipos principais de realidade social e geográfica em locais distantes das grandes cidades francesas. Essa divisão é importante para classificar e diferenciar outras localidades dessa mesma zona rural que, por estar próximas do litoral ou ser territórios vinícolas gozam de certo status social e vivem uma situação oposta. Estas localidades conseguiram se tornar atrativas para turistas e neo-rurais, que passaram a repovoar e a dinamizar a economia e os quadros sociais locais, e fizeram delas zonas rurais abastadas (campagnes riches, no original).4</div><div style="text-align: justify;">“Os que partem” e “os que ficam”</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">As zonas rurais em decadência exemplificam algumas consequências das profundas mutações do capitalismo neoliberal, em decorrência do fechamento de diversas indústrias na área rural. Com isso, surge uma geração de adultos jovens que se diferenciam, de maneira ampla, entre “aqueles que ficam” e “aqueles que partem” em busca de melhores condições de trabalho.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">O forte declínio da indústria local ocasiona a dispersão geográfica dos jovens, reduzindo significativamente a presença desta faixa etária na região. Para os que permanecem, esse novo cenário gera a necessidade de deslocamentos diários de alguns quilômetros, seja para procurar ou para se manter em algum trabalho, seja para ter acesso a serviços e comércio básicos, como supermercados, escolas etc.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Se antes esses jovens podiam se referir a si mesmos como pessoas deste ou daquele vilarejo, onde encontravam não apenas trabalho, mas também acesso ao comércio e aos serviços que giravam a seu redor, nesse momento de desmantelamento da atividade industrial e comercial, com o deslocamento de tudo que dinamiza a vida dos pequenos vilarejos, “é a própria vida social que se encontra, então, deslocalizada, e que os faz ir de um município despovoado a outro” (Coquard, 2019, p. 201)5.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Nesse mundo onde é preciso se deslocar diariamente, o documento de permissão para dirigir (correspondente à CNH brasileira) funciona como uma espécie de diploma: tem poder de marginalizar a parte dos jovens das classes populares que não consegue facilmente arcar com os custos de sua obtenção. Assim, andar a pé pelas ruas passa a ser visto como símbolo de fracasso.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Outra consequência desta redefinição espacial é a ressignificação local das legitimidades escolares e profissionais. Para os que ficam, com o número reduzido de vagas de trabalho, as possibilidades restantes de colocação no mercado passa por empregos mais técnicos, manuais, que exigem pouco tempo de escolarização, e também pelo trabalho informal. A escolha entre prosseguir ou não nos estudos, e entre cursos profissionalizantes ou uma universidade, por seu caráter coletivo, torna-se o marcador principal que delimita dois grupos de sociabilidades bem distintas.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Além de jovens das classes populares, a categoria dos que partem será composta também por egressos/as das classes intermediárias e superiores, que permanecem mais tempo dedicados aos estudos. O que não significa que jovens sem ensino superior e em situação precária também não o façam, ainda que em número mais reduzido. Nesses casos, contudo, Coquard aponta para o enfraquecimento de vínculos familiares em estruturas monoparentais; para os jovens que vêm dessas famílias, o capital social necessário para encontrar um trabalho na região é insuficiente.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Esta relação entre migração e triagem escolar nesta geração não está ligada apenas à posição de classe, mas também à dimensão do gênero. Dois aspectos chamam a atenção, aqui. O autor constata que a maioria dos empregos ainda disponíveis na região são caracterizados como “masculinos”, o que limita o futuro profissional das mulheres. Também aponta para a tendência de mulheres dos meios populares de terem rendimentos escolares melhores do que os homens e, portanto, maior probabilidade de obter diploma superior e, assim, migrar em busca de oportunidades melhores. Para se ter uma ideia, no final dos anos 1990, aproximadamente um terço dos jovens da região pesquisada partiram sem jamais retornar.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Nas camadas populares, a maioria dos migrantes eram mulheres. Falando daquelas que partiram, Coquard mostra que a obtenção do diploma escolar é condição implícita em empregos mais qualificados, impossíveis de encontrar no mercado de trabalho das zonas rurais em decadência. Por isso mesmo, o diploma seria incapaz de servir como garantia de prestígio social local. Mesmo na cidade, o diploma é frequentemente insuficiente para garantir um emprego à altura do título, especialmente devido à falta de capital social dessas mulheres para serem recomendadas a determinado cargo.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Entre aquelas que ficam, a limitação de empregos na região faz com que a busca de estabilidade conjugal – e, em seguida, maternal e residencial –, seja uma alternativa para garantir uma boa reputação social. Nesse sentido, o autor considera que essas mulheres ingressam na vida adulta mais precocemente do que os jovens adultos homens, e são menos nostálgicas em relação ao passado juvenil. Para eles, permanece a possibilidade de prolongar sua juventude pelo convívio com grupos de amigos (no original, bandes de potes ou clans d’amis) mesmo após o matrimônio e a chegada de filho(s).</div><div style="text-align: justify;">Os grupos de amigos</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">São esses grupos de amigos – pequenas instituições, seletivas e solidárias, ou coletividades construídas por afinidades mais estreitas do que eram no passado –, que irão ocupar o espaço das formas de sociabilidade que estruturavam a vida econômica local no passado recente. Em discurso recorrente na pesquisa de campo, a valorização de uma consciência coletiva já não passava por um “nós” amplo, mas por um “já nós” (déjà nous, no original).</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Esse novo formato de sociabilidade, construído pela formação de grupos de amigos, ultrapassa a questão da proximidade geográfica dos/as jovens da região e gera novas formas de classificação e desclassificação entre eles. Os grupos estigmatizados inclui desempregados (as) com 30 a 40 anos de idade, que serão denominados “os perdidos”. Em geral, a expressão local se refere àqueles e àquelas que não conseguiram se ajustar à nova realidade tecnológica dos empregos que ainda restam, e que exigem maior escolarização que seus pais, operários, tiveram no passado.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Coquard denomina autóctones precários a categoria mais ampla dos/as jovens adultos/as que não são capazes de se beneficiar dos recursos locais para melhorar sua situação, ou seja, para quem a autoctonia não se reconverte em nenhuma espécie de capital. Ainda que tenham compartilhado parte da adolescência com outros membros das classes populares, ao ingressar na vida adulta são deixados de lado – nos círculos de convívio, encontros nas casas dos outros, equipes de futebol e grupos de caça, e mesmo pequenos bicos, pois não são vistos como “confiáveis”.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Tais jovens costumam viver em ruas ou bairros estigmatizados, e ganham frequentemente nomes pejorativos – que os desqualificam, entre outros motivos, por precisarem de políticas assistenciais para sobreviver. Não é incomum terem sua intimidade exposta em jornais locais. De fato, ainda que não tenham seu nome publicado pela mídia, são facilmente identificados numa região onde, como se costuma dizer, “todo mundo se conhece”. Esse todo mundo presente na expressão passa a referir-se, sobretudo, à privacidade que é negada aos dominados.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Nesta autoctonia da precariedade incluem-se parcelas significativas de “jovens não inseridos”, ou seja, não empregados, nem escolarizados, na faixa dos 20 anos, que chegam a 20% ou 25% da população da região pesquisada. Por não serem exceção à regra, não lamentam a baixa escolarização, mas preocupam-se em entrar rapidamente no mercado de trabalho, o que garante certa estabilidade econômica e reconhecimento social local, especialmente se conseguirem se tornar proprietários de residências e tiverem filhos. Querem, segundo eles, um trabalho que “sirva para alguma coisa”, em oposição ao trabalho mais qualificado de quem estudou mas sequer pode retornar ao local onde cresceu.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Ainda que as mudanças estruturais sejam brutais, a mentalidade de valorização social associada ao trabalho permanece, e faz com que muitas pessoas exerçam atividades bastante precárias, em resposta ao medo de se tornarem, aos olhos dos mais velhos, “aqueles que não valem nada”. A busca de uma boa reputação na localidade se justifica, já que esta é necessária até mesmo nas indicações de “bons trabalhadores” que regem o setor informal.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">No outro extremo, temos uma minoria de jovens que herdam esta boa reputação de seus parentes. Para essa minoria, a possibilidade de recuperação simbólica é viabilizada pelo esforço dos pais de construir a valorização de seu sobrenome, e pela manutenção, nas pequenas comunidades, de relações intergeracionais; assim, praticamente não há concorrência por uma oportunidade de emprego. Mesmo esses jovens, porém, compartilham com os outros das classes populares uma certa nostalgia em relação a um passado que sequer viveram, como justificativa moral para deplorar o presente.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">A ideia partilhada de que “antes era melhor” indica, ainda, a rejeição a certas normas do presente, vistas como opostas a um estilo de vida mais livre ou autônomo: nos “bons tempos” das gerações anteriores, podia-se deixar as portas destrancadas e não havia controle rígido nem da velocidade dos veículos nem de quem dirigia nas estradas depois de consumir bebidas alcoólicas. As falas que se referem a um passado glorioso são proferidas majoritariamente por homens mais velhos, e têm por base narrações nostálgicas de atividades esportivas (futebol, boxe ou caça) ou de noitadas e condução de veículos.</div><div style="text-align: justify;">Hierarquização das classes populares e conservadorismo político</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Ceux qui restent nos mostra que foram as razões econômicas, mais do que as diferenças culturais, que geraram as lutas e a divisão atual das classes populares rurais. Após o declínio do trabalho, e em razão da concorrência pelas poucas vagas que surgem (geralmente oriundas de aposentadorias), a maneira das pessoas da região de se relacionar deixa de ser regida por encontros ao acaso, e passa a ser orientada pela adesão aos grupos de amigos, fundamental para a obtenção de um trabalho ou de um/a companheiro/a.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Pode-se considerar que a rede de sociabilidade é cada vez menos regida pela proximidade física, e cada vez mais pela possibilidade de contar com amigos, pessoas que não estão em concorrência direta por algum trabalho. Concorrência que, ao gerar a hierarquização entre quem consegue se sair bem e “os outros” (prisioneiros da autoctonia da precariedade, para os quais as perspectivas de sucesso são bem menores), inviabiliza a tomada de consciência sobre interesses comuns a esta classe popular.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Ainda que a questão político partidária das classes populares não tenha sido o foco principal da pesquisa, é nesse sentido que Coquard diz ter compreendido melhor, à luz dela, o sucesso na região do discurso da extrema direita – que tende a propor leituras estritamente etnicistas da realidade, compatíveis com antigos slogans nacionalistas como “Franceses em primeiro lugar”. Afinal, as hierarquias construídas entre os/as jovens das classes populares rurais, e baseadas na solidariedade entre grupos de amigos (distinguidos pelo discurso vigente do “já nós”), vão de encontro aos discursos racialistas propagados pelos ultraconservadores. Mais: ao se alimentar desse sentimento de oposição ao outro – ainda que ele seja, objetivamente, o mais próximo, naquele espaço social –, elas impedem a construção de uma aliança entre classes populares rurais.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">A etnografia sociológica realizada mostra como novas práticas (materiais e simbólicas) são construídas em um momento de transformações abruptas do trabalho, e como elas se valem (a depender das trajetórias vividas) de estruturas mentais vigentes até poucas décadas atrás, quando a inserção no mercado de trabalho assalariado local ainda era mais possível. De fato, pesquisas similares, com a profundidade empírica e teórica desta obra, poderiam nos auxiliar também a compreender melhor a adesão, nos últimos anos, de boa parte das classes populares brasileiras ao discurso de ultradireita.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Por fim, o livro de Benoît Coquard insere-se na discussão ampla e pertinente sobre permanência ou migração de populações rurais e precarização do trabalho, mas também a ultrapassa, ao apontar para temáticas ainda pouco abordadas pelas ciências sociais brasileira. Ao olhar mais atentamente para jovens adultos/as oriundos de famílias operárias, o autor nos recorda do fato de que o rural não é sinônimo de agrícola, e de que processos de desindustrialização atingem o proletariado rural de maneiras variadas.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">1</div><div style="text-align: justify;">Sociólogo do L’Institut national de recherche pour l’agriculture, l’alimentation et l’environnement (INRAE) e membro do grupo de pesquisa Centre d’Économie et de Sociologie appliquées à l’agriculture et aux espaces ruraux (CESAER).</div><div style="text-align: justify;">2</div><div style="text-align: justify;">Além de atestar sua competência como etnógrafo, esta produção foi uma forma de o autor romper com o paradigma estruturalista vigente na época, na tentativa de fazer uma espécie de “Tristes trópicos ao contrário” (Bourdieu, 2002).</div><div style="text-align: justify;">3</div><div style="text-align: justify;">O autor considera jovens adultos pessoas que tinham entre 20 e 40 anos no momento da pesquisa, realizada entre 2010 e 2018. A categoria de agentes sociais das classes populares que permanecem na região abrange, principalmente, filho/a(s) de operários.</div><div style="text-align: justify;">4</div><div style="text-align: justify;">Para pesquisa sobre locais rurais franceses transformados em atrativos turísticos ver, entre outros, Garcia-Parpet (2019), Lafoz (2019) e Ramiro (2016).</div><div style="text-align: justify;">5</div><div style="text-align: justify;">Tradução da autora.</div><div style="text-align: justify;">DOI: 10.1590/3610718/2021</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Bibliografia</div><div style="text-align: justify;">BOURDIEU, Pierre. (2002), Le bal des célibataires. Paris, Seuil.</div><div style="text-align: justify;">________________. (1962), “Célibat eu condition paysanne”, Études Rurales, 5-6: 32-135.</div><div style="text-align: justify;">COQUARD, Benoît. (2019), Ceux qui restent: faire sa vie dans les campagnes en déclin. Paris, La Découverte, coleção L’Envers de faits.</div><div style="text-align: justify;">GARCIA-PARPET, Marie-France. (2019), “Apelação de origem e modalidade de valorização do vinho através do turismo na França”. In: RAMIRO, Patrícia Alves (org.), Turismo, cultura e meio ambiente: coletânea franco-brasileira. João Pessoa, UFPB.</div><div style="text-align: justify;">LAFOZ, Mayra Bertussi. (2019), “Valorização pelo turismo: um relato etnográfico da venda direta do queijo AOC Saint-Nectaire”. In: RAMIRO, Patrícia Alves (org.), Antropologia e turismo: coletânea franco-brasileira. João Pessoa, UFPB.</div><div style="text-align: justify;">RAMIRO, Patrícia Alves (2016). “A reinvenção do rural pelo turismo: o caso dos gîtes rurais” In: WOORTMANN, E. & CAVIGNAC, J. (orgs.), Ensaios sobre Antropologia da alimentação: saberes, dinâmicas e patrimônios. Natal/ Brasília, UFRN/ABA.</div><div style="text-align: justify;"><a class="dropdown-toggle" data-toggle="dropdown" href="https://www.scielo.br/j/rbcsoc/a/HMmtRPqvpdzk6zqJZ65mj3b/?lang=pt" style="animation-duration: 0.1s; animation-fill-mode: both; background-color: white; box-sizing: border-box; color: #00314c; font-family: Arial, sans-serif; font-size: 12.6px; font-weight: 700; text-align: left; text-decoration-line: none; transition: color 0.1s ease-out 0s, text-indent 0.1s ease-out 0s;"><span class="text" style="box-sizing: border-box;"><span class="truncate" style="box-sizing: border-box; overflow: hidden; text-overflow: ellipsis; white-space: nowrap; width: 450px;">Revista Brasileira de Ciências Sociais</span></span></a></div>Eduardo Marculinohttp://www.blogger.com/profile/09461824103400566723noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4969040045050510246.post-57722378823330609162022-10-19T18:19:00.001-07:002022-10-19T18:19:06.235-07:00Entre Têmis e Leviatã - uma relação difícil: o Estado democrático de direito a partir e além de Luhmann e Habermas<div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiGoEeYumsGcm6qZ0DHC2XIZflIMv22Xr5qIFvu8FU0OGIfccEZMrhbSCSh69Kcu1AoUnnHVqEBie3pUK1WosP6vm0X6-VHDzq5e1vUYQ2dYcpiGdlqmSnN55BIPVAGwCSz_nYM0OHMDsOkrFGjYCgUiggk5aI4LMI5nPfkR3SKFNixpyZT7LN_UOQZCQ/s426/entre%20temis.png" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="426" data-original-width="284" height="320" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiGoEeYumsGcm6qZ0DHC2XIZflIMv22Xr5qIFvu8FU0OGIfccEZMrhbSCSh69Kcu1AoUnnHVqEBie3pUK1WosP6vm0X6-VHDzq5e1vUYQ2dYcpiGdlqmSnN55BIPVAGwCSz_nYM0OHMDsOkrFGjYCgUiggk5aI4LMI5nPfkR3SKFNixpyZT7LN_UOQZCQ/s320/entre%20temis.png" width="213" /></a></div><br /><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><br /></div><br /><br /></div> <div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">A esfera pública levada a sério</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Orlando Villas Bôas Filho</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">RESENHAS</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">A esfera pública levada a sério</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Orlando Villas Bôas Filho</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Marcelo NEVES. Entre Têmis e Leviatã - uma relação difícil: o Estado democrático de direito a partir e além de Luhmann e Habermas. São Paulo, Martins Fontes, 2006. 354 páginas.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Um dos problemas fundamentais enfrentados pelo direito na sociedade contemporânea decorre da ausência de um plexo de valores válido como padrão de comportamento em todas as esferas da vida social. A dissolução desse plexo, com a decorrente emergência de uma sociedade pluralista caracterizada por diversas visões de mundo irreconciliáveis, retira a possibilidade de uma fundamentação inquestionável do direito, trazendo, como conseqüência, de um lado, o problema de sua redução à mera facticidade da imposição coercitiva e, de outro, da pretensão de legitimidade que agora não pode mais estar fundada em pressupostos legitimadores dados a priori.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Essa é a questão fundamental que anima a análise realizada por Marcelo Neves em Entre Têmis e Leviatã - uma relação difícil, que, baseado na teoria dos sistemas e na teoria do discurso, aborda as vicissitudes enfrentadas pelo Estado democrático de direito na atualidade, sobretudo no que concerne à articulação entre a facticidade do poder estatal e a pretensão de legitimidade do direito que, em sua análise, são associadas, em termos metafóricos, às figuras de Leviatã e Têmis, respectivamente.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Para dar conta da tarefa a que se propõe, a obra está estruturada em cinco capítulos seguidos de um excurso, intitulado "Perspectiva: do Estado democrático de direito ao direito mundial heterárquico ou à política interna mundial?", inserido à guisa de observações finais, no qual são discutidos os impactos engendrados pela emergência de ordens jurídicas globais no plano do Estado democrático de direito.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Na estruturação da obra percebe-se claramente - inclusive por indicação do próprio autor - um nexo entre os capítulos que permite dividi-la em duas partes: a primeira, abrangendo os três primeiros capítulos, apresenta uma pormenorizada análise reconstrutiva dos modelos teóricos com os quais o autor dialoga e a segunda, que abarca os dois últimos capítulos e o excurso que figura como conclusões finais, veicula o modelo de fundamentação e as condições de realização do Estado democrático de direito, além de abordar criticamente os novos problemas que lhe são impostos pela emergência de ordens jurídicas globais e pela política mundial.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Os três capítulos iniciais reconstroem criticamente os modelos propostos por Luhmann e Habermas, pontuando seus distanciamentos e, o que é mais interessante, seus paralelos. Trata-se de uma análise que, além de desvelar convergências e divergências entre esses dois paradigmas, também procura apontar as limitações apresentadas por ambas. Ainda nessa primeira parte da obra, além da exposição da teoria dos sistemas de Luhmann e da teoria do discurso de Habermas, Marcelo Neves também já começa a apontar as limitações apresentadas por elas para lidar com o pluralismo que caracteriza a sociedade complexa hodierna, aspecto esse que será retomado e aprofundado em seguida.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">A segunda parte se inicia pela retomada comparativa dos traços básicos dos modelos de Luhmann e Habermas a respeito da modernidade e do Estado democrático de direito, indicando, sobretudo, a ênfase dada pelo autor da teoria dos sistemas ao dissenso conteudístico que caracteriza a sociedade moderna e a ênfase da teoria do discurso na obtenção do consenso a partir de procedimentos com potencialidade normativa universal.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Feita essa comparação inicial, Marcelo Neves enfatiza a sobrecarga que a pretensão consensualista do modelo habermasiano impõe ao horizonte dos agentes comunicativos ("mundo da vida"), tornando-o, segundo o autor, incapaz de dar conta adequadamente da divergência em torno de conteúdos morais e valorativos que são próprios da sociedade moderna, caracterizada pela superação da moral conteudística e hierárquica que marca as sociedades tradicionais. Embora não desconsidere o fato de que Habermas concebe o consenso como um "ideal regulativo", Marcelo Neves ressalta que o autor alemão se manteria preso a um racionalismo idealista incompatível com a complexidade da sociedade hodierna.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Assim, ao enfatizar a insuficiência do conceito habermasiano de intersubjetividade para a apreensão adequada da complexidade da sociedade contemporânea - uma vez que as relações intersubjetivas orientadas para o entendimento comunicativo engendrariam uma pretensão consensualista incompatível com o caráter plural e multifacetado que caracteriza as sociedades pós-tradicionais -, Marcelo Neves procura justamente demonstrar que o dissenso acerca dos conteúdos valorativos e das visões de mundo, característico de tais sociedades, não pode ser desconsiderado.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Baseando-se, em parte, na abordagem de Gunther Teubner, o autor propõe uma releitura do modelo habermasiano à luz da teoria dos sistemas, sugerindo que o conceito de "mundo da vida" seja considerado uma esfera social na qual a comunicação é reproduzida por meio da linguagem natural cotidiana e não a partir da especialização que pauta a linguagem dos sistemas funcionais.1 Desse modo, Neves caracteriza a sociedade moderna como pautada não pelo consenso, mas pelo dissenso conteudístico decorrente de uma esfera pública pluralista, na qual os conteúdos valorativos e as visões de mundo discrepantes se entrechocam. Trata-se da idéia de uma "arena do dissenso" que funciona como um campo complexo de interferência e tensão entre "mundo da vida" (entendido, em termos genéricos, como uma esfera social não estruturada sistêmico-funcionalmente),2 subsistemas funcionalmente diferenciados (economia, ciência, educação, arte etc.) e sistema constitucional.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">No entanto, segundo o autor, a própria continuidade da esfera pública pluralista somente é garantida pela existência de procedimentos constitucionais que assegurem o fluxo livre e eqüitativo de valores, expectativas e interesses heterogêneos, razão pela qual o consenso procedimental se impõe como pressuposto imprescindível à própria salvaguarda do caráter plural e multifacetado que caracteriza a esfera pública. E é justamente nesse contexto que o Estado democrático de direito é definido pelo autor como uma forma de intermediação entre consenso procedimental e dissenso conteudístico.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Essa proposta, entretanto, não superestima o processo legislativo em detrimento dos demais procedimentos do Estado democrático de direito. Ao contrário, baseando-se na idéia de "hierarquias entrelaçadas" [tangled hierarchies], proposta por Douglas Hofstadter e amplamente utilizada por Niklas Luhmann, enfatiza a circularidade internormativa e interprocedimental como característica essencial do Estado democrático de direito, com a decorrente rejeição da prevalência hierárquica do processo legislativo em relação aos demais procedimentos, afastando assim o problema da imposição unilateral de conteúdos morais e valorativos que poderia criar restrições incompatíveis com a multiplicidade de visões de mundo que caracteriza a esfera pública pluralista da sociedade contemporânea. A idéia de "hierarquias entrelaçadas" possibilita a inserção crítica permanente no âmbito dos sistemas político e jurídico, o que permite que as visões e os argumentos minoritários permaneçam como possibilidades contínuas de mutação da ordem jurídico-política.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Trata-se, portanto, de uma perspectiva preocupada em manter-se adequada ao caráter plural da sociedade pós-tradicional, na qual não é mais possível conceber a soberania do povo (entendida como forma de heterolegitimação do Estado que, na perspectiva sistêmica, deve articular-se com a autolegitimação proporcionada pela autonomia funcionalmente condicionada e territorialmente determinada do sistema político) em termos da manifestação de uma vontade geral homogênea e unitária. Ao contrário, atento ao caráter heterogêneo que é próprio de uma concepção despersonalizada de soberania do povo - algo que expressa uma posição embasada em pressupostos distanciados das premissas da filosofia da consciência -, o autor procura caracterizá-la em termos de uma "inserção contínua dos mais diversos valores, interesses e exigências presentes na esfera pública pluralista nos procedimentos do Estado Democrático de Direito" (p. 165). Trata-se, assim, de um fator de reciclagem permanente do Estado diante de novas situações e possibilidades, constituindo-se também como condição indispensável à sua heterolegitimação num contexto hipercomplexo marcado pela heterogeneidade ética e pelo pluralismo das posições jurídicas.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Entretanto, Marcelo Neves não se contenta apenas em construir um modelo teórico de Estado democrático de direito com a pretensão de aplicação indistinta a todo e qualquer contexto social. O autor também se preocupa em indicar o caráter heterogêneo que marca a sociedade moderna, definida como sociedade mundial (ou seja, sem barreiras territoriais à comunicação), que condiciona de maneiras diferentes a realização do Estado democrático de direito, razão pela qual distingue, no desenvolvimento da sociedade moderna, uma bifurcação que leva à sua divisão em uma modernidade central e outra periférica. Trata-se de uma distinção, já explorada pelo autor em outros textos, que constitui um esforço significativo para a superação de uma visão homogeneizada e empiricamente limitada da sociedade moderna.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Indicadas as diferenças entre esses dois contextos (central e periférico), Marcelo Neves aponta os problemas específicos que o Estado democrático de direito encontra em cada um deles. É nesse sentido que, referindo-se aos países da modernidade central, o autor ressalta que o problema fundamental estaria relacionado com a heterorreferência do Estado (que se expressa tanto na dificuldade de responder adequadamente às exigências dos demais sistemas funcionais, como na dificuldade de uma inter-relação adequada entre política e direito), ao passo que, nos países da modernidade periférica, o problema estaria relacionado essencialmente com a auto-referência deficitária dos sistemas político e jurídico. Na modernidade periférica, definida como negativa, a exclusão social e o bloqueio destrutivo à auto-referência do direito conduziriam a uma situação de "corrupção sistêmica" que apresentaria tendência à generalização na experiência jurídica. Segundo o autor, o Brasil figura justamente como um exemplo de uma sociedade na qual se observa tanto a persistência de privilégios e exclusões que obstruem a construção de uma esfera pública pautada pela generalização institucional da cidadania, como a instrumentalização particularista do direito por indivíduos ou grupos sobreintegrados.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Por fim, são analisadas as pressões engendradas pela dinâmica da sociedade mundial e pelos conflitos étnicos e fundamentalistas sobre o Estado democrático de direito que, segundo o autor, enfraquecem sua capacidade funcional e força integrativa, ensejando a necessidade de busca de mecanismos, procedimentos e instituições que forneçam alternativas, com caráter jurídico e político, à incapacidade regulatória e aos déficits funcionais do Estado. Para tanto, empreende uma análise que conjuga tanto a perspectiva de Gunther Teubner como a proposta de Jürgen Habermas.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">É preciso notar que, embora esteja baseada em perspectivas teóricas aparentemente irreconciliáveis, a proposta de Marcelo Neves não consiste numa abordagem eclética que busca levar a um denominador comum dois modelos que, como é sabido, divergem em pontos nevrálgicos. Trata-se, antes, de uma apropriação original e conseqüente que retira, de ambos, os elementos necessários à construção de um modelo mais abrangente, cuja pretensão é dar o devido relevo ao dissenso conteudístico que marca a esfera pública pluralista da sociedade moderna.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Notas</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">1</div><div style="text-align: justify;">Embora se inspire na proposta de Gunther Teubner, Marcelo Neves extrai dela aspectos inexplorados, agregando-lhes maior precisão analítica, o que lhe permite evitar as críticas enfrentadas pelo autor alemão, especialmente a que lhe é endereçada por Jürgen Habermas no livro</div><div style="text-align: justify;">Direito e democracia: entre facticidade e validade.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">2</div><div style="text-align: justify;">Marcelo Neves, diferentemente de Habermas, não considera o conceito de "mundo da vida" como o horizonte dos "agentes comunicativos" orientados à busca do entendimento intersubjetivo, pois, segundo ele, isso o sobrecarrega com uma pretensão consensualista (p. 125).</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Orlando Villas Bôas Filho, é bacharel em Direito (PUC/SP), História (USP) e Filosofia (USP). Mestre e doutor em Direito pela Faculdade de Direito da USP, é pesquisador do Núcleo de Direito e Democracia do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento - Cebrap e professor da Faculdade de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie. E-mail: <a href="mailto:ovbf@mackenzie.br">ovbf@mackenzie.br</a>.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">1 Embora se inspire na proposta de Gunther Teubner, Marcelo Neves extrai dela aspectos inexplorados, agregando-lhes maior precisão analítica, o que lhe permite evitar as críticas enfrentadas pelo autor alemão, especialmente a que lhe é endereçada por Jürgen Habermas no livro Direito e democracia: entre facticidade e validade. 2 Marcelo Neves, diferentemente de Habermas, não considera o conceito de "mundo da vida" como o horizonte dos "agentes comunicativos" orientados à busca do entendimento intersubjetivo, pois, segundo ele, isso o sobrecarrega com uma pretensão consensualista (p. 125).</div><div style="text-align: justify;"><a class="dropdown-toggle" data-toggle="dropdown" href="https://www.scielo.br/j/rbcsoc/a/R7nXpvG3vdqQ749DrbWshZc/?lang=pt" style="animation-duration: 0.1s; animation-fill-mode: both; background-color: white; box-sizing: border-box; color: #00314c; font-family: Arial, sans-serif; font-size: 12.6px; font-weight: 700; outline-offset: -2px; outline: 0px; text-align: left; text-decoration-line: none; transition: color 0.1s ease-out 0s, text-indent 0.1s ease-out 0s;"><span class="text" style="box-sizing: border-box;"><span class="truncate" style="box-sizing: border-box; overflow: hidden; text-overflow: ellipsis; white-space: nowrap; width: 450px;">Revista Brasileira de Ciências Sociais</span></span></a></div>Eduardo Marculinohttp://www.blogger.com/profile/09461824103400566723noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4969040045050510246.post-79887172144604519012022-10-19T17:52:00.002-07:002022-10-19T17:52:43.344-07:00Desigualdades sociais, redes de sociabilidade e participação política<div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhy3dC7uHfAPWqUvwjYCEdLtbTiKXPylgBWS5w70rBg58YUvLY80yorEGgFCpNI3enLak2JS7_V1KwLIwPcp32evUE4wVdaZzyGWLNfU-Zbp6WVeaXYEUy5rLGlT2LrL3yZb5hqsbqw9YMSQizfPFaHSR8NRhpcOLriOApmv-uOxfB70Y0M7low_ciTpQ/s426/desig10.png" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="426" data-original-width="284" height="424" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhy3dC7uHfAPWqUvwjYCEdLtbTiKXPylgBWS5w70rBg58YUvLY80yorEGgFCpNI3enLak2JS7_V1KwLIwPcp32evUE4wVdaZzyGWLNfU-Zbp6WVeaXYEUy5rLGlT2LrL3yZb5hqsbqw9YMSQizfPFaHSR8NRhpcOLriOApmv-uOxfB70Y0M7low_ciTpQ/w255-h424/desig10.png" width="255" /></a></div><br /><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><br /></div></div><div style="text-align: justify;">Novos olhares sobre a estratificação social no Brasil</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Edison Ricardo Bertoncelo</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">RESENHAS</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Novos olhares sobre a estratificação social no Brasil</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Edison Ricardo Bertoncelo</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Neuma AGUIAR (org.). Desigualdades sociais, redes de sociabilidade e participação política. Belo Horizonte, Editora da UFMG, 2007. 297 páginas.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Neste livro, o leitor encontrará uma coletânea de artigos que tem como eixo fundamental a investigação de dimensões da desigualdade social, ora tomadas como objetos de estudo em si mesmas, ora como fenômenos que conformam processos sociais diversos. Em todos os artigos, são feitas referências teóricas para a formulação de proposições acerca de processos sociais com base em dados empíricos.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Na "Introdução", Neuma Aguiar argumenta que o fenômeno da desigualdade social está intimamente associado àquele da estratificação social. Esta, segundo a autora, "refere-se ao conjunto de estratos formados por indivíduos ou por grupos de indivíduos, compondo uma hierarquia social" (p. 31). Tal definição é muito similar à utilizada por estudos da tradição funcionalista, que geralmente têm como fundamento um conjunto de proposições acerca das tendências de desenvolvimento das sociedades industriais, derivadas da teoria da industrialização ou modernização.1 Grosso modo, tais proposições sugerem que imperativos funcionais associados à industrialização e ao progresso técnico tenderiam a conformar a estrutura das sociedades industriais de forma convergente. O uso mais intensivo da técnica e da ciência, no contexto do processo de industrialização, exigiria maior eficiência na alocação dos recursos socialmente disponíveis. Para tanto, os processos de alocação tenderiam a se tornar meritocráticos, baseados em qualificação educacional e competência profissional. Uma das conseqüências disso é que as características adquiridas pelos indivíduos (como a escolaridade) tenderiam a conformar mais fortemente a probabilidade de mobilidade social e inserção ocupacional do que as características herdadas ou atribuídas (como raça ou gênero).2</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Muitos dos artigos dialogam de uma maneira ou de outra com as proposições explicitadas anteriormente, especialmente no que concerne à investigação do impacto que variáveis relacionadas com características adquiridas, de um lado, e com características atribuídas/herdadas, de outro, tem sobre ganhos salariais, mobilidade social, entre outros. Além disso, o próprio desenho da amostra, que inclui a região metropolitana de Belo Horizonte (além da capital mineira, cidades em seu entorno caracterizadas por forte presença industrial), foi parcialmente influenciado por tais questões, como ressalta Neuma Aguiar.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">A autora sublinha ainda que os diferentes estratos sociais podem se caracterizar "pelo compartilhamento de um mesmo modo de vida, com valores comuns, comportamentos, atitudes, hábitos aproximados e acesso às oportunidades de vida, ao mercado de trabalho e ao mercado de bens materiais ou simbólicos [...]" (p. 31). Temos aqui explicitadas algumas dimensões da formação de estratos sociais como coletividades.3</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Os artigos presentes no livro enfocam, em geral, as dimensões objetivas/materiais da estratificação social, e menos os processos de formação de coletividades. Nos dois primeiros capítulos, o conceito de capital social tem lugar central. No primeiro, Antônio Prates, Flávio Carvalhaes e Bráulio Silva utilizam o conceito de capital social para investigar a eficácia de práticas de ação coletiva. Com base em parte da literatura sobre o tema, os autores sugerem que tal conceito seja usado de modo a apreender os processos de construção de elos de solidariedade social (dentro de grupos e comunidades) que sustentam práticas de ação coletiva.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">No segundo artigo, o leitor encontrará um uso distinto desse conceito, mais alinhado com aquele existente em trabalhos de Pierre Bourdieu e Mark Granovetter, entre outros. Nesta perspectiva, o conceito busca apreender as práticas de mobilização de recursos gerados pela posição dos atores em redes sociais ou coletividades. Seguindo esta última abordagem, Jorge Neves e Diego Helal investigam o impacto que a participação em associações tem sobre as chances de um indivíduo estar empregado no mercado de trabalho.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Os ensaios sobre capital social levantam questões importantes, especialmente no que concerne ao modo como esse conceito pode ser conectado à investigação de dimensões macro e microestruturais. A meu ver, o conceito de capital social tal como empregado por Pierre Bourdieu poderia conectar as dimensões analíticas explicitadas anteriormente. Senão vejamos. Ao empregar o conceito de capital social, Bourdieu aponta para estratégias de investimento social orientadas para a transformação de relações sociais contingentes em relações sociais necessárias, que implicam obrigações mútuas duráveis e subjetivamente percebidas, e mesmo institucionalmente garantidas (Bourdieu, 1980). Assim concebido, tal conceito permite conectar uma ênfase sobre estratégias individuais de mobilização de recursos e uma outra sobre a construção e a reprodução de elos de solidariedade social.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Nos dois artigos seguintes, analisam-se outras modalidades sob as quais o conceito de capital é usado na literatura das ciências sociais. No terceiro artigo, Maria Tomás, Flavia Xavier e Otavio Dulci investigam se a probabilidade de um indivíduo estar em uma dada situação ocupacional e se os diferenciais de renda do trabalho estão associados ao controle de diferentes tipos e quantidades de capital - distinguidos em termos de capital cultural, capital humano e capital social. Características atribuídas (como sexo e idade) também são consideradas. Os autores corretamente sublinham a importância do conceito de estrutura social para a análise das desigualdades sociais, e diferenciam posições sociais em termos de situações ocupacionais e quantis de renda. A meu ver, outra perspectiva sobre a estrutura social poderia ser explorada em pesquisas posteriores na área, qual seja, uma que diferencie conjuntos de posições sociais segundo o tipo e a quantidade de recursos/capitais socialmente relevantes, e os modos principais como são apropriados. Tal perspectiva permitiria captar as relações entre os diferentes tipos de capital e as posições sociais assim formadas, bem como os modos pelos quais tais capitais são mobilizados como recursos em estratégias de mobilidade social e de apropriação de bens materiais e simbólicos.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">No quarto capítulo, por sua vez, o conceito de capital cultural, definido de modo similar ao encontrado em trabalhos de Pierre Bourdieu, é o objeto de investigação central. Daniela do Amaral, Leonardo Fígoli e Ronaldo de Noronha investigam se a forma incorporada (disposições duráveis inscritas nos corpos) e a forma objetivada (bens culturais que expressam escolhas orientadas pelas disposições incorporadas) do capital cultural são conformadas por fatores relacionados com a escolaridade individual (forma institucionalizada), a origem social e o local de residência. Para tanto, os autores analisam o consumo de "alta cultura", e argumentam que este requer certas disposições e códigos culturais incorporados pelos indivíduos, constituindo-se como uma "marca de classe" na sociedade brasileira. Entretanto, a relação entre práticas culturais e o espaço das classes sociais não é investigada. Pesquisas posteriores poderiam tomar essa possível relação como objeto de estudo e questionar se, de fato, o consumo da "alta cultura" é uma estratégia de distinção relevante na sociedade brasileira, tal como Bourdieu observou em seu trabalho sobre a sociedade francesa, e quais frações de classe reivindicam prestígio social com base nessas práticas. Para tanto, tais pesquisas poderiam examinar as homologias (se existentes) entre um espaço de estilos de vida, constituído com base nas relações entre diferentes padrões de práticas de consumo em campos sociais diversos, e o espaço das classes sociais, construído com base no controle sobre diferentes quantidades e tipos de capitais e nos modos predominantes de apropriação deles.4</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Os sistemas de classificação baseados na raça e o modo como conformam as relações sociais constituem a questão-chave dos dois artigos seguintes. Em um deles, a questão da identidade racial é problematizada em termos dos componentes do sistema de classificação racial e das formas pelas quais são mensurados. Solange Simões e Mauro Jeronymo sugerem a noção de identidade racial multifacetada, de forma a apreender os processos de construção de identidades raciais como resultado da combinação de componentes distintos do sistema de classificação.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">No artigo seguinte, a questão racial é considerada em termos de suas implicações para as chances de escolaridade individual. Além de examinarem os efeitos de diferentes formas de operacionalização da variável raça (em termos de raça observada ou auto-atribuída - questão também abordada no artigo anterior), Letícia Marteleto, Ana Paula Verona e Cristina Rodrigues sublinham a associação entre características maternas (relacionadas com raça e escolaridade) e a escolaridade dos filhos. A meu ver, este é um ponto importante. De fato, a maior parte dos estudos sobre estratificação social considera apenas as características paternas (como indicador de origem social). Diferentemente, se for demonstrado que vantagens e desvantagens associadas à origem social são crescentemente transmitidas aos filhos pelo pai e pela mãe, uma "nova" dimensão da estratificação social poderia ser incorporada nesses estudos, aquela relacionada com diferentes estruturas familiares (diferenciadas com base nas características profissionais e educacionais de ambos os cônjuges) e os efeitos disso para as trajetórias educacionais e profissionais dos filhos.5</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">O artigo intitulado "Mobilidade social feminina" representa mais uma importante tentativa no sentido de avançar em relação ao mainstream dos estudos sobre estratificação social. Nele, Neuma Aguiar, Danielle Fernandes e Jorge Neves constroem uma perspectiva sobre mobilidade social que busca incorporar as trajetórias profissionais e educacionais de homens e mulheres. Em geral, nos estudos sobre o tema a investigação se restringe ao exame dos padrões de mobilidade social de homens adultos. No entanto, a crescente participação das mulheres na força de trabalho e no sistema educacional implica, entre outros, que suas chances de vida não podem mais ser derivadas da posição do homem (marido ou pai) a priori. Partindo desse pressuposto, os autores investigam os fatores que condicionam o status socioeconômico de homens e mulheres participantes da força de trabalho. Com base nos resultados da pesquisa - que, entre outras coisas, indicam um efeito relativamente menor da origem social sobre o status socioeconômico das mulheres do que sobre o dos homens -, os autores sugerem que investimentos educacionais no seio familiar tendem a se centrar predominantemente na carreira dos filhos. Uma questão importante que surge, então, refere-se aos fatores que condicionam as decisões sobre percursos educacionais de filhos e filhas. Estudos recentes sobre a relação entre posição de classe e progresso educacional têm enfatizado a dimensão instrumental/utilitária desses processos de decisão (Goldthorpe, 2007). No entanto, há também uma dimensão normativa que pode ser considerada. É provável que indivíduos e famílias se orientem diferentemente em relação a concepções normativas que regulam as relações de gênero, e que tais orientações variem de forma sistemática em termos da posição social. Não seria o caso, por exemplo, que entre famílias e indivíduos orientados por valores e concepções normativas tipicamente associados às chamadas "classes médias" (igualdade de gênero, discurso crítico, profissionalismo, racionalidade técnica) as decisões quanto a investimentos educacionais levem em conta igualmente as carreiras profissionais de homens e mulheres?</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Embora tenham objetos de estudo distintos, o oitavo e nono artigos poderiam integrar uma perspectiva mais abrangente relacionada com a investigação da noção de qualidade de vida. Em um deles, Maria Pereira, João Teixeira e Fernanda Motta examinam a associação entre a percepção de qualidade de vida e a probabilidade de mudança de local de moradia. No outro, Corinne Rodrigues, Betânia Peixoto e Cláudio Filho investigam os fatores que condicionam a percepção do risco de vitimização. Uma questão importante que emerge é a da possível relação entre a percepção do risco de vitimização, de um lado, e aquela sobre a qualidade de vida, de outro. É provável que tal relação influencie fortemente as tomadas de decisão quanto à mudança do local de moradia. Ora, entre as camadas médias e elevadas da população, não estaria a percepção da qualidade de vida crescentemente orientada para a minimização dos riscos de vitimização, impulsionando os processos de escolha de espaços de sociabilidade "livres de riscos"? (Caldeira, 2000).</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Por fim, os dois últimos capítulos retomam o tema da participação em ações coletivas, sob óticas distintas. Em um deles, Fátima Anastasia, Carlos Melo e Felipe Nunes enfocam a participação (ou a não-participação) de indivíduos em organizações e entidades diversos como um produto da combinação de diferentes tipos de motivação e de características socioeconômicas. Os argumentos sublinham os efeitos que variáveis como escolaridade, renda e informação política têm sobre a probabilidade de participação e de diferentes tipos de motivação para participar (ou para não participar). A meu ver, o componente da motivação, existente em toda e qualquer ação social, deve ser considerado por teorias da ação coletiva. De fato, há na literatura sobre movimentos sociais tentativas diversas de incorporar o componente motivacional, ainda que de modo distinto daquele sugerido pelos autores.6 No último artigo, Magna Inácio e Paulo Araújo investigam o fenômeno da participação em ações coletivas (com base na construção de um índice de engajamento cívico) em termos da relevância daquele para a manifestação de apoio à democracia.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Ao final, o leitor encontrará dois apêndices. O primeiro, escrito por Solange Simões e Maria Pereira, trata de questões associadas à metodologia da pesquisa de survey. O outro, de autoria de Emílio Suyama e Rodrigo Fernandes, explicita os critérios para a construção da amostra da pesquisa que serviu de fonte dos dados usados nos artigos.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Concluindo, gostaria de enfatizar uma questão já mencionada. Os estudos sobre estratificação social buscam em geral apreender o chamado ambiente condicional da ação (Alexander, 1982), ou seja, os constrangimentos (ou as oportunidades) materiais que se impõem, a partir de fora, sobre os atores. Ao se fixarem sobre os componentes condicionais do contexto de ação e ao conceberem que o principal problema da ação consiste na escolha de fins que podem ser eficientemente alcançados em tal contexto (perspectiva instrumental-utilitária sobre a ação), os fins da ação são reduzidos ao estatuto de meios, ou seja, aqueles são formas de adaptação eficiente do ator às pressões condicionais das situações de ação. Há aqui um problema que Talcott Parsons identificou há muito tempo, qual seja, a eliminação do componente voluntarista da ação (Parsons, 1968). Como nenhuma referência sistemática ao ambiente interno (normativo) da ação é feita (a não ser aquele conformado simplesmente pela norma de adaptação eficiente), não se pode postular, de forma sistemática, a possibilidade de que os atores se esforçam por moldar parcialmente o ambiente condicional da ação de modo a alcançarem (ou pelo menos se aproximarem de) certos fins valorizados em si mesmos (conformados por concepções normativas acerca de expectativas futuras). Como conseqüência, a ação é concebida apenas como uma forma de adaptação às condições materiais. Creio que os estudos sobre estratificação social poderiam adotar uma perspectiva sintética sobre a ação, concebendo-a analiticamente como possuindo componentes normativos e instrumentais, o que permitiria incorporar a dimensão voluntarista da ação. Tal pressuposto sobre a ação poderia ser especificado em modelos teóricos que tomem as sociedades como estratificadas material (ou seja, pressões materiais distintas afetam atores diferentemente posicionados na estrutura social) e normativamente (do ponto de vista das orientações normativas que conformam as escolhas dos atores em diversos contextos de ação). Incorporar este pressuposto multidimensional na teoria e na pesquisa de forma sistemática é um desafio para qualquer pesquisador na área.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Em suma, Desigualdades sociais, redes de sociabilidade e participação política é um livro muito relevante para as ciências sociais e afins, tanto pelo que acrescenta de conhecimento sobre a estratificação social no Brasil como pelos novos passos que sugere aos que se debruçam sobre o tema.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Notas</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">1</div><div style="text-align: justify;">Para uma exposição concisa das principais proposições dessa teoria, ver Kerr</div><div style="text-align: justify;">et. al. (1994).</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">2</div><div style="text-align: justify;">Mais recentemente, pesquisas conduzidas especialmente por Harry Ganzeboom e Donald Treiman têm analisado a relação entre mobilidade social, realização de</div><div style="text-align: justify;">status socioeconômico, industrialização e expansão educacional seguindo as linhas gerais do argumento acima. Ver, por exemplo, Ganzeboom e Treiman, 1993.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">3</div><div style="text-align: justify;">A investigação da formação de estratos, ou mais especificamente de classes, como coletividades pode ser encontrada em trabalhos tão diversos quanto aqueles de Pierre Bourdieu ([1984] 2002) e John Goldthorpe (1987). Diferentemente, a tradição funcionalista postula que as sociedades industriais seriam marcadas por elevados níveis de mobilidade social (ou seja, por alta fluidez social), tornando improvável a constituição de divisões sociais relativamente duradouras a ponto de permitir a formação das coletividades do tipo mencionado. Para exemplos de estudos funcionalistas sobre estratificação social, ver Davis e Moore (1945), Blau e Duncan (1967), entre outros.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">4</div><div style="text-align: justify;">Para um exemplo desse tipo de análise, ver Savage</div><div style="text-align: justify;">et al. (2007).</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">5</div><div style="text-align: justify;">Recentemente, essa questão passou a ser abordada na literatura sobre estratificação social. Ver, por exemplo, Morris (1995).</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">6</div><div style="text-align: justify;">Parte da literatura busca captar tal componente utilizando o conceito de quadros interpretativos. Ver, entre outros, Snow e Benford (1988).</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">BIBLIOGRAFIA</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Edison Ricardo Bertoncelo, é doutorando em sociologia pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. Suas áreas de interesse incluem teoria sociológica, estratificação social, práticas de consumo, metodologia de pesquisa, sociologia política, entre outros.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">ALEXANDER, Jeffrey. (1982), Theoretical logic in sociology. Londres, Routledge & Kegan Paul, vol. 1.</div><div style="text-align: justify;">BLAU, P. M. & DUNCAN, O. R. (1967), The American occupational structure Nova York, Wiley.</div><div style="text-align: justify;">BOURDIEU, Pierre. (1980), "Le capital social". Actes de la Recherche en Sciences Sociales, 31: 2-3.</div><div style="text-align: justify;">______. ([1984] 2002), Distinction: a social critique of the judgment of taste Cambridge, Harvard University Press.</div><div style="text-align: justify;">CALDEIRA, Teresa Pires do Rio. (2000), Cidade de muros: crime, segregação e cidadania em São Paulo. São Paulo, Editora 34/Edusp.</div><div style="text-align: justify;">DAVIS, K. & MOORE, W. (1996), "Some principles of stratification" [1945], in John Scott, Class: critical concepts Londres/Nova York, Routledge, vol. 2.</div><div style="text-align: justify;">GANZEBOOM, Harry B. & TREIMAN, Donald. (1993), "Preliminary results on educational expansion and educational attainment in comparative perspective, in Henk Becker e Piet Hermkens, Solidarity of generations demographic, economic, and social change, and its consequences, Amsterdam, Thesis Publishers.</div><div style="text-align: justify;">GOLDTHORPE, John. (2007), On sociology. California, Stanford University Press, vols. 1 e 2.</div><div style="text-align: justify;">GOLDTHORPE, John H.; LLEWELLYN, Catriona & PAYNE, Clive. (1987), Social mobility and class structure in modern Britain Oxford, Clarendon Press.</div><div style="text-align: justify;">GRANOVETTER, Mark. (1973), "The strength of weak ties". American Journal of Sociology, 78 (6).</div><div style="text-align: justify;">KERR, Clark et. al. (1994), "Industrialism and industrial man", in David Grusky (ed.), Social stratification: class, race and gender in sociological perspective, Boulder, Colo, Westview Press.</div><div style="text-align: justify;">MORRIS, Lydia. (1995), Social divisions: economic decline and social structural change. Londres, UCL Press.</div><div style="text-align: justify;">PARSONS, Talcott. (1968), The structure of social action: a study in social theory and special reference to a group of recent European writers Nova York, Free Press.</div><div style="text-align: justify;">SAVAGE, Mike; WARDE, Alan; Le ROUX, Brigitte & ROUANET, Henry. (2007), "Class and cultural division in the UK". CRESC Working Paper Series, n. 40, (acessado no site <www.cresc.ac.uk></div><div style="text-align: justify;">SNOW, David A. & BENFORD, Robert D. (1988), "Ideology, frame resonance and participant mobilization", in Bert Klandermas, Hanspeter Kriesi e Sidney Tarrow (eds.), International social movement research. Vol. 1: From structure to action: comparing social movement research across cultures, Londres: Jai Press.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">1 Para uma exposição concisa das principais proposições dessa teoria, ver Kerr et. al. (1994). 2 Mais recentemente, pesquisas conduzidas especialmente por Harry Ganzeboom e Donald Treiman têm analisado a relação entre mobilidade social, realização de status socioeconômico, industrialização e expansão educacional seguindo as linhas gerais do argumento acima. Ver, por exemplo, Ganzeboom e Treiman, 1993. 3 A investigação da formação de estratos, ou mais especificamente de classes, como coletividades pode ser encontrada em trabalhos tão diversos quanto aqueles de Pierre Bourdieu ([1984] 2002) e John Goldthorpe (1987). Diferentemente, a tradição funcionalista postula que as sociedades industriais seriam marcadas por elevados níveis de mobilidade social (ou seja, por alta fluidez social), tornando improvável a constituição de divisões sociais relativamente duradouras a ponto de permitir a formação das coletividades do tipo mencionado. Para exemplos de estudos funcionalistas sobre estratificação social, ver Davis e Moore (1945), Blau e Duncan (1967), entre outros. 4 Para um exemplo desse tipo de análise, ver Savage et al. (2007). 5 Recentemente, essa questão passou a ser abordada na literatura sobre estratificação social. Ver, por exemplo, Morris (1995). 6 Parte da literatura busca captar tal componente utilizando o conceito de quadros interpretativos. Ver, entre outros, Snow e Benford (1988).</div><div style="text-align: justify;"><a class="dropdown-toggle" data-toggle="dropdown" href="https://www.scielo.br/j/rbcsoc/a/87swBnvZk7D7XWs4HbFTvLc/?lang=pt" style="animation-duration: 0.1s; animation-fill-mode: both; background-color: white; box-sizing: border-box; color: #00314c; font-family: Arial, sans-serif; font-size: 12.6px; font-weight: 700; outline-offset: -2px; outline: 0px; text-align: left; text-decoration-line: none; transition: color 0.1s ease-out 0s, text-indent 0.1s ease-out 0s;"><span class="text" style="box-sizing: border-box;"><span class="truncate" style="box-sizing: border-box; overflow: hidden; text-overflow: ellipsis; white-space: nowrap; width: 450px;">Revista Brasileira de Ciências Sociais </span><span class="sci-ico-arrowDown" style="-webkit-font-smoothing: antialiased; box-sizing: border-box; display: inline-block; font-family: scielo-glyphs !important; font-variant-east-asian: normal; font-variant-numeric: normal; font-weight: 400; line-height: 1em; speak: none; vertical-align: middle;"></span></span></a></div>Eduardo Marculinohttp://www.blogger.com/profile/09461824103400566723noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4969040045050510246.post-20318774235867400652022-10-19T17:44:00.003-07:002022-10-19T17:44:20.932-07:00Terra calada: os Tupinambá na Mata Atlântica do Sul da Bahia. Rio de Janeiro<div style="text-align: justify;"><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhalHVqnavsxOR8v5cGmyPuKDRKegePAFbEi4f5OB2v7ZAewaLEGV2_HCxtni43jb99T2vYCpBjpqny2SF6IB-aJo4qtXuihuLtbeNd-77PdVSNunStyn_G_7Qv694IhBIXus5pJmcRMHnm3PATEBwqnfKNwdjg3BmQpAj-SbX0aAqvLAHY14waYv9AhQ/s573/terra%20calada.png" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="573" data-original-width="336" height="402" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhalHVqnavsxOR8v5cGmyPuKDRKegePAFbEi4f5OB2v7ZAewaLEGV2_HCxtni43jb99T2vYCpBjpqny2SF6IB-aJo4qtXuihuLtbeNd-77PdVSNunStyn_G_7Qv694IhBIXus5pJmcRMHnm3PATEBwqnfKNwdjg3BmQpAj-SbX0aAqvLAHY14waYv9AhQ/w279-h402/terra%20calada.png" width="279" /></a></div><br /><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><br /></div><br /><br /></div><div style="text-align: justify;">Antropologia do cotidiano como história</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Nádia Heusi Silveira</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">RESENHAS</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Antropologia do cotidiano como história</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Nádia Heusi Silveira</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Susana de Matos VIEGAS. Terra calada: os Tupinambá na Mata Atlântica do Sul da Bahia. Rio de Janeiro, 7 Letras, 2007. 339 páginas.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Dispersos numa região turística pitoresca, pouco afeitos a conversas e conhecidos pela qualidade da farinha de mandioca que produzem, os Tupinambá despertaram a curiosidade e o estranhamento de Susana de Matos Viegas, interessada que estava nos debates em torno dos dilemas da identidade e da autodeterminação dos povos indígenas. Ao longo do livro, a autora põe em diálogo a perspectiva desses "índios-caboclos de Olivença" e suas próprias vivências durante sete anos de idas e vindas à Bahia. Ao mesmo tempo em que apresenta o universo desse povo, deslinda seu caminho analítico com evidente sensibilidade etnográfica. É uma antropologia da vida diária que ilustra muito bem como a inflexão histórica é capaz de diluir a fixidez atribuída à identidade étnica.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Trata-se de uma revisão de sua pesquisa de doutorado, defendida em 2003, na Universidade de Coimbra. O estudo foi levado a cabo no município de Ilhéus, parte no seu centro urbano e parte no interior, numa região da vila de Olivença conhecida por Sapucaeira, entre agosto de 1997 e agosto de 1998. À época da pesquisa os Tupinambá totalizavam uma população de 2.500 pessoas e viviam num território de 50 mil hectares. O primeiro ano de estadia em campo foi complementado por vários retornos a Olivença e culminou com o trabalho de identificação da Terra Indígena Tupinambá de Olivença.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">A etnografia assenta-se num "tripé reflexivo", cuja ênfase se criou pela convivência com os Tupinambá. A importância de dar sustento e cuidar das crianças, a valorização da experiência pessoal direta e o território vivido como memória conformam o jeito de ser tupinambá e as elaborações e comparações de Viegas. Um dado relevante nesse sentido é sua afirmação de que chegou ao Brasil com uma equipagem teórica direcionada aos estudos interétnicos e que, após a vivência in loco, fez mais sentido a reflexão oriunda da etnologia indígena, particularmente as teorias inspiradas na fenomenologia. A autora teve o privilégio de acompanhar o processo de reivindicação da identidade indígena, embora no cotidiano os Tupinambá continuassem a se auto-referir indistintamente como índios ou caboclos. Alternância esta que remeteu sua atenção aos "modos de criar afeto, viver e habitar e a modos de conceber como a vida social se faz no tempo" (p. 18).</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">O livro subdivide-se em nove capítulos com títulos elucidativos que pontuam os temas emergentes e o percurso da pesquisa. Os capítulos "Comer e habitar: a ligação entre as pessoas e as casas", "Comer com minha mãe preferida: parentes, afetos e o tempo da socialidade" e "A dinâmica dos afetos: gênero, parentesco e micro-história" são ilustrados com fotografias do cotidiano em Sapucaeira, aproximando o leitor da vida tupinambá. No núcleo de seu argumento está a idéia de que o socius se faz na reiteração cotidiana de laços de parentesco, no nível da dimensão intersubjetiva e histórico-biográfica do sujeito. Assim, a característica dispersão das unidades de residência e a ausência de sentido de coletividade que, somados à falta de sinais diacríticos de indianidade, são atributos utilizados por alguns segmentos do entorno social para justificar a negação de uma identidade propriamente indígena, são aqui revertidos em positividade identitária. Viegas postula que a vivência em grupos locais fortemente autônomos é um eixo fundador dos sentimentos de pertença e da socialidade entre os Tupinambá. Este é também o fio que conduz suas formulações teóricas, cuja principal preocupação é alcançar um termo de comparação que permita escapar ao espelho do ocidente. Tendo em vista o alargamento comparativo de sua etnografia sem se deixar enredar em particularismos antropológicos ou cair em contrastes absolutos, a autora aloca a diferença nas "condições de socialidade". Por essa via discute parentesco, espaço e identidade, numa comparação de largo espectro que inclui não apenas a etnologia americanista, como também os materiais austronésios e do sudeste asiático.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">A definição do que a autora entende por socialidade e condições de socialidade vai sendo elaborada ao longo dos capítulos, em variadas aproximações. No primeiro plano, Viegas menciona a convergência epistemológica entre antropologia e fenomenologia, seguindo a tendência inaugurada por Joanna Overing. No segundo plano, assume a crítica ao conceito de sociedade formulada originalmente por Roy Wagner, que argumenta contra a reificação do social como entidade agregativa das partes num todo. A síntese de Viegas aponta, de certa forma, para uma equivalência do conceito de socialidade à idéia de experiência vivida. Sua abordagem da socialidade dá-se numa "perspectiva processual que conjuga aspectos sociais e culturais em uma análise micro-histórica" (p. 49) e elude as divergências entre a vertente que enfatiza a convivialidade e a que ressalta as relações de predação. É através da experiência constituída por meio da intersubjetividade que o socius se torna conhecido, uma vez que a estética da ação tupinambá privilegia a experiência direta em detrimento das narrativas que atravessam gerações. A história cotidiana apresenta aos sentidos da etnógrafa o que, em certa altura do livro, ela identifica como "disposições estruturantes da socialidade" ou "condições de socialidade" que, se entendo, são as contingências que circunscrevem as ações ordinárias e revelam de maneira sutil a diferença cultural. A seguir apresento de que forma a análise da socialidade se desdobra em particularidades socioculturais a partir de certos aspectos prosaicos da vida: as formas de habitar, a convivência em torno da comida e as relações de gênero.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">O modo ideal de habitar constitui-se naquilo que os Tupinambá chamam de "um lugar". São várias casas em relação simultânea de dependência e independência, onde vive, geralmente, uma família extensa virilocal. A independência é conferida pelo fogo - ordinariamente cada mulher cozinha na sua casa. O lugar engloba casas, pés de fruta, caminhos, roças, córrego, mata e uma efemeridade característica. Sua fundação inicia com o plantio de frutas, das quais Viegas destaca a jaca, o coco, o caju e a manga como as mais comuns. O abandono desse espaço se deve a uma abrupta separação de parentes co-residentes, seja por falecimento de um dos moradores, seja pela dissolução do casamento. Para a autora, o lugar produz socialidade de muitas maneiras: cria sentidos de habitar que são compartilhados; gera laços personalizados com o ambiente físico-geográfico; induz à produção de disposições alimentares partilhadas.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Durante a pesquisa de campo havia poucas casas de farinha nos lugares, mas todas as dificuldades em assegurar a produção de farinha de mandioca, mesmo que em locais distantes, eram superadas em prol do prazer de consumir beiju. Por meio da vivência culinária Viegas percebeu a centralidade dos alimentos derivados da mandioca na experiência de viver num lugar, sendo o desejo por esses alimentos constitutivo das relações sociais e do sentimento de pertença. Em sua análise do papel da comida na produção do parentesco, não é a comensalidade que importa, pois são raros os momentos em que as pessoas se reúnem para uma refeição, mas a partilha de alimentos cozidos no mesmo fogo. Inspirada na reflexão de Viveiros de Castro, a autora refere-se a uma afecção corporal gerada pelo desejo intenso de consumir certos alimentos, desenvolvendo-se dessa forma uma semelhança de base corporal. As preferências alimentares criam, então, condições de socialidade.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Além disso, a comida é um tópico fundamental neste esquema comparativo em função de servir como um índice da dinâmica dos afetos, à maneira de "dar sustento". O lugar é para a criança uma fonte de mães potenciais, comumente a avó paterna, e a ênfase no ato de agradar as crianças, alimentando-as, atesta que comer não é um epifenômeno na produção da diferença. Essa reflexão originou-se da observação de como os Tupinambá pensam e se relacionam com seus filhos de criação e com os filhos legítimos. Viegas descreve o dar sustento em seus aspectos intersubjetivos. A atitude "afirmativa" das crianças, quase exigindo serem alimentadas, é totalmente tolerável, ao passo que em outros âmbitos do relacionamento espera-se uma atitude submissa endereçada aos adultos. Ademais, a criança sente-se pertencida a um único fogo e raramente come fora de sua casa, ainda que seja um filho de criação e sua mãe legítima viva no mesmo lugar. A dinâmica do sustento une a afirmação do vínculo, por parte da criança, a uma disponibilidade para agradar, por parte da mãe, caracterizada pela abnegação no desempenho dessa tarefa e pela capacidade de responder aos desejos do filho. Desta perspectiva fenomenológica, o que está jogo não é partilha de substância, mas o trânsito de alimentos. A configuração dos afetos depende de esforço persistente, a memória do cuidado é um processo cumulativo e reversível, tanto quanto o vínculo entre a mulher e a criança. É o que a autora chama de parentesco revogável, fenômeno ancorado na concepção de corpo como feixe de afecções. Ou seja, o parentesco não é dado, sua efetivação é conquistada com esforço e persistência cotidiana. É preciso transformar comida em memória afetiva (reforço de vínculos) ou em esquecimento (reversão do parentesco).</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">A vida pacata das mães, mulheres que vivem nos lugares de Sapucaeira, em geral com os parentes de seu esposo, atentas às crianças, contrapõe-se a um movimento recorrente para a vila de Olivença, onde se tornam empregadas domésticas em casas burguesas, e à sua visibilidade política no cenário indigenista. Este é outro elemento fundante da diferença para Viegas. A descrição minuciosa das formas de convívio entre homens e mulheres, desde crianças até adultos, é alinhavada pela ótica da socialidade. A proximidade física com a mãe, na primeira infância, é forte, independentemente do sexo, e vai se diferenciando em brincadeiras na escola e atividades produtivas específicas de cada gênero no curso da vida. A tendência agnática, que confere poder legitimador à liderança masculina, reconhecida pela Funai em nível local, encontra-se hoje em concorrência com uma "feminilidade hegemônica" (p. 179), ligada à capacidade das mulheres de transitar entre o mundo da roça e o mundo da rua. A autora elabora essa contraposição das disposições da socialidade tupinambá não como assimetria, em vez disso, vê a transitividade feminina conectada a processos políticos supralocais como uma espécie de atrito produtivo entre as agências masculina e feminina.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Susana Viegas assinala sua reflexão sobre a noção tupinambá de território como ápice da etnografia. Descreve a importância do espaço em termos da constituição do parentesco como lugar e de uma instância de regeneração da vida - de onde surge a imagem de um "território pontilhado" na paisagem da mata. Uma monumentalidade do espaço está ausente na vivência tupinambá da Mata Atlântica. Não há marcos físicos de eventos mitológicos ou locais sagrados na paisagem que remetam a um vínculo territorial. Apenas os pés de frutas servem de referência mnemônica de antigos lugares onde a mata se regenera. O significado da terra é explicado pela autora como um "mapa de vivências", em que "o movimento depende de ciclos de abandono a partir do reverso entre a mata e os espaços de habitação. As referências no mapa movem-se em função do espectro temporal, entre as ações de abandono, rememoração e regeneração da vida por meio da reversão do espaço habitado da mata" (pp. 294-295). Pertencer àquele território implica em formas de estar-no-espaço ligadas à temporalidade cotidiana. Os ciclos de abandono dos espaços de moradia e o trânsito na vila tanto sublinham o cotidiano tupinambá e reiteram laços de parentesco, como produzem sentimento de pertença ao lugar.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Além de conter um foco comparativo de vasta amplitude condizente com a tendência contemporânea de dissolução de conceitos antropológicos totalizadores, Terra calada supera a tônica do academicismo presente na antropologia que se faz no Brasil. É possível vislumbrar algumas preocupações de ordem prática na discussão sobre a identidade tupinambá e na definição de sua noção de território, sem que as elaborações teóricas de Viegas sejam enviesadas por uma lógica unidirecional ou simplificadas a relações de causa e efeito. Ao contrário, o rigor e a minúcia intelectual tornam algumas passagens do livro excessivamente pontuadas por conceitos que, talvez, pudessem ser subtraídos sem prejuízos à reflexão como um todo.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Nádia Heusi Silveira, é doutoranda no Programa de Pós-graduação em Antropologia Social da Universidade Federal de Santa Catarina e integrante do Núcleo de Estudos e Pesquisas das Populações Indígenas da Universidade Católica Dom Bosco.</div><div style="text-align: justify;"><a class="dropdown-toggle" data-toggle="dropdown" href="https://www.scielo.br/j/rbcsoc/a/SzrDJnk3Y47nHy6wJgVXR8c/?lang=pt" style="animation-duration: 0.1s; animation-fill-mode: both; background-color: white; box-sizing: border-box; color: #00314c; font-family: Arial, sans-serif; font-size: 12.6px; font-weight: 700; text-align: left; text-decoration-line: none; transition: color 0.1s ease-out 0s, text-indent 0.1s ease-out 0s;"><span class="text" style="box-sizing: border-box;"><span class="truncate" style="box-sizing: border-box; overflow: hidden; text-overflow: ellipsis; white-space: nowrap; width: 450px;">Revista Brasileira de Ciências Sociais</span></span></a></div>Eduardo Marculinohttp://www.blogger.com/profile/09461824103400566723noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4969040045050510246.post-40843408060608681412022-10-12T13:51:00.007-07:002022-10-12T13:51:54.935-07:00Plínio Salgado: um católico integralista entre Portugal e o Brasil (1895-1975)<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjIk5pzHcFuk47j6LeTP-OFbjfEb1oIjVNUmWcHZpFV9iUdPPrPU5K5oc-Cx3De-LCuLeUDLCrbZNO2NklPP7A2b-hjBan8hlTKjuksPr5XwBEIYMmbAtjgysLNRxPuQC4EqNHqNRm-a2TArNoILcQf05BsXSWoXpNSqir1TqyuwFDSUe00PDmYvtW0KA/s373/pl1.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="373" data-original-width="250" height="320" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjIk5pzHcFuk47j6LeTP-OFbjfEb1oIjVNUmWcHZpFV9iUdPPrPU5K5oc-Cx3De-LCuLeUDLCrbZNO2NklPP7A2b-hjBan8hlTKjuksPr5XwBEIYMmbAtjgysLNRxPuQC4EqNHqNRm-a2TArNoILcQf05BsXSWoXpNSqir1TqyuwFDSUe00PDmYvtW0KA/s320/pl1.jpg" width="214" /></a></div><br /><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div> <div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">PLÍNIO SALGADO: UM ITINERÁRIO LUSITANO</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Francisco Carlos Palomanes Martinho<br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Resenha do livro: GONÇALVES, Leandro Pereira. Plínio Salgado: um católico integralista entre Portugal e o Brasil (1895-1975). Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais, 2017.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Desde os trabalhos pioneiros de Hélgio Trindade (1974, 2007) na década de 1970 a respeito do Integralismo brasileiro, diversos outros estudos procuraram apresentar novas abordagens sobre o tema (CHASIN, 1999; CHAUÍ, 1985; VASCONCELOS, 1979). Também a produção acadêmica comparativa dos autoritarismos português e brasileiro, iniciada no trabalho organizado por José Luiz Werneck da Silva (1991), prosperou em análises diversas, fortalecendo aos poucos este campo de investigação (PINTO; MARTINHO, 2007).</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">O trabalho de Leandro Pereira Gonçalves, Plínio Salgado: um católico integralista entre Portugal e o Brasil (1895-1975), vem, portanto, contribuir com uma tradição importante e já consolidada de pesquisas a respeito do integralismo e das direitas radicais. O livro tem, como objeto de análise, o pensamento e a produção intelectual do mais importante político do movimento integralista brasileiro: Plínio Salgado. Ao mesmo tempo, o autor lança luz sobre as possibilidades de investigações acadêmicas comparativas acerca de Portugal e do Brasil. Longe, entretanto, da mera repetição, seu estudo acrescenta novidades ao complexo universo das direitas no século XX, não só no Brasil como também na Europa.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">São vários os elementos de novidade no trabalho de Leandro Gonçalves que devem ser destacados. Talvez, o mais importante deles seja a profundidade com que o autor trata o período português da vida de Plínio Salgado, que viveu exilado em Lisboa entre os anos de 1939 e 1946. Aliás, uma preocupação central de Leandro Gonçalves em todo o trabalho é perceber as conexões entre o líder integralista brasileiro e as direitas radicais portuguesas. Assim, dos cinco capítulos que compõem o livro, três deles referem-se diretamente ao período em que Plínio Salgado residiu em Lisboa.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Não se tratando exatamente de uma biografia, como informa o próprio autor, o estudo sobre o líder integralista não deixa de enfocar aspectos importantes de sua vida que contribuem para a percepção de seu perfil ao mesmo tempo político, espiritualista e religioso. A preocupação principal de Leandro Gonçalves é com sua trajetória intelectual. E, aqui, como seria igualmente importante em um estudo biográfico, Leandro Gonçalves foge da coerência empobrecedora da análise. Embora, claro está, existam fios de continuidades, o jovem Plínio modernista dos anos 1920 não é exatamente o mesmo do Partido de Representação Popular (PRP) do intervalo democrático ou de seu ocaso durante a ditadura militar. Leandro Gonçalves destrincha uma produção algo simbiótica entre a política e a espiritualidade, marca fundamental de seu perfil, sem, no entanto, deixar de reconhecê-las como campos específicos e dotados de relativa autonomia.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Organizado em cinco capítulos, além da introdução e das considerações finais, o livro se apresenta como um relato cronológico da vida de Plínio Salgado. Desde a infância e o peso do catolicismo em sua família, passando pela produção literária, pela política, pelo exílio, pelo aggiornamento algo democrático no pós-1945 e seu apoio ao golpe de Estado de 1964 e pela participação como Deputado Federal no partido governista, a Aliança Renovadora Nacional (Arena). Neste relato, é de se destacar o volume documental tratado e discutido, com ênfase para a documentação referente às proximidades de Plínio Salgado com intelectuais e políticos da extrema-direita portuguesa. Proximidade esta que começou antes de sua ida a Portugal. Produto da “época dos fascismos” (PINTO, 2014), Salgado teve acesso a uma vasta produção de direita que desde os anos 1920 pensaram em alternativas políticas de terza via entre o liberalismo e o comunismo. Assim, se podemos falar da Action Française como a matriz tão importante para as direitas do espaço ibérico e mesmo da América Hispânica (COMPAGNON, 2009; DARD, 2010), é de se destacar o peso que a direita portuguesa terá no Brasil e em especial na obra de Plínio Salgado. Além do jornalista e fundador do Integralismo Lusitano, António Sardinha, o líder integralista brasileiro estabeleceu interlocuções com outros importantes personagens da direita portuguesa, como Alberto Monsaraz, Hipólito Raposo, Luis de Almeida Braga e Pequito Rebelo (LEAL, 1999). Porém, exilado em Portugal, para além dessas reconhecidas referências político-intelectuais, Salgado viu de perto o regime salazarista. Retornado ao Brasil, manteve o regime do Estado Novo português como referência fundamental. Em suas estadias em Lisboa, durante e após o exílio, estabeleceu contatos não apenas com o próprio Salazar, mas igualmente com quadros afeitos ao regime, como o Cardeal Patriarca de Lisboa, Manuel Gonçalves Cerejeira. De certa forma, o contato com Portugal permitiu a Plínio Salgado alguma revisão da matriz integralista, migrando para um modelo conservador e algo tradicionalista. Será este o perfil que tentará imprimir a seu PRP, com o qual disputa a eleição presidencial de 1955 e, nas eleições de 1958 e 1962, se elege Deputado Federal. Quando do golpe militar de 1964, Plínio Salgado apoia o movimento e passa a servir à ditadura militar que se instaura a partir de 1º de abril daquele ano. Entretanto, já sem a notoriedade e importância de antes, será, no regime militar, um quadro de importância secundária.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Outro aspecto ainda a destacar do trabalho é o diálogo intenso com a literatura luso-brasileira. Especialistas da história política brasileira e em particular da direita, como Ricardo Benzaquém de Araújo, Fábio Bertonha, Gilberto Calil, Janaína Cordeiro e Rodrigo Patto Sá Motta, entre outros, são fartamente discutidos e problematizados. O mesmo ocorre com a literatura especializada portuguesa, com autores como Ricardo Marchi, Irene Pimentel, António Costa Pinto e Inácia Rezola, entre outros. O conhecimento da literatura acerca do tema e do personagem permite a Leandro Gonçalves desenhar o perfil de um Plínio Salgado muito próximo do catolicismo tradicional e espiritualista, colocando-se, assim, equidistante de dois outros importantes personagens do integralismo brasileiro, Gustavo Barroso e Miguel Reale. Daí a importância de todo o itinerário português. E não é à toa que, regressado do exílio, Salgado se tornou uma espécie de porta-voz informal do salazarismo, tanto a defender e justificar a guerra colonial como a projetar para o Brasil o modelo de representação corporativa existente em Portugal. Neste sentido, um dos elementos centrais do trabalho de Leandro Gonçalves, de grande originalidade, é a percepção da permanência de Portugal no pensamento político de Plínio Salgado antes, durante e depois de seu exílio.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">De acordo com o autor, seu estudo se ancora no conceito de cultura política, de modo que a variada produção intelectual de Plínio Salgado é decorrente de uma série de “valores, tradições, práticas e representações partilhadas por determinado grupo humano, que expressa uma identidade coletiva e fornece leituras comuns do passado” (MOTTA, 2009, p. 23).</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Vale aqui indagar em que medida a cultura política de um personagem que viveu tantos anos e por tantos anos militou política e intelectualmente permaneceu a mesma. É bom lembrar que a cultura política pertence a uma “família política”, o que exige a compreensão de mudanças de rota, de formação de novas culturas etc (DUTRA, 2002; RIOUX, 1998). Outro elemento que talvez falte a seu trabalho é uma problematização do conceito de intelectual e de seu papel na História. Autores como Norberto Bobbio (1997), Jean-Fraçois Sirinelli (1992, 1998) e Michel Winock (2000) teriam contribuído para uma reflexão mais complexa da vasta produção de Plínio Salgado.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Estas lacunas, entretanto, não obstam o fato de que se trata de uma pesquisa de excelência, resultante de um trabalho doravante obrigatório para os estudos a respeito das direitas radicais no século XX e de Plínio Salgado, seu personagem brasileiro de maior destaque.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Editores responsáveis pela publicação:</div><div style="text-align: justify;">Júlio Pimentel Pinto e Flavio de Campos</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Referências bibliográficas</div><div style="text-align: justify;">BOBBIO, Norberto. Os intelectuais e o poder: dúvidas e opções dos homens de cultura na sociedade contemporânea São Paulo: Editora UNESP, 1997.</div><div style="text-align: justify;">CHASIN, José. O integralismo de Plínio Salgado: formas de regressividade no capitalismo hiper-tardio Belo Horizonte: Una, 1999.</div><div style="text-align: justify;">CHAUÍ, Marilena. Apontamentos para uma crítica da Ação Integralista Brasileira. In: CHAUÍ, Marilena & FRANCO, Maria Sylvia de Carvalho (org.). Ideologia e mobilização popular São Paulo: Paz e Terra, 1985, p. 17-150.</div><div style="text-align: justify;">COMPAGNON, Olivier. Le maurracisme em Amerique Latine. Etude comparée des cas argentin et brésilien. In: DARD, Olivier & GRUNEWALD, Michel. Charles Maurras et l’étranger - L’étranger et Charles Maurras Berna: Peter Lang, 2009, p. 283-305.</div><div style="text-align: justify;">DARD, Olivier. Le corporatisme entre tradicionalistes et modernisateurs: des croupements aux cercles Du poucoir. In: MUSIEDLAC, Didier (org.). Les expériences corporatives dans l’aire latine Berna: Peter Lang, 2010, p. 67-102.</div><div style="text-align: justify;">DUTRA, Eliana. História e culturas políticas: definições, usos e genealogias. Varia História, Belo Horizonte, n. 28,p. 13-28, 2002.</div><div style="text-align: justify;">LEAL, Ernesto Castro. Nação e nacionalismos: a Cruzada Nacional D. Nuno Álvares Pereira e as origens do Estado Novo (1918-1938) Lisboa: Cosmos, 1999.</div><div style="text-align: justify;">MOTTA, Rodrigo Patto Sá. Desafios e possibilidades na apropriação da cultura política pela historiografia. In: MOTTA, Rodrigo Patto Sá (org.). Culturas políticas na história: novos estudos Belo Horizonte: Argvmentvm, 2009, p. 13-37.</div><div style="text-align: justify;">PINTO, António Costa. O corporativismo nas ditaduras da época do fascismo. Varia História. Belo Horizonte, vol. 30, n. 52, p. 17-49, 2014.</div><div style="text-align: justify;">PINTO, António Costa & MARTINHO, Francisco Carlos Palomanes (org.). O corporativismo em português: Estado, política e sociedade no salazarismo e no varguismo Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007.</div><div style="text-align: justify;">RIOUX, Jean-Pierre. A cultura política. In: RIOUX, Jean-Pierre & SIRINELLI, Jean-François (dir.). Para uma História Cultural Lisboa: Estampa, 1998, p. 349-363.</div><div style="text-align: justify;">SILVA, José Luiz Werneck (org.). O feixe e o prisma: uma revisão do Estado Novo Rio de Janeiro: Zahar, 1991.</div><div style="text-align: justify;">SIRINELLI, Jean-François. Histoire des droites Paris: Gallimard, 1992</div><div style="text-align: justify;">SIRINELLI, Jean-François. De la demeure à l’agora: pour une histoire des cultures politiques. Vingtième Siècle, Paris, v. 57, n. 1, p. 121-131, 1998.</div><div style="text-align: justify;">TRINDADE, Hélgio. Integralismo: o fascismo brasileiro na década de 30 São Paulo: Difel, 1974.</div><div style="text-align: justify;">TRINDADE, Hélgio. Integralismo: teoria e práxis política nos anos 30. In: HOLANDA, Sérgio Buarque (org.). História geral da civilização brasileira: o Brasil Republicano, v. 10. 9ª edição. Rio de Janeiro: Bertrand, 2007, p. 359-401.</div><div style="text-align: justify;">VASCONCELOS, Gilberto Felisberto. Ideologia Curupira: análise do discurso integralista São Paulo: Brasiliense, 1979.</div><div style="text-align: justify;">WINOCK, Michel. O século dos intelectuais Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000.</div><div style="text-align: justify;"><a class="dropdown-toggle" data-toggle="dropdown" href="https://www.scielo.br/j/rh/a/WWfSpzqh5cgKXSDmTDmxxDh/?lang=pt" style="animation-duration: 0.1s; animation-fill-mode: both; background-color: white; box-sizing: border-box; color: #00314c; font-family: Arial, sans-serif; font-size: 12.6px; font-weight: 700; outline-offset: -2px; outline: 0px; text-align: left; text-decoration-line: none; transition: color 0.1s ease-out 0s, text-indent 0.1s ease-out 0s;"><span class="text" style="box-sizing: border-box;"><span class="truncate" style="box-sizing: border-box; overflow: hidden; text-overflow: ellipsis; white-space: nowrap; width: 450px;">Revista de História _ São Paulo</span></span></a></div>Eduardo Marculinohttp://www.blogger.com/profile/09461824103400566723noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4969040045050510246.post-61994182168480707602022-10-12T13:46:00.005-07:002022-10-12T13:46:37.917-07:00Unidos perderemos: a construção do federalismo republicano brasileiro<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEghXJcBiuORxJEqwGIO2ojtasPShF4OD82uK7lTxVeJhTlu-WT_IHUyxGmSvSWTzNAm9hDFipCP2BmmOGHYglmxgOSHX1EREeZjH7AbQWXizIjQKJTzyg1a9wFSQduXDhsTqsVB2R2j3TXo5vKqOs8XuBm9eJ3cO8ywN3I-V2cSx8WaCHz59yEA3AzN5Q/s500/u3.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="500" data-original-width="346" height="320" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEghXJcBiuORxJEqwGIO2ojtasPShF4OD82uK7lTxVeJhTlu-WT_IHUyxGmSvSWTzNAm9hDFipCP2BmmOGHYglmxgOSHX1EREeZjH7AbQWXizIjQKJTzyg1a9wFSQduXDhsTqsVB2R2j3TXo5vKqOs8XuBm9eJ3cO8ywN3I-V2cSx8WaCHz59yEA3AzN5Q/s320/u3.jpg" width="221" /></a></div><br /><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div> <div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">RECORTANDO A NAÇÃO: FEDERALISMO E POLÍTICA</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Leonardo Dallacqua de Carvalho<br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Resenha do livro: VISCARDI, Cláudia Maria Ribeiro. . Unidos perderemos: a construção do federalismo republicano brasileiro. Curitiba: CRV, 2017.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Dizer que “Não há na História do Brasil nada mais velho que a ‘República Velha’” (VISCARDI, 2017, p. 18) é uma feliz escolha para propor a revisitação da política de transição entre a Monarquia e a República e discutir os impactos do federalismo na organização política nacional. Este é um dos enfoques de Cláudia Maria Ribeiro Viscardi, professora titular do Departamento e do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. Autora de Teatro das Oligarquias (VISCARDI, 2001), obra enraizada na historiografia para oferecer uma leitura concisa sobre a participação dos estados-atores na política da primeira fase republicana, Viscardi apresenta uma nova proposta a respeito das consequências do federalismo na conjuntura do início da República e particularmente do governo Campos Sales. Unidos perderemos, como reconhece a autora, é uma continuação de discussões específicas sobre a descentralização política à época dos debates republicano-federativos.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Preocupada com a análise dos discursos políticos, a autora revela sua orientação teórico-metodológica ao trazer a lume Reinhart Koselleck, Quentin Skinner e John Pocock. Uma vez que a proposta desenvolve a maneira como discursos políticos são transformados em ações, a filiação a estes autores é apresentada no viés de uma história dos discursos políticos. Tais referenciais norteiam o caráter revisionista da pesquisa. Seu lugar na historiografia remete à corrente que propõe compreender de que modo convicções ideológicas ou culturais exerciam influências na prática política. A história intelectual do político e a história dos conceitos aparecem como principais ferramentas de articulação com as fontes. Nas palavras da autora:</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">A história dos conceitos e a dos discursos políticos nos ajudam a compreender as fronteiras além das quais era impossível chegar-se, dado o acesso e a compreensão que os atores tinham das experiências em curso. (VISCARDI, 2017, p. 109)</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">De maneira geral, os cinco capítulos que compõe a obra podem ser divididos em duas frentes. Os dois primeiros relacionados aos manifestos republicanos e suas idealizações de um novo país. Para os entusiastas do republicanismo, ávidos pelo discurso de soberania popular, a crença nos preceitos federalistas reservaria ao Brasil um outro futuro, distante da imagem enferrujada da antiga Monarquia. Nos três capítulos seguintes encaramos a realidade da República à brasileira. O que, de fato, representaram as aspirações republicanas com a fundação do novo regime? O leitor rapidamente percebe o porquê conceitos como “democracia”, “representação” e “cidadania” são tão caros para a autora. Este é um momento significativo no qual Viscardi contrasta a relação entre discurso e prática com a cultura política brasileira. Uma discussão que permite aos capítulos finais adentrarem o governo Campos Sales e questionar os efeitos de sua política de estados como estabilizadora dos conflitos entre as oligarquias.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">O primeiro capítulo demonstra de que modo os discursos políticos ajudam a compreender a formação do movimento republicano, especialmente na utilização de manifestos, documentos oficiais e dicionários. O emprego de dicionários do século XVIII ao XX para o exame conceitual favorece uma interpretação de fontes que procura fugir de anacronismos e generalizações dos discursos dos atores políticos. Ponto importante, por exemplo, para diferenciar conteúdo e forma dos discursos republicanos no Manifesto de 1870 e do Manifesto dos Republicanos do Pará, de 1886. A rigor, o livro atende às expectativas da análise semântica de conceitos como “cidadania” e “tirania”. Esta discussão coloca em pauta a percepção dos republicanos em relação ao conceito de “soberania popular” e o porquê o Poder Moderador era considerado abusivo.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Atenta à análise dos discursos republicanos, Viscardi salienta a importância do movimento republicano como legitimador de uma retórica em contraposição à Monarquia. Considerada ultrapassada, havia a necessidade de uma reforma no regime. Sendo assim, questões como abolição e federalismo eram bandeiras importantes para a descentralização e atuavam como oposição a um regime considerado unitarista. Não à toa a propaganda passou a ser uma poderosa estratégia de convencimento para as transformações estruturais.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">A discussão é ampliada quando a autora coteja o Manifesto de 1870 e o de 1886 e assinala as principais diferenças em seus conteúdos. Isto porque, o de 1870, produzido no Rio de Janeiro e em vista das possíveis reações de oposição, partia de uma crítica mais sutil à Monarquia e ao imperador. Por outro lado, no manifesto do Pará, confeccionado em uma região menos urbanizada e com um movimento republicano mais tímido, prevaleceu um discurso mais combativo ao regime. Em determinado momento, o manifesto de 1886 atacava diretamente a figura de D. Pedro II, chamando-o de “Cezar Caricato”. Segundo Viscardi, “O imperador é tratado como um príncipe conspirador, que permitia que a corrupção se espalhasse por todo o governo” (VISCARDI, 2017, p. 51). Considerando a forma dos manifestos, a autora menciona que o primeiro nutria um caráter mais político e o segundo buscava maior legitimidade intelectual - percebida principalmente nas referências intelectuais utilizadas, entre os quais Auguste Comte, Frei Caneca e Adolphe Thiers.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Com a República no horizonte, o segundo capítulo investiga o conteúdo do texto constitucional de 1891 e dos textos constitucionais dos estados. Em particular, o tratamento da carta constitucional em perspectiva histórica contribui para que mais historiadores se debrucem sobre esta fonte para pensar a fundação e o andamento do regime republicano. Ao comparar os diferentes projetos republicanos do período e, em especial, a carta de 1891, a discussão avança em questões relacionadas à descentralização política e à aplicação do federalismo. Em síntese, o federalismo como nova forma de organização política implicou em maior participação de estados-atores na conjuntura das eleições presidenciais. Viscardi obtém sucesso ao demonstrar como tais negociatas estavam vinculadas ao efeito do federalismo e do municipalismo e alteraram a dinâmica política brasileira.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Um tema que desponta no livro são as articulações da Constituição de 1891 e as coletâneas de textos de constituições dos estados. Percebendo os diferentes projetos republicanos em pauta, a autora entende que os textos constitucionais funcionavam “[...] mais como estratégias discursivas resultantes de consensos, na maioria das vezes arduamente construídos, do que práticas efetivas realizadas” (VISCARDI, 2017, p. 68). Segundo ela, os críticos da Monarquia argumentavam que o Poder Moderador era considerado um estado de divindade, enquanto na democracia o poder estava com o povo. Para os opositores do Império, a República se apresentava como uma alternativa real para que o país figurasse entre as nações ditas civilizadas e alinhadas à democracia. No entanto, a conjuntura do republicanismo e do federalismo à brasileira respondeu aos embates dos grupos responsáveis pela organização da letra da lei. Em outras palavras, o capítulo se preocupa em examinar a confecção da Constituição de 1891 levando em consideração a heterogeneidade dos grupos envolvidos. Entre as medidas observadas, o texto Constitucional reservou maior protagonismo aos estados em comparação à União, principalmente em relação à alocação e autonomia dos impostos para os estados. Se por um lado nota-se o avanço dos direitos civis pela ampliação do direito ao voto, mesmo ainda existindo restrições, por outro, os discursos de transformação social ficaram muito aquém da retórica republicana dos manifestos.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Outro ponto interessante está no prejuízo da descentralização para os municípios. A nova estrutura tornou os municípios, mesmo aqueles geradores de capital, dependentes dos estados e da União. O sistema também depreciou a autonomia política, tornando os municípios reféns de uma engenharia de controle de votos para as disputas eleitorais - vale referenciar o pioneiro estudo de Victor Nunes Leal (1975). Portanto, a despeito da heterogeneidade do movimento republicano e dos acordos para a manutenção da antiga elite política no novo regime, Viscardi conclui que parte das ideias republicanas esteve presente no texto de 1891.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">O terceiro capítulo mergulha mais especificamente no período republicano, sobretudo na discussão da letra da lei da Constituição e as reais transformações sociais -a título de exemplo, a participação política como uma experiência de extensão da cidadania. Com efeito, os dispositivos constitucionais foram se adequando à cultura política nacional que se forjava no andamento da República. Isto é, dispositivos que foram pensados para causas excepcionais, como o estado de sítio, tornaram-se um recurso recorrente. Viscardi resume o contexto republicano da seguinte forma:</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">O federalismo posto em prática resultou na associação entre os princípios constitucionais estabelecidos em 1891 e as culturas políticas construídas ao longo do período que antecedeu a implantação da República. (VISCARDI, 2017, p. 126)</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">O resultado foi uma competição acirrada pelo poder político por meio das eleições. As elites políticas, vencedoras e derrotadas, interferiam a todo o momento no processo eleitoral para assumir o controle das localidades.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Mesmo com as fraudes, as disputas eleitorais exerciam um papel de legitimação das lideranças políticas. A autora destaca que candidaturas independentes poderiam aglomerar adesões e surpreender as chapas oficiais. O voto, então, tornava-se uma importante contrapartida para a classe política à medida que havia a necessidade do convencimento do eleitor, de maneira violenta ou não, a sair de casa para votar, bem como controlar a autonomia do seu voto. Assim sendo, Viscardi contesta a ideia de que as eleições neste período eram pouco competitivas:</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Portanto, afirmar peremptoriamente que as eleições no período, por abarcarem relações coronelísticas ou clientelísticas e por serem objeto de contínuas fraudes, eram favas contadas implica subestimar as clivagens inter-regionais e a existência de um mercado político com graus variados de competição. (VISCARDI, 2017, p. 120)</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">No capítulo quatro, a autora se detém mais especificamente às concepções políticas de Manuel Ferraz de Campos Sales. No diagnóstico do período Campos Sales, Unidos perderemos debate a escassez de trabalhos acadêmicos que contemplem a interpretação do impacto da política dos estados e dos discursos políticos no quatriênio deste homem público. Isto porque, do seu ponto de vista, a historiografia dedicou pouca relevância a este enfoque. O governo do político paulista é a pedra de toque de uma discussão historiográfica que atribui à sua gestão a estabilização do regime político republicano. Uma memória construída - e referendada pelo próprio Campos Sales - que passou a ser compartilhada por diversos intérpretes da nação. No tocante à reforma dos estados, a investigação procura relativizar a importância conferida a Sales pela tradição historiográfica brasileira. Esta questão implica na revisão de autores como Edgard Carone, Fernando Henrique Cardoso, Hélio Silva, Francisco Iglésias e outros. Para Viscardi, muito mais que imputar a estabilização ao seu governo, o problema a ser avaliado está no contexto relacionado tanto à fundação da República e seus desdobramentos quanto na própria gestão do segundo presidente civil.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Nesse sentido, analisando os discursos políticos e sua memória, a autora apresenta um Campos Sales autoritário que buscava governar sem diálogo a partir de suas convicções, principalmente àquelas relacionadas ao presidencialismo, republicanismo e federalismo. Esta complexidade faz com que o entendimento do período não seja reduzido à reforma de Sales, mas na problematização da sua convivência com as dissidências internas. A meu ver, tal tese oferece uma visão historiográfica ampliada do conflito intraoligárquico da Primeira República.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">A discussão que envolve a estabilização do governo Campos Sales é aprofundada no quinto capítulo. A autora defende que a “política dos estados”, percebida como uma reforma estabilizadora do regime, deve ser relativizada. Inclusive, sustenta que esta concepção “[...] foi uma construção de seu próprio autor, referendada em boa parte por estudiosos que lhes foram posteriores” (VISCARDI, 2017, p. 163). Portanto, ao indagar os efeitos da reforma de Campos Sales, Viscardi sugere uma releitura da Primeira República pensando na sua instabilidade política, que talvez tenha sido subestimada por parte das interpretações historiográficas. Embora as reformas empreendidas por Sales demonstrem o descontentamento com as fraudes eleitorais, as mudanças não foram suficientes para evitar a falsificação de diplomas dos eleitos e os resultados eleitorais contraditórios.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Procurar uma tese geral para Unidos perderemos pode limitar sua proposta de análise. Penso que seu principal mérito seja repensar o período político inicial da República e os projetos em competição que buscavam viabilizar e legitimar o regime recém-fundado. Aliás, a obra deve ser situada tendo em vista a própria produção intelectual da autora e sua trajetória na temática. Desde a década de 1990, a professora da Universidade Federal de Juiz de Fora tem como preocupação as discussões relacionadas ao pacto federativo, às elites políticas e à construção do regime republicano. Sendo assim, em continuidade a outras produções, a pesquisa avança na reflexão de que o período precisa ser revisitado, inclusive no que diz respeito ao abandono de certos esquematismos, como a intitulada “política do Café com Leite”. Desse modo, investigar o governo Campos Sales permite um repensar dos conflitos entre as oligarquias a partir da proposta federalista de nação. Nesse sentido, pode-se alargar discussões relacionadas ao voto, aos direitos políticos e à participação civil no processo eleitoral.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">O caráter de revisão de alguns consensos historiográficos não pretende invalidar as pesquisas sobre o Brasil republicano que precedem a obra, mas estimular a releitura do período a partir da apresentação de dados originais e diferentes perspectivas de análise. Esta é a intenção ao recuperar, por exemplo, a dissertação de Maria Carmem Magalhães, acerca dos Mecanismos das “comissões verificadoras de poderes”, publicada em 1986 na Universidade de Brasília. O referido trabalho permitiu verificar que o controle sobre as eleições “[...] se dava muito mais no âmbito dos municípios e estados do que no próprio Parlamento, antes ou depois da reforma de Campos Sales” (VISCARDI, 2017, p. 163). Uma vez considerada a proposta de Unidos perderemos, é preciso aguardar um novo conjunto de investigações para expor quais seriam os limites de sua interpretação.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">O escopo teórico metodológico somado a uma bibliografia atualizada faz com que o tratamento das fontes - especialmente na leitura intratextual dos manifestos republicanos e nas cartas estaduais - seja apresentado de forma inovadora, justificando o argumento revisionista proposto por Viscardi. Assim como em John Pocock (2003) é possível observar que</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">“[...] a história do pensamento político torna-se uma história da fala e do discurso, das interações entre langue e parole. Sustenta-se não somente que essa história do pensamento político é uma história do discurso, mas que ela tem uma história justamente em virtude de se tornar discurso. (POCOCK, 2003, p. 28)</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">A escrita clara e simples favorece a leitura dos capítulos e possibilita maior interação entre o leitor e o argumento central. A obra responde àqueles pesquisadores debruçados no estado da arte da Primeira República e que se orientam na perspectiva dos discursos políticos e suas ações. Em última análise, é um convite para uma atualização historiográfica aos que leem a Primeira República e o federalismo unicamente pela chave dos interesses de classes ou do predomínio regional em detrimento do nacional.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Editores responsáveis pela publicação:</div><div style="text-align: justify;">Júlio Pimentel Pinto e Flavio de Campos.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Referências bibliográficas</div><div style="text-align: justify;">LEAL, Victor Nunes. Coronelismo, enxada e voto: o município e o regime representativo no Brasil São Paulo: Alfa-Ômega, 1975.</div><div style="text-align: justify;">POCOCK, John Greville Agard. Linguagens do ideário político Tradução Fabio Fernandez. São Paulo: Edusp, 2003.</div><div style="text-align: justify;">VISCARDI, Cláudia Maria Ribeiro. O Teatro das Oligarquias: uma revisão da “política do café com leite” Belo Horizonte: Fino Traço, 2011.</div><div style="text-align: justify;">VISCARDI, Cláudia Maria Ribeiro . Unidos perderemos: a construção do federalismo republicano brasileiro Curitiba: CRV, 2017.</div><div style="text-align: justify;"><a class="dropdown-toggle" data-toggle="dropdown" href="https://www.scielo.br/j/rh/a/kbr3T5S8jLPhxCz7n7gfYrJ/?lang=pt" style="animation-duration: 0.1s; animation-fill-mode: both; background-color: white; box-sizing: border-box; color: #00314c; font-family: Arial, sans-serif; font-size: 12.6px; font-weight: 700; outline-offset: -2px; outline: 0px; text-align: left; text-decoration-line: none; transition: color 0.1s ease-out 0s, text-indent 0.1s ease-out 0s;"><span class="text" style="box-sizing: border-box;"><span class="truncate" style="box-sizing: border-box; overflow: hidden; text-overflow: ellipsis; white-space: nowrap; width: 450px;">Revista de História (São Paulo)</span></span></a></div>Eduardo Marculinohttp://www.blogger.com/profile/09461824103400566723noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4969040045050510246.post-41285713526314503872022-10-12T13:42:00.000-07:002022-10-12T13:42:00.335-07:00A MICRO-HISTÓRIA DEBAIXO DO TAPETE - Le plancher de Joachim: l’histoire retrouvée d’un village français<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgk8Lj335xpoq3D-ZsdYNkXd6JvrmGFXsyLWP_ae4pqVAUL9caiapqh3wkAupadPjpyuhihKPxQEZF9VnG9-f5_Ot6jiUvGixdlJnYspZA3tg_dUIk7K_JrE5SfKG7MIxHYjhYjKsHLhpRYk-4ZXViiqtPpZ_n-JmaAySNESOtfzTzMlHp2CAECjQgmbA/s1299/histo6.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="1299" data-original-width="884" height="320" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgk8Lj335xpoq3D-ZsdYNkXd6JvrmGFXsyLWP_ae4pqVAUL9caiapqh3wkAupadPjpyuhihKPxQEZF9VnG9-f5_Ot6jiUvGixdlJnYspZA3tg_dUIk7K_JrE5SfKG7MIxHYjhYjKsHLhpRYk-4ZXViiqtPpZ_n-JmaAySNESOtfzTzMlHp2CAECjQgmbA/s320/histo6.jpg" width="218" /></a></div><br /><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div> <div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">A MICRO-HISTÓRIA DEBAIXO DO TAPETE</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Jair Santos<br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Resenha do livro: BOUDON, Jacques-Olivier. . Le plancher de Joachim: l’histoire retrouvée d’un village français. Paris: Belin, 2017.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">“Feliz mortal, quando você me ler, eu não existirei mais”. Essa é a frase, com ares de epitáfio, que abre o novo livro de Jacques-Olivier Boudon, professor na Sorbonne e importante estudioso da história político-religiosa francesa no século XIX. A obra intitulada Le plancher de Joachim, publicada na França em 2017, é um estudo notável e digno da atenção dos historiadores brasileiros, mais pela metodologia que adota e pelas fontes inusitadas que utiliza do que pelo seu clássico objeto de estudo (a história de um vilarejo francês). O livro de Boudon, contrariando a atual tendência historiográfica das análises globais, transnacionais e conectadas, tira debaixo do tapete da historiografia o velho método analítico da micro-história e mostra que ele não perdeu a utilidade nem a capacidade de abrir novos caminhos de investigação. Aliás, não era apenas o método que se encontrava esquecido: também as fontes do autor, conquanto estas no sentido denotativo. A documentação de indiscutível originalidade com que trabalha Boudon compõe-se de frases escritas a lápis em pequenos fragmentos de madeira escondidos debaixo do assoalho do castelo de Picomtal, situado no vilarejo de Crots, no sudeste da França. A identificação da autoria foi assegurada pelo próprio redator, que cuidou de se revelar à posteridade assinando e datando seus textos gravados no madeiro: trata-se do carpinteiro do vilarejo, chamado Joachim Martin, que nos anos de 1880 e 1881 realizou reparos no assoalho do castelo. As pranchas que serviram de diário ao antigo obreiro da carpintaria foram descobertas pelos proprietários do palacete durante uma reforma executada entre os anos 1999 e 2000. Por obra do acaso, Jacques-Olivier Boudon, ao longo de uma viagem de preparação de um livro sobre o retorno de Napoleão Bonaparte a Paris depois do exílio na Ilha de Elba (1815), pernoitou no castelo de Picomtal, atualmente transformado em hospedaria, e tomou conhecimento da inopinada descoberta. Mal se concluiu um livro, outro já estava a caminho.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">O acervo encontrado constitui-se de 72 textos, totalizando cerca de 4.000 palavras. Não obstante a classificação cronológica dos fragmentos seja impossível, a indicação do ano pelo próprio autor mostra que os textos foram redigidos nas ocasiões em que Joachim Martin estivera trabalhando no castelo durante os verões de 1880 e 1881. Diversos são os temas tratados pelo carpinteiro: ele fala do vilarejo, de seus habitantes e representantes políticos; do padre Joseph Lagier (pároco da igreja local) cujo comportamento lascivo, agravado pela acusação de exercício ilegal da medicina, era duramente reprovado por parte da população; dos fatos da atualidade, como um episódio de infanticídio que o perturbou profundamente; da sexualidade de alguns moradores e até mesmo das investidas indecorosas feitas pelo espevitado vigário às piedosas senhoras na penumbra do confessionário. Em suma, Joachim Martin esboça um quadro detalhado do seu pequeno universo, geográfico e mental, no intuito de legar à posteridade (pressupondo que seus escritos viriam a ser descobertos no futuro, quiçá por outro carpinteiro) uma marca indelével da sua existência.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Foi a partir desse material, cujo caráter sucinto e fragmentário deixava inevitavelmente muitas questões no ar, que Boudon assumiu o desafio de elaborar um interessante exercício de micro-história, a fim de estudar uma pequena sociedade rural dos Alpes no despontar do regime republicano francês. As lentes através das quais o autor contemplou o seu fato histórico figuram entre as mais raras e relevantes para quem lida com a história social: textos escritos diretamente por um homem do povo com plena consciência do transcorrer do tempo, a despeito da origem humilde e da parca instrução, e que almejava inscrever o seu nome na história, mesmo que nenhum ato heroico ou excepcional lhe pudesse ser imputado, de modo a perenizar a própria memória. Essa consciência histórica do carpinteiro acrescenta ao estudo um elemento de ponderação muito pertinente para a história social: como os indivíduos de outras épocas lidavam com o passar do tempo? O senso comum tende a induzir-nos à conclusão de que pessoas iletradas vivem apenas o hoje, sem nenhuma preocupação com o futuro e menos ainda com a memória que deixarão depois de suas mortes. O caso de Joachim Martin é um exemplo expressivo que desmente essa ideia e mostra que a reflexão sobre o tempo e a história também pode fazer parte das inquietudes de um simples carpinteiro, como destaca Boudon:</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">À certains égards, Joachim Martin est un être exceptionnel par le rapport qu’il entretient au temps. Il est à mille lieues de ces gens simples décrits comme uniquement préoccupés du lendemain, vivant au jour le jour, incapables même de se souvenir de leur date de naissance. Au contraire, Joachim a l’obsession de dater les événements de sa vie. (BOUDON, 2017, p. 145)</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">A proposta de Boudon de analisar a história de um vilarejo por meio de um homem comum segue, em certa medida, a trilha aberta pelo trabalho de Alain Corbin (1998), o célebre historiador das sensibilidades, no qual se conta a história de Louis-François Pinagot, um artesão desconhecido que vivia nos rincões da Normandia, cujo nome foi escolhido aleatoriamente pelo autor nos inventários dos arquivos da municipalidade para ter a sua história investigada e a sua biografia reconstituída. Apesar disso, a diferença entre os estudos de Boudon e Corbin é bastante significativa: enquanto o segundo estuda um indivíduo praticamente invisível e esquecido pelo tempo, sobre o qual não havia nenhuma informação direta, o primeiro se baseia num acervo documental razoável produzido pelo próprio personagem que examina. Também é evidente a influência dos trabalhos clássicos de Carlo Ginzburg (2006) e Giovanni Levi (2000), pioneiros na aplicação do método da micro-história. Ademais, o livro dialoga de bom grado com a corrente da “história vista de baixo” (SHARPE, 1992), ao colocar em perspectiva um processo histórico, isto é, as transformações sociais de um vilarejo francês no fim do século XIX a partir da visão de um indivíduo de nível social inferior e sem participação direta nas mudanças em curso. No que diz respeito ao processo histórico propriamente dito, segundo Boudon, o testemunho de Joachim Martin ilustra a dinâmica descrita pelo historiador Eugen Weber num estudo acerca das mutações da França rural que acompanharam a chegada da República, marcadas pelo objetivo de integrar toda a população do país no corpo mais ou menos homogêneo da nação, sobretudo por intermédio da escola laica e do serviço militar obrigatório (WEBER, 1983).</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Obviamente, o acervo textual de Joachim Martin não bastava para a escrita de um livro. Como toda fonte histórica, esta também deveria ser submetida à análise crítica mediante confrontação com outros documentos que permitissem preencher as lacunas factuais, bem como detectar eventuais erros, exageros ou imprecisões. Para tanto, Boudon colocou em prática o savoir faire do historiador e prospectou os arquivos nacionais, regionais e diocesanos, assim como algumas fontes impressas entre o fim do século XIX e o início do século XX que tratavam do vilarejo de Crots. Ao término da pesquisa, o autor concluiu que muitas das afirmações de Joachim eram, de fato, corroboradas por outras fontes. Cruzando as diferentes informações coletadas, foi possível escrever uma breve história daquele vilarejo a partir de alguns núcleos temáticos sugeridos pelo carpinteiro nas mensagens gravadas nas pranchas: biografia de Joachim Martin (capítulo I); descrição de Crots e da sua população (capítulo II); história dos proprietários do castelo de Picomtal (capítulo III); considerações sobre a agricultura no vilarejo (capítulo IV); contexto político local (capítulo V); moral sexual da época (capítulo VI); percepção do tempo e relação com o passado (capítulo VII); declínio da prática religiosa (capítulo VIII); e transformações no campo e êxodo rural (capítulo IX).</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Impressiona nos textos de Joachim a franqueza com que ele se exprime sobre os diferentes assuntos, movido talvez pela convicção de que não seria lido (pelo menos não em vida), e a razoável habilidade com que o faz, dado curioso cuja explicação Boudon associa à fé protestante da mãe do carpinteiro que provavelmente conservava o hábito difuso no protestantismo de ler cotidianamente a Bíblia em casa. Esta é a hipótese levantada pelo autor para explicar o apego de Joachim à escrita:</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">La mère de Joachim était protestante. Certes, elle a accepté qu’il soit baptisé et élevé dans la religion catholique, mais on ne peut pas imaginer que son protestantisme n’ait pas eu une influence sur son éducation. En effet, les protestants sont particulièrement attachés à l’apprentissage de la lecture et de l’écriture qui permet de rentrer en contact avec les textes bibliques. Dans les temples réformés, les murs affichent pour l’essentiel des versets de la Bible. Il est peu probable que Joachim soit jamais entré dans un temple, mais il est fort possible que sa mère lui en ait parlé (BOUDIN, 2017, p. 152).</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Embora sua linguagem seja simples, direta e às vezes confusa, o mero fato de utilizar a escrita como meio de reflexão, numa época em que ler e escrever ainda eram habilidades raras no campo, revela a peculiaridade do personagem e ressalta a excepcionalidade da fonte. Num trabalho de micro-história, é fundamental que o historiador encontre a individualidade do sujeito que estuda, ou seja, que saiba determinar com clareza aquilo que faz o seu relato e a sua existência dignos de interesse. O parâmetro para julgá-lo está ligado aos traços e indícios que, a partir de um ponto de vista singular, podem ser colhidos a fim de melhor decifrar a trama complexa, plural e opaca da história social, cujo intenso dinamismo dificulta uma compreensão sistemática imediata. Essa é a ideia por trás do célebre “paradigma indiciário” de Carlo Ginzburg, entendido como um princípio metodológico fundamental para evitar as distorções de estudos excessivamente generalizantes sobre determinados fenômenos sociais (GINZBURG, 1999). O estudioso que falhe nessa consideração preliminar correrá inevitavelmente o risco da banalidade e seu estudo poderá se tornar uma compilação de obviedades ou de frivolidades históricas que pouco acrescentam à compreensão de contextos ou processos históricos mais amplos. Se, por um lado, o livro de Boudon não cai nessa armadilha, por outro, são recorrentes ao longo do texto as afirmações de caráter puramente hipotético que não podem ser atestadas em virtude do silêncio das fontes ou simplesmente de sua insuficiência material, como aquela à qual se acenou acima relativa ao vínculo de causalidade entre uma certa cultura literária de Joachim e o protestantismo professado por sua mãe, que sequer é mencionada nos escritos do carpinteiro.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Apesar de se apoiar em alguns momentos em ideias meramente especulativas e sem base empírica, o livro de Boudon é um exemplo estimulante do grande potencial criativo da micro-história, reforçado pela impecável habilidade narrativa do autor. Como visto, também impressiona o caráter fortuito e extraordinário das fontes. Se, normalmente, uma pesquisa histórica começa com a importante escolha dos arquivos por parte do estudioso, nesta obra a situação foi bastante diversa: foram as fontes que escolheram o seu historiador, ansiosas por trazer à tona a história de Joachim, escondida sob o assoalho de um castelo por mais de um século. É relevante mencionar ainda que a excepcionalidade da história atraiu a atenção do grande público para o livro, ao qual o canal televisivo France 2 dedicou uma acurada reportagem de 47 minutos, no dia 3 de fevereiro de 2019. Baseando-se na visão de mundo de um “protagonista anônimo da história” (VAINFAS, 2002), revelada por uma fonte atípica de conteúdo substancial, e explorando uma temática cara às análises micro-históricas, a obra de Boudon consegue traçar com riqueza de minúcias uma história do vilarejo de Crots num período pleno de mudanças sociais e políticas que afetavam significativamente a sociedade rural na França.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">1</div><div style="text-align: justify;">Tradução livre: “Sob certos aspectos, Joachim Martin é um ser excepcional pela relação que mantém com o tempo. Ele está a mil léguas dessas pessoas simples descritas como preocupadas unicamente com o dia seguinte, vivendo no dia a dia, incapazes até mesmo de se lembrar de suas datas de nascimento. Ao contrário, Joachim tem uma obsessão por datar os acontecimentos de sua vida”.</div><div style="text-align: justify;">Editores responsáveis pela publicação:</div><div style="text-align: justify;">Júlio Pimentel Pinto e Flavio de Campos.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Referências bibliográficas</div><div style="text-align: justify;">BOUDON, Jacques-Olivier . Le plancher de Joachim: l’histoire retrouveé d’un village français Paris: Belin, 2017.</div><div style="text-align: justify;">BURKE, Peter (org.). A escrita da História: novas perspectivas São Paulo: Editora Unesp, 1992.</div><div style="text-align: justify;">CORBIN, Alain. Le monde retrouvé de Louis-François Pinagot: sur les traces d’un inconnu (1798-1876) Paris: Aubier, 1998.</div><div style="text-align: justify;">GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes: o cotidiano e as ideias de um moleiro perseguido pela Inquisição São Paulo: Companhia de Bolso, 2006.</div><div style="text-align: justify;">GINZBURG, Carlo. Mitos, emblemas, sinais: morfologia e História São Paulo: Companhia das Letras, 1999.</div><div style="text-align: justify;">LEVI, Giovanni. A herança imaterial: trajetória de um exorcista no Piemonte do século XVII Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000.</div><div style="text-align: justify;">REVEL, Jacques (org.). Jeux d’échelles: la micro-analyse à l’expérience Paris: Gallimard, 1996.</div><div style="text-align: justify;">VAINFAS, Ronaldo. Micro-história: os protagonistas anônimos da História Rio de Janeiro: Campos, 2002.</div><div style="text-align: justify;">WEBER, Eugen. La fin des terroirs: la modernisation de la France rurale, 1870-1914 Paris: Fayard, 1983.</div><div style="text-align: justify;"><a class="dropdown-toggle" data-toggle="dropdown" href="https://www.scielo.br/j/rh/a/mTCs8mjVN8KSSnz7ZjtrwXb/?lang=pt" style="animation-duration: 0.1s; animation-fill-mode: both; background-color: white; box-sizing: border-box; color: #00314c; font-family: Arial, sans-serif; font-size: 12.6px; font-weight: 700; outline-offset: -2px; outline: 0px; text-align: left; text-decoration-line: none; transition: color 0.1s ease-out 0s, text-indent 0.1s ease-out 0s;"><span class="text" style="box-sizing: border-box;"><span class="truncate" style="box-sizing: border-box; overflow: hidden; text-overflow: ellipsis; white-space: nowrap; width: 450px;">Revista de História (São Paulo)</span></span></a></div>Eduardo Marculinohttp://www.blogger.com/profile/09461824103400566723noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4969040045050510246.post-36420239896185245832022-10-12T13:02:00.007-07:002022-10-12T13:02:58.034-07:00Diálogos Makii de Francisco Alves de Souza: manuscrito de uma congregação católica de africanos Mina, 1786<div style="text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjQJkFlLjO5cbffcxwxtbJX0Q7wS-1xw0GDLU1lKsrxEhCc1fyt64ccH73cTaOAbKakYlQFaMLl4GBQkkTXyjOYnU-O4oQFInZWiTCnOIPdY-ku9520S9-VrB7dI1C5IfGYjKextoTfiVEZnZPmCPLGek65Ol7Gh4ErU2QUcPkwBvC-5y6v1XdgdQg5Ow/s499/dialogos.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="499" data-original-width="364" height="320" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjQJkFlLjO5cbffcxwxtbJX0Q7wS-1xw0GDLU1lKsrxEhCc1fyt64ccH73cTaOAbKakYlQFaMLl4GBQkkTXyjOYnU-O4oQFInZWiTCnOIPdY-ku9520S9-VrB7dI1C5IfGYjKextoTfiVEZnZPmCPLGek65Ol7Gh4ErU2QUcPkwBvC-5y6v1XdgdQg5Ow/s320/dialogos.jpg" width="233" /></a></div><br /><div style="text-align: justify;"><br /></div> <div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">DIÁLOGOS DE FÉ, DEVOÇÃO E ESCRAVIDÃO AFRICANA NO RIO DE JANEIRO SETECENTISTA</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Carlos da Silva Jr<br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">SOARES, Mariza de Carvalho. Diálogos Makii de Francisco Alves de Souza: manuscrito de uma congregação católica de africanos Mina, 1786. São Paulo: Chão Editora, 2019. 238</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">A publicação de fontes históricas não é algo muito comum no mercado editorial brasileiro. Neste sentido, é mais do que bem-vinda esta narrativa sobre uma congregação religiosa católica formada por africanos que originalmente vieram para o Brasil escravizados do Golfo do Benim (atual Togo, Benim e Nigéria). Este documento, guardado na seção de Manuscritos da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, foi apresentado ao público através do trabalho de Mariza de Carvalho Soares, uma das mais destacadas africanistas em atividade no Brasil. Partes dele tinham sido exploradas em trabalhos anteriores da pesquisadora, mas somente agora uma edição crítica do documento, com notas explicativas, veio a lume.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Antes deste livro, a autora já havia publicado Devotos da cor, obra que trata da Irmandade de Santo Elesbão e Santa Efigênia no Rio de Janeiro durante o século XVIII (SOARES, 2000). Ademais, ela também organizou um livro sobre a diáspora da Costa da Mina para o Rio de Janeiro (SOARES, 2007). Em outras palavras, é uma conhecedora desta região africana e da diáspora no Brasil dos povos desta área (conhecida pelos linguistas como “área dos gbe-falantes”). A iniciativa contou com o apoio da Chão, editora nova no mercado e que já tinha publicado documentos sobre Jovita Feitosa, uma voluntária para a Guerra do Paraguai, com comentários de José Murilo de Carvalho (CARVALHO, 2019).</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Diálogos Makii, título da obra, refere-se a dois diálogos entre o regente da Congregação Mina, Francisco Alves de Souza, e Gonçalo Monteiro, secretário da agremiação. O primeiro diálogo trata da “conflituosa eleição” do regente e dos estatutos a uma devoção às Almas de 1786; o segundo aborda a expansão portuguesa na África Ocidental e um roteiro de navegação para a Costa da Mina. Como a organizadora explica, os diálogos são uma novidade da perspectiva literária, pois “reproduz o modo de escrever dos segmentos menos letrados” (p. 9), e do ponto de vista histórico, pois apresenta a perspectiva “de um grupo de africanos escravizados sobre seu dramático processo de conversão ao catolicismo” (p. 9).</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Os mahis (ou como prefere a organizadora, seguindo a documentação, Makiis) formavam uma confederação que vivia ao norte de Abomé, capital do antigo reino do Daomé (atual Benim). Com a ascensão deste reino, sobretudo a partir da década de 1720, a área mahi converteu-se num “campo de caça a escravos”, como a define o historiador nigeriano Isaac Akinjogbin (AKINJOGBIN, 1967). Incursões frequentes das forças daomeanas sobre seu território resultaram na deportação de milhares de mahis através do Atlântico nos séculos XVIII e XIX, boa parte dos quais encontrou o fim da jornada transatlântica no Brasil (SWEET, 2011; REIS, 2016, p. 13-40). É justamente nesse contexto de estabelecimento de uma comunidade mahi no Rio de Janeiro que se pode compreender a fundação da Congregação Mina (sendo mina um “guarda-chuva” étnico que englobava os diversos povos falantes de gbe), formada principalmente, mas não somente, por mahis.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">O livro transcreve na íntegra as 70 folhas do manuscrito, com notas explicativas para certos termos e citações, facilitando a leitura. O livro é composto de três partes: uma transcrição dos dois diálogos (p. 13-107); um posfácio de Soares (p. 111-177), que inclui uma cronologia da Congregação Makii, além de anexos (cartas de alforria, habilitação matrimonial, testamento) que adicionam novas camadas documentais e permitem compreender diferentes aspectos das vidas dos principais integrantes da congregação mahi, na África e no Brasil.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Através destes documentos, por exemplo, foi possível conhecer melhor a Francisco Alves de Souza, regente da Congregação Mina e autor dos Diálogos. Escravizado na área mahi com cerca de 10 anos de idade, foi enviado para a costa (provavelmente Uidá), de onde seguiu para a ilha de São Tomé e de lá continuou a jornada até a Bahia, onde passou pouco tempo. Da Bahia, seguiu para o Rio de Janeiro, sendo comprado em 1748 por um comerciante. Francisco Alves permaneceu como escravo por pelo menos trinta anos até conseguir sua alforria. A documentação complementar também revela inesperados encontros (ou reencontros) nas Américas, como de Ignácio Gonçalves do Monte e Victória Correa (rei e rainha da Congregação Makii), que se uniram em matrimônio. Como declarou Ignácio Monte em seu testamento de 1763, (embora só tivesse falecido 20 anos mais tarde), Victoria era filha de seu avô, “Eseú Agoa”, rei dos mahis, portanto sua tia. Como nota a autora, trata-se não apenas de um casamento intrafamiliar, mas de um casamento entre pessoas de diferentes grupos étnicos - Ignácio Monte era Mahi enquanto Victoria Correa pertencia à nação Courá. Essa narrativa é de difícil interpretação à luz do que se conhece sobre a história dos povos mahis - na organização política mahi não havia a figura do “rei”, talvez referindo a um chefe local -, mas ela retrata o processo de separação de famílias durante a era do tráfico e o seu reencontro nas Américas, o que, embora fosse incomum, não era impossível (OLIVEIRA, 1995/1996, p. 174-193).</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">O estabelecimento de uma congregação católica de africanos da Costa da Mina no Rio de Janeiro setecentista é particularmente importante, uma vez que a maior parte do tráfico daquela região foi direcionado para a Bahia, que recebeu 80% dos dois milhões de indivíduos que deixaram a Costa da Mina, segundo dados do Voyages: The Transatlantic Slave Trade Database (ELTIS; BEHRENDT; RICHARDSON; FLORENTINO, 2006). Apesar do reduzido número de africanos escravizados da Costa da Mina no Rio de Janeiro no final do século XVIII (cerca de 10% do total de africanos, segundo estimativas da autora, p. 113), a Congregação Mina carioca representava um microcosmo dos diferentes grupos étnicos tragados pelo tráfico negreiro na Costa da Mina e deportados para as Américas. Eram mina-makiis, mina-sabarus, mina-chambá, mina-courá, mina-nagô, mina-cobu, entre outros grupos. Como observou Mariza Soares, os africanos minas traziam na bagagem experiências de convivência na África bem como “lembranças das guerras e da escravização” (p. 131).</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Assim, o manuscrito demonstra as tensões no interior da Congregação como resquícios das rivalidades trazidas do lado de lá do Atlântico. Por exemplo, a cizânia no seio da Congregação Mina envolveu, de um lado, Mahis, Zanos, Agolins (Agonlin), Sabarus (Savalu), e de outro, os Dagomés (isto é, os Fons). A celeuma surgiu a partir “de alguns ditos picantes que os dagomés lhes diziam” (p. 41). Sabendo que o Daomé foi o principal reino escravista da Costa da Mina durante o século XVIII, pode-se facilmente imaginar quais foram os tais “ditos picantes”. Não deixa de ser irônico que escravistas e escravizados tenham compartilhado a condição de cativeiro nas Américas e tenham se reunido no interior da Congregação Mina.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Embora integrados em alguma medida ao universo português, o background africano dos seus membros continuava a operar no seio da Congregação Mina. Enquanto conflitos internos reacendiam rivalidades antigas, as hierarquias internas reproduziam terminologias africanas, reelaboradas no contexto da diáspora. Por isso encontram-se termos de difícil compreensão, como “Aeolû Cocoti de Daçá, que é como cá também duque” (p. 45). Como mostra a autora, esta e outras expressões correspondem à língua geral de Mina, “uma mistura de línguas gbe (fon e maxi) e iorubá” (p. 212, nota 17).</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Outro aspecto trazido pelo manuscrito é a preocupação com os “abusos e superstições” (p. 20), as práticas “gentílicas e supersticiosas” (p. 40) e o desejo de expurgá-las do interior da comunidade religiosa. Entretanto, o regente Francisco Alves afirmou ao secretário Cordeiro que “[o]s pretos Mina, principalmente os que vêm daquela oriunda Costa e Reino de Makii, são tão briosos que nunca usaram de abusos, nem de superstições, como vossa mercê bem sabe” (p. 21). Ora, a ênfase nesse aspecto indica que este diálogo tinha outro público-alvo, qual seja, as autoridades portuguesas, e visava garantir aquela comunidade religiosa sob o manto do catolicismo. Outras irmandades, em diferentes partes da América portuguesa - inclusive outras formadas por africanos da Costa da Mina -, utilizavam-se do mesmo vocabulário da aversão a valores espirituais africanos para demonstrar o sucesso da conversão e adesão ao catolicismo (PARÉS, 2006; BONOMO, 2015; PARÉS, 2016).</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Vale ainda destacar que o manuscrito mina (sobretudo passagens do Diálogo Segundo) foi elaborado “a partir de informações de terceiros” (p. 145). Mariza Soares identifica pelo menos uma das obras consultadas por Francisco Alves para narrar as conquistas portuguesas na África: os Dialogos de varia historia que sumariamente se referem muitas, de Pedro Mariz, publicado em 1597, de onde também teria tirado inspiração para o manuscrito na forma de diálogos. Como Francisco Alves teria deixado a Costa da Mina em tenra idade (menos de 10 anos, segundo Soares, p. 150), sua descrição da região foi feita a partir de “informações na cultura erudita da cidade onde viveu a maior parte de sua vida” (p. 150). Soares empreende um cuidadoso trabalho de identificar as raízes do gênero dialógico de narrar, que vai de Platão ao padre Manuel da Nóbrega. A autora também coteja as informações fornecidas no Segundo Diálogo sobre a Costa da Mina e seus reinos com descrições de época, cotejando com fontes conhecidas para a história da África Ocidental no período pré-colonial.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Segundo Soares, o autor dos Diálogos aprendeu a ler e escrever durante seu período de cativeiro (que provavelmente só terminou após a morte seu senhor, depois de 1777), e se beneficiou da instrução fornecida pelos franciscanos e do acesso a livros (pp. 118-120). A assinatura do regente Francisco Alves, “feita em desenho apurado”, indica “um homem não apenas alfabetizado, mas ilustrado” (p. 120), como aliás o define o secretário Cordeiro, tornando o documento ainda mais relevante. Segundo Soares, o manuscrito “deve ser lido como registro de uma experiência coletiva de escravização produzida no interior do próprio grupo, por um de seus representantes, em uma época em que a escrita era quase exclusivamente uma ferramenta das elites.” (p. 113).</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">A erudição apresentada por Francisco Alves (com inclusão de passagens da Bíblia e citações em latim) se assemelha à de outro africano, Olaudah Equiano, que publicou em 1789 uma autobiografia que rapidamente se converteu em um best seller (EQUIANO, 2003). Acredito que o manuscrito tenha passado por alguns processos de edição para adequar-se ao público ao qual se destinava, embora Mariza Soares credite todo o conteúdo ao próprio Francisco Alves. Ainda que o documento não possa ser considerado uma autobiografia no sentido clássico, as informações ali contidas e os documentos adicionais fornecidos pela organizadora abrem uma janela para o mundo dos afro-ocidentais no Rio de Janeiro do século XVIII.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">O Segundo Diálogo trata dos principais portos da Costa da Mina. Como informa o autor, ele obteve informações de um “piloto amigo” que viajou para a Costa da Mina “há muitos anos” (p. 86). Na atlântica cidade do Rio de Janeiro setecentista, não seria difícil encontrar pessoas (capitães negreiros, marinheiros) que, em algum momento de suas vidas, atravessaram o oceano e desembarcaram na África Ocidental, e mais especificamente na Costa da Mina, terra de Francisco. Talvez por ter se informado com alguém que viajou para a Costa da Mina “há muitos anos”, Francisco Alves tenha incorrido em alguns erros, como por exemplo identificar Uidá (grafado no documento “Fidá, ou Ajudá”) como porto de “Ardra” (Aladá), quando Uidá reivindicou sua independência de Aladá em fins do século XVII (LAW, 1991, p. 225-260). Ou seja, quando Francisco Alves chegou ao Brasil, na década de 1730, Uidá há muito deixara de ser tributário de Aladá e tinha sido conquistado pelo Daomé (1727) (LAW, 2004). Similarmente, Jakin (grafado “Jaquem”) é descrito como local “aonde se faz muito negócio de pretos” (p. 91). Ocorre que o porto de Jakin fora destruído pelas tropas daomeanas em 1732 e novamente em 1734, 50 anos antes da escrita dos Diálogos. É possível ainda que Francisco Alves tenha obtido algumas dessas informações através das inúmeras narrativas de viajantes do século XVII, particularmente de viajantes e comerciantes holandeses na costa ocidental africana. Afinal, “Fidá”, como aparece no manuscrito (p. 90), é a grafia holandesa em documentos coevos (BOSMAN, 1705). Versado nas práticas de leitura, como argumenta Soares, o regente da Congregação Mina pode ter tido acesso a esse material. Por outro lado, a maior parte desses textos encontram-se ainda hoje em inglês, francês e holandês, nunca traduzidos - infelizmente - para o português, o que exigiria de Francisco Alves fluência em várias línguas - ou o auxílio de alguém versado nelas -, tornando sua história ainda mais interessante.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Diálogos Makii “compõem uma narrativa de escape à escravização, à assustadora viagem transatlântica e aos anos de escravidão que viveram e que queriam esquecer” (p. 150). Tudo narrado em primeira pessoa, o que constitui uma fonte para os historiadores da África e da diáspora africana bem como para o público não acadêmico interessado na história da escravidão. Que estes diálogos estimulem o mercado editorial brasileiro a investir na publicação de fontes sobre a história da África e dos africanos escravizados no Brasil.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Referências Bibliográficas</div><div style="text-align: justify;">AKINJOGBIN, Isaac A. Dahomey and its Neighbours, 1708-1818 Cambridge: Cambridge University Press, 1967.</div><div style="text-align: justify;">BONOMO, Gabriella Oliveira. O Bom Senhor Jesus dos Martírios - Irmandades de Africanos e Crioulos na Bahia Oitocentista Dissertação de Mestrado, História, Programa de Pós Graduação em História Regional e Local, Universidade do Estado da Bahia, 2015.</div><div style="text-align: justify;">BOSMAN, Willem. A New and Accurate Description of the Coast of Guinea, Divided into the Gold, the Slave, and the Ivory Coasts Londres: Knapton, 1705.</div><div style="text-align: justify;">CARVALHO, José Murilo de. Jovita Alves Feitosa: voluntária da pátria, voluntária da morte São Paulo: Chão Editora, 2019.</div><div style="text-align: justify;">ELTIS, David; BEHRENDT, Stephen; RICHARDSON, David; FLORENTINO, Manolo. Voyages: The Transatlantic Slave Trade Database Disponível em: <www.slavevoyages.org>. Acesso em: 8 de setembro de 2019. (“Atualmente o site está migrando para uma nova plataforma, impedindo seu acesso no momento”)</div><div style="text-align: justify;"><a href="http://www.slavevoyages.org/">» www.slavevoyages.org</a></div><div style="text-align: justify;">EQUIANO, Olaudah. The Interesting Narrative and Other Writings (Edited with an Introduction and Notes by Vincent Carretta). Nova York: Penguin, 2003.</div><div style="text-align: justify;">LAW, Robin. The Slave Coast of West Africa, 1550-1750: The Impact of the Atlantic Slave Trade on an African Society Oxford: Clarendon Press, 1991.</div><div style="text-align: justify;">LAW, Robin. Ouidah: The Social History of a West African Slaving ‘Port’, 1727-1892 Athens: Ohio University Press, 2005.</div><div style="text-align: justify;">OLIVEIRA, Maria Inês Cortes de. Viver e morrer no meio dos seus: nações e comunidades africanas na Bahia do século XIX. Revista USP, São Paulo (28), dezembro/fevereiro 95/96, p. 174-193.</div><div style="text-align: justify;">PARÉS, Luis Nicolau. A formação do Candomblé: história e ritual da nação jeje na Bahia Campinas: Editora da Unicamp, 2006.</div><div style="text-align: justify;">PARÉS, Luis Nicolau. O rei, o pai e a morte: a religião vodum no antiga Costa dos Escravos na África Ocidental São Paulo: Companhia das Letras, 2016.</div><div style="text-align: justify;">REIS, João José. Revisitando ‘Magia Jeje na Bahia’. In: COSTA, Valéria; GOMES, Flávio dos Santos (orgs.). Religiões negras no Brasil: da escravidão à pós-emancipação São Paulo: Selo Negro, 2016, p. 13-40.</div><div style="text-align: justify;">SOARES, Mariza de Carvalho. Devotos da cor: identidade étnica, religiosidade e escravidão no Rio de Janeiro, século XVIII Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000.</div><div style="text-align: justify;">SOARES, Mariza de Carvalho (org.). Rotas atlânticas da diáspora africana: da Baía do Benim ao Rio de Janeiro Rio de Janeiro: EDUFF, 2007.</div><div style="text-align: justify;">SWEET, James. Domingos チlvares, African Healing, and the Intellectual History of the Atlantic World Chapel Hill: University of North Carolina Press, 2011.</div><div style="text-align: justify;"><a class="dropdown-toggle" data-toggle="dropdown" href="https://www.scielo.br/j/rh/a/fZnfPXpVZmB5JnLfPn9mgZz/?lang=pt" style="animation-duration: 0.1s; animation-fill-mode: both; background-color: white; box-sizing: border-box; color: #00314c; font-family: Arial, sans-serif; font-size: 12.6px; font-weight: 700; outline-offset: -2px; outline: 0px; text-align: left; text-decoration-line: none; transition: color 0.1s ease-out 0s, text-indent 0.1s ease-out 0s;"><span class="text" style="box-sizing: border-box;"><span class="truncate" style="box-sizing: border-box; overflow: hidden; text-overflow: ellipsis; white-space: nowrap; width: 450px;">Revista de História (São Paulo) </span><span class="sci-ico-arrowDown" style="-webkit-font-smoothing: antialiased; box-sizing: border-box; display: inline-block; font-family: scielo-glyphs !important; font-variant-east-asian: normal; font-variant-numeric: normal; font-weight: 400; line-height: 1em; speak: none; vertical-align: middle;"></span></span></a></div>Eduardo Marculinohttp://www.blogger.com/profile/09461824103400566723noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4969040045050510246.post-69680662391727641272022-10-12T12:40:00.001-07:002022-10-12T12:49:32.466-07:00Políticas da inimizade<div style="text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgb1x1uqd4hcD10zNnWwRb76tLi0i4m9uTFG_yAf_stCDmS2jLK_a5VnUT_et0hObkNTHn34ixD1PlVZJnAkLV49z2_Xak38yYlFCmK_45OQfe2ilHjqX7XBFyDnxkb8sZMyDJY8BBwtmFpTfRq1EendVmQ7e1cGvegQtAILoqcQTlonvWQzWuONVmxcQ/s626/chile.jpg" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="626" data-original-width="400" height="320" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgb1x1uqd4hcD10zNnWwRb76tLi0i4m9uTFG_yAf_stCDmS2jLK_a5VnUT_et0hObkNTHn34ixD1PlVZJnAkLV49z2_Xak38yYlFCmK_45OQfe2ilHjqX7XBFyDnxkb8sZMyDJY8BBwtmFpTfRq1EendVmQ7e1cGvegQtAILoqcQTlonvWQzWuONVmxcQ/s320/chile.jpg" width="204" /></a></div><br /><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">QUANDO NÃO SE PODE MAIS CONVIVER</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Flavio Dantas Martins<br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">MBEMBE, Achille. Políticas da inimizade. Lança, Marta. Lisboa: Antigona, 2017</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Saiu em português de Portugal pela Antígona, com o título Políticas da inimizade, a tradução de Politiques de l’inimitié, publicado em 2016 pela Éditions La Découverte, do professor de história e de ciência política Achille Mbembe. Nascido em 1957 em Otété, Camarões, um dos mais importantes intelectuais cosmopolitas da atualidade, o autor leciona no Witwatersrand Institute for Social and Economic Research e já publicou títulos importantes como Crítica da razão negra (MBEMBE, 2014) que também tem tradução em Portugal, original, Critique de la raison nègre (MBEMBE, 2013a), Sortir de la grande nuit (MBEMBE, 2013b) e De la postcolonie (MBEMBE, 2000).</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">O livro tem cinco capítulos, alguns deles já publicados em revistas em edições anteriores, uma introdução e uma conclusão. Além do profundo e crítico diálogo com os estudos pós-coloniais, o chamado pós-estruturalismo e a historiografia e teoria política contemporâneas, familiar para quem conhece o autor, os ensaios possuem um interlocutor principal: o martiniquenho Frantz Fanon.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">A introdução é breve e anuncia as questões que conectam os ensaios do livro. Ele destaca a atualidade do pensamento de Fanon, que anunciava a preocupação com a vulnerabilidade do homem em um mundo em guerra, o diagnóstico da violência que se alimenta retroativamente e as possibilidades de saída desse círculo de extermínio, o pharmakon.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">O primeiro capítulo, “A saída da democracia” debate um problema contemporâneo que está para além de crises particulares dentro das fronteiras dos Estados nacionais, que é o problema da dificuldade de conviver com o dessemelhante nas democracias. O autor afirma que pensa o mundo a partir da África (MBEMBE, 2017, p. 21), mas a abrangência de sua análise contempla tanto as democracias que têm apresentado crescimento da xenofobia, quanto aquelas que tem um inimigo interno - pensamos que Estados Unidos, Brasil ou França tem combinações variáveis dos dois e o Outro pode ser o negro, o indígena, o judeu ou o imigrante, refugiado ou imigrante de África ou América Latina. O aspecto xenófobo se destaca, sobretudo, no norte global, porque um dos traços marcantes de nosso tempo é o repovoamento da terra em favor dos povos do sul, destaca ele. Essa migração não se carateriza pelas demandas de trabalho variáveis da divisão mundial, afinal o trabalho se tornou supérfluo de acordo com Mbembe, mas pela pura e simples destruição de sociedades do sul pelos conflitos armados, guerras coloniais ilegais, destaca, mas também guerras sem estado. O Terror não é mais um exército de liberação nacional, mas uma rede internacional que não reconhece fronteiras, não reivindica a tomada de poder - em termos de substituição de poder soberano dentro de fronteiras pré-estabelecidas - e não funciona numa lógica territorial. Ao mesmo tempo, o anti-Terror utiliza cada vez menos seus cidadãos armados em exércitos nacionais, mas terceiriza para mercenários e organizações de oposição a gestão dos conflitos - o caso da guerra civil síria poderia ser evocado aqui onde o exército nacional é apenas uma das forças em um conflito de várias camadas. Mbembe apresenta as condições históricas para a atual crise da democracia: a sua fundação na colônia e na plantação colonial - a plantation - e sua condição de comunidade de semelhantes e não-semelhantes que fundou as democracias de escravos. Mais uma vez os exemplos emblemáticos de Estados Unidos, Brasil ou França em que os liberalismos diversos fundaram regimes eleitorais com bases em direitos igualitários para os senhores de escravos. O autor destaca como o linchamento de negros - emblemático nos Estados Unidos, chamado por Fanon de “país de linchadores” - explicita duas coisas: a supremacia branca e a violência que a sustenta. Para Mbembe, o mundo colonial é a face noturna da democracia: na colônia já estavam presentes as plantations que precederam os campos de concentração e de extermínio modernos - poderíamos destacar a revolução haitiana ou a guerra dos bôeres como exemplos de políticas de concentração dos inimigos e posterior massacre em situações coloniais. A guerra de conquista colonial também naturaliza o inimigo.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Além desse componente histórico de longa duração para a atual crise da democracia, há um componente recente nesta. Trata-se da idade do plástico que substituiu o ferro, como nova característica civilizatória, conforme o autor. Esse componente é acompanhado do aumento da velocidade da economia financeira e o crescimento do poder do capital sobre a vida. A estonteante rapidez transformou o mundo em um lugar governado por algoritmos e o ser humano, em um novo ciborgue. O equilíbrio da força em uma velocidade crescente tornou a economia e as políticas globais instáveis, imprevisíveis, destrutivas.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Outro ponto importante a se destacar no primeiro capítulo é o paradoxo das democracias: o fim do Estado de direito para proteger o próprio direito. Mbembe afirma que o Terror do fundamentalismo ameaça o Estado de direito e, como em resposta, as democracias suprimem os direitos individuais de seus cidadãos que passam a ser vistos como inimigos internos potenciais sob a bandeira de preservação desses direitos. Essa lógica de política é a democracia assumindo a necropolítica em seu próprio território. Necropolítica, aliás, é um conceito desenvolvido pelo autor em artigo em resposta à insuficiência do conceito de biopoder que não dá conta da política de descarte da vida dos governos como base de sua soberania; para Mbembe, a soberania é a administração de populações por meio de terror numa política de morte banalizada. O motor dessa nova forma de política é o racismo, afirma Mbembe, um racismo que fundamenta o desejo nessas democracias de viver sem os não-semelhantes. A violência será substituída pela regulação dos comportamentos, pela produção da opinião pública e pela prevenção da agitação. Nas palavras do autor, “Com a ajuda da necessidade de mistérios e o regresso do espírito de cruzada, vive-se num tempo mais dado a dispositivos paranóicos, à violência histérica, aos processos de aniquilação de todos aqueles que a democracia tem transformado em inimigos do Estado” (MBEMBE, 2017, p. 69).</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">A esse diagnóstico, o autor lembra que se o futuro é de catástrofe, também é de recomeço. Se somos seres de fronteira (êtres de frontière no original) porque nos fazemos em oposição ao outro, podemos fazer várias coisas pelo encontro. Mbembe destaca que em oposição às tradições ocidentais, religiosas ou laicas, em que a história tem um ponto final, algumas tradições africanas entendem que a história é encontro e levam a pensar o que se fazer com ele.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">No segundo capítulo, “A sociedade de inimizade”, Mbembe discute o problema central do livro, a emergência dessa pós-democracia, o regime dos semelhantes. Ela se resume em um desejo doentio de viver sem o outro, apartar-se, sentimento causado pelo medo. Em suas palavras, “Hoje em dia, o desejo de inimigo, o desejo de apartheid (separação e enclave) e a fantasia de extermínio ocupam o lugar deste círculo encantado. Em inúmeros casos, basta um muro para o exprimir” (MBEMBE, 2017, p. 73). O autor destaca que o colonizador está em minoria e tem medo. Esse desejo do apartheid e do extermínio levam à disseminação da paranóia, e esta leva ao genocídio. O inimigo é necessário porque sem ele, os desejos ficam interditados, conforme Mbembe - aqui nota-se um diálogo com a psicanálise que Mbembe faz, possivelmente com a psicanálise “de” Fanon. Esse ódio ao inimigo leva à vigília permanente, conforme o autor, que dá como exemplo paradigmático a segregação dos palestinos no Estado de Israel, mais intensa e com uso de tecnologia de ponta do que foi o apartheid sul-africano.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Como fantasias primárias de medo são ilógicas, Mbembe afirma que os Estados liberais se transformam crescentemente em Estados de segurança baseados na fé e no mito. Em um Estado baseado na certeza, na fé, o perigo vem da dúvida, do questionamento, segundo ele, o que torna toda oposição passível de ser associada ao não-semelhante, ao negro, ao árabe, ao indígena. Essa nova democracia baseada no medo do não-semelhante, precisa ser extirpada, urge cortar na carne, segundo ele. O inimigo, claro, é um estereotipo. Aí a sociedade de inimizade é um desdobramento do necropoder, pois a prioridade do Estado de segurança é vida dos semelhantes e morte dos diferentes. As multidões se atraem pela ditadura porque esta libera o prazer retido pela consciência moral, afirma Mbembe. Fazemos inevitavelmente a associação dessa liberação da consciência moral com os defensores do politicamente incorreto atuais que são novas formas de tentativa de legitimação do racismo quando lemos a seguinte passagem do autor: “À contenção geral (supondo que nunca aconteceu verdadeiramente), sucede-se então a euforia geral - mas a que custo, em nome de quem e por quanto tempo?” (MBEMBE, 2017, p. 94).</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Essa nova comunidade baseada no medo e na inimizade, segundo Mbembe, expressa o fim da cidadania e surgimento da nacionalidade. Aqui é importante destacar que trata-se de uma nacionalidade que pode ser étnica sem etnia, racista sem raça. Para que essa sociedade de semelhantes se construa é fundamental, conforme o autor, a disseminação do nanorracismo. Em suas palavras, “por nanoracismo entenda-se esta forma narcótica do preconceito em relação à cor expressa nos gestos anódinos do dia-a-dia, por isto ou por aquilo, aparentemente inconscientes, numa brincadeira, numa alusão ou numa insinuação, num lapso, numa anedota, num subentendido e, é preciso dizê-lo, numa maldade voluntária, numa intenção maldosa, num atropelo ou numa provocação deliberada, num desejo obscuro de estigmatizar e, sobretudo, de violentar, ferir e humilhar, contaminar o que não é considerado como sendo dos nossos” (MBEMBE, 2017, p. 95). O nanorracismo atinge a autoestima de suas vítimas - e nesta passagem o autor dialoga profundamente com o Fanon de Pele negra, máscaras brancas (FANON, 2008; FANON, 2011).</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">As democracias repetem histórias para usar racismo contra imigrantes, terroristas. Segundo Mbembe, o uso desse nacionalismo em tempos de poder desnacionalizado é fundamental para mobilizar racismo contra inimigos. Esse racismo praticado sem a consciência de fazê-lo, é disseminado pelas mídias, sobretudo pelo humor - novamente o politicamente incorreto, poderíamos usar esse exemplo aqui no Brasil. Nas palavras do autor: “O racismo alimenta a necessidade de diversão e permite escapar ao aborrecimento geral e à monotonia” (MBEMBE, 2017, p. 101). Em resumo, esse racismo, disseminado em pílulas de nanorracismo, produz uma época que anseia pela aniquilação do inimigo, segundo o autor, caracterizando essa sociedade de inimizade.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">O terceiro capítulo, “Necropolítica”, ausente na edição original francesa, retoma um artigo publicado por Mbembe na Public Culture em 2003 na tradução feita para o inglês por Libby Meintjes - por Renata Santini na revista Arte & Ensaios e mais recente publicação em livro pela N-1 Edições (respectivamente MBEMBE, 2003; MBEMBE, 2016, MBEMBE, 2018). Para Mbembe, a teoria da modernidade vê a razão como base da política, mas não a vida e a morte. Ao contrário, para o autor, a soberania é decisão de vida e morte. Esta política de morte cria o inimigo para criar o estado de exceção. Há um vínculo entre modernidade e terror: a burocratização da morte com tecnologia, de acordo com ele. Mbembe destaca os vínculos entre imperialismo e nacional-socialismo, já que as experiências nazistas aconteceram antes nas colônias, nas quais o soberano mata à vontade. Durante a escravidão moderna, assim como nos regimes coloniais, o terror foi o método de governo. Na atualidade, afirma o autor, Palestina é caso mais avançado de necropoder. A ocupação colonial pós-moderna combina métodos de alta tecnologia com táticas de cerco medievais, segundo ele.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">O artigo de Mbembe já antecipava vários temas desenvolvidos em Políticas da inimizade, daí a sua inclusão nessa edição portuguesa. A importância da história, arqueologia e geografia em construírem a unidade entre topografia e identidade é destacada pelo autor, lembrando a importância da estereotipia da sociedade de semelhantes para que a democracia substitua a cidadania pela nacionalidade, e o necropoder deixe de ser exportado para as colônias e retorne para o centro. O autor também destaca o processo de falência dos estados no mundo pós-colonial, em cujo vácuo do poder surgem as máquinas de guerra, e dos quais os sobreviventes são apátridas em permanente estado de exceção. Essas máquinas de guerra se caracterizam, conforme o autor, em exércitos irregulares que usam número crescente de piratas, crianças-soldado e mercenários. Notamos que o capítulo deveria vir com nota advertindo não constar na edição original, visto que as discussões sobre máquinas de guerra parecem digressão no conjunto do livro e os próprios conceitos do autor mudaram bastante, não aparecendo, obviamente, novas discussões neste texto que está separado dos demais capítulos por uma década.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">O quarto capítulo “A farmácia de Fanon”, é uma continuação do segundo, na medida em que esmiuça um dos fundamentos da política da inimizade, o racismo. Mbembe dialoga diretamente com Fanon, entre outras referências, e destaca os temas principais de sua obra: racismo, independência e violência. A seguir, o autor estabelece as relações entre o colonialismo e fascismo com o racismo. O racismo é constitutivo dos campos de concentração e extermínio, porque é preciso que os não-semelhantes sejam isolados e colocados sob controle, a uma distância segura dos semelhantes, conforme autor. Nas suas palavras, “O campo foi também interpretado como sintomático do processo de expulsão da humanidade comum das suas vítimas - a cena de um crime tão secreto como infigurável e indizível, indissoluvelmente dedicado ao esquecimento, pelo menos naqueles que o perpetraram, uma vez que tudo conspirava, inicialmente, para apagar os vestígios” (MBEMBE, 2017, p. 162). Mbembe chama atenção que os campos abrigavam inimigos em potencial na África do Sul, nas Filipinas, na França e nos domínios nazistas no Leste europeu. Eles eram tanto o estereotipo quanto inúteis. O campo associa-se à colonização, que constitui-se em um povoamento despovoador, conforme ele, sendo possível destacar o plano de colonização nazista do Leste europeu que pretendia exterminar cerca de 30 milhões de pessoas entre russos, bielorrussos, judeus e poloneses e em seu lugar instalar colônias de famílias camponesas germânicas.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Mbembe destaca que Fanon diferenciava dois tipos de racismo: o cultural e o científico. O primeiro “atacava formas particulares de vida que o colonialismo especialmente se esforçava para liquidar” e não conseguindo, “procurava desvalorizá-las ou transformá-las em objectos exóticos”, é resultado de “uma mutação do racismo vulgar”; o segundo é o pseudo-científico baseado na craniometria, na eugenia e na antropologia física do século XIX (MBEMBE, 2017, p. 173). Mbembe também destaca alguns elementos de Fanon, especialmente no Pele Negra, máscaras brancas. Ele lembra, com Fanon, que o racista teme o negro. Concorda com a interpretação do martiniquenho que o linchamento nos EUA representa castração, pois o negro é associado ao fálico, à potência sexual selvagem. Também destaca como o racismo inverte as relações. O mito colonial culpa as vítimas pela violência que elas sofrem, destaca Mbembe, pois o colonizador exerce uma missão que só existe porque os colonizados não foram capazes de aproveitarem seus recursos e desenvolverem, sozinhos, uma civilização.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Mbembe destaca ainda que o racismo se baseia no mito do negro como objeto, interiorizado pelo negro. O pharmakon de Fanon, destaca o autor, ou seja a superação do racismo é realizado pelo reconhecimento do Outro, pela aceitação que ele tenha lugar. A imagem de pharmakon de Fanon é forte porque o martiniquenho era médico, lidou com todos os tipos de doentes e tentou humanizá-los. Já num diálogo mais próximo com os temas de Os condenados da terra (FANON, 2005; FANON, 2011), Mbembe destaca que Fanon considerava que a colonização afeta torturadores e torturados, adoecendo todos. O colonialismo, portanto, aniquilava a ambos em sua dignidade, em sua humanidade. Utilizando uma bela imagem, Mbembe afirma que o mestre colonial não tem casa comum com o colonizado. A imagem da casa comum é bem cara para nós que vivemos na tradição na qual Gilberto Freyre afirma que a casa grande e a senzala eram unificadas pelo patriarcado no mesmo sistema, de onde derivam imagens de unidade de antagonismos em equilíbrio. Lembremos que o que Freyre chamou de casa grande como unidade patriarcal é o que Mbembe concebe como plantação (platantion), ancestral dos campos de concentração e extermínio.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">O quinto e último capítulo “Esse meio-dia atordoante” trata de um tema caro, que é a história dos negros e a reconfiguração do racismo. Mbembe afirma que a história dos negros é história mundial. Ele passa pela crítica do “homem” iluminista e pela necessidade de busca por humanidade maior. Para o autor, o humanismo apaga o negro como sujeito, como original e pensa a África a partir de novos conceitos. O negro foi tornado coisa e é fantasma que assombra o humanismo ocidental, afirma Mbembe, já que sua visão é suficiente para mostrar as incoerências dele e os limites do que seria a humanidade para o Ocidente. O escravo negro moderno, protótipo dos humanos-objetos e objetos-humanos, como afirma Mbembe, foi, ao lado do proletário, a figura do capitalismo. Mbembe destaca que os escravos da América foram a base da acumulação mundial, mas sua história é feita de crimes que o arquivo não abarca.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Mbembe destaca o aspecto inovador do neoliberalismo que rompeu limites do capitalismo na produção da raça, na mercantilização irrestrita e no monopólio da vida, ameaçando destruir o social. Mesmo a vida que pode ser produzida em laboratório, torna-se capital. Uma das características do neoliberalismo, para o autor, é a ampliação do racismo sem raça baseado na religião e na natureza, na universalização da condição de humano-objeto ou objeto-humano, antes restrita ao escravo negro. Raça e classe são associados no capitalismo, podemos entender em Mbembe.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Uma inovação contemporânea, também, conforme Mbembe, é a supressão da condição de escravo, ou pelo menos da consciência em torno de uma sujeição a modalidades de exploração análogas à escravidão. Essa supressão subjetiva parte da seguinte constatação, de acordo com ele: sem escravos não há revolta. Os novos escravos, desprovidos dessa subjetividade, querem ser senhores. O fim do sentimento de revolta, uma mistura de impotência e desejo de ser o Amo, suprimiria as condições da própria revolta, afirma o autor.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Na conclusão, intitulada “A ética do passante”, Mbembe parece mais otimista e analisa as possibilidades de transformação desse mundo baseado no necropoder e na sociedade de inimizade. Afinal, já no início do livro, ele falava de como o futuro abriga a catástrofe, mas também o recomeço. O autor também destacou no último capítulo que viver é poder ser afetado pelo outro, é estar exposto. Essa exposição, em oposição ao enclausuramento entre muros da política da inimizade, consiste em se fazer um passageiro do mundo e estar sujeito, mas também oferecer hospitalidade. O passante, condição proposta em sua ética, não é o exilado e refugiado, mas o estrangeiro que é reconhecido e acolhido, que cria raízes. Essas raízes não dizem respeito ao nascimento, pois este é acidental, mas à vontade de habitar. O deslocar-se, o não pertencimento, afirma ele, são da condição humana. A ética do passante engloba a presença e a diferença, o solidarizar-se, mas também o despreender-se, segundo o autor. Em suas palavras, “como o mundo já não tem uma farmácia única, se quisermos verdadeiramente fugirmos da relação sem desejo e do risco da sociedade de inimizade, é preciso viver todos os seis feixes. Partindo de uma multiplicidade de lugares, trata-se em seguida de os atravessar da maneira mais responsável possível, como seus donos, mas numa relação de total liberdade e, se for preciso, de desprendimento” (MBEMBE, 2017, p. 249).</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">A leitura da obra de Mbembe é difícil e sua linguagem, poética, por vezes é hermética. Alguns conceitos são expostos com uma transparência exemplar, enquanto outros tratamentos são demasiado eruditos e de difícil compreensão. Trata-se de um autor que é de difícil tratamento unívoco e capaz de interpretação relativamente aberta, sobretudo pela amplitude de sua problemática, pelo alcance de seus diagnósticos e pelas diversas perspectivas, nem sempre explícitas, que sua erudição lhe permite. A leitura de Mbembe, como é a leitura de Fanon, grande interlocutor do livro - que poderia, aliás, ser considerado um livro sobre a experiência de ler e ser afetado por Fanon - é complexa porque parte de problemas que são globais, mas que se expressam de formas muito particulares em temporalidades distintas. A hipótese é que essa análise cosmopolita do problema da democracia vem justamente desse cosmopolitismo descolonizador de Fanon e de Mbembe, que ao contrário de pretensos universalismos que eram profundamente paroquianos e entendiam o mundo como seu lugar de fala, explicitam as tensões existentes entre o lugar do qual se fala e o mundo - mundo aliás ao qual o autor pertence. A ideia de sociedade de inimizade, de necropolítica ou de ética do passante poderia ser adaptada para contextos mais diversos de Ásia, África, Europa e América, ao mesmo tempo em que apresentaria lacunas importantes e generalizações problemáticas que uma análise tão abrangente arrisca. Sua proposição de encontro com o outro para sair do círculo da inimizade por sua vez é ousada, vaga e coerente com seu projeto.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Podemos expressar a experiência de ler Achille Mbembe com as palavras que ele usou para descrever a leitura de Fanon: “É difícil ler sem se ser interpelado pela sua voz, pela sua escrita, pelo seu ritmo”. Ou talvez mais diretamente: “é quase impossível sair ileso” (MBEMBE, 2017, p. 249).</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Referências Bibliográficas</div><div style="text-align: justify;">FANON, Frantz. Oeuvres Paris: La Découverte, 2011.</div><div style="text-align: justify;">FANON, Frantz. Os condenados da terra Tradução Elnice Albergaria Rocha e Lucy Magalhães. Juiz de Fora: Editora UFJF, 2005.</div><div style="text-align: justify;">FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas Tradução Renato da Silveira. Salvador, EDUFBA, 2008.</div><div style="text-align: justify;">MBEMBE, Achille. África insubmissa - cristianismo, poder e Estado na sociedade pós-colonial Lisboa: Edições Pedago, 2013.</div><div style="text-align: justify;">MBEMBE, Achille. Crítica da razão negra Tradução Marta Lança. Lisboa: Antígona, 2014.</div><div style="text-align: justify;">MBEMBE, Achille. Critique de la raison nègre Paris: La Découverte , 2013a.</div><div style="text-align: justify;">MBEMBE, Achille. De la postcolonie - essai sur l’imagination politique dans l’Afrique contemporaine Paris: Karthala, 2000.</div><div style="text-align: justify;">MBEMBE, Achille. Necropolitica Arte e Ensaios, Rio de Janeiro, n. 32, 2016.</div><div style="text-align: justify;">MBEMBE, Achille. Necropolítica 3 ed. São Paulo: n-1 Edições, 2018.</div><div style="text-align: justify;">MBEMBE, Achille. Necropolitics Public Culture, Duke, vol. 15, n. 1, winter 2003, pp. 11-40.</div><div style="text-align: justify;">MBEMBE, Achille. Politiques de l’inimitié Paris: La Découverte , 2016.</div><div style="text-align: justify;">MBEMBE, Achille. Surtir de la grande nuit - essai sur l’Afrique décolonisée Paris: La Découverte , 2013b.</div><div style="text-align: justify;"><a class="dropdown-toggle" data-toggle="dropdown" href="https://www.scielo.br/j/rh/a/kDsSCYRqJDgKw3XWxk3y9FK/?lang=pt" style="animation-duration: 0.1s; animation-fill-mode: both; background-color: white; box-sizing: border-box; color: #00314c; font-family: Arial, sans-serif; font-size: 12.6px; font-weight: 700; outline-offset: -2px; outline: 0px; text-align: left; text-decoration-line: none; transition: color 0.1s ease-out 0s, text-indent 0.1s ease-out 0s;"><span class="text" style="box-sizing: border-box;"><span class="truncate" style="box-sizing: border-box; overflow: hidden; text-overflow: ellipsis; white-space: nowrap; width: 450px;">Revista de História (São Paulo) </span><span class="sci-ico-arrowDown" face="scielo-glyphs !important" style="-webkit-font-smoothing: antialiased; box-sizing: border-box; display: inline-block; font-variant-east-asian: normal; font-variant-numeric: normal; font-weight: 400; line-height: 1em; speak: none; vertical-align: middle;"></span></span></a><span face="Arial, sans-serif" style="background-color: white; color: #403d39; font-size: 12.6px; text-align: left;"></span><div style="text-align: left;"><img border="0" data-original-height="626" data-original-width="400" height="320" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgb1x1uqd4hcD10zNnWwRb76tLi0i4m9uTFG_yAf_stCDmS2jLK_a5VnUT_et0hObkNTHn34ixD1PlVZJnAkLV49z2_Xak38yYlFCmK_45OQfe2ilHjqX7XBFyDnxkb8sZMyDJY8BBwtmFpTfRq1EendVmQ7e1cGvegQtAILoqcQTlonvWQzWuONVmxcQ/s320/chile.jpg" style="color: #0000ee; text-align: center;" width="204" /></div></div>Eduardo Marculinohttp://www.blogger.com/profile/09461824103400566723noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4969040045050510246.post-10836565474135696232022-10-12T12:23:00.003-07:002022-10-12T12:23:30.323-07:00Em defesa da liberdade: libertos, coartados e livres de cor nos tribunais do Antigo Regime português (Mariana e Lisboa, 1720- 1819)<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiHRpI8aIIg2_U7NXJFhNLn-B45nztknYz0jSNsoAPxSpZzSHjgqNk-VDYyJE33205-SAzECxoECszW7TljehWMSlhyLSQ_G1WLnJ4c7R8HBFpTzZUkjClPX79ZnUNo-2hbVs-thmVB5PVoZIepu3wwtuKwWQONk00kyGwnjk-FcZADZW7N5RgG70a8Wg/s273/Em%20defesa%20da%20liberdade.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="273" data-original-width="185" height="273" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiHRpI8aIIg2_U7NXJFhNLn-B45nztknYz0jSNsoAPxSpZzSHjgqNk-VDYyJE33205-SAzECxoECszW7TljehWMSlhyLSQ_G1WLnJ4c7R8HBFpTzZUkjClPX79ZnUNo-2hbVs-thmVB5PVoZIepu3wwtuKwWQONk00kyGwnjk-FcZADZW7N5RgG70a8Wg/s1600/Em%20defesa%20da%20liberdade.jpg" width="185" /></a></div><br /><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div> <div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">PRODUZINDO LIBERDADE, ESCRAVIDÃO E NORMAS NO IMPÉRIO PORTUGUÊS</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Mariana Armond Dias Paes<br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">PINHEIRO, Fernanda Domingos. Em defesa da liberdade: libertos, coartados e livres de cor nos tribunais do Antigo Regime português (Mariana e Lisboa, 1720- 1819). Belo Horizonte: Fino Traço Editora, 2018</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Desde a década de 1980, o estudo das chamadas “ações de liberdade” se consolidou na historiografia da escravidão brasileira. Muitos foram os trabalhos publicados sobre a luta judicial pela liberdade e também foram recorrentes estudos sobre crime, família escrava, tráfico e outras questões que se valeram desses processos judiciais como fontes fundamentais para a análise do cotidiano e da agência de escravos, libertos e pessoas livres de cor. O livro de Fernanda Domingos Pinheiro, Em defesa da liberdade: libertos, coartados e livres de cor nos tribunais do Antigo Regime português (Mariana e Lisboa, 1720-1819), insere-se nesse campo já consolidado da história da escravidão, apresentando inúmeras informações que ainda não eram de amplo conhecimento dos pesquisadores do campo e levantando novas questões e perspectivas de análise sobre as relações entre direito, liberdade e escravidão. O livro apresenta uma pesquisa rigorosa e minuciosa sobre os significados e a precarização da liberdade no Império português, baseada, sobretudo, na análise de processos judiciais ajuizados em Mariana e Lisboa. Nessa análise, a autora não deixa de lado nem os argumentos e formas jurídicas específicas que constituíram esses documentos, nem o debate acerca da vivência das pessoas de cor em sociedades escravistas em um sentido mais amplo.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Na introdução, Pinheiro explica o método de seleção dos casos e as opções metodológicas adotadas na pesquisa. Foram analisados 157 processos cíveis arquivados no Arquivo Histórico da Casa Setecentista de Mariana e 47, no Arquivo Nacional da Torre do Tombo. Os processos oriundos das diversas localidades, no entanto, não foram analisados separadamente. A autora preferiu fazer uma análise integrada ao longo dos capítulos, que seguem uma divisão temática e não geográfica. Essa escolha é bastante acertada, pois, como diz a autora, tanto a sociedade marianense quanto a lisboeta “participavam de um processo historicamente integrado” (p. 27) de expansão da escravidão no Império português. Além da justificativa dada pela autora, acrescento que essa abordagem permite colocar, lado a lado, duas instâncias de produção normativa - uma metropolitana e outra colonial -, mostrando como os mesmos institutos e categorias jurídicas adquiriam significados concretos e eram mobilizados de maneiras específicas em distintos contextos.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Em relação ao recorte temporal, o livro de Pinheiro também representa uma grande novidade no campo da historiografia do direito e escravidão. Grande parte dos trabalhos que analisam processos judiciais envolvendo escravos, libertos e pessoas livres de cor, no Brasil, focam-se, sobretudo, no século XIX. Ainda não são tão recorrentes trabalhos que utilizam processos judiciais para a análise das experiências de escravidão e liberdade durante o período colonial. Nesse aspecto, o livro de Pinheiro é pioneiro. Ademais, o estudo das chamadas “ações de liberdade” ainda não é um campo consolidado na historiografia sobre a escravidão em território metropolitano português. Assim, o livro preenche uma lacuna importantíssima tanto da historiografia brasileira quanto da portuguesa.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">No primeiro capítulo, a autora apresenta um dos principais argumentos do livro: nas jurisdições portuguesas, havia uma diferença entre estatuto jurídico e condição social das pessoas. O estatuto jurídico seria a categoria na qual o direito enquadrava determinada pessoa, enquanto a condição social era a experiência efetiva de liberdade ou de escravidão. Por meio da análise de diversos processos judiciais, a autora identifica casos em que havia dissociação entre o estatuto jurídico e a condição social, como os coartados, alforriados condicionalmente, forros assoldados, libertados em parte, libertos que se endividaram para comprar a alforria. Por exemplo, havia casos em que as pessoas tinham título legítimo sobre sua liberdade (estatuto jurídico de livre), mas viviam em condições de dependência e submissão muito próximas àquelas da escravidão (condição social de restrição de liberdade). Ou seja, de acordo com Pinheiro, deter um título de liberdade não necessariamente implicava viver como livre. Ao seguir desenvolvendo esse argumento, ela identifica o estatuto jurídico com o título de domínio e a condição social com a posse e o usufruto da liberdade.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">A expressão “senhor e possuidor” significava que um indivíduo tinha o domínio (título de propriedade) e a posse (usufruto) de um determinado bem, o qual, por vezes, poderia também constituir uma propriedade de alguém e ser desfrutado por outra pessoa. Deste outro modo, o coartado tinha a posse da sua liberdade porque dela poderia usufruir durante o período do seu corte, mas não detinha seu domínio, pois seu título (a alforria) somente seria alcançado com a total satisfação do seu preço. Por isso viviam “entre a escravidão e a liberdade” (como explicitado anteriormente), numa situação de ambiguidade - com estatuto jurídico de escravo e condição social de liberto. (PINHEIRO, 2018, p. 171)</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">A distinção analítica entre estatuto jurídico e condição social, estabelecida por Pinheiro, contribui para a compreensão de aspectos fundamentais da escravidão no Império português. Um deles diz respeito a situações ilegais de escravidão e reescravização. Os trabalhos sobre processos judiciais envolvendo escravos, libertos e pessoas livres de cor tiveram como tônica principal, em um primeiro momento, a busca pela liberdade e por direitos. É sintomático desse movimento a denominação que os historiadores deram a esses documentos: “ações de liberdade”. Porém, nos últimos anos, o foco da historiografia tem recaído sobre as inúmeras práticas de reescravização e a situação de precariedade da liberdade evidenciadas por aqueles mesmos documentos. Assim, ao defender que havia uma separação entre estatuto jurídico e condição social, Pinheiro chama atenção para esse debate e, acertadamente, argumenta que a experiência de liberdade, no Império português, era extremamente precária.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Por outro lado, essa separação pressupõe uma dicotomia entre direito (estatuto jurídico) e realidade (condição social) que vem sendo reconsiderada por distintas correntes historiográficas. Esses trabalhos convergem para uma compreensão de que direito e sociedade são mutuamente constitutivos. Isto é, além de ser um produto das relações sociais, o direito atua constituindo os termos em que se dão essas mesmas relações. As relações sociais, como as de trabalho e dependência, são constituídas por relações jurídicas, ainda que não oriundas, diretamente, de lugares solenes como, por exemplo, os títulos de propriedade. Essa concepção guarda mais proximidade com o direito português do Antigo Regime. O chamado ius commune (direito comum) privilegiava a manutenção da ordem e do status quo. No que diz respeito ao estado das pessoas, a manutenção do status quo significava privilegiar o “viver como”, ou seja, reconhecer judicialmente o modo efetivo em que a pessoa vivia. Daí a importância do reconhecimento social, comprovado por depoimentos testemunhais. Esse “viver como”, esse modo de vida, costumava ser o que prevalecia sobre títulos de escravidão e liberdade. Em outras palavras, o modo de vida (condição social) se constituía como direito (estatuto jurídico). Por isso, no ius commune, a posse não estava tão marcadamente separada do domínio, como ocorre no direito de propriedade liberal, mas era um dos fatores determinantes de sua constituição. Essa situação é identificada por Pinheiro em diversos dos casos analisados. Daí que, em seu texto, apareçam locais de produção normativa - os processos judiciais - em que o intricamento entre direito e realidade social fica evidente.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Já no segundo capítulo, a autora analisa “ações cíveis de redução ao cativeiro”. Nele, Pinheiro parte de uma crítica à historiografia, que, por muitos anos, focou-se na consecução da liberdade propiciada pelos processos judiciais, não dando tanto destaque ao considerável número dessas ações que, ao invés de libertar, procuravam escravizar e reescravizar. Daí adviria a necessidade de repensar a utilização do termo “ações de liberdade”. Ao longo desse e dos próximos capítulos, Pinheiro propõe uma nova classificação para esses processos judiciais.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Outra crítica importante levantada pela autora é a de que, durante muito tempo, parte da historiografia argumentou que a possibilidade de reescravização - por exemplo, por ingratidão - era suficiente para propagar temor e sustentar as relações de dependência na sociedade escravista. Porém, o que a autora mostra é que, mais do que uma ameaça, a reescravização e a revogação da alforria foram práticas largamente utilizadas pelos senhores, frequentemente, com a colaboração ou a complacência dos tribunais. Como Pinheiro evidencia ao longo do capítulo, as tentativas de ampliação do grau de autonomia dos libertos e o consequente enfraquecimento dos laços de dependência que ainda os ligavam aos antigos senhores estavam na origem de muitos processos judiciais. Contra essas tentativas, os senhores costumavam ajuizar ações mobilizando o argumento da ingratidão.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">A autora analisa, ainda, o uso estratégico dos diferentes tipos processuais. Sob o rótulo de “ações de liberdade”, as especificidades de cada tipo processual acabaram sendo obscurecidas. Ao levar a sério essas especificidades, Pinheiro mostra que os conhecimentos jurídicos vernaculares sobre os procedimentos judiciais eram úteis para a formulação de estratégias que pudessem beneficiar as partes envolvidas em termos de custos, duração e exigência probatória.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">No terceiro capítulo, Pinheiro trata das “ações cíveis de manutenção da liberdade” - que tinham como objetivo deter ameaças de reescravização, resguardando a posse e o domínio da liberdade - e “ações de restituição de liberdade” - que visavam ao reestabelecimento do estado de liberdade. Nesse capítulo, a autora também ressalta que a existência de documentos escritos que comprovassem a liberdade poderia ser determinante para uma decisão judicial favorável. Por isso, havia um esforço dos libertandos para conseguir tais documentos. Mais uma vez ressaltando a grande variedade de procedimentos judiciais mobilizados pelos libertandos, Pinheiro argumenta que, muitas vezes, o ajuizamento de processos tinha o objetivo de produzir documentos escritos que comprovassem e assegurassem a liberdade. Esses documentos poderiam ser, por exemplo, a sentença ou um mandado de manutenção na liberdade, que seriam utilizados em momentos em que a pessoa se sentisse ameaçada de reescravização.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Outro ponto de destaque desse capítulo é a questão do caráter ambíguo do depósito. Ao mesmo tempo em que ser colocado em depósito poderia significar o início da recondução do liberto ao cativeiro e uma dificuldade para seu autossustento, esse procedimento jurídico também poderia significar uma maneira de viver em liberdade enquanto o processo tramitava. Pinheiro ressalta, novamente, o uso estratégico de diferentes tipos processuais e mostra como eles foram mobilizados de distintas maneiras em Mariana e Lisboa. Para a autora, fazia parte da estratégia de seleção do tipo processual levar em consideração o “estilo do foro”. Já que não havia uma regulação legal explícita e sistemática dos procedimentos, as partes procuravam seguir as regulações jurisdicionais de cada localidade. Desse modo, as ações de definição de estatuto jurídico acabam por nos mostrar, concretamente, o funcionamento mais geral do direito português no Antigo Regime: existia um arcabouço normativo comum a todo o Império, mas que tinha uma grande capacidade de flexibilização e adaptação às condições locais de aplicação das normas.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">No quarto e último capítulo, Pinheiro trata das “ações de extinção do cativeiro”, que objetivavam a declaração judicial da liberdade com base na legislação especial. Um dos destaques desse capítulo é uma análise detalhada dos processos ajuizados perante os tribunais de Lisboa. Parte essencial dessa análise é a discussão sobre a centralidade do contrabando e da escravização ilegal na metrópole, o que, argumenta a autora, prolongou a existência da escravidão para além do que se poderia esperar com a publicação, pelo governo pombalino, dos alvarás de 1761 e 1773. O primeiro dos alvarás proibia o transporte de escravos para o reino e declarava livres todos os que aí entrassem. Já o segundo determinou a liberdade dos escravos de quarta geração e daqueles nascidos após a publicação do alvará. Essa legislação, no entanto, foi burlada pelos mais diversos mecanismos. Na luta contra essas práticas de escravização ilegal, as Irmandades dos Homens Pretos de Lisboa foram fundamentais. Datando de pelo menos o século XVI, os pedidos judiciais de alforria encabeçados pelas Irmandades se referiam a práticas de “mau cativeiro”, como, por exemplo, maus tratos e castigos excessivos. Com a promulgação dos alvarás pombalinos e um fortalecimento de discursos jusnaturalistas, no final do século XVIII e início do século XIX, as Irmandades passaram a fundamentar seus pedidos não mais em noções de “mau cativeiro”, mas de “cativeiro injusto”. Para a autora, essa mudança no argumento e sua recepção pelos tribunais portugueses feriu, com golpe de morte, a legitimidade da escravidão em território metropolitano.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Já em Mariana, fundamentar processos judiciais com base em legislação especial era algo menos frequente. Houve, por exemplo, casos de libertandos que pleitearam a liberdade com base em sua ascendência materna indígena. Porém, tais processos não costumavam invocar, de maneira explícita, a legislação que libertou os indígenas na América portuguesa, em 1755. Nos processos de Mariana, tampouco foram explicitamente invocados os alvarás pombalinos de 1761 e 1773.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">O uso estratégico de procedimentos judiciais também é tratado nesse capítulo, concedendo-se especial atenção aos diferentes resultados que poderiam advir da adoção de ritos sumários ou ordinários. Em Lisboa, no século XIX, houve um aumento considerável do número de ações sumárias ajuizadas pelas Irmandades. Esse aumento pode estar ligado às especificidades desse rito, já que as Irmandades foram exitosas em convencer os juízes de que, em ações sumárias, o ônus da prova do domínio deveria recair sobre os supostos senhores, o que as isentava de apresentar provas robustas em prol da liberdade. Já na América portuguesa, Pinheiro mostra que os ritos sumários eram, em geral, menos frequentes e costumavam ser precedidos de autorizações do governador. Por sua vez, essa menor frequência poderia estar relacionada a uma inclinação mais estrita dos juízes no sentido de discutir estatutos jurídicos em processos ordinários e, portanto, com ampla apresentação e debate de provas e argumentos.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Nas considerações finais do trabalho, Pinheiro retoma os argumentos dos capítulos anteriores e argumenta que as peculiaridades das ações em Mariana e Lisboa podem ser explicadas pelas formas que a escravidão adquiriu nessas diferentes localidades. Em Lisboa, havia uma pressão para a conversão da mão de obra escrava em trabalhadores livres. Ademais, havia uma disseminação de concepções jusnaturalistas segundo as quais a liberdade era a condição natural dos homens. O ambiente mais propício à contestação da utilização da mão de obra escrava teria, assim, refletido em uma maior tolerância dos tribunais a procedimentos sumários e a interpretações extensivas da legislação pombalina propostas pelas Irmandades. Em Mariana, por outro lado, a escravidão não estava sob ameaça, pelo contrário, era o esteio daquela sociedade. Assim, cada pleito pela liberdade deveria ser minuciosamente investigado e, daí, a predominância de processos ordinários. Também devido ao caráter estrutural que a escravidão assumia na América portuguesa, as autoridades judiciais eram mais cautelosas ao abordar temas como o cativeiro injusto e ilegal.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Assim, o livro de Pinheiro aborda questões importantíssimas para o avanço das discussões historiográficas sobre direito e escravidão no Império português e, mais tarde, no Brasil. Ele se insere na linha das produções mais recentes sobre o tema, que visam demonstrar a precariedade da liberdade, a disseminação de práticas de escravização e reescravização ilegais e o engajamento de agentes estatais nessas práticas. Além de todas essas contribuições historiográficas, há uma questão que emerge da análise da autora e que merece especial atenção.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Muitas vezes, o direito é visto como algo que se origina da legislação escrita, é explicitado pelos textos doutrinários e é aplicado pelos tribunais. Quando doutrina e jurisprudência não se adéquam à legislação, ou quando aplicam normas que não foram previstas em lei, costuma-se interpretar esse fenômeno a partir da categoria do “costume” ou, simplesmente, taxá-lo como contrário ao direito. O que o livro de Pinheiro nos mostra é que conceber o direito como uma criação exclusiva das leis, explicitada pela doutrina e meramente aplicada pelos tribunais tem pouca relação com a historicidade das normas. Normas não são fruto exclusivo da legislação. Há diversas outras instâncias de produção normativa e, como o livro evidencia, os processos judiciais são uma delas. A autora destaca a imensa variedade de categorias jurídicas e arranjos de trabalho e dependência que eram produzidos e disputados nos tribunais. Era nesses debates judiciais que ocorria a produção normativa, ou seja, era neles que institutos jurídicos eram criados e adquiriam significados concretos.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">O livro nos diz muito sobre como a produção normativa se dava no Império português. Como ressalta a autora, havia um arcabouço normativo bastante extenso e variado, cujos pressupostos eram compartilhados nas jurisdições do Império. Porém, esse arcabouço normativo compartilhado estava sujeito às “circunstâncias particulares dos fatos ocorridos em cada caso ou localidade” (p. 233). Daí a importância de ampliarmos a perspectiva em relação aos lugares da produção normativa. A aquisição de significados específicos pelas normas jurídicas era uma característica própria do ius commune. Por isso, mais do que ficarmos amarrados à letra estrita da lei, em nossas análises, melhor seguirmos o exemplo de Pinheiro e tratar os processos ajuizados perante os tribunais portugueses e brasileiros não apenas como instâncias de aplicação da lei e arenas de disputas por direitos, mas também como locais de produção de normas, categorias e institutos jurídicos.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Referência Bibliográfica</div><div style="text-align: justify;">PINHEIRO, Fernanda Domingos. Em defesa da liberdade: libertos, coartados e livres de cor nos tribunais do Antigo Regime português (Mariana e Lisboa, 1720-1819) Belo Horizonte: Fino Traço Editora, 2018.</div><div style="text-align: justify;"><a class="dropdown-toggle" data-toggle="dropdown" href="https://www.scielo.br/j/rh/a/GThsF3xBRXFxfQwrNZ4RCqB/?lang=pt" style="animation-duration: 0.1s; animation-fill-mode: both; background-color: white; box-sizing: border-box; color: #00314c; font-family: Arial, sans-serif; font-size: 12.6px; font-weight: 700; outline-offset: -2px; outline: 0px; text-align: left; text-decoration-line: none; transition: color 0.1s ease-out 0s, text-indent 0.1s ease-out 0s;"><span class="text" style="box-sizing: border-box;"><span class="truncate" style="box-sizing: border-box; overflow: hidden; text-overflow: ellipsis; white-space: nowrap; width: 450px;">Revista de História (São Paulo) </span><span class="sci-ico-arrowDown" style="-webkit-font-smoothing: antialiased; box-sizing: border-box; display: inline-block; font-family: scielo-glyphs !important; font-variant-east-asian: normal; font-variant-numeric: normal; font-weight: 400; line-height: 1em; speak: none; vertical-align: middle;"></span></span></a></div>Eduardo Marculinohttp://www.blogger.com/profile/09461824103400566723noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4969040045050510246.post-80174968202935564032022-10-12T12:05:00.001-07:002022-10-12T12:05:08.412-07:00Percursos e reflexões da esquerda armada de outrora<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjCXrhwwnMrIzGZI7_AHR45WTW30EviLceuu4hNvv7WSpMZZC2purgTsnrP1C907_Kr9PrXZVHphK5xnu-BwyEE5coKt0ujI5XWLgEeWkE0hcNLJ-6UPx1xcoJu4AUzrgyPr5pGhtsp5ILjvzUG-FA2rL1teQd_qKnsRUXgt3QyRu8UKVukE44m9c9hjA/s275/1e.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em; text-align: center;"><img border="0" data-original-height="275" data-original-width="183" height="275" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjCXrhwwnMrIzGZI7_AHR45WTW30EviLceuu4hNvv7WSpMZZC2purgTsnrP1C907_Kr9PrXZVHphK5xnu-BwyEE5coKt0ujI5XWLgEeWkE0hcNLJ-6UPx1xcoJu4AUzrgyPr5pGhtsp5ILjvzUG-FA2rL1teQd_qKnsRUXgt3QyRu8UKVukE44m9c9hjA/s1600/1e.jpg" width="183" /></a><br /><br /><div style="text-align: justify;">Percursos e reflexões da esquerda armada de outrora</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Dayane Soares<br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">SERBIN, Kenneth P.. From Revolution to Power in Brazil: How Radical Leftists Embraced Capitalism and Struggled with Leadership.Notre Dame: University of Notre Dame Press, 2019.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Intensificadas as investidas repressivas do Estado, centenas de brasileiros, cuja maioria ainda na flor da juventude, optou pelas armas na luta contra a ditadura vigente no país (1964-1985). Como não nos é estranho, essa aposta, iniciada com uma série de ações guerrilheiras espaçadas, se seguiria de um punhado de sucessos, mas de uma subsequente onda repressiva e do inevitável desmantelamento dos agrupamentos de esquerda armada poucos anos após o pontapé inicial. Entre as resultantes negativas desse processo, sabe-se que a maior parte de seus quadros vivenciaria a experiência de prisão e o horror das torturas, e uma parcela seria posteriormente listada entre os nomes dos milhares de mortos e “desaparecidos” políticos sob a responsabilidade do Estado brasileiro. Os sobreviventes, porém, reconstituiriam suas vidas tomando cursos distintos. Passadas cinco décadas do massacre lançado à oposição de esquerda2 e mais de trinta anos desde o final do regime, mesmo com uma extensa literatura desenvolvida sobre o campo temático3, é certo que algumas questões ainda pairam no ar, inclusive a que indaga sobre o futuro daquela geração de revolucionários. É nesse sentido que se insere From Revolution to Power in Brazil, o mais recente livro de autoria do historiador Kenneth P. Serbin.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Atualmente docente do Departamento de História da Universidade de San Diego, Serbin atua em pesquisas nas áreas da história cultural, social e política brasileira, com ênfase no período que abarca a ditadura militar. Seus estudos, que se estendem por mais de três décadas, tiveram admiráveis frutos, entre os quais estão inclusas publicações em língua portuguesa4. Para a investigação que resulta na publicação aqui resenhada, o autor, até então reconhecido pelos estudos a respeito das relações da Igreja Católica e a Ditadura, optou por lançar luz à trajetória de uma parcela dos ex-revolucionários de esquerda de outrora, com destaque a quadros que atuaram junto à Ação Libertadora Nacional (ALN). Seu objetivo central: evidenciar e analisar seus percursos e suas reflexões após a luta armada.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Para atender a esse propósito, o corpus documental adotado para o desenvolvimento da pesquisa que resulta em From Revolution to Power foi constituído por entrevistas concedidas por dezenas de personalidades (contabilizando mais de 300 horas), por formulários por elas preenchidos e por relatórios de impressão. Entre os vinte e seis ex-militantes sobre os quais Serbin nutriu-se de informações, nove deles tiveram suas histórias de vidas ressaltadas no material final5. No que concerne a sua estrutura, o robusto livro é constituído por um prólogo - no qual o autor anuncia seus objetivos, percursos de pesquisa e os caminhos pelos quais o livro percorrerá - seguido de três partes que englobam um total de quinze capítulos nos quais o autor transita tanto pelas experiências dos personagens durante o período de suas ações junto à luta armada, quanto por suas reflexões acerca de suas atuações décadas depois; abarcando questões pertinentes aos seus desenvolvimentos profissionais, suas vidas particulares, suas tentativas de superar as consequências pessoais da ditadura e compreender suas experiências, as ações violentas experienciadas e os reflexos psicológicos delas resultantes; perpassando, também, pelos seus pontos de vista sobre revolução, violência e terrorismo.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Como resultado inicial, o livro nos permite verificar as progressivas transformações ocorridas ao longo da vida dos atores em questão. Podemos observar que uma parte significativa dos entrevistados elencados esteve, em sua juventude, envolvida nas mais notáveis ações empreendidas pelas organizações armadas - a exemplo do sequestro do embaixador norte-americano Charles Burke Elbrick -, e posteriormente, obteve prestígio e visibilidade no âmbito de suas carreiras e atuação política, estando, em todos os casos expostos, atrelados a cargos de poder no país; atuando, por exemplo, no senado, em prefeituras, nos ministérios e, também, no empreendedorismo. Serbin nos torna evidente a atividade desses indivíduos, cada vez mais estreita ao capitalismo; sendo interessante destacar o transparecer de alguma simpatia de sua parte pelos caminhos políticos adotados por parte dos entrevistados6.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Mas, afinal, o que teria ocasionado essa mudança de rumos? Como destaca o autor, após a liquidação da luta armada no Brasil e seus lastimáveis efeitos subsequentes, os atores em questão atravessaram um processo de profunda reflexão no tocante aos usos da violência política, ao valor da democracia e das políticas em geral, e, além disso, não escaparam as influências de tendências da democracia europeia e do eurocomunismo largamente difundidas a partir da década de 1970. Somado a isso, também foram evidentes os reflexos da queda do socialismo real, em 1989, sobre toda a esquerda, e, por certo, foram igualmente significativos os distintos momentos e circunstâncias que moldaram as vidas e, consequentemente, o comportamento político daqueles que se dedicaram aos agrupamentos armados no passado; como seus acúmulos de experiências pessoais, a formação de suas famílias e a inevitável ação do tempo.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Não suficientes esses elementos, Serbin aponta para um fator-chave explicitador das transformações anteriormente evidenciadas: o pluralismo existente no seio da Ação Libertadora Nacional. A organização, ao longo de toda sua atividade, contou com a presença de democratas em suas fileiras. Conforme as palavras de Serbin - atestadas pelos trechos das entrevistas em seu trabalho -, preocupada com a “libertação nacional”, deixando o socialismo para um segundo momento, “a ALN atraiu pessoas de distintas linhas e origens políticas, incluindo nacionalistas, socialistas, comunistas, empresários e até clérigos católicos. Rejeitou dogmas marxista-leninistas e procurou construir um socialismo exclusivamente brasileiro”, e, embora, anti-imperialista e contrária às intervenções dos EUA “não expressou animosidade pelos americanos comuns”7. Tal característica é certamente significativa. Vale ainda ressaltar um ponto instigante levantado pelo autor que aponta para o fato de que por razão da maioria dos entrevistados ser oriunda da classe média brasileira e, por conseguinte, portadora de contatos com pessoas influentes em diversos campos, muitos deles usufruíram de oportunidades dessemelhantes às de tantos outros que, por motivos díspares, passaram uma parcela de suas vidas na prisão.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">No que tange o campo das percepções dos entrevistados a respeito de suas escolhas políticas em tempos passados, podemos sublinhar suas reflexões em relação aos usos da violência em suas investidas revolucionárias, que, salvo raras exceções, foram por eles retratadas de modo a reafirmar o consenso de se tratar de uma necessidade posta pela conjuntura e não as considerando enquanto atos de terrorismo. Cabe, no entanto, mencionar que, conforme ilustrado no livro, apesar da mudança de rumos políticos tomados pelos entrevistados, eles reiteram a manutenção dos valores que abraçaram em sua juventude; muito embora essas afirmativas mereçam uma observação criteriosa por parte do leitor.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Dentre os méritos centrais do livro de Serbin é possível elencarmos o fato de que, ao inserir um recorte cronológico que abrange diversos momentos das vidas dos atores selecionados, incluindo suas perspectivas em momentos a posteriori a respeito de suas lutas junto às organizações armadas, traz uma contribuição original à literatura dedicada a militância de esquerda armada; até então destinada, em maior parte, ao período que abarca a atividade desses agrupamentos e às reflexões sobre seus insucessos. Além disso, o trabalho perpassa pela atuação e trajetória de alguns militantes intermediários dos agrupamentos armados aos quais faz menção. Esse aspecto é, sem dúvidas, muito relevante, tendo em vista ser predominante na bibliografia sobre o assunto abordagens que atribuem centralidade aos dirigentes dessas organizações, optando quase sempre por dispor os quadros médios em um plano de fundo. Além do mais, se o uso de uma narrativa com maior linearidade possa ser ainda verificada como um tabu entre alguns historiadores, o modelo escolhido por Serbin, marcado por sua aparição como narrador e pela presença de um perfil complexo dos atores selecionados, somado a uma cautelosa articulação de fontes, contexto histórico e percursos de pesquisa, expressa as potencialidades desse caminho em causar ao leitor uma proximidade mais profunda com o conteúdo disposto sem se afastar, porém, do indispensável rigor do ofício.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Ora, não podemos deixar de atribuir semelhante destaque seu manuseio cuidadoso das fontes; majoritariamente orais. Bem sabemos das particularidades e possíveis dificuldades atreladas aos usos dessa tipologia documental, o que, decerto, não subtrai suas potencialidades. Estudiosos, a exemplo de Michael Pollak, já apontaram para a memória enquanto um fenômeno construído sem deixar de destacar que tal característica está atrelada a qualquer documentação, de modo que: a crítica da fonte “tal como todo historiador aprende a fazer, deve (...) ser aplicada a fontes de tudo quanto é tipo. Desse ponto de vista, a fonte oral é exatamente comparável à fonte escrita” (POLLAK, 1992, p. 209). Embora Serbin não faça um adensamento teórico sobre memória ou fontes orais, a forma com que seu conteúdo é exposto torna visível os cuidados tomados para com a constituição de seu estudo, e seus resultados apontam, mais uma vez, para o valor dessa tipologia documental para com a construção do saber histórico. Aliás, ainda sobre o valor dos materiais colhidos por Serbin, o livro foi cotejado com dezenas de imagens dentre as quais constam tanto fotografias tiradas à época do período que abarca as investidas da luta armada e a prisão dos entrevistados, quanto fotografias tiradas pelo autor à época de suas entrevistas; o que possibilita ao leitor uma sensação de contato com seu processo de pesquisa.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Devemos assinalar, no entanto, que para além dos pontos satisfatórios destacados, o livro possui aspectos menos positivos que merecem nossa atenção; embora não comprometam seu valor. No decurso dos capítulos, o autor leva o leitor a nutrir um intenso interesse na compreensão da trajetória das personalidades ali elencadas, porém sua opção de direcionar o foco sobre nove ex-revolucionários apesar de, conforme destacou, ter acumulado informações sobre vinte e seis militantes, pode nos provocar a sensação de alguma ausência. Não obstante o fato de sua escolha ter sido justificada enquanto forma de entregar um material mais administrável ao leitor, pode nos levar a indagar se os atores não retratados teriam seguido, em alguma medida, por trilhas distintas após seu período de atuação na militância armada, ou, ainda, se não existiriam razões mais profundas para o fato de trajetórias terem sido pouco consideradas pelo autor em detrimento das que foram priorizadas.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Outrossim, tal como já mencionamos, o livro nos apresenta uma gama de detalhes, que muito corroboram para um aprofundamento mais detido das trajetórias sobre as quais se debruça, porém, alguns deles (como os que se referem à violência no Rio de Janeiro, ao Carnaval brasileiro ou a Bossa Nova) podem fazer com que alguns leitores desejem um conteúdo mais sucinto. Em contrapartida, é preciso relembrar que para o público-alvo do livro, dada sua publicação em língua inglesa, essas informações de caráter descritivo, sobretudo as que se referem às características culturais e sociais brasileiras, tendem a ser interpretadas a partir de uma perspectiva ligeiramente distinta.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Em síntese, por meio de uma abordagem inédita na historiografia que perpassa pela luta armada e pela militância de esquerda no Brasil, Serbin, com suas qualidades e seus limites, retrata e analisa cuidadosamente as transformações experimentadas por alguns ex-revolucionários ao largo de suas vidas, atingindo com êxito o objetivo inicialmente proposto. Seu livro reconstitui interessantes aspectos quanto à mudança de táticas e estratégias de luta adotada por essas personalidades que, com o passar das décadas, optaram pela adoção da via pacífica em detrimento das armas, aproximando-se, cada qual em determinada medida, do capitalismo, contra o qual lutaram décadas atrás, acreditando na potencialidade de mudanças e melhorias a partir do interior desse sistema.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Ainda que o livro não aprofunde debates teóricos e historiográficos a respeito da temática em questão, seu ineditismo sobre o assunto, somado ao seu rigor no tratamento das fontes e sua riqueza de detalhes, o torna uma leitura incontestavelmente recomendável. From Revolution to Power in Brazil se configura, portanto, como uma contribuição significativa para o campo temático e uma leitura valiosa para todos os que em algum momento se questionaram sobre o destino da geração de revolucionários que se ergueu na década de 1960 no Brasil. Não obstante os méritos de seus resultados, o livro torna novamente evidente a possibilidade de ampliação e aprofundamento de um assunto já tão bem trabalhado pelos materiais que se debruçaram sobre a temática; fato que, como demonstrado na prática por Serbin, não descarta a possibilidade e necessidade de análises que englobem novos problemas e novas abordagens.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Referências Bibliográficas</div><div style="text-align: justify;">GORENDER, Jacob. Combate nas Trevas. São Paulo: Ática, 1987.</div><div style="text-align: justify;">MIR, Luís. A revolução impossível: a esquerda e a luta armada no Brasil. São Paulo: Best Seller, 1994.</div><div style="text-align: justify;">POLLAK, Michael. Memória e identidade social. Estudos Históricos. Rio de Janeiro, v. 5, n. 10, 1992, p. 200-212.</div><div style="text-align: justify;">REIS FILHO, Daniel Aarão. A revolução faltou ao encontro: os comunistas no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1990.</div><div style="text-align: justify;">RIDENTI, Marcelo. O fantasma da revolução brasileira. 2ª ed. São Paulo: Editora UNESP, 2010.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">2</div><div style="text-align: justify;">Para esse marco tomamos por referência a intensificado da repressão sobre os agrupamentos armados a partir da segunda metade do ano de 1969.</div><div style="text-align: justify;">3</div><div style="text-align: justify;">Exemplos de trabalhos que perpassaram pela temática, embora com outros problemas e abordagens, são: GORENDER, Jacob. Combate nas Trevas. São Paulo: Ática, 1987; REIS FILHO, Daniel Aarão. A revolução faltou ao encontro: os comunistas no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1990; MIR, Luís. A revolução impossível: A esquerda e a luta armada no Brasil. São Paulo: Best Seller, 1994; RIDENTI, Marcelo. O fantasma da revolução brasileira. 2ª ed. São Paulo: Editora UNESP, 2010.</div><div style="text-align: justify;">4</div><div style="text-align: justify;">Referimo-nos aos livros Padres, celibato e conflito social: uma história da Igreja Católica no Brasil, traduzido por Laura Teixeira Motta e publicado pela editora Companhia das Letras em 2008, e Diálogos na sombra: bispos e militares, tortura e justiça social na ditadura, traduzido por Carlos Eduardo Lins da Silva e publicado pela mesma editora em 2011.</div><div style="text-align: justify;">5</div><div style="text-align: justify;">Foram eles: Adriano Diogo; Aloysio Nunes Ferreira Filho; Arlete Diogo: professora, ativista do PT e assistente chave de Adriano Diogo; Carlos Eugênio Sarmento Coêlho da Paz; Colombo Vieira de Souza; Jessie Jane Vieira de Souza; Manoel Cyrillo de Oliveira Netto; Márcio Araújo de Lacerda; Paulo de Tarso Vannuchi.</div><div style="text-align: justify;">6</div><div style="text-align: justify;">Em uma das passagens de seu livro, Serbin afirma: “O Capitalismo, assim como o potencial nuclear, pode ser usado para fins construtivos ou destrutivos”. Cf. SERBIN, Kenneth P. From Revolution to Power in Brazil: How Radical Leftists Embraced Capitalism and Struggled with Leadership. Notre Dame: University of Notre Dame Press, 2019, p. 67. (tradução minha).</div><div style="text-align: justify;">7</div><div style="text-align: justify;">SERBIN, Kenneth P. From Revolution to Power in Brazil: How Radical Leftists Embraced Capitalism and Struggled with Leadership. Notre Dame: University of Notre Dame Press, 2019, p. 77. (tradução minha).</div><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><br /></div><a class="dropdown-toggle" data-toggle="dropdown" href="https://www.scielo.br/j/rh/a/dHKCsCqJQQJZWhKYFchgqYx/?lang=pt" style="animation-duration: 0.1s; animation-fill-mode: both; background-color: white; box-sizing: border-box; color: #00314c; font-family: Arial, sans-serif; font-size: 12.6px; font-weight: 700; outline-offset: -2px; outline: 0px; text-decoration-line: none; transition: color 0.1s ease-out 0s, text-indent 0.1s ease-out 0s;"><span class="text" style="box-sizing: border-box;"><span class="truncate" style="box-sizing: border-box; overflow: hidden; text-overflow: ellipsis; white-space: nowrap; width: 450px;">Revista de História (São Paulo) </span><span class="sci-ico-arrowDown" style="-webkit-font-smoothing: antialiased; box-sizing: border-box; display: inline-block; font-family: scielo-glyphs !important; font-variant-east-asian: normal; font-variant-numeric: normal; font-weight: 400; line-height: 1em; speak: none; vertical-align: middle;"></span></span></a>Eduardo Marculinohttp://www.blogger.com/profile/09461824103400566723noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4969040045050510246.post-60349207742589349182022-10-12T11:49:00.000-07:002022-10-12T11:49:04.708-07:00Diásporas imaginadas: Atlântico Negro e histórias afro-brasileiras<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiFqrtZor5fJA30ijz55YuNZbz0ndSxYybpdzj5t8WXX6ia2o11nd-_VVY0HoplsU0T0h1g7atX1aPbS3Ln4FEcZn3D8hMeLfgfyCiWWEFysvLpdC45qFTIQ6F7-jEO1mmFaen1afwHjwYmYtX0MKUdpgq9NyPhYJ5B4nwi0ZiJokqYQfhbsy0CMtvZmg/s360/BUTLER.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="360" data-original-width="240" height="320" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiFqrtZor5fJA30ijz55YuNZbz0ndSxYybpdzj5t8WXX6ia2o11nd-_VVY0HoplsU0T0h1g7atX1aPbS3Ln4FEcZn3D8hMeLfgfyCiWWEFysvLpdC45qFTIQ6F7-jEO1mmFaen1afwHjwYmYtX0MKUdpgq9NyPhYJ5B4nwi0ZiJokqYQfhbsy0CMtvZmg/s320/BUTLER.jpg" width="213" /></a></div><br /><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div> <div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">DIÁLOGOS, EXPERIÊNCIAS E CONEXÕES DIASPÓRICAS NO ATLÂNTICO NEGRO</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Fernando de Oliveira dos Santos<br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">BUTLER, Kim D.; DOMINGUES, Petrônio. Diásporas imaginadas: Atlântico Negro e histórias afro-brasileiras. 1ª ed.São Paulo: Perspectiva, 2020. 360</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Os temas relacionados ao período pós-abolição abarcam um campo de pesquisa que tem se consolidado vigorosamente na historiografia brasileira nas últimas décadas. Em trabalho publicado recentemente, o historiador Petrônio Domingues – um dos principais especialistas – apresentou um importante balanço acerca das novas abordagens, problemas, perspectivas teóricas e metodológicas abrangendo esse ascendente ramo da historiografia. Domingues evidenciou que – nesse amplo e diversificado campo temático – uma das principais tendências é composta pelos estudos das experiências da comunidade negra dentro de uma configuração transnacional. (DOMINGUES, 2019, p.119).</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Desse modo, na esteira dessas pesquisas em desenvolvimento, a obra Diásporas imaginadas: Atlântico Negro e histórias afro-brasileiras oferece um valioso panorama das novas perspectivas analíticas. Petrônio Domingues e Kim D. Butler começaram a idealizar essa obra em conjunto, por volta de 2012, quando o historiador brasileiro realizou estágios de pós-doutoramento na Universidade de Rutgers, em Nova Jersey (Estados Unidos). A partir dos contatos no Departamento de Estudos Africanos, Domingues e a prestigiada historiadora estadunidense iniciaram uma fecunda interlocução intelectual, ensejando uma colaboração acadêmica que resultaria nessa obra recentemente publicada.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">O livro possui nove capítulos e está dividido em duas partes. Os quatros primeiros foram escritos por Kim D. Butler e os outros cinco por Petrônio Domingues. Embora o fio condutor da obra seja os temas relacionados à diáspora africana, os autores escreveram os capítulos de forma independente. No que tange aos objetivos, os historiadores buscam explorar o conceito de diáspora como um aporte analítico conceitual. Dessa forma, a diáspora seria uma ferramenta teórica que subsidiaria as investigações das experiências da população negra em</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">“(...) diferentes contextos culturais marcados por deslocamentos dentro e entre fronteiras, reterritorializações, cruzamentos zonas de contato, fragmentação e reconstrução de identidades individuais e coletivas em sua interface glocal (local e global)” (BLUTER; DOMINGUES, 2020, p. 18).</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Ademais, a abordagem diaspórica oferece fundamentos teóricos para analisar a história afro-brasileira, em uma perspectiva transnacional, revelando as múltiplas trocas, discursos, processos de resistência, a interlocução de ideias e projetos, envolvendo intelectuais, jornalistas, políticos, ativistas negros, entre outros.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">No primeiro capítulo, Definições de Diáspora: articulação de um discurso comparativo, Butler procura dissecar o conceito de diáspora, revelando sua historicidade e a pluralidade de seus significados. A historiadora observa que, nas últimas décadas – à medida que o mundo se torna cada vez mais interconectado –, o termo diáspora tem sido, cada vez mais, apropriado por diferentes comunidades para modelar e remodelar suas identidades. Não obstante, Butler explica que, até por volta da década de 1980, a diáspora era um conceito associado quase exclusivamente à experiência judaica, a despeito de existirem outras tantas dispersões históricas, como a africana, a grega, a armênica, para citar algumas. Contudo, desde então, com o desenvolvimento das pesquisas sobre a diáspora, o conceito ganhou elasticidade, abrangendo novas acepções consoante às experiências de outros grupos (BLUTER; DOMINGUES, 2020, p.2).</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Entretanto, a profusão e a heterogeneidade dos significados emergentes impuseram o desafio de uma conceituação que pudesse abarcar aspectos comuns das múltiplas experiências diaspóricas. Tendo em vista essa preocupação teórico-analítica, Butler sugere uma definição sucinta:</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">“As diásporas são um tipo dinâmico de comunidade, baseado na lógica primordial da família; diversas pessoas espalhadas por muitos lugares que, no entanto, se percebem unidas por uma ascendência comum e, em particular, conectadas a um local comum de origem” (BLUTER; DOMINGUES, 2020, p.3).</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">No decorrer do primeiro capítulo, a historiadora adensa sua análise das características das diásporas, indicando, de forma matizada, as diferentes bases que configuram essas identidades imaginadas, como lugar de origem, gênero, etnia, religiosidade (BLUTER; DOMINGUES, 2020, p.5-6). Ainda nesse tópico, tendo como lastro a literatura hodierna, Butler apresenta uma fértil sistematização dos atributos comuns das diásporas, envolvendo aspectos como: dispersão, terra de origem, identidade coletiva e relações de múltiplas gerações (BLUTER; DOMINGUES, 2020, p.8-9).</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">No segundo capítulo, Por que “Diáspora”? A migração do termo da experiência Judaica para a Africana e a sua utilidade universal, Butler procura reconstruir as origens da diáspora africana. A autora esmiúça vários contextos e processos históricos para evidenciar, como paulatinamente foi emergindo, um senso de comunidade entre os afrodescendentes no Mundo Atlântico entre o final do século XIX e as primeiras décadas do século XX. Essa conjuntura foi marcada pelo fim do escravismo no Brasil e em países do Caribe e, também, pelo surgimento do movimento pan-africanista, no qual destacaram-se personagens como Marcus Garvey e Robert Abbot. Conforme Butler, o desenvolvimento das tecnologias de comunicação e o transporte favoreceram o intercâmbio de ideias entre comunidades negras em diferentes espaços. Os periódicos produzidos pelas associações do pan-africanismo, como o The Negro World e o Chicago Defender, passaram a circular por diferentes regiões do mundo afro-atlântico (incluindo o Brasil), ventilando projetos de expansão da cidadania plena e de resistência ao imperialismo na África (BLUTER; DOMINGUES, 2020, p.38).</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Nesse contexto, o afloramento de sentimentos comunitários, ancorados na ancestralidade e na percepção de interesses em comuns, possibilitou a elaboração de estratégias e ações de ajuda mútua, tanto em nível local, quanto global. Segundo Butler, “Esse ‘momento da diáspora’ no mundo afro-atlântico foi transformador, foi quando se começou a se conceber e a funcionar uma comunidade da diáspora” (BLUTER; DOMINGUES, 2020, p.41). Contudo, o termo “diáspora” só passaria a ser empregado sistematicamente no discurso de intelectuais e militantes africanistas a partir de meados da década de 1960 (BLUTER; DOMINGUES, 2020, p.41). Essa conjuntura assinalaria uma inflexão, pois uma distinção foi sendo gradualmente estabelecida entre o ideário pan-africanista e a diáspora. Para a historiadora</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">“Ao contrário do pan-africanismo, uma política de solidariedade centrada na terra ancestral, conceitualmente, a diáspora permitiu a multiplicidade de políticas possíveis entre as várias comunidades da diáspora africana” (BLUTER; DOMINGUES, 2020, p.41).</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Já no terceiro capítulo, A diversidade da Diáspora: Contribuições para o desenvolvimento da teoria política da Diáspora Africana, Butler explora a dimensão política das diásporas e suas múltiplas potencialidades. A autora demonstra como o conceito de negritude – em suas várias acepções – ajudou a cimentar uma consciência coletiva, abrangendo diversas nações e comunidades da diáspora africana em torno de projetos comuns na América. Forjado no contexto da escravidão atlântica, a negritude foi o resultado de um complexo processo de incorporação – pelos afro-americanos – de um conjunto de ideias, valores e concepções de mundo amplamente compartilhadas por vários povos e etnias na África (BLUTER; DOMINGUES, 2020, p.61)</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Nos Estados Unidos, a negritude foi percebida como uma identidade socioétnica essencial para os afrodescendentes. Por conseguinte,</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">“Embora a importância e os contornos difiram significativamente de país para país, ela permaneceu, após o fim da escravidão, como uma identidade de solidariedade e uma base para políticas coletivas transnacionais” (BLUTER; DOMINGUES, 2020, p.61).</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Outro mote esmiuçado nesse tópico são as múltiplas configurações que as novas diásporas têm assumido no contexto das emigrações recentes do continente africano, bem como seus desafios e possibilidades de articulação política. Butler assinala que as diásporas hodiernas são caracterizadas por sua maior diversidade e complexidade. Isso porque, tanto os deslocamentos intercontinentais, quanto a migração interna na África, não são motivados mais apenas por circunstâncias de perseguições, guerras e pobreza. Tendo como base as pesquisas atuais, a historiadora pondera que grande parte das migrações africanas pós-coloniais foram estimuladas pelo sucesso econômico da emergente classe média, que possibilitou a esse segmento viajar e empreender (BLUTER; DOMINGUES, 2020, p.66). Portanto,</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">“A recente diáspora africana inclui profissionais e empresários qualificados, assim como os migrantes por razões econômicas e as vítimas de guerra, de instabilidade política e de tráfico” (BLUTER; DOMINGUES, 2020, p.67).</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">No quarto capítulo, Diálogos Diaspóricos: A Fantasia da África e o Internacionalismo Diaspórico no Carnaval da Bahia, Butler analisa de que modo, em dois contextos distintos – o Carnaval baiano ao incorporar e reelaborar elementos simbólicos da África e de outras comunidades diaspóricas –, converteu-se essa manifestação cultural, também em movimento político. No primeiro contexto, entre a última década do século XIX e a primeira do XX, a historiadora perscruta os primórdios do Carnaval na cidade de Salvador. É explicitado como os clubes recém-criados – como o Embaixada Africana em 1895 – utilizaram referências africanas como motes para abordar questões candentes naquela conjuntura, como a luta contra a marginalização cultural e os percalços para afirmação da cidadania dos afro-baianos no pós-abolição. O segundo contexto remete às décadas de 1970 e 1980, quando Butler recupera as origens e o papel político dos blocos afro, especialmente o Ilê Aiyê, considerado o pioneiro nessa modalidade do Carnaval (BLUTER; DOMINGUES, 2020, p. 95).</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Uma das teses da autora é que, em ambas as conjunturas históricas, o Carnaval tornou-se uma estratégia de negociação de espaço social e liberdades, ou seja, um instrumento alternativo de reivindicação política não formalizado. Contudo, as perspectivas políticas não emergiam apenas do âmbito local, já que eram influenciadas pelas conexões estabelecidas com as diversas comunidades da diáspora no cenário Afro-Atlântico. Essas inúmeras interlocuções, em nível global, entre vários ramos da diáspora, foram consolidadas, a despeito das dificuldades no tocante ao idioma, à distância, às especificidades culturais e às disparidades de recursos econômicos. Conforme Butler,</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">“Os Clubes africanos da virada do século XX e os blocos afro que surgiram na década de 1970 procuraram o continente e a diáspora para contextualizar e articular suas próprias lutas” (BLUTER; DOMINGUES, 2020, p.134).</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">No quinto capítulo, “O Moisés dos Pretos”: Marcus Garvey no Brasil, Petrônio Domingues avalia como as ideias e os projetos desse emblemático líder do pan-africanismo repercutiram de formas variadas e dissonantes nos jornais da imprensa brasileira. Inicialmente, o historiador apresenta um breve itinerário da trajetória social de Garvey. São recuperadas as etapas marcantes da formação de sua consciência política e racial, abrangendo desde a infância pobre até a criação, em 1914, da UNIA (Universal Negro Improvement Association), ainda na Jamaica. Em um segundo momento, Domingues aborda o contexto no qual as ideias e a popularidade de Marcus Garvey se disseminaram vertiginosamente, após sua mudança para os Estados Unidos, em 1916, e a instalação da UNIA no Harlem em Nova Yorke (BLUTER; DOMINGUES, 2020, p.138).</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Em seguida, o historiador traz a lume como os ideais de Garvey foram interpretados nos periódicos do Brasil na década de 1920, especialmente sua proposta para retorno dos afro-americanos para a África, a “terra da promissão”. No que tange à chamada grande imprensa, notadamente no eixo Rio de Janeiro-São Paulo, os projetos do líder negro foram percebidos como utópicos, radicais, mirabolantes, fantasmagóricos, para mencionar alguns adjetivos. Já na imprensa negra, as representações do jamaicano tendiam a ser positivas, embora nem todas as suas ideias fossem aprovadas, existindo também nuances de um periódico a outro. Em Campinas, o jornal O Getulino valorizou o engajamento de Garvey e sua capacidade de articular um movimento negro pujante com base em massas organizadas. Não obstante, a perspectiva internacionalista do líder jamaicano era rejeitada pelos líderes afro-campineiros (BLUTER; DOMINGUES, 2020, p.157).</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Por outro lado, O Clarim da Alvorada, outro jornal da imprensa negra criado na capital paulista em 1924, exaltava os empreendimentos desenvolvidos por Garvey, enaltecendo seu espírito modernizador e progressista, visando à ascensão material, social e cultural do negro. No entanto, “Em contraste com o Getulino, o jornal paulistano foi mais receptivo ao internacionalismo negro de Garvey, ainda que de forma seletiva” (BLUTER; DOMINGUES, 2020, p.157-158).</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Com a mesma perspectiva teórica, no sexto capítulo, A “Vênus Negra” Josephine Baker e a Modernidade Afro-Atlântica, Domingues também analisa as repercussões divergentes nos jornais brasileiros, de outra personagem ilustre no contexto da diáspora do Mundo Atlântico. Trata-se da consagrada artista estadunidense Josephine Baker que, por meio de seus múltiplos talentos e carisma, conquistou fama e prestígio no cenário internacional. Um dos pontos mais instigantes do capítulo é quando o autor dimensiona o enorme impacto causado por Baker – especialmente em seus fãs – durante as apresentações que a dançarina realizou nas cidades do Rio de Janeiro e São Paulo em 1929 (BLUTER; DOMINGUES, 2020, p.179).</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Entretanto, a dançarina negra não foi vista com simpatia por alguns segmentos afro-brasileiros, tampouco pelos jornais de maior circulação. Conforme o historiador, isso ocorreu devido ao seu comportamento vanguardista e disruptivo, sua personalidade expressiva e, principalmente, por não se orientar pelos padrões de moralidade e sexualidade vigentes. (BLUTER; DOMINGUES, 2020, p.181). A despeito das críticas e controvérsias, para Domingues, Baker era um ícone de mulher afrodescendente: talentosa, brilhante, genial e que teve o mérito de alcançar o auge da consagração. Por isso, “Em última instância, ela simbolizava a vitória do conjunto dos descendentes de africanos enfeixados na diáspora atlântica” (BLUTER; DOMINGUES, 2020, p.184).</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">No sétimo capítulo, Como se fosse Bumerangue: Frente Negra Brasileira no Circuito Transatlântico, Domingues problematiza o modo como o Chicago Defender – o principal jornal da imprensa negra estadunidense – interpretou as estratégias, projetos e ações da mais relevante associação negra brasileira da primeira metade do século XX. Uma de suas preocupações foi refutar teses que identificam o movimento negro brasileiro – especialmente na década de 1930 – como mero receptor e reprodutor passivo das retóricas raciais, estratégias e conteúdos ideológicos forjados pelo movimento congênere dos Estados Unidos. Para tanto, Domingues destrincha as conexões e os intercâmbios entre o jornal Chicago Defender e a Frente Negra Brasileira, demonstrando que os dois movimentos se influenciaram mutuamente. Tendo como quadro panorâmico o circuito da diáspora afro-atlântica, o historiador aplica a metáfora do bumerangue para evidenciar que</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">“(...) informações, articulações, projetos ideológicos, sonhos, fé e esperança de ativistas e organizações afro-diaspóricas transitavam, e mesmo giravam, com idas e voltas, em movimentos multilaterais em vias de mão dupla” (BLUTER; DOMINGUES, 2020, p.216).</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Outro aspecto esmiuçado nesse capítulo diz respeito à maneira apologética e laudatória pela qual o periódico estadunidense divulgava, em seu país, os projetos, conquistas e iniciativas da Frente Negra Brasileira. Em que pese as ações realizadas no campo cultural, educacional e político, o Chicago Defender superestimou as proezas da associação afro-brasileira. Domingues apresenta duas hipóteses para essa tendência. A primeira, em linhas gerais, postula que o periódico estadunidense, ao disseminar e enaltecer demasiadamente as façanhas da Frente Negra Brasileira, estaria valorizando a si próprio, angariando um certo capital simbólico. Isso porque, na visão dos membros do Chicago Defender, a entidade brasileira teria sido fundada sob os auspícios e inspiração de Robert S. Abbot, principal editor do jornal estadunidense (BLUTER; DOMINGUES, 2020, p. 208).</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Entretanto, para Domingues, há uma explicação mais satisfatória quando essa tendência é analisada por outro ângulo. As ações, estratégias e conquistas da Frente Negra Brasileira reverberavam em todo o mundo afro-atlântico, engendrando repercussões e influenciado movimentos em escala transnacional. Daí origina-se seu prestígio diante dos seus “coirmãos” afroamericanos, tanto que o Chicago Defender considerava a Frente Negra Brasileira a maior organização do gênero da América do Sul (BLUTER; DOMINGUES, 2020, p. 208).</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">No oitavo capítulo, “Em Defesa da Humanidade”: A Associação Cultural do Negro na Arena do “Black Internacionalism”, Domingues analisa a trajetória de outra importante associação negra paulista em sua interface, com a diáspora africana. A Associação Cultural do Negro (ACN) foi idealizada por José de Assis Borba e José Correia Leite, dois militantes que possuíam vasta experiência e participação no associativismo afro-paulista nas décadas anteriores. Os dois amigos, ao se encontrarem fortuitamente na Pauliceia, iniciaram uma reflexão sobre a falta de representatividade dos negros na história de São Paulo, tendo em vista o modo como as autoridades paulistanas organizavam os preparativos do quarto centenário de São Paulo. Para ambos, a invisibilidade atribuída aos afro-paulistas ocorria por conta da ausência de uma associação que pudesse exigir maior participação simbólica da comunidade negra na referida celebração. Foi neste contexto em que outros adeptos foram se integrando ao movimento, por meio de conversas e debates, culminando na fundação da Associação Cultural do Negro em 28 de dezembro de 1954 (BLUTER; DOMINGUES, 2020, p.218).</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Conforme Domingues, desde então, a ACN, em pouco tempo, tornou-se a mais importante associação afro-paulista das décadas de 1950 e 1960, embora sua existência oficial tenha se estendido até julho de 1976. Ao longo de sua trajetória, uma das principais características da militância da ACN foi o enorme engajamento dos seus associados no combate ao racismo e na luta pela igualdade de direitos, tanto no âmbito nacional, quanto no circuito da diáspora afro-atlântica. Na arena transnacional, assumiu um posicionamento ativo em processos históricos de envergadura, como no apoio aos afro-americanos na luta pelos direitos civis nos Estados Unidos, na crítica contundente ao apartheid na África do Sul, incentivando os processos de descolonização do continente africano, entre outras iniciativas.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Alguns episódios e ações ajudam a corroborar esse envolvimento da Associação Cultural do Negro no cenário internacional. Em 1957, quando se irrompiam diversos conflitos raciais nos Estados Unidos, provocados pela luta pelos direitos civis, a ACN remeteu uma carta ao governador do Arkansas, Orval Faubus, criticando-o pela truculência contra os negros que participavam das mobilizações. Nessa mesma ocasião, outra missiva foi endereçada a Dwight Eisenhower, quando o então presidente dos EUA teria sido saudado por posicionar-se, com veemência, contra aos atos violentos sofridos pelos negros (BLUTER; DOMINGUES, 2020, p.230).</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Já em 1961, a ACN tomou uma atitude análoga ao encaminhar a John Kennedy outra carta, desta vez, enaltecendo o presidente por se opor ao regime segregacionista Jim Crown e, também, pela criação da Comissão para a Igualdade de Oportunidade no Emprego. Segundo Domingues, nessa conjuntura em que Kennedy passava a ser visto, inclusive no cenário internacional, como um aliado dos afro-americanos na luta pelos direitos civis, emergia-se, pela primeira vez, o termo affirmative action (BLUTER; DOMINGUES, 2020, p.230).</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">A inserção da Associação Cultural do Negro no circuito da diáspora afro-atlântica, ainda, é evidenciada em outros processos históricos relevantes. No dia 21 de março de 1960, em Joanesburgo, a maior cidade da África do Sul, houve um importante protesto contra uma medida que obrigava os negros a utilizarem cartões de identidade, circunscrevendo os lugares onde podiam transitar. A mobilização reuniu cerca de 20 mil manifestantes e, a despeito de ser pacífica, foi combatida com requintes de crueldade pelo Exército, que atirou sem piedade contra a multidão no bairro de Shaperville. Como resultado, 67 pessoas morreram e mais de 186 foram feridas. Esse fato causou enorme impacto na comunidade negra e mesmo na opinião pública internacional. Indignados, os membros da ACN convocaram um ato público em solidariedade às vítimas do Massacre de Shaperville. O protesto ocorreu em 25 de abril, na Associação Paulista de Imprensa, reunindo diversos segmentos da sociedade, como autoridades políticas e militares, entidades negras, grupos artísticos, lideranças sindicais e estudantis (BLUTER; DOMINGUES, 2020, p.232).</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Nesse evento memorável, no qual vários oradores discursaram, além da condenação pública do massacre em Joanesburgo, também, foi manifestado apoio às comunidades negras de São Tomé, Angola e Moçambique, as quais lutavam pela independência contra Portugal. Não obstante, talvez, o mais significativo resultado dessa reunião foi o Manifesto, redigido ao final dos trabalhos, no qual os assinantes pressionavam o Governo brasileiro a romper relações diplomáticas com a África do Sul, por violar as Convenções internacionais (BLUTER; DOMINGUES, 2020, p.232).</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Desse modo, no circuito da diáspora afro-atlântica, essas e outras ações implementadas pela ACN atestam que</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">“A associação buscou ficar em sintonia com tudo o que transcorria na vida do negro, em âmbito local e global, e, quando necessário, posicionou-se em defesa dele” (BLUTER; DOMINGUES, 2020, p.242).</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">No último capítulo do livro, Agenciar Raça, Reinventar a Nação: O movimento das reparações no Brasil, o historiador traz à tona a importância desse movimento no processo de luta por direitos da população negra, tendo como pano de fundo o cenário transatlântico. Domingues assevera que as reivindicações por políticas compensatórias no Brasil, embora tenham emergido com vigor apenas na década de 1990, já estavam entre as bandeiras do movimento negro brasileiro, pelo menos desde a década anterior. Essa luta foi inspirada na experiência estadunidense, pois o debate acerca das ações afirmativas nesse país vinha ocorrendo desde meados da década de 1960 (BLUTER; DOMINGUES, 2020, p.265).</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Outra tese defendida pelo historiador é que o Movimento pelas Reparações dos afro-brasileiros, que se institucionalizou e se fortaleceu na década de 1990, manteve-se concatenado e inspirando-se nos fluxos de ideias, discursos, estratégias e lutas de outros movimentos no circuito transatlântico da diáspora negra (BLUTER; DOMINGUES, 2020, p.245). Além disso, apesar de o Movimento pelas Reparações não ter conquistado as indenizações exigidas, esse processo acumulado de lutas e experiências permitiram redefinir o racismo como problema público e, assim, abrir caminho para as atuais políticas de ações afirmativas (BLUTER; DOMINGUES, 2020, p.245).</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Dessa forma, tendo em vista o que foi apresentado nessa sinopse, essa obra torna-se fundamental para os estudiosos e pesquisadores da história da escravidão, do pós-abolição e do movimento negro no Brasil contemporâneo. Esses são alguns dos motivos dentre tantos outros, porque a diáspora oferece um valioso aparato conceitual para se investigar as experiências da população afro-brasileira em uma perspectiva que abrange as múltiplas e intricadas conexões no plano global e local.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Referências bibliográfica</div><div style="text-align: justify;">DOMINGUES, Petrônio. Protagonismo negro em São Paulo: História e Historiografia. São Paulo: Edições Sesc São Paulo, 2019.</div><div style="text-align: justify;"><a class="dropdown-toggle" data-toggle="dropdown" href="https://www.scielo.br/j/rh/a/kmsZRHCp76pBQxgxRZsqZDc/?lang=pt" style="animation-duration: 0.1s; animation-fill-mode: both; background-color: white; box-sizing: border-box; color: #00314c; font-family: Arial, sans-serif; font-size: 12.6px; font-weight: 700; outline-offset: -2px; outline: 0px; text-align: left; text-decoration-line: none; transition: color 0.1s ease-out 0s, text-indent 0.1s ease-out 0s;"><span class="text" style="box-sizing: border-box;"><span class="truncate" style="box-sizing: border-box; overflow: hidden; text-overflow: ellipsis; white-space: nowrap; width: 450px;">Revista de História (São Paulo) </span><span class="sci-ico-arrowDown" style="-webkit-font-smoothing: antialiased; box-sizing: border-box; display: inline-block; font-family: scielo-glyphs !important; font-variant-east-asian: normal; font-variant-numeric: normal; font-weight: 400; line-height: 1em; speak: none; vertical-align: middle;"></span></span></a></div>Eduardo Marculinohttp://www.blogger.com/profile/09461824103400566723noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4969040045050510246.post-53203713006652721202022-10-12T11:43:00.005-07:002022-10-12T11:43:32.710-07:00REPENSAR A AMÉRICA LATINA NA GUERRA FRIA COMO PARTE DO SUL GLOBAL<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjKTKNADFx2BtxydnbDJlMi9mfWhbemDoSHV3LQUQKk_XHgegWqP3UZbQ1x6GSSv6GO66I2QNWGgwYboWPIBRQ2zR1YnkUFvUHO4eVqS8UaaOGf3_moSBRz7aR99euOZqwhdqs8XzzS2A2_3F_L4IOQg_z866BIuxJDFmT0jEqDiHJ-ErfEJAdmCmwcdA/s274/FIELD,%20Thomas%20C.%20Jr.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="274" data-original-width="184" height="274" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjKTKNADFx2BtxydnbDJlMi9mfWhbemDoSHV3LQUQKk_XHgegWqP3UZbQ1x6GSSv6GO66I2QNWGgwYboWPIBRQ2zR1YnkUFvUHO4eVqS8UaaOGf3_moSBRz7aR99euOZqwhdqs8XzzS2A2_3F_L4IOQg_z866BIuxJDFmT0jEqDiHJ-ErfEJAdmCmwcdA/s1600/FIELD,%20Thomas%20C.%20Jr.jpg" width="184" /></a></div><br /><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div> <div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">REPENSAR A AMÉRICA LATINA NA GUERRA FRIA COMO PARTE DO SUL GLOBAL</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Flóres Giorgini<br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">FIELD, Thomas C. Jr; KREPP, Stella; PETTINÀ, Vanni. Latin America and the Global Cold War. The New Cold War history. Chapel Hill: The University of North Carolina Press, 2020. 440</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Latin America and the Global Cold War foi publicado na coleção The new cold war history, dirigida por Odd Arne Westad, autor também do curto posfácio do texto. O objetivo dessa coletânea é publicar livros que proponham novas interpretações do período da Guerra Fria a partir de pesquisas em arquivos da China ou dos países da antiga URSS, entre outros. De forma mais geral, a new cold war history, é uma tentativa, formulada no final dos anos 90 do século passado, de repensar o paradigma que estava na base da maioria das pesquisas sobre o período que começa no pós-guerra e que o considera como caraterizado exclusivamente pelas principais tensões em termos militares e econômicos entre o bloco ocidental e soviético. Entre as várias implicações dessa perspectiva tem o fato de considerar tudo que aconteceu fora desses dois blocos, na “periferia” da Guerra Fria, como sendo sem importância para a compreensão histórica do período. Com relação a esse ponto, a perspectiva da Global Cold War mostra como, ao contrário, os países do Terceiro Mundo, ou mais recentemente, do Sul Global, foram os palcos de alguns dos principais conflitos do pós guerra, e como, ao mesmo tempo, é impossível entender as transformações políticas, econômicas, sociais e culturais nesses países sem levar em conta as intervenções internacionais das duas superpotências. Isso não significa, no entanto, considerar esses países como meras peças no tabuleiro da Guerra Fria. As políticas e iniciativas desses países eram, ao invés disso, fruto da articulação entre interesses nacionais, estratégias políticas dos governos locais e o contexto de tensão internacional. Nessa linha de pesquisa, o trabalho de Westad e seu livro, de 2005, The Global Cold War foram sem dúvida seminais (WESTAD, 2005).</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Outros trabalhos nessa linha tentaram sublinhar as articulações complexas entre políticas internacionais dos dois blocos, movimentos de emancipação e dinâmicas do desenvolvimento dos países do Terceiro Mundo através de perspectivas variadas, tanto transnacionais quanto internacionais (BLECHA, BREZINOVÁ, MANKE, 2017). Esses estudos apontam para a necessidade de descentrar o olhar histórico sobre o período da Guerra Fria para dar mais espaço aos territórios e aos atores nacionais e internacionais que até muito recentemente eram considerados como marginais pela estrutura da narrativa histórica canônica. Se a maioria das pesquisas não chega a recolocar em questão a legitimidade dessa narrativa para falar da história dos países não alinhados, como o fez Wallerstein (WALLERSTEIN, 2010), ela tenta mesmo assim enriquecê-la com as experiências dos países do Sul Global. Mas relativamente poucos estudos até hoje tentaram integrar a experiência dos países da América Latina nesse esquema conceitual.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Como o título do livro em questão indica, o texto organizado por Field Jr., Krepp e Pettinà se inscreve primeiramente nessa linha de pesquisa. As raízes do projeto estariam em um workshop organizado por Krepp, em 2014, em Berna, na Suíça, e do qual participaram também Pettinà e Field Jr.; assim como em uma apresentação conjunta dos três futuros editores do livro, em 2015, sobre a questão do desenvolvimento na América Latina durante a Guerra Fria. Foi nesses dois eventos que surgiu e tomou forma a ideia de um texto no qual a história contemporânea do continente latino-americano teria sido escrita a partir de uma perspectiva de história global (de uma perspectiva capaz de reconstruir a história da América Latina levando em conta as relações e interações múltiplas e complexas entre os diferentes atores, em contextos locais e internacionais, por cima e por baixo das fronteiras nacionais), que teria permitido, ao mesmo tempo, “provincializar” os estudos das superpotências – principalmente dos EUA – e pensar a América do Sul além do hemisfério ocidental.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Pois, uma das principais constatações dos editores na introdução do livro é que as múltiplas relações entre a América Latina e o resto do Sul Global teriam sido esquecidas pelos historiadores interessados na história contemporânea do continente. Isso seria em grande parte consequência de uma historiografia sobre o Terceiro Mundo, e sobre o terceiro mundismo, baseada na maioria dos casos apenas nas experiências dos países dos blocos socialista e afro-asiático; mas também de certa relutância dos historiadores latino-americanos em abandonar narrativas históricas fundadas na ideia da excepcionalidade nacional das evoluções econômicas, políticas e sociais de cada país. A essa perspectiva histórica soma-se outra, comum entre os historiadores das relações internacionais, interessados na Guerra Fria, centrada no impacto dos Estados Unidos no continente sul-americano. Como consequência, a história contemporânea da América Latina raramente é pensada para além de suas fronteiras e ainda menos como parte da história do Sul Global.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Dentre as iniciativas mais recentes, que permitiram reavaliar o lugar da América Latina nesse contexto mais amplo, os autores citam os estudos que repensaram o próprio conceito de Terceiro Mundo, sublinhando a sua dimensão política antes que territorial ou étnica. As contribuições do livro permitem ir mais longe na reformulação da história desse movimento histórico e – através do estudo das realidades locais, nacionais e regionais latino-americanas no período da Guerra Fria – mostrar as múltiplas e complexas “conexões e interações que existiam entre a América Latina e as outras regiões conhecidas coletivamente como o Terceiro Mundo” (p.7). Mais do que isso, o livro propõe repensar a “história da América Latina como parte da história do Terceiro Mundo”, estudando as várias manifestações do “terceiro mundismo latino americano” no período da Guerra Fria (Ibid).</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Sem dúvida essa perspectiva constitui uma pista muito pouco explorada até agora no que diz a respeito à maneira de pensar a história do continente latino-americano no período pós-guerra e principalmente as imbricações complexas entre experiência latino-americana, movimento do Terceiro Mundo e lógicas próprias à Guerra Fria. No entanto, parece importante lembrar aqui o trabalho do historiador chileno Eduardo Devés Valdés que, apesar de partir de uma perspectiva histórica diferente, de história intelectual e de não se debruçar sobre às questões ligadas à Guerra Fria, já estuda há um tempo o “pensamento periférico” (VALDÉS, 2017) e as circulações intelectuais entre América Latina, África e Ásia, dentro do que ele chama de “mundo periférico” (VALDÉS, 2003). Vale mencionar também o trabalho de outro historiador chileno, German Fuschini Alburquerque que desde 2010 tem publicado vários artigos (ALBURQUERQUE, 2010; ALBURQUERQUE, 2011; ALBURQUERQUE, 2014) sobre o terceiro-mundismo e o não alinhamento de vários países da América Latina.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">O livro conta com a participação de 15 pesquisadores, cujas contribuições foram selecionadas pelos editores e revisadas por pares. A maioria (9) deles obteve seu doutorado em uma Instituição nos Estados Unidos ou a ela está ligado atualmente. Se a esses adicionamos os que prepararam suas teses de doutorado ou trabalham em instituições do Reino Unido (3), vemos aparecer um grupo de autores em larga parte ligados ao mundo da pesquisa anglo-saxã. Apenas três, considerando as informações disponíveis, têm atualmente alguma ligação profissional com instituições latino-americanas ou realizaram parte de sua formação doutoral no continente.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Com relação à natureza multifacetada do livro, gostaria de chamar a atenção para o interesse de tratar de forma colaborativa o tema em questão. De fato, essa forma seja talvez a única que permite escrever uma história realmente global da América Latina, além de mostrar todas as potencialidades e o interesse da cooperação entre pesquisadores na produção do saber científico, ainda mais em áreas, como a das ciências humanas e sociais, onde o trabalho de pesquisa continua, às vezes, sendo muito centrado na produção individual.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Um dos méritos principais desse trabalho coletivo é o fato de as contribuições reconstruírem as histórias das múltiplas conexões entre os países latino-americanos e o Terceiro Mundo com base em fontes provenientes de arquivos situados em 19 países: Argélia, Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Cuba, Tchecoslováquia, República Dominicana, Alemanha, Guatemala, Rússia, França, Haiti, Índia, México, Nicarágua, Panamá, Reino Unido e Estados Unidos. Esse trabalho demanda o domínio de várias línguas e certa familiaridade com a organização dos arquivos nos diferentes países – além do tempo e dos recursos financeiros necessários para poder viajar até cada um deles. Tal conjunto de elementos, incontornáveis para tratar de uma coleção de documentos tão vasta, seria dificilmente acumulável por um só indivíduo.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Além disso, parece-me que cada contribuição adquire mais valor quando articulada com o conjunto das outras que podem explorar experiências similares, mas também diferentes, em outros países ou em momentos distintos ou ainda a partir de diversas perspectivas históricas, mostrando assim a complexidade e a riqueza do momento analisado.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Mas se a perspectiva proposta pelos editores e articulada pelos pesquisadores que participaram da escritura do livro constitui uma tomada de posição importante a favor da integração da América Latina na história do Sul Global, isso não deve nos fazer esquecer o valor de cada contribuição e do conjunto delas na historiografia sobre a inserção da América Latina na história do Terceiro Mundo ao longo do século passado.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">O livro, desse ponto de vista, é uma contribuição fundamental, que traz histórias múltiplas e variadas sobre o assunto. Ele está dividido em duas partes, ambas muito bem equilibradas em termos de páginas e capítulos (7 para cada parte), intituladas respectivamente Third World Nationalism e Third World Internationalism. Digamos, logo de partida, que alguns artigos poderiam muito bem estar em uma ou outra seção, mostrando que as duas dimensões das interações entre experiências latino-americanas e Terceiro Mundo – lato senso – são muitas vezes complementares.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Na primeira parte, as contribuições tratam, em boa medida, do uso estratégico feito pelos governos latino-americanos do vocabulário terceiro mundista e do contexto internacional – da aparição do movimento dos países não alinhados (MNA) – para sustentar seus interesses políticos e econômicos nacionais, com relação aos diferentes blocos da Guerra Fria.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Um bom exemplo dessa dinâmica, apontada também por outros autores, é o estudo de Thomas C. Field Jr. (Capítulo 2) que analisa parte da experiência do Movimiento Nacionalista Revolucionario (MNR), partido que chegara ao poder na Bolívia em 1952 e que recebera centenas de milhões de dólares do governo estadunidense, apesar de conseguir nacionalizar as minas de estanho, implementar uma reforma agrária radical e manter relações com a Checoslováquia e com Cuba no começo dos anos 1960. Como entender essa experiência que parecia aproximar o país da postura dos países do MNA na procura de uma posição internacional de equidistância entre os dois blocos da Guerra Fria?</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Para tentar responder a essa pergunta o autor analisa a política internacional e o contexto nacional do segundo governo Paz Estenssoro através do estudo conjunto de fontes bolivianas, mas também de fontes produzidas por agentes dos Estados checo, cubano e estadunidense, durante suas respectivas tentativas de atrair o Estado boliviano em suas áreas de influência. A experiência boliviana é um bom exemplo dos limites das tentativas dos governos nacionalistas latino-americanos em desenvolver uma política externa de não alinhamento e da tensão entre a implementação dessa lógica na esfera internacional e a pregnância do esquema da oposição entre os blocos da Guerra Fria na mentalidade dos atores implicados no contexto latino-americano.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Em relação a este último ponto, o texto de David M. K. Sheinin (Capítulo 7) coloca em questão a ideia geralmente aceita pela historiografia nacional e pela opinião comum argentina de que o país teria se mantido à margem dos conflitos entre as grandes potências da Guerra Fria e de suas estratégias internacionais por causa de sua implementação, na esfera internacional, da tercera posición elaborada por Juan Perón nos anos 1950. O autor, na contramão desse lugar comum da historiografia nacional, considera que a “tercera posición da Argentina” nunca foi mais do que “uma vaga declaração de intenção” (p. 194) e que as convergências ocasionais entre os interesses dos governos argentinos e dos membros do MNA nunca “comprometeram uma sólida e vital política externa em favor de Washington” (p.176), fruto também do forte anticomunismo das elites políticas argentinas.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Os dois artigos que tratam do Brasil, escritos por Miguel Serra Coelho (Capítulo 1) e Stella Krepp (Capítulo 4), situam-se também nessa primeira seção do livro e estudam as relações bilaterais do país com a Índia independente após 1947 e sua participação nos dois primeiros encontros do MNA, em 1961 e 1964. Ambos consideram que o interesse do Brasil pelo bloco dos países afro-asiáticos e por sua política de não alinhamento estava, na maioria dos casos, ligado a interesses nacionais imediatos – como o eventual apoio desses novos países aos projetos brasileiros na Organização das Nações Unidas – ou econômicos de “renegociação da ordem econômica global” (p.118). O subdesenvolvimento econômico e suas causas internacionais teriam sido assim o principal ponto de encontro entre os interesses do Estado brasileiro e o movimento do Terceiro Mundo.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Os dois autores sublinham como de fato os representantes internacionais brasileiros pensavam o país como profundamente ligado ao bloco ocidental, política e culturalmente. A esse respeito, seria interessante saber até que ponto essa representação da identidade brasileira pode ser considerada como expressiva da autoimagem nacional de outros setores da sociedade brasileira ou se, ao contrário, ela estaria ligada à origem socioeconômica bastante homogênea dos funcionários e diplomatas do Itamarati nesse período (1940 – 1970).</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Outro estudo, que parte da concepção econômica do Terceiro Mundo para pensar as ligações entre suas diferentes partes é o de Sarah Foss (Capítulo 5) sobre a experiência do National Program of Community Development, lançado pelo governo da Guatemala, em 1964. A partir da implementação dessa política na cidade de Tactic, a autora pôde observar interesses e objetivos divergentes perseguidos pelos diferentes atores implicados nesse projeto, assim como o uso estratégico feito por alguns deles da identidade com o Terceiro Mundo. Em uma perspectiva parecida, Miriam Elizabeth Villanueva (Capítulo 13) estuda também, na segunda parte do livro, os usos estratégicos da retórica anti-imperialista e terceiro mundista pelo general Omar Torrijos Herrera e o governo militar panamense (a partir de 1968). O líder militar e a elite no poder teriam de fato se aproveitado da retórica terceiro mundista e anti-imperialista para incentivar ao mesmo tempo o apoio popular ao novo governo e o apoio internacional a suas tentativas de negociar com os Estados Unidos a restituição do Canal do Panamá, inserindo-se em discussões globais sobre o anticolonialismo e a libertação do Terceiro Mundo (p. 345).</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Completam essa primeira parte do livro mais dois artigos escritos por Vanni Pettinà (Capítulo 3) e por Michelle Getchell (Capítulo 6) sobre, respectivamente, as relações entre México e URSS no final dos anos 1950 e começo da década seguinte, e a política externa cubana, promovida por Fidel Castro, de inserção no bloco afro-asiático. O texto de Pettinà aponta para uma questão importante, que é a de considerar as relações entre a América Latina e os países do bloco socialista para estudar as formas de identificação do continente americano com o Terceiro Mundo – assim como suas tentativas de aproximação dos países do MNA – e vice-versa. No caso específico do México, de fato, a tentativa do governo López Mateos no final dos anos 1950 em construir pontes com a URSS era parte de um projeto mais amplo de recolocar em questão a rígida aliança entre o país e o vizinho norte-americano no contexto da Guerra Fria (p.74) Como afirma também Field Jr., uma das melhores maneiras de identificar os interesses da América Latina para o não alinhamento do Terceiro Mundo é explorar as relações com os países socialistas do Leste Europeu e Cuba (p. 46).</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Com relação ao papel de Cuba, o texto de Michelle Getchell aponta, por sua vez, para as tensões que existiam entre a política externa desse país e a da URSS com relação ao restante do continente latino-americano, atritos que minavam os esforços do bloco socialista em atrair os outros países da região para sua órbita no campo na Guerra Fria. Além disso, a autora sublinha também o papel central de Cuba no processo de assimilação do continente latino-americano ao Terceiro Mundo (tanto no nível político, como nas representações sociais), através de suas tentativas de defender os interesses nacionais e de se emancipar da dependência com a União Soviética – dependência econômica e política às vezes especular àquela de outros países latino-americanos com os Estados Unidos.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">A centralidade de Cuba como ponte entre os países afro-asiáticos e os ibero-americanos é também sublinhada por Eric Gettig, que escreveu o outro texto do livro sobre a política externa do governo castrista com relação aos principais fóruns do “projeto do Terceiro Mundo”, segundo a expressão de Vijay Prashad, citada pelo autor (Capítulo 10). Nesse capítulo, já na segunda parte do livro, o autor afirma que o impacto cubano sobre as formas de associação entre os países da América Latina e o projeto do Terceiro Mundo foi, ao mesmo tempo, “direto, influenciando a forma como os indivíduos e governos latino-americanos agiram com relação ao Terceiro Mundo e suas instituições emergentes”, mas também indireto, pois Cuba se tornou o motor dos esforços correspondentes dos Estados Unidos para moldar o envolvimento latino-americano com esse movimento internacional (p. 241).</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Na segunda seção do livro, encontramos pesquisas sobre as diversas, e interessantíssimas, iniciativas de atores latino-americanos para construir redes de solidariedade internacionais em apoio às lutas travadas no nível nacional, como é o caso da Frente Sandinista de Liberación Nacional e de seus esforços para construir uma base de legitimação e apoio internacional para sua revolta contra a dinastia Somoza, tema estudado por Eline Van Ommen (Capítulo 14).</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Essa seção explora as múltiplas interações entre os diferentes atores latino-americanos, o mundo socialista, os Estados Unidos e o Terceiro Mundo, como no texto de Tobias Rupprecht (Capitulo 9). Rupprecht estuda os relatos de viagem de alguns intelectuais latino-americanos considerados como terceiro-mundistas que viajaram à URSS entre 1950 e 1970, para mostrar as múltiplas imbricações entre terceiro-mundismo e fascínio pela experiência socialista-soviética entre os atores latino-americanos. Seu texto recoloca em questão a ideia de que o socialismo soviético teria perdido interesse para os intelectuais latino-americanos ao longo da década de 1960, mostrando como vários deles, de origem social simples e membros de grupos marginalizados no nível nacional, continuavam vendo a União Soviética como um modelo positivo de construção de uma sociedade mais justa – pelo menos no que dizia respeito à questão da redistribuição das riquezas.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Outros textos nessa segunda parte do livro exploram as circulações de indivíduos e ideias e sua importância para a construção de identidades supranacionais e de redes de solidariedade transnacionais. Esse é o caso do texto de Alan McPherson (Capitulo 8) que lembra como vários atores políticos e sociais latino-americanos, desde o começo do século XX, imaginavam comunidades – para retomar a clássica ideia de Benedict Anderson (ANDERSON, 2008) – mais amplas do que as delimitadas pelas fronteiras nacionais e como nessas construções imaginárias a questão “racial” era central ainda no período entre as duas guerras mundiais. No estudo sobre a constituição de redes transnacionais de oposição à ocupação norte-americana no Haiti e na República Dominicana (1916–1934), o autor aponta também o papel dos Estados Unidos no surgimento da identificação das populações locais com narrativas mais amplas, como a do pan-africanismo para a sociedade haitiana. O papel dos Estado Unidos na consolidação do Terceiro Mundo já tinha sido apontado por Westad (WESTAD, 2005), e McPherson mostra mais uma de suas facetas com relação ao nascimento de uma consciência racial no Haiti em oposição à ocupação norte-americana claramente marcada por essa questão.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">A importância das origens étnicas, como canal de aproximação privilegiado a ser tomado em consideração para entender o interesse das sociedades latino-americanas pela causa dos países afro-asiáticos e sua identificação, ou não, com essas populações, é também apontada por Eugenia Palieraki no único texto do livro sobre o Chile (Capítulo 11). Neste, a autora explora as relações entre os movimentos de esquerda e os governos chilenos e algerianos, entre 1956 e 1973, mostrando como a qualidade dos contatos entre os dois países evoluíram nesse período, passando de alguns encontros informais, através do Comité Chileno Pro-Autodeterminación da Argélia, à abertura da embaixada chilena em Argel, em 1963. O Comité pela autodeterminação da Argélia foi fundado em 1956 dentro da comunidade da diáspora árabe no Chile, com o apoio de partidos políticos nacionais de centro e de esquerda.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Outro texto nessa seção do livro explora a estruturação de redes de solidariedade internacionais em torno de interesses convergentes de atores latino-americanos e afro-asiáticos. Um exemplo é o esforço conjunto desses países para construir a Nova Ordem Econômica Internacional (NIEO em inglês) e para reduzir as desigualdades nas relações econômicas entre países desenvolvidos e subdesenvolvidos. Dentre os documentos que formavam o núcleo desse projeto internacional estava a Carta de Direitos e Deveres Econômicos dos Estados, adotada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 1974, e elaborada a partir de uma iniciativa do governo mexicano e de seu presidente na época, Luis Echeverría. Estudando as origens dessa proposta, Christy Thornton (Capitulo 12) considera que os seus princípios estariam na experiência do México revolucionário dos anos 1910 e em seus planos, desde então, para reestruturar a organização da esfera internacional. Essa perspectiva, segundo Thornton, permitiria rescrever a história de uma iniciativa fundamental dos países subdesenvolvidos mostrando a importância da participação latino-americana e sua gênese além das lutas do bloco afro-asiático e do contexto histórico de crise do sistema capitalista dos anos 1970.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Infelizmente não é possível, no espaço desta resenha, analisar de forma mais detida todas as contribuições que traz esse livro, a meu ver incontornável para quem se interessa pelas relações entre América Latina e Terceiro Mundo na segunda metade do século XX, ou simplesmente pela história da inserção do continente sul-americano na Guerra Fria. Em conclusão, podemos dizer que pensar a história contemporânea da América Latina como parte do Sul Global permite aos diferentes autores recolocar em questão várias interpretações canônicas sobre o passado recente desses países. Além disso, algumas questões recorrentes nos capítulos do livro, e que tentei apontar no meu texto, permitem balizar sendas para futuros estudos sobre a inserção da América Latina na história do Terceiro Mundo. Por fim, pensamos que as numerosas questões e reflexões que surgem durante a leitura mostram ainda mais a necessidade de continuar pesquisando esse período formador de nossa realidade contemporânea a partir do esquema conceitual proposto pelo livro.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Referências bibliográficas</div><div style="text-align: justify;">ALBURQUERQUE, German Fuschini. Los intelectuales Latino Latinoamericanos y la Construccíon Cultural del Tercer Mundo: Concepto, Imagen, Ideología (1952–1991). História social, v. 18, p. 95–116, 2010.</div><div style="text-align: justify;">ALBURQUERQUE, German Fuschini. Tercer Mundo y tercermundismo en Brasil: hacia su constitución como sensibilidad hegemónica en el campo cultural brasileño - 1958-1990. Estudos ibero-americanos, v. 37, n. 2, p. 176–195, 2011. Disponível em: https://dialnet.unirioja.es/servlet/articulo?codigo=5967920 Acesso em: 02 mar. 2021 DOI: https://doi.org/10.15448/1980-864X.2011.2.10021</div><div style="text-align: justify;"><a href="https://doi.org/10.15448/1980-864X.2011.2.10021">» https://doi.org/10.15448/1980-864X.2011.2.10021</a><a href="https://dialnet.unirioja.es/servlet/articulo?codigo=5967920">» https://dialnet.unirioja.es/servlet/articulo?codigo=5967920</a></div><div style="text-align: justify;">ALBURQUERQUE, German Fuschini. Tercermundismo en el Cono Sur de América Latina: ideología y sensibilidad. Argentina, Brasil, Chile y Uruguay, 1956 - 1990. Tempo e Argumento, v. 6, n. 13, p. 140–173, 2014. Disponível em: https://www.revistas.udesc.br/index.php/tempo/article/view/2175180306132014140 Acesso em: 02 mar. 2021. DOI: http://dx.doi.org/10.5965/2175180306132014140</div><div style="text-align: justify;"><a href="https://doi.org/10.5965/2175180306132014140">» https://doi.org/10.5965/2175180306132014140</a><a href="https://www.revistas.udesc.br/index.php/tempo/article/view/2175180306132014140">» https://www.revistas.udesc.br/index.php/tempo/article/view/2175180306132014140</a></div><div style="text-align: justify;">ANDERSON, Benedict. Comunidades imaginadas: reflexões sobre a origem e a difusão do nacionalismo Tradução: Denise Bottman. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.</div><div style="text-align: justify;">BREZINOVÁ, Katerina; BLECHA, Laurin; MANKE, Albert. Conceptual reading into the Cold War: towards transnational approaches from the perspective of latin american studies in eastern and western Europe. Estudos Históricos, v. 30, n. 60, p. 203–218, 2017. Disponível em: https://www.scielo.br/j/eh/a/nKtJ8FCwn8mFyp7nT8MQqZx/?lang=en Acesso em: 10 mar. 2021. DOI: http://dx.doi.org/10.15907S2178-14942017000100011</div><div style="text-align: justify;"><a href="https://doi.org/10.15907S2178-14942017000100011">» https://doi.org/10.15907S2178-14942017000100011</a><a href="https://www.scielo.br/j/eh/a/nKtJ8FCwn8mFyp7nT8MQqZx/?lang=en">» https://www.scielo.br/j/eh/a/nKtJ8FCwn8mFyp7nT8MQqZx/?lang=en</a></div><div style="text-align: justify;">VALDÉS, Eduardo Devés. La Circulación de Ideas en el Mundo Periférico: Algunas presencias, influencias y reelaboraciones del pensamiento latinoamericano en África. Anos 90, v. 10, n. 18, p. 88–98, 2003. Disponível em: https://seer.ufrgs.br/anos90/article/view/6328 Acesso em: 02 mar. 2021. DOI: https://doi.org/10.22456/1983-201X.6328</div><div style="text-align: justify;"><a href="https://doi.org/10.22456/1983-201X.6328">» https://doi.org/10.22456/1983-201X.6328</a><a href="https://seer.ufrgs.br/anos90/article/view/6328">» https://seer.ufrgs.br/anos90/article/view/6328</a></div><div style="text-align: justify;">VALDÉS, Eduardo Devés. Pensamiento periférico: Una tesis interpretativa global 2a ed. Santiago de Chile: Ariadna Ediciones, 2017.</div><div style="text-align: justify;">WALLERSTEIN, Immanuel. What cold war in Asia? An interpretative essay. In: ZHENG, Yangwen.; LIU, Hong; SZONYI, Michael. (Eds.). The cold War in Asia: The Battle for Hearts and Minds Leiden-Boston: Brill, 2010. p. 15–24.</div><div style="text-align: justify;">WESTAD, Odd Arne. The Global Cold War: Third World Interventions and the Making of Our Times. 1a ed. New York: Cambridge University Press, 2005.</div><div style="text-align: justify;"><a class="dropdown-toggle" data-toggle="dropdown" href="https://www.scielo.br/j/rh/a/wd3pR849DH37f3Y6JNKWW3H/?lang=pt" style="animation-duration: 0.1s; animation-fill-mode: both; background-color: white; box-sizing: border-box; color: #00314c; font-family: Arial, sans-serif; font-size: 12.6px; font-weight: 700; outline-offset: -2px; outline: 0px; text-align: left; text-decoration-line: none; transition: color 0.1s ease-out 0s, text-indent 0.1s ease-out 0s;"><span class="text" style="box-sizing: border-box;"><span class="truncate" style="box-sizing: border-box; overflow: hidden; text-overflow: ellipsis; white-space: nowrap; width: 450px;">Revista de História (São Paulo)</span></span></a></div>Eduardo Marculinohttp://www.blogger.com/profile/09461824103400566723noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4969040045050510246.post-91565544568234388742022-10-12T11:18:00.003-07:002022-10-12T11:18:20.832-07:00O INESPERADO NO ESTUDO DA ÁFRICA ROMANA<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgxUAvvip0Nr74t0UiAs1lhfUqmfvpBtM18EoGNHbY1rRYHfK2tCAVYWUWop3UmFJKyEiEQpA6csZDSywyW4b_kx307b3JR7UIK7b1UiO0JoIfQqYHSFjFFn-LIsqDo0KVjfdAU5gUdaXfmxn5x2xyxk1eAaKTlSojJN3BgUU8WOGLTzXDGeSZQO8fAXQ/s617/cult.png" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="617" data-original-width="400" height="320" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgxUAvvip0Nr74t0UiAs1lhfUqmfvpBtM18EoGNHbY1rRYHfK2tCAVYWUWop3UmFJKyEiEQpA6csZDSywyW4b_kx307b3JR7UIK7b1UiO0JoIfQqYHSFjFFn-LIsqDo0KVjfdAU5gUdaXfmxn5x2xyxk1eAaKTlSojJN3BgUU8WOGLTzXDGeSZQO8fAXQ/s320/cult.png" width="207" /></a></div><br /><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">O INESPERADO NO ESTUDO DA ÁFRICA ROMANA</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Pedro Paulo A. Funari<br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Sociedade e cultura na África romana: oito ensaios e duas traduções. .OLIVEIRA, Júlio César Magalhães de. São Paulo: Intermeios, 2020</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Júlio César Magalhães de Oliveira, professor do Departamento de História da Universidade de São Paulo (USP), apresenta uma original coletânea de ensaios sobre a sociedade e a cultura na África romana, após sua tese já clássica Potestas populi: participation populaire et action collective dans les villes de l’Afrique romaine tardive (vers 300-430 apr. J.-C.), de 2012, coincidindo com a publicação de Late antiquity: the age of crowds?, um artigo que, apesar de recém-divulgado – 2020 – no periódico Past & Present, já repercute. O aparecimento do volume em português deve ser saudado por permitir o acesso de um público mais amplo ao tema, em particular de estudantes ávidos de leituras recentes, inovadoras e produzidas aqui mesmo, no Brasil. Neste aspecto, convém enfatizar a clareza e a facilidade da leitura, assim como o seu estilo envolvente. Mapas, plantas, imagens de época e fotos completam a preocupação de Oliveira com a fácil compreensão do leitor, assim como o uso de notas de pé de página, que apresentam referências e comentários de aprofundamento, mas podemos ler o texto principal de forma direta para melhor aprendermos os argumentos. Tais recursos incentivam a tão necessária segunda leitura, que possibilita o aproveitamento pleno das informações e discussões trabalhadas pelo autor.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Em termos teóricos ou de perspectiva, são discutidas seis polaridades, que estão disseminadas por todo o volume:</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Resistência/integração;</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Estudo da tradição textual/cultura material (Arqueologia);</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Modelos normativos/teoria pós-colonial (conflitos);</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Restrição às elites/subalternos vistos de baixo;</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Historiografia: produção mais antiga/recente;</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Modelos baseados em dicotomias/ênfase na interação.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Nem sempre os estudiosos do passado – historiadores, arqueólogos, classicistas etc. – explicitam a variedade de interpretações e apresentam, de forma explícita, as escolhas interpretativas adotadas. Isso pode induzir ao engano, na medida em que o leitor, ao ser privado de um contexto interpretativo claro, pode iludir-se e acreditar que o que está a ler é o que de fato ocorreu e/ou o estado atual e consensual dos temas tratados. Fatos e consensos são sempre inefáveis, e quanto maior for a maestria retórica do autor, mais alto é o risco de o leitor ser ludibriado. A explicitação epistemológica, por outro lado, induz o leitor a refletir sobre a documentação e os seus limites, bem como sobre os argumentos apresentados e a sua variável capacidade de persuasão. A adoção bem-sucedida desta estratégia de inclusão do leitor demonstra a destreza incomum de Oliveira e constitui excepcional característica de sua obra.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Caminhemos pelos capítulos. No primeiro, Oliveira questiona a oposição entre nômades e sedentários em relação simbiótica ao relacionar pastoreio e comércio caravaneiro pela junção de fontes literárias e arqueológicas, como as prensas de azeite. Em seguida, o forte romano de Gholaia – atual Bu Njem – agencia conceitos recorrentes, como simbiose e história social. Esta liga-se ao estudo das relações sociais, aos conflitos e às lutas. Já a simbiose, “vida em comum”, segundo o sentido original, ressalta a interação de diferentes. O uso de medidas de volume indígenas, do latim coloquial e do recrutamento local de tropas se insere em um contexto em que os habitantes locais não são passivos, mas ativos. No estudo das grandes inscrições sobre colonos e arrendatários de domínios imperiais, adquirem relevo camponeses e meeiros indígenas. A diversidade de aspectos e interpretações constitui uma lição metodológica da abordagem que perpassa todo o livro. A respeito da legislação imperial sobre o cultivo da terra e a sua gestão, analisada no terceiro capítulo, Oliveira apresenta quatro diferentes explicações ou objetivos das medidas imperiais, complementares em princípio:</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Incentivar um aumento de produtividade;</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Vigilar o interesse da humanidade em uma lógica humanista;</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Responder a uma pressão demográfica e a uma demanda dos próprios colonos;</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Preservar os interesses de longo prazo de colonos e do imperador frente àqueles imediatos dos arrendatários.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Ao tratar de camponeses e da cultura escrita, no quarto capítulo, o autor explicita a teoria pós-colonial em novas formas de articulação reivindicativas, tendo a escrita e o protesto no campo como sinais da difusão da alfabetização, assim como o uso do latim, eivado de indigenismo, na luta por direitos, em solidariedade entre si. Trabalho e sociabilidade plebeia, título do capítulo seguinte, mostra como a Arqueologia ultrapassa os limites da aristocracia. A resistência a um Estado totalitário sobre o mundo do trabalho, proposta por H. R. Hurst (1994, p. 109-116), pode ser contraposta à atenção às formas populares de cooperação e de sociabilidade, como nas termas. Os vestígios arqueológicos nos permitem ir além dos limites das fontes aristocráticas e dos preconceitos de classe da própria historiografia moderna.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">O sexto capítulo, ao tratar de grupos, identidades e estratégias sociais, principia pela discussão da teoria social e da crítica aos modelos normativos, às identidades fixas e ao nacionalismo moderno. Sobressai-se a passagem do modelo de benemerência cívica do período imperial dos primeiros séculos, para aquele cristão, voltado aos pobres e à Igreja, a partir do século IV, como propõem Paul Veyne (1976), Évelyne Patlagean (1977) e Peter Brown (1982). “Povo” e “pobres” não eram alternativas irreconciliáveis, mas definições estratégicas. Foi a ação popular autônoma e agressiva a constranger Agostinho de Hipona a demandar ações contra os pagãos, visto que Santo Agostinho não queria perder o controle da situação. Não persuadiu, foi forçado a agir.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">No estudo das Atas de Munácio Félix e da perseguição de Diocleciano, ressalta-se a presença de uma comunidade cristã em Cirta – pequena, mas rica e despreparada para a perseguição. Oliveira explicita aqui, assim como alhures, os critérios de tradução, algo de particular importância do ponto de vista histórico, pois justifica o uso de termos como triclínio, em vez de sala de jantar, ainda que prefira “vocês”, não “vós”, como em outras ocasiões. Os arquivos da Perseguição e as histórias dos mártires – hagiográficas, produzidas a partir do século III – serviram tanto a católicos quanto a donatistas como fontes de autenticidade. Oliveira não hesita em lembrar das guerras de religião na época moderna (DAVIS, 1973), dialogando com Natalie Zemon Davis, para estudar as basílicas cristãs e a violência religiosa, muito menos de recorrer a estudiosos da pré-história, como Chris Gosden (2003). Recorre, ainda, ao aspecto indutor da ação da cultura material na forma do hábito (habitus), conceito sociológico tratado por Pierre Bourdieu (BOURDIEU, 1972) cuja origem está no frequentativo do verbo haver aplicado à materialidade para Daniel Miller e Lynn Meskell (MILLER, 1987; MESKELL, 2005). Ademais, menciona o caráter multissensorial dos edifícios de culto. Na basílica donatista, Domus Dei (Casa de Deus) e Aula Pacis (Morada da Paz) são inscrições que denotam a separação dos seguidores dos testemunhos – ou mártires – e donatistas dos universalistas - ou católicos. Domus não se restringe ao sentido de edifício, podendo se referir a uma comunidade – p. ex., a expressão domi militiaeque – e à vida comum civil dentro das muralhas da cidade e em meio aos soldados, para além dos muros. Aula remete a um lugar ao ar livre, em que sobra espaço, como que a dizer que a comunidade não se limita às paredes do edifício, mas compreende as suas testemunhas donatistas, onde quer que estejam. Há, pois, dois aspectos: um interno aos muros do edifício (domus) e o outro em meio aos outros (aula). No primeiro se encontra Deus, enquanto entre os outros resta a junção (pax) dos crentes, frente aos que cederam: os católicos comprometidos, segundo eles, com o exercício do poder terreno e temporal.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">No último capítulo, Oliveira considera a mobilização popular nos conflitos religiosos da África vândala e conclui que os clérigos nicenos ou católicos não estavam mais em condições de organizar uma resistência efetiva apelando à mobilização popular, visto que considera a conquista dos vândalos como o marco de uma nova era na África do Norte.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Talvez a palavra que possa captar o conjunto da obra de Oliveira seja fluidez, uma vez que ele sempre apresenta análises abertas a revisão e tem constante atenção ao que muda na documentação, na sua interpretação, na historiografia e na teoria social. Aspectos sociais, culturais, religiosos ou econômicos da África romana aparecem complexos, contraditórios, conflitivos e em simbiose. Dicotomias como vontade de integração e resistência se apresentam como polos de uma gradação contínua e em variação perpétua. Ademais, conceitos como nomadismo, sedentarismo, pastoralismo, alfabetização, solidariedade, autonomia e arrendamento nunca aparecem rígidos ou imutáveis, mas em fluxo, sujeitos a revisão. Vem-me à mente as palavras conclusivas do coro de As Bacantes, de Eurípides:</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Eurípedes, As Bacantes 1388-1392:</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">ΧΟΡΌΣ</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">πολλαὶ μορφαὶ τῶν δαιμονίων,</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">πολλὰ δ᾽ ἀέλπτως κραίνουσι θεοί.καὶ τὰ δοκηθέντ᾽ οὐκ ἐτελέσθη,</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">τῶν δ᾽ ἀδοκήτων πόρον ηὗρε θεός.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">τοιόνδ᾽ ἀπέβη τόδε πρᾶγμα.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">CORO</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Muitas as formas das divindades, os deuses ordenam muito imprevisto. O esperado não chegou, Deus encontrou passagem para o inesperado. Assim, sobreveio o fato.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">(trad. de Pedro Paulo A. Funari)</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">COROMuitas são as formas do divino, e muitas as ações imprevistas dos deuses. O que esperávamos não se realizou; para o inesperado o deus achou caminho. Assim terminou este drama. (trad. de João Batista de Mello e Souza)</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">A palavra-chave é ἀδόκητος, derivada de ΔΟΚΈΩ, que significa esperar, pensar – δόξᾰ (opinião) –, significa o improvável, o não aparente ou o impensável – traduzida por mim como inesperado – e talvez resuma, de alguma maneira, a abertura ao imprevisto sugerida pela abordagem de Júlio César Magalhães de Oliveira. Ao final da leitura, sai-se com a sensação de expectativa por outras inesperadas páginas, ainda em gestação.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Referências bibliográficas</div><div style="text-align: justify;">BOURDIEU, Pierre. Esquisse d’une théorie de la pratique, précédée de trois études d’ethnologie kabyle. Paris: Seuil, 1972.</div><div style="text-align: justify;">BROWN, Peter. Dalla plebs romana all plebs dei: aspetti della cristianizzazione di Roma. In: BROWN, P.; CRACCO RUGGINI, I.; MAZZA, M. Governanti e intellecttuali: popolo di Roma e popolo di Dio (I-VI secolo) Torino: Giappichelli Editore, 1982, pp. 124-145.</div><div style="text-align: justify;">DAVIS, Natalie Zemon. The Rites of Violence: religious riot in 16th.c. France. Past & Present, 59, pp. 51-91, 1973.</div><div style="text-align: justify;">EURÍPEDES. As Bacantes. Trad. Eudoro de Souza. São Paulo: Duas Cidades, 1974.</div><div style="text-align: justify;">EURÍPIDES. As Bacantes. Tradução de João Batista de Mello e Souza. http://www.filosofia.seed.pr.gov.br/arquivos/File/classicos_da_filosofia/as_bacantes.pdf</div><div style="text-align: justify;"><a href="http://www.filosofia.seed.pr.gov.br/arquivos/File/classicos_da_filosofia/as_bacantes.pdf">» http://www.filosofia.seed.pr.gov.br/arquivos/File/classicos_da_filosofia/as_bacantes.pdf</a></div><div style="text-align: justify;">GOSDEN, Chris. Prehistory: a very short introduction. Oxford: Oxford University Press, 2003.</div><div style="text-align: justify;">HURST, H. R. Excavations at Carthage. The British Mission II/1, The Circular Harbour, North Side. The site and finds other than pottery (British Academy Monographs in Archaeology, 4). Oxford: Oxford University Press, 1994.</div><div style="text-align: justify;">MESKELL, Lynn. Introduction: object orientations. In: MESKELL, Lynn. (org.). Archaeologies of Materiality. Malden, Mass.: Blackwell, 2005, p. 1-17.</div><div style="text-align: justify;">MILLER, Daniel. Material Culture and Mass Consumption. Oxford: Wiley-Blackwell, 1987.</div><div style="text-align: justify;">PATLAGEAN, Évelyne. Pauvreté économique et pauvreté historique d’um pluralisme politique à Byzance (4e.-6e. siècles). Paris: Mouton, 1977.</div><div style="text-align: justify;">VEYNE, Paul. Le pain et le cirque. Sociologie historique d’un pluralisme politique. Paris: Le Seuil, 1976.</div><div style="text-align: justify;"><a class="dropdown-toggle" data-toggle="dropdown" href="https://www.scielo.br/j/rh/a/qhvyB3nc3w5SMRFYKNxG8TG/?lang=pt" style="animation-duration: 0.1s; animation-fill-mode: both; background-color: white; box-sizing: border-box; color: #00314c; font-family: Arial, sans-serif; font-size: 12.6px; font-weight: 700; outline-offset: -2px; outline: 0px; text-align: left; text-decoration-line: none; transition: color 0.1s ease-out 0s, text-indent 0.1s ease-out 0s;"><span class="text" style="box-sizing: border-box;"><span class="truncate" style="box-sizing: border-box; overflow: hidden; text-overflow: ellipsis; white-space: nowrap; width: 450px;">Revista de História (São Paulo) </span><span class="sci-ico-arrowDown" style="-webkit-font-smoothing: antialiased; box-sizing: border-box; display: inline-block; font-family: scielo-glyphs !important; font-variant-east-asian: normal; font-variant-numeric: normal; font-weight: 400; line-height: 1em; speak: none; vertical-align: middle;"></span></span></a></div>Eduardo Marculinohttp://www.blogger.com/profile/09461824103400566723noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4969040045050510246.post-37708470644718950182022-10-12T04:51:00.004-07:002022-10-12T04:51:28.794-07:00O que é história do conhecimento?<p> <a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhIBbE-nmNOe-DqfEkvorH6hxFF3X9dVQzRYTYeMIOb977Yc98tRCX3_YCT5JFv-hz0F4XHOcYrDE2gxx2MoP5THTprSpPmyvutOqNoXl1zR3TAqTGrz0QQH9ZofIwOLjKhx1tdGSg2v4k_-EyUBmm_mGrGEDzZ4ewGZiZyQiRgvQxSnG5pCY5j4m_bOA/s2423/o%20que%20%C3%A9%20historia%20do%20conhecimento.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em; text-align: center;"><img border="0" data-original-height="2423" data-original-width="1603" height="320" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhIBbE-nmNOe-DqfEkvorH6hxFF3X9dVQzRYTYeMIOb977Yc98tRCX3_YCT5JFv-hz0F4XHOcYrDE2gxx2MoP5THTprSpPmyvutOqNoXl1zR3TAqTGrz0QQH9ZofIwOLjKhx1tdGSg2v4k_-EyUBmm_mGrGEDzZ4ewGZiZyQiRgvQxSnG5pCY5j4m_bOA/s320/o%20que%20%C3%A9%20historia%20do%20conhecimento.jpg" width="212" /></a></p><br /><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">O que é história do conhecimento?</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Romélia Mara Alves SOUTO<br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">BURKE, Peter. .O que é história do conhecimento?. Tradução de. Freire, Cláudia. .São Paulo: :. Editora UNESP, ,2016. .211p. .</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Assim como o livro, os intelectuais, as ciências e as culturas, também os processos de produção, armazenamento e disseminação de conhecimentos têm uma história. Esse tema, que já interessava a psicólogos, antropólogos e sociólogos, passou, desde os anos de 1990, a ocupar o centro de interesse de historiadores. A história do conhecimento, hoje institucionalizada como disciplina, desenvolveu-se como consequência da história da cultura, do livro e de outros tipos de história, mas principalmente da história dos intelectuais e da história da ciência. Peter Burke, um dos grandes historiadores de nosso tempo, presta sua relevante contribuição acerca desse tema com o livro O que é história do conhecimento?, publicado em 2015 pela Universidade de Cambridge, Inglaterra, e no Brasil, em 2016, pela Editora UNESP. Depois de abordar a história do conhecimento nos últimos quinhentos anos em Uma história social do conhecimento: de Gutenberg a Diderot (2000) e Uma história social do conhecimento: da enciclopédia à Wikipédia (2012), Burke retorna com uma brilhante exposição das origens e dos fundamentos desse novo domínio da ciência histórica, distinguindo-o da história da ciência e da história dos intelectuais. Propondo um alargamento do campo da história da ciência, Burke argumenta que não existe história do conhecimento, existem apenas histórias, no plural, de conhecimentos, também no plural. Ao refletir sobre o que chama de movimento universal do “aprendizado coletivo”, o autor elabora conceitos fundamentais para elucidar os processos de criação, armazenamento e difusão do conhecimento. Ao longo do texto, Burke apresenta uma variada gama de exemplos de épocas e lugares para traçar o percurso das histórias dos conhecimentos, e as notas explicativas fornecem significativas sugestões de leituras complementares. O livro está organizado em quatro capítulos:</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">“Conhecimentos e suas histórias”;</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">“Conceitos”;</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">“Processos”; e</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">“Problemas e perspectivas”.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">No primeiro capítulo, o autor traz uma historiografia do conhecimento, faz distinção entre “informação” e “conhecimento” e apresenta a história e seus “vizinhos”. Lançando mão de uma metáfora para distinguir “informação”, como algo relativamente cru, de “conhecimento”, como algo que foi processado, “cozido”, Burke propõe um conceito amplo de conhecimento para “abarcar tudo aquilo que os indivíduos e os grupos-alvos de seus estudos considerarem como conhecimento” (p. 19).</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">O interesse pela produção histórica e pelo seu oposto complementar, a retenção histórica, cujo foco são os registros intencionalmente omitidos ou eliminados, tem permitido estudos tanto da memória quanto do esquecimento. No bojo desse movimento, Burke contempla a diversidade das histórias dos conhecimentos, destacando até mesmo a importância dos estudos da ignorância, do conhecimento que foi perdido ou conscientemente refutado. Ainda nesse capítulo, o autor adverte sobre a necessidade de evitar o “paroquialismo”, no que diz respeito a espaço - que estabelece uma clara divisão entre Nós e Eles e todos os demais; e no que diz respeito a tempo - um simples contraste entre a Nossa Era e todo um passado sem distinções. Por essa perspectiva, faz mais sentido aos interessados pelos percursos da humanidade em seu longo aprendizado partir da história da ciência para a história mais ampla dos conhecimentos. De fato, não se pode utilizar genericamente o termo “ciência”, que na acepção atual foi cunhado no século XIX, sem incorrer em um anacronismo. Burke destaca ainda outros fatores que ajudaram a impulsionar a guinada para a história do conhecimento com base na história da ciência: o surgimento do interesse acadêmico na cultura popular, permitindo incluir os conhecimentos práticos de outros sujeitos, o fato de que os métodos ditos científicos muitas vezes se desenvolveram fundamentados em práticas cotidianas menos formais e a crescente necessidade de discutir as conquistas intelectuais das culturas não ocidentais como contribuições ao conhecimento.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">O segundo capítulo trata de um conjunto de termos úteis para elucidar os processos que permitem transformar informação em conhecimento, tais como conhecimentos localizados e conhecimentos subjugados, gestão do conhecimento, práticas, sistemas de ignorância, sociedade do conhecimento e cientificação. Destacaremos aqui um conceito-chave tratado nesse capítulo: as “ordens de conhecimento”, definidas geralmente por lugar (por exemplo, ocidental, islâmico) ou por período (por exemplo, medieval, moderno). As formas e as instituições de conhecimento, assim como as interações entre elas associadas aos valores da cultura, constituem uma ordem ou sistema: escolas, universidades, arquivos, laboratórios, museus, redações de jornal, entre outros. Para exemplificar, Burke cita o sistema dominado pelo confucionismo e pelos concursos públicos na China tradicional; ou o sistema dominado pelo Islã, no Império Otomano; ou ainda, na União Soviética, onde o sistema era dominado pelo marxismo e pela Academia de Ciências. Assim, o sistema de conhecimento é percebido como algo atrelado a determinado tempo, lugar e comunidade, embora não seja impermeável e seja difícil falar em uma única ordem dominante. O conceito de ordem do conhecimento implica a consideração de seu oposto: o não conhecimento ou ignorância, que, no dizer do autor, refere-se àquilo que não é do conhecimento de diferentes tipos de povos em determinados lugares ou épocas.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">No terceiro capítulo são examinados os diferentes processos pelos quais passa a informação até ser transformada em conhecimento, para ser disseminado e utilizado em várias situações. Burke destaca, então, quatro estágios na sequência da obtenção ao uso da informação: coleta, análise, disseminação e utilização. No momento da coleta, o processo de “cozimento” já se iniciou, pois os princípios sob os quais se dá a seleção são culturalmente determinados. A coleta estende-se à observação, feita de questionamentos e de escutas. O advento da plataforma on-line provocou uma mudança drástica no modo como procuramos informações. O autor afirma a necessidade de uma “alfabetização em mecanismo de busca”, dado que saber onde encontrar informações sobre determinado assunto é tão importante quanto o conhecimento do assunto. Já a análise consiste em transformar a informação em conhecimento por meio de práticas como descrição, quantificação, classificação e verificação. Ao tratar da disseminação do conhecimento, o autor discute o valor do testemunho oral, o problema relativo à variedade e ao caráter irreconciliável dos pontos de vista humanos e a transferência ou circulação do conhecimento, lembrando que o conhecimento recebido não é igual ao conhecimento emitido, em virtude de mal-entendidos, de adaptações deliberadas e de traduções culturais. Com sua aguda percepção e capacidade de delinear com clareza questões muito complexas, Burke conclui que, apesar da relevância das novas formas de comunicação, o meio mais eficaz de disseminação continua sendo o antigo, ou seja, o encontro com as pessoas - “as ideias circulam por aí dentro das pessoas” (p. 114).</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">O último capítulo do livro é dedicado aos problemas e perspectivas da história do conhecimento como área disciplinar. O autor examina questões relacionadas ao contraponto entre histórias internas e externas; continuidades e revoluções; agentes e sistemas; discutindo também questões de gênero, anacronismo, relativismo, triunfalismo e construtivismo. Consideramos importante destacar aqui o dilema vivido por historiadores dos conhecimentos por terem que escolher entre pressupor a superioridade da tradição científica ocidental ou tratar de forma igualitária todos os enfoques de conhecimento. No primeiro caso, são acusados de etnocentrismo. No segundo, de relativismo ou niilismo. Considerando que a maioria dos estudiosos do assunto escolheu a segunda opção, Burke concentra-se, então, na análise dos problemas decorrentes dessa escolha. Por fim, o autor apresenta suas perspectivas para as abordagens das histórias dos conhecimentos nas próximas décadas. Para ele, haverá uma tendência de se avançar dos estudos que tratam da difusão do conhecimento ocidental para os que tratam dos encontros, choques, traduções e hibridizações, caracterizando uma abordagem global. Haverá também uma guinada social focando uma história do conhecimento a partir das camadas inferiores com um crescente e já notório interesse nos conhecimentos cotidianos e tácitos. Finalmente, Burke acredita em uma tendência de ênfase nos estudos do conhecimento em longuíssimo prazo, na tentativa de responder à grande questão feita pelo historiador David Christian (2011): “Como esse acúmulo e compartilhamento de conhecimento geram as mudanças de longo prazo que distinguem a história dos seres humanos da história de espécies intimamente relacionadas?”</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Para terminar, Burke ainda apresenta uma cronologia selecionada de estudos do conhecimento e uma curta leitura complementar, na qual são mencionados alguns estudos acerca do conhecimento realizados em outras disciplinas que ele considera essenciais para os historiadores. Por fim, uma extensa lista de referências bibliográficas e um índice remissivo encerram esse belo trabalho que, a nosso ver, constitui uma importante contribuição e valiosa leitura a todos os interessados pelas histórias dos conhecimentos produzidos e disseminados pela humanidade em sua larga trajetória de aprendizado coletivo.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">REFERÊNCIAS</div><div style="text-align: justify;">Burke, P. Uma história social do conhecimento: de Gutenberg a Diderot. Tradução de Plínio Dentzien. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003.</div><div style="text-align: justify;">Burke, P. Uma história social do conhecimento II: da enciclopédia à Wikipédia. Tradução de Denise Bottmann. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor , 2012.</div><div style="text-align: justify;">Christian, D. Maps of time: an introduction to big history. Berkeley: University of California Press, 2011.</div><div style="text-align: justify;"><a class="dropdown-toggle" data-toggle="dropdown" href="https://www.scielo.br/j/rbedu/a/xKbpXWVFfVcxRQh35nJkjNH/?lang=pt" style="animation-duration: 0.1s; animation-fill-mode: both; background-color: white; box-sizing: border-box; color: #00314c; font-family: Arial, sans-serif; font-size: 12.6px; font-weight: 700; outline-offset: -2px; outline: 0px; text-align: left; text-decoration-line: none; transition: color 0.1s ease-out 0s, text-indent 0.1s ease-out 0s;"><span class="text" style="box-sizing: border-box;"><span class="truncate" style="box-sizing: border-box; overflow: hidden; text-overflow: ellipsis; white-space: nowrap; width: 450px;">Revista Brasileira de Educação </span></span></a></div>Eduardo Marculinohttp://www.blogger.com/profile/09461824103400566723noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4969040045050510246.post-78255817915797979242022-10-04T09:56:00.001-07:002022-10-04T09:56:08.623-07:00Página gratuita no facebook para aprovação no concurso do INSS 2022<p> <a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgUvMb30eywSsVt6ryUmGSWl83P0ueMYnKjEzYqnJEkcO_u7CqAfzqSsM3occKm_DInmO79t24CnAiCJszxJClEKetLOa7Zug0bFBd2SIlXFK53RfHnAUg6j39h5Fq4JVnDM6B7ghUbTxvdiWFZQIvksYmEs4Wkv9qDTyfZ5yebC7zr0D9Q-LQtACle/s1200/inss.png" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em; text-align: center;"><img border="0" data-original-height="725" data-original-width="1200" height="193" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgUvMb30eywSsVt6ryUmGSWl83P0ueMYnKjEzYqnJEkcO_u7CqAfzqSsM3occKm_DInmO79t24CnAiCJszxJClEKetLOa7Zug0bFBd2SIlXFK53RfHnAUg6j39h5Fq4JVnDM6B7ghUbTxvdiWFZQIvksYmEs4Wkv9qDTyfZ5yebC7zr0D9Q-LQtACle/s320/inss.png" width="320" /></a></p><p></p><br /><p></p><p><span style="background-color: white; color: rgba(0, 0, 0, 0.9); font-family: -apple-system, system-ui, BlinkMacSystemFont, "Segoe UI", Roboto, "Helvetica Neue", "Fira Sans", Ubuntu, Oxygen, "Oxygen Sans", Cantarell, "Droid Sans", "Apple Color Emoji", "Segoe UI Emoji", "Segoe UI Emoji", "Segoe UI Symbol", "Lucida Grande", Helvetica, Arial, sans-serif; font-size: 16px; white-space: pre-wrap;">Página gratuita no facebook para aprovação no concurso do INSS 2022</span></p><p style="--artdeco-reset-typography_getfontsize: 1.6rem; --artdeco-reset-typography_getlineheight: 1.5; background-color: white; border: var(--artdeco-reset-base-border-zero); box-sizing: inherit; color: rgba(0, 0, 0, 0.9); counter-reset: list-1 0 list-2 0 list-3 0 list-4 0 list-5 0 list-6 0 list-7 0 list-8 0 list-9 0; cursor: text; font-family: -apple-system, system-ui, BlinkMacSystemFont, "Segoe UI", Roboto, "Helvetica Neue", "Fira Sans", Ubuntu, Oxygen, "Oxygen Sans", Cantarell, "Droid Sans", "Apple Color Emoji", "Segoe UI Emoji", "Segoe UI Emoji", "Segoe UI Symbol", "Lucida Grande", Helvetica, Arial, sans-serif; font-size: 16px; line-height: var(--artdeco-reset-typography_getLineHeight); margin: 0px; padding: 0px; vertical-align: var(--artdeco-reset-base-vertical-align-baseline); white-space: pre-wrap;">VAMOS SEGUIR RUMO A APROVAÇÃO....</p><p style="--artdeco-reset-typography_getfontsize: 1.6rem; --artdeco-reset-typography_getlineheight: 1.5; background-color: white; border: var(--artdeco-reset-base-border-zero); box-sizing: inherit; color: rgba(0, 0, 0, 0.9); counter-reset: list-1 0 list-2 0 list-3 0 list-4 0 list-5 0 list-6 0 list-7 0 list-8 0 list-9 0; cursor: text; font-family: -apple-system, system-ui, BlinkMacSystemFont, "Segoe UI", Roboto, "Helvetica Neue", "Fira Sans", Ubuntu, Oxygen, "Oxygen Sans", Cantarell, "Droid Sans", "Apple Color Emoji", "Segoe UI Emoji", "Segoe UI Emoji", "Segoe UI Symbol", "Lucida Grande", Helvetica, Arial, sans-serif; font-size: 16px; line-height: var(--artdeco-reset-typography_getLineHeight); margin: 0px; padding: 0px; vertical-align: var(--artdeco-reset-base-vertical-align-baseline); white-space: pre-wrap;">https://www.facebook.com/Concurso-INSS-Interativa-107350082130249</p>Eduardo Marculinohttp://www.blogger.com/profile/09461824103400566723noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4969040045050510246.post-44978461053495900762022-09-22T19:50:00.004-07:002022-09-22T19:50:20.940-07:00The Commons in an Age of Uncertainty: Decolonizing Nature<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiY1q8XRBTdO3X_q5z5JRuaxlx42EruacoGVzaDj9fzg7z7QI1Roz3qvu4jZW9G464DuAb_rgHumia7-HrzPmGU3jjYxsG_WZYcVp01wqnRsSqZJDPsGYMlG2s9LtzhgoNcz8nKtcTuLfvklWXctMLE7_a1A1d-2ZtiiLKXEj-DMZQZCn8vLXcXGmp7gg/s2560/the1.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="2560" data-original-width="1707" height="320" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiY1q8XRBTdO3X_q5z5JRuaxlx42EruacoGVzaDj9fzg7z7QI1Roz3qvu4jZW9G464DuAb_rgHumia7-HrzPmGU3jjYxsG_WZYcVp01wqnRsSqZJDPsGYMlG2s9LtzhgoNcz8nKtcTuLfvklWXctMLE7_a1A1d-2ZtiiLKXEj-DMZQZCn8vLXcXGmp7gg/s320/the1.jpg" width="213" /></a></div><br /><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Resenha: The Commons in an Age of Uncertainty: Decolonizing Nature, Economy, and Society</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Leticia Costa de Oliveira Santos</div> <div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">OBENG-ODOOM, F. The Commons in an Age of Uncertainty: Decolonizing Nature, Economy, and Society. Toronto: Buffalo: London: University of Toronto Press, 2020. 264 p</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Abstract</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">In the book Commons in an Age of Uncertainty: decolonizing nature, economy and society (2020), Franklin Obeng-Odoom proposes a commons based system. His so-called Radical Alternative stands in relation to the dialectic between two fields of readings on the commons grouped as Conventional Wisdom and Left Western Consensus. He denotes that both readings are limited from a decolonial critique. The key to his Radical Alternative is on the centrality of land, autonomy, and justice from the Global South. It presents land in an approximated sense to territory/territoriality, as used in Latin America, and territorializes the political discussion of the commons. He also develops the understanding of universal justice on land and contributes to discussions on contemporary commons, as he affirms the contemporaneity of forms of relationship with the land and persistent material and cultural exchanges on the African continent.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Keywords:</div><div style="text-align: justify;">Commons; Decoloniality; Socioenvironmental Justice; Political Ecology; Land</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Resumen</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">En el libro Commons in an Age of Uncertainty: descolonizing nature, economy and society (2020), Franklin Obeng-Odoom propone un sistema basado en los comunes (commons based system). Su llamada Alternativa Radical se construye con relación a la dialéctica entre dos campos de lecturas sobre los comunes agrupados como Sabiduría Convencional y Consenso de la Izquierda Occidental. Indica que ambas lecturas, desde una crítica decolonial, son limitadas. La llave de su Alternativa Radical está en la centralidad de la tierra, la autonomía y la justicia desde el Sur Global. Presenta la tierra con un sentido cercano al de territorio / territorialidad, como se usa en América Latina, y territorializa la discusión política de los comunes. También desarrolla la comprensión de la justicia universal por la tierra y contribuye a las discusiones sobre los bienes comunes contemporáneos al afirmar la contemporaneidad de las formas de relación con la tierra y los intercambios materiales y culturales persistentes en el continente africano.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Palabras-clave:</div><div style="text-align: justify;">Comunes; Decolonialidade; Justicia Socioambiental; Ecología Política; Land</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Resumo</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">No livro Commons in an Age of Uncertainty: decolonizing nature, economy and society (2020), Franklin Obeng-Odoom propõe um sistema baseado em comuns (commons based system). Sua chamada Alternativa Radical constrói-se em relação à dialética entre dois campos de leituras sobre os comuns agrupados como Sabedoria Convencional e Consenso da Esquerda Ocidental. Ele indica que ambas as leituras, a partir de uma crítica decolonial, são limitadas. A chave de sua Alternativa Radical está na centralidade da terra, na autonomia, e na justiça a partir do Sul Global. Apresenta a terra com um sentido próximo ao de território/ territorialidade, como acionado na América Latina, e territorializa a discussão política dos comuns. Também desenvolve o entendimento de justiça universal sobre a terra e contribui para as discussões sobre comuns contemporâneos ao afirmar a contemporaneidade das formas de relação com a terra e trocas materiais e culturais persistentes no continente africano.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Palavras-chave:</div><div style="text-align: justify;">Comuns; Decolonialidade; Justiça Socioambiental; Ecologia Política; Land</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Introduction</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Que explicações divergentes existem para as crises socioecológicas no Sul Global? Quais são as consequências de privatizar a natureza tendo em vista a diversidade social do Sul Global? Os comuns são barreiras ou uma forma de viabilizar progresso e prosperidade? Franklin Obeng-Odoom no livro Commons in an Age of Uncertainty: decolonizing nature, economy and society (2020) se debruça sobre estas questões. O autor, que vem da Economia Política, é mais categórico que alguns autores que debatem os comuns como um remanescente ou como experimentações coexistentes com o sistema capitalista: ele efetivamente propõe a instauração de um sistema baseado em comuns (commons based system).</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Para apresentar esta proposta, sistematiza as leituras sobre os comuns em dois campos - o da Sabedoria Convencional (expressão que toma emprestada de J. K. Galbraith) e do Consenso da Esquerda Ocidental, situando em relação a eles sua Alternativa Radical. Ele considera ambos limitados a partir de uma perspectiva decolonial, referindo-se não apenas ao tipo de solução que apontam, mas pela própria maneira como enquadram os “problemas de comuns”.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">O que apresenta como Sabedoria Convencional é principalmente representado pelo embate entre Garret Hardin e Elinor Ostrom e suas tradições analíticas. O autor indica que, embora controversas, ambas as leituras estão logicamente próximas situando a crise socioecológica dentro dos arranjos, com ênfase na agência individual, sem uma reflexão atenta sobre justiça, poder e atravessamento de escalas. Em última instância não há, para o autor, uma mudança paradigmática entre um e outro.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Em contraponto, o Consenso da Esquerda Ocidental agrupa posicionamentos advindos das leituras marxistas e neomarxistas dos comuns. Nesta chave os comuns, ou seja, tudo que é coletivizado, são apresentados paradoxalmente como uma potencial solução para o neoliberalismo, ou como base de sustentação para o avanço do capitalismo, pois é potencialmente cooptado. Para Obeng-Odoom esta confusão é alimentada pela pressuposição da inevitabilidade do capitalismo na trajetória de transformações político-econômicas e, portanto, uma crítica rasa a sua historicidade e espacialidade. Ele também indica que falta rigor em considerar que “tudo” pode ser comuns e que há uma leitura estreita (e eurocêntrica) de comuns como regimes de propriedade.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">A crítica que faz às duas formas de olhar para os comuns advém de uma lente de decolonialidade. Defende que pensar a partir do Sul Global deve ser uma abordagem metodológica para investigação. O que talvez seja a mais importante contribuição deste livro está na forma de conduzir a pesquisa tendo a decolonialidade como método, o que se reflete no enquadramento do problema, e na definição das fontes dos dados e dos critérios de análise.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Em relação às fontes e ao material citado, Obeng-Odoom pauta-se majoritariamente em estudos conduzidos em países africanos, com destaque para Gana e África do Sul, e estudos conduzidos pelo próprio autor. Ele se utiliza ainda de relatos de campo, tradição oral, e decisões judiciais, que afirma que costumam ser descartados como fontes. Destaca que esta escolha metodológica tem uma implicação na política de produção de conhecimento, uma vez que não são abundantes dados de coletas sistemáticas para estudos no continente africano.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Refletindo o problema de investigação, ele indica que o tipo de enquadramento que parte do Norte Global implica em soluções que também vêm do norte - soluções estas que passam por caminhos supostamente incontornáveis para o progresso, como o mercado, a propriedade e a comoditização da natureza. Destacando a insuficiência de análises sobre os comuns no sul que efetivamente partem do sul, ele observa que o Sul Global é usualmente apontado como a fonte das incertezas, dos conflitos e das fragilidades ambientais e institucionais, cabendo na chave explicativa das tragédias dos comuns. Tal enquadramento enviesado pressupõe o Sul Global como detentor de uma natureza prístina e populações humanas isoladas que em dado momento passam a sofrer impactos por motivações puramente econômicas, negligenciando a co-dependência de aspectos socioecológicos. Esse olhar é anistórico, pois ignora a herança da colonialidade na formação da economia política e territorial do Sul Global e da África em particular, além de relevar a persistência das interações através de escalas no sistema global no qual o sul seria central e não periférico.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Ele propõe uma revisão histórica dos comuns. Entende que não há uma deliberada negligência com relação à história dos cercamentos (enclosures), mas as leituras históricas se dão usualmente a partir das lentes marxistas, dos cercamentos ingleses que marcam a transição do feudalismo para o capitalismo. Esta seria uma perspectiva limitada, que não olha para a formação da propriedade privada sobre a terra em outros lugares que não a Europa (tampouco para o surgimento do dinheiro, das dívidas, etc.), que ele destaca como fundamental para que se entenda a dinâmica das terras, a apropriação e o rentismo, a relação com a natureza e as relações sociais.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">No corpo principal de argumentação do livro o autor olha para as contribuições da Sabedoria Convencional e do Consenso da Esquerda Ocidental em relação a quatro entradas (cidade, tecnologia, petróleo e água). Ele identifica o que considera as falhas destes campos, a partir de cuja dialética estabelece o marco de sua Alternativa Radical.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Para Obeng-Odoom as soluções a partir da Sabedoria Convencional dão-se em defesa da “terceira via”, pautada na ação coletiva, nas soluções das pessoas organizadas e na recusa da centralidade do poder do Estado. Embora defendam a capacidade das comunidades de gerir os recursos, terminam por fomentar soluções de mercado (privatização, taxas, etc.), partindo de lógicas de escolha racional, aumento de eficiência e em defesa de uma “soberania consumidora” para garantir a prosperidade e o acesso aos recursos (como a suposta ampliação do acesso à água pela venda de água engarrafada), sem uma preocupação com a justiça. Além disto, pautam-se na tecnologia, tendo uma leitura triunfalista do avanço tecnológico e da inovação.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Para o autor, a divergência mais significativa do Consenso da Esquerda Ocidental está em sua centralidade da justiça, que não tem espaço na Sabedoria Convencional. O Consenso da Esquerda Ocidental opõe-se às soluções de mercado; no entanto, embora seja crítico da leitura triunfalista da tecnologia, defende sua apropriação (como dos meios de produção) para uma “nova economia”, sem uma crítica mais profunda sobre esta trajetória de transições econômicas e tecnológicas. Faz particular crítica ao vazio dos discursos ambientalistas e de decrescimento que não dão conta dos impactos socioambientais, por exemplo, de uma transição abrupta para matrizes energéticas renováveis que não atacam questões de justiça, expulsão da terra, perda de empregos, em função de demandas oriundas do norte global, para quem a África deve atender como usina do mundo. É uma visão que solidariza com os interesses locais, mas ainda assume uma postura paternalista, tal qual a Sabedoria Convencional, em esforço de “Salvar a África dos Africanos”.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">As duas leituras têm valores distintos, mas comunalidades arraigadas. Para além das insuficiências das leituras, ele entende que as próprias soluções podem ser parte do problema, pois agravam a desigualdade social e os impactos ambientais. Ambas enquadram os problemas como uma necessidade de controle e eficiência, pela pressuposição de tragédias: escassez de recursos e crescimento descontrolado. Ambas antagonizam o Estado, depositam muita confiança na inovação tecnológica, (e impactos decorrentes, por exemplo, da extração de matéria prima para a produção de artefatos até especulação mediada pela tecnologia), negligenciam a terra. Embora minem a autodeterminação dos povos, apresentam um olhar romantizado para as soluções locais cujas limitações estruturais são questionáveis, bem como a precariedade, o risco à vida e à saúde (tais como a produção das favelas ou a atividade de coleta de material reciclável).</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Obeng-Odoom propõe que se olhe criticamente para os processos que formaram as atuais condições sociais na África com destaque para a herança de sistemas de planejamento, as justificativas científicas que produziram cidades segregadas (que persistiram mesmo com o fim da colonização), para a supressão de formas autóctones de relações de troca, e para a imposição de formas de se relacionar com a terra, de padrões de produção, propriedade e consumo que não se compatibilizam com relações sociais existentes ou almejadas. Ressalta o posicionamento da África como fonte de energia e matéria-prima do mundo e a imposição de mercados e relações de propriedade ditos formais que, por exclusão, definiram a informalidade. Neste sentido, a chave de sua Alternativa Radical está na centralidade da terra, na autonomia, e na justiça a partir do Sul Global.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Ao longo do livro, Obeng-Odoom reitera que ao pensar em comuns, está olhando para terra (land). De certo modo, territorializa a discussão política dos comuns ao enfatizar a renda, despossessão, a especulação, a fonte material de recursos e os vínculos de vida para além de pensar os comuns (ou o comum) como ação política apenas. Ele destaca a centralidade da terra para a vida na África - assim como em outros lugares do Sul Global - e chama a atenção para o “sentido africanista de terra”. Embora pouco dialogue com autores latino-americanos, suas leituras aproximam-se do sentido de território e territorialidade para autores como Escobar (2010) e Haesbaert (2014). Terra aqui tem um significado particular: não é suporte para a natureza, mas é a natureza em si, bem como inseparável da economia e da identidade de africanos e de pessoas negras pelo mundo. Terra é apresentada como um conceito totalizante, que contempla o que é vivo e não vivo. É, além disto, sagrada, reverenciada e protegida; é produzida, embora isto não justifique sua apropriação.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Neste sentido, ele trabalha com um entendimento particular de justiça, de direito universal à terra, mesmo que nela não trabalhem - o que vale inclusive para quem vem de fora, como estrangeiros. Nas concepções africanistas, terras comuns não são terras sem dono, mas que pertencem à comunidade. Por sua vez, pertencer à comunidade não significa estar fechado a quem vem de fora, que podem negociar com os que já estão. Sendo assim, ele posiciona seu entendimento de comuns afastado de autores que entendem que o acesso ao recurso é garantido apenas aos que o produzem.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Isto é coerente com uma ideia de abundância (CAJIGAS-ROTUNDO, 2007), em que a preocupação com o “aproveitadores”, que permeia os pensamentos principalmente da Sabedoria Convencional, mas também do Consenso da Esquerda Ocidental, não cabe. A ameaça para os comuns são os aproveitadores invisíveis, como os proprietários de terra ausentes, de modo que a solução seria a distribuição da terra de forma equitativa e atenta às demandas locais. Neste sentido, ele também tira o excesso de apego da agência em relação à estrutura - que acredita ter tomado mesmo as leituras derivadas do marxismo.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Ainda nesta esteira, os comuns - ou a terra - não poderiam ser analisados como um tipo de propriedade (ou de relação de propriedade), pois precedem sua existência. Esta seria uma forma eurocêntrica de pensar os comuns, que observa as transições de regime de propriedade e a tendência da terra a tornar-se commodity - o que para Obeng-Odoom não caberia no sentido africanista de terra, já que não pode ser capitalizada, pois não é substituível. Entender conflitos de terra como conflitos sobre a apropriação de uma commodity poderia provocar que se ignore outras camadas de relação da sociedade com a terra que vão além da exploração econômica. Ignoram ainda as instituições locais, os mercados existentes, a economia da dádiva, os sistemas de partilha de terra e trabalho, os sistemas de recompensa, a solidariedade e uma miríade de formas de troca material e cultural persistentes no continente africano, e o próprio sentido de comuns.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Finalmente, sua Alternativa Radical supõe a promoção de uma mudança estrutural, também através dos Estados (não isolados dentro do continente), tendo a autonomia como componente fundamental. Tal qual pensadores latino-americanos da Ecologia Política, como Escobar (2016) e Souza (2019), sugere a construção de instituições pautadas nos entendimentos locais de justiça e relação com a terra, com menos ênfase em crescimento econômico e mais ênfase em distribuição e soberania. Em suma, defende que qualquer solução deve vir de garantia - e não da retirada - da autonomia e da autodeterminação do Sul Global. Ao indicar que se olhe para os comuns na África, está tratando formas presentes, necessariamente contemporâneas, não de formas “primitivas” ou “pré-modernas”. Ele se aproxima de um importante debate sobre o que são os comuns contemporâneos, que não se limitam aos comuns “tecnológicos”, “culturais” ou “urbanos”, mas que os contemplam, e são absolutamente vinculados ao território. Fala a partir do Sul Global não como um representante deste universo (destaca sempre sua posicionalidade africana), mas como uma fonte de contribuição global que expande um horizonte de possibilidades de futuros.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Agradecimentos</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Agradeço ao autor, Prof. Franklin Obeng-Odoom e à University Toronto Press pela cessão do exemplar do livro para a revisão.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Franklin Obeng-Odoom, PhD., Universidade de Helsinki, Finlândia</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Referências bibliográficas</div><div style="text-align: justify;">CAJIGAS-ROTUNDO, Juan Camilo. La Biocolonialidad del Poder : Amazonía, biodiversidad y ecocapitalismo. In: CASTRO-GÓMEZ, Santiago; GROSFOGUEL, Ramón (org.). El giro decolonial : reflexiones para una diversidad epistémica más allá del capitalismo global. Encuentros. ed. Bogotá: Siglo del Hombre Editores; Universidad Central, Instituto de Estudios Sociales Contemporáneos y Pontificia Universidad Javeriana, Instituto Pensar, 2007. p. 169-194.</div><div style="text-align: justify;">ESCOBAR, Arturo. Autonomía y diseño: la realización de lo comunal. Primera edición en castellano ed. Popayán, Colombia: Editorial Universidad del Cauca, 2016. 280 p.</div><div style="text-align: justify;">ESCOBAR, Arturo. Territorios de diferencia: lugar, movimientos, vida, redes. 1. ed. Bogotá: Envión Editores, 2010. 386p.</div><div style="text-align: justify;">SOUZA, Marcelo Lopes De. Ambientes e territórios: uma introdução à Ecologia Política. 1a edição ed. Rio de Janeiro: Difel, 2019.350 p.</div><div style="text-align: justify;">HAESBAERT, Rogério. Viver no Limite : território e multi/transterritorialidade em tempos de in-segurança e contenção. 1. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2014. 320 p.</div><div style="text-align: justify;">OBENG-ODOOM, F. The Commons in an Age of Uncertainty: Decolonizing Nature, Economy, and Society. Toronto; Buffalo; London : University of Toronto Press, 2020. 264 p.</div><div style="text-align: justify;"><a class="dropdown-toggle" data-toggle="dropdown" href="https://www.scielo.br/j/asoc/a/VPbWFfw4DW3F9z8TSxqLC7m/?lang=pt" style="animation-duration: 0.1s; animation-fill-mode: both; background-color: white; box-sizing: border-box; color: #00314c; font-family: Arial, sans-serif; font-size: 12.6px; font-weight: 700; outline: 0px; text-align: left; text-decoration-line: none; transition: color 0.1s ease-out 0s, text-indent 0.1s ease-out 0s;"><span class="text" style="box-sizing: border-box;"><span class="truncate" style="box-sizing: border-box; overflow: hidden; text-overflow: ellipsis; white-space: nowrap; width: 450px;">Ambiente & Sociedade</span></span></a></div>Eduardo Marculinohttp://www.blogger.com/profile/09461824103400566723noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4969040045050510246.post-26769087998865563272022-09-22T19:41:00.002-07:002022-09-22T19:41:08.055-07:00No laboratório da Nação: a Câmara Municipal de Mariana, Minas Gerais, e a construção do Estado Nacional Brasileiro<div style="text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEh7ucWKKQauhpRjRf05OHUaOaZMtDDTb8Bc7DYxbxyxAP2pNp1eQUfDIfWI7cNsLh_P8Ep6Yh1xKnPYcAxe1ngLOfXdwTBWWZsVfE2xaRC_MWJScVWJVAMot32dv8_sNaJXnYRGUQBBRc2EVam5GNQ1_Hymvb0JIlLtvQf6VWkyEhbFeVUG89NjuwQBwQ/s251/lab.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="251" data-original-width="201" height="251" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEh7ucWKKQauhpRjRf05OHUaOaZMtDDTb8Bc7DYxbxyxAP2pNp1eQUfDIfWI7cNsLh_P8Ep6Yh1xKnPYcAxe1ngLOfXdwTBWWZsVfE2xaRC_MWJScVWJVAMot32dv8_sNaJXnYRGUQBBRc2EVam5GNQ1_Hymvb0JIlLtvQf6VWkyEhbFeVUG89NjuwQBwQ/s1600/lab.jpg" width="201" /></a></div><br /><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">DO LOCAL AO NACIONAL: A ATUAÇÃO DA CÂMARA DE MARIANA APÓS A IMPLEMENTAÇÃO DA LEI DE ORGANIZAÇÃO MUNICIPAL, 1828-1836</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Bruna Prudêncio Teixeira</div> <div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Resenha de: OLIVEIRA, Kelly Eleutério Machado. . No laboratório da Nação: a Câmara Municipal de Mariana, Minas Gerais, e a construção do Estado Nacional Brasileiro . Belo Horizonte: Fino Traço, 2021.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Publicado em 2021, No laboratório da Nação: a Câmara Municipal de Mariana, Minas Gerais, e a construção do Estado Nacional Brasileiro é fruto da dissertação de mestrado de Kelly Eleutério Machado de Oliveira defendida em 2013, na Universidade Federal de Minas Gerais. Atualmente, a autora é pós-doutoranda em História pela Universidade de São Paulo.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Dividido em três capítulos, o livro traz nova contribuição aos estudos sobre as Câmaras Municipais. A temática foi bastante abordada pela historiografia do Brasil colonial. Autores como Júnia Furtado, Russel-Wood e Nuno Monteiro3 se debruçaram sobre o assunto. Oliveira, contudo, tem como pano de fundo o Brasil independente, especificamente no contexto onde as Câmaras sofreram reformas profundas que esvaziaram o poder que possuíam no período colonial. Com base no estudo específico da Câmara de Mariana, a autora explora o novo papel da instituição e como as dinâmicas locais interferiram no contexto geral. Nesse sentido, a obra segue a tendência historiográfica dos últimos anos, em que os estudos de caso aparecem como lócus privilegiado para compreensão das minúcias do processo de formação do Estado brasileiro.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">O objetivo central do livro é analisar a atuação e trajetória dos vereadores da Câmara de Mariana e entender as relações e tensões desses agentes no processo de construção do novo Estado independente. Apesar do esvaziamento do poder local nas décadas de 1820 e 1830, a autora consegue analisar o peso da esfera municipal sobre a política nas suas relações com os níveis de poderes provincial e geral. Na análise de Oliveira, os vereadores emergem como agentes ativos no chamado “laboratório da nação”.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">No primeiro capítulo, intitulado “Organização e Funcionamento da Câmara Municipal da Cidade de Mariana, Minas Gerais (1828-1836)”, a autora retraça o panorama de atuação da Câmara nos anos assinalados. Partindo das tensões entre pré e pós independência, demonstra rupturas e continuidades impostas pela lei de 1828, que regula e limita os poderes municipais no Brasil. Indo ao encontro da tese de Sérgio Buarque de Holanda,4 a medida é compreendida de uma perspectiva liberal, visto que estabelece mudanças em relação ao período colonial. Se antes as Câmaras eram espaços de poderes quase autônomos, após a reorganização foram subordinadas aos Conselhos Gerais provinciais e perderam atribuições judiciais, mantendo somente funções administrativas.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Todas essas alterações geraram tensões entre os vereadores de Mariana e para compreender o novo espaço de atuação da Câmara, Oliveira analisou cerca de 900 atas de sessões do local. Evidenciando os perigos de analisar essa documentação de maneira isolada, a autora chama a atenção para a forte inconstância política dos atores políticos no Período Regencial. Uma das reformas mais questionadas pelos vereadores marianenses foram as posturas municipais. Alguns defendiam que as posturas fossem assuntos da Câmara, e não do Conselho da província. Mesmo assim, de maneira geral, a Câmara considerava a lei de 1828 legítima, bem como as reformas liberais de 1830. Portanto, mesmo perdendo autonomia, e abrigando uma série de tensões e debates, a Câmara de Mariana tendia à corrente liberal moderada e se mostrou fiel à Regência.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Acerca da nova organização das Câmaras a autora demonstra que os vereadores seriam eleitos pelo município dentre aqueles que possuíssem no mínimo 200$000 de renda anual. Não estavam previstos pagamentos para este cargo, a ideia não era “viver da Câmara” e sim “para a Câmara”. (p. 39). Portanto, a principal motivação em ser vereador seria o acumulo de prestígio e poder.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Os vereadores eram responsáveis pelas questões econômicas e policiais da cidade. Deveriam garantir o bem-estar local e costumeiramente aproveitavam para suprir seus interesses, inclusive financiando as obras. Sobre essa questão, o estudo de Oliveira adentra uma perspectiva importante sobre o processo de formação do Estado brasileiro. Ainda que a questão financeira tenha sido transferida para a esfera provincial, isso não impediu autoridades municipais de investirem dinheiro do próprio bolso nas obras públicas e melhorias locais. Com isso, a autora reverbera a tese da permanência da “componente patrimonial”, como herança do Antigo Regime (p.42).</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">No segundo capítulo, “Viver de seu negócio e governar o bem comum: o perfil socioeconômico nos primeiros anos das Regências”, Oliveira analisa o perfil dos homens que ocuparam a vereança. Para isso, baseia-se em testamentos, inventários, listas nominativas, registros de matrimônios, jornais e também informações contidas no livro Casa de Vereança de Mariana: 300 anos de História da Câmara Municipal. Oliveira contabilizou 16 vereadores (três dos quais carecem de documentação). Eram via de regra, brancos, livres, “chefes de armas”, membros da elite local e da Sociedade Patriótica Marianense. Entre as ocupações mais comuns estavam as de fazendeiro, comerciante e padre.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Para traçar um perfil socioeconômico dos vereadores, a autoria os dividiu em quatro tópicos. No primeiro, analisou os eclesiásticos. Dentre os três padres, o que mais se destaca é Antônio José Ribeiro Bhering. No âmbito político, foi vereador, procurador, juiz de paz, municipal e de direito, membro do Conselho Geral, da Assembleia Legislativa mineira e da Assembleia Geral. João Paulo Barbosa, por sua vez, foi vereador da Câmara e membro da Assembleia Legislativa Provincial. Manoel Júlio Miranda assumiu, além da vereança, as funções de juiz de órfãos e deputado provincial.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Além dos cargos políticos, os padres receberam comendas. Sobre essa questão, a autora se aproxima dos estudos de Ângela Xavier e Antonio Manuel Hespanha5. Ainda que esses autores se debrucem sobre o cenário português da década de 1820, a economia de “troca de favores” está presente nos dois contextos. Era comum que indivíduos oferecerem serviços ao Estado em troca de comendas e títulos. A diferença, contudo, estaria na origem da nobreza. À luz de Lilia Schwarcz6, Oliveira defende que o critério brasileiro de nobreza estava muito mais ligado ao “merecimento” que ao “nascimento”. Ocupar cargos eclesiásticos, políticos e administrativos poderia gerar status social.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">O segundo e terceiro grupo de vereadores são os que acumularam grandes e médias fortunas. Dentre os maiores montantes temos quatro vereadores que somavam de 30 a 70 contos de réis. O mais rico, entretanto, era detentor de um montante-mor acima dos 119 contos de réis. Os vereadores deste grupo eram em geral proprietários de terras, fazendeiros e comerciantes, alguns com investimentos na mineração, outros também no comércio de cativos. Havia ainda um advogado. Quatro vereadores representam as “médias fortunas”. Nenhum deles aparece como grande proprietário de terras, sendo que dois somam pouco mais de 9 contos de réis.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Assim como os padres, esses vereadores também acumulam cargos políticos. A autora sugere que esse amealhar de funções pode estar associado à carreira política exercida por essas pessoas e ainda à insuficiência de cidadãos para ocupar cargos requeridos pelo novo Estado. Além disso, esse grupo também tem sua lista de títulos e comendas, o que corrobora com a tese de “troca de favores” entre indivíduos e Estado e de busca de distinção social, práticas herdadas do Antigo Regime.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">O quarto e último grupo apresentado por Oliveira é na verdade uma exceção: Manoel Francisco Damasceno era agregado, carpinteiro e o único vereador pardo. Seu caso representa uma ruptura com o período colonial. Se no passado as Câmaras Municipais eram espaços para “homens bons”, no oitocentos deixam de sê-lo em função do fim dos critérios de sangue para provimento de cargos públicos. Por outro lado, a renda era condição da vereança, e assim se observa que a maioria dos vereadores eram membros da elite política e econômica local, que por vezes já haviam ocupado posições na Câmara e circulavam por várias esferas políticas.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">No terceiro e último capítulo, “A trajetória e atuação políticas de Antônio José Ribeiro Bhering”, Oliveira se detém na vida do vereador eclesiástico mais importante de seu recorte. Baseada nos trabalhos de Andréa Lisly Gonçalves, destaca a relevância de trajetórias individuais para o estudo de determinados contextos.7 Bhering, que já desfrutava de prestígio por ser padre, foi professor e figura ativa nos periódicos da época, sendo considerado “ilustre e combativo”. (P. 124). Politicamente, acumulou cargos locais, provinciais e nacionais, podendo inclusive ser considerado membro do que José Murilo de Carvalho chama de “elite imperial política”.8 Com uma tendência liberal moderada, o padre apoiava maior autonomia às províncias, sem simpatizar, contudo, com o federalismo. Defensor da monarquia constitucional, armou o seminário contra a Revolta do Ano da Fumaça. Bhering também gostava de distinções sociais e pediu duas comendas ao príncipe. Sua vida desenha a trajetória de um homem local que, entrando no cenário político do Estado imperial, ainda carrega as tensões e contradições entre as novas correntes políticas e as velhas práticas do Antigo Regime.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Em vista do exposto, No laboratório da Nação merece destaque. Com análise documental rica e minuciosa, Oliveira demonstra o que a reorganização das Câmaras Municipais no Brasil recém-independente significou na prática do dia a dia. Relativizando a tendência historiográfica que vê nas reformas de 1828 o esvaziamento do município em prol da província, sua pesquisa sugere que a Câmara permaneceu como espaço de proeminência que servia de trampolim para as elites locais. Partindo do estudo específico de Mariana, consegue averiguar como disputas nacionais eram tidas no município, e mais do que isso, como agentes locais circulavam entre os âmbitos provinciais e nacional. Seu livro é sem dúvida um convite para entender o novo papel das Câmaras no processo de construção da nação independente.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Bibliografia</div><div style="text-align: justify;">CARVALHO, Jose Murilo de. A construcao da Ordem: a elite imperial; Teatro de Sombras: a politica imperial. Rio de Janeiro, Civilizacao Brasileira, 2003.</div><div style="text-align: justify;">FURTADO, Jania Ferreira. As Camaras municipais e o poder local: Vila rica- um estudo de caso na producao academica de Maria de Fatima Gouvea. In Tempo, 2009. P. 6.-22. https://www.scielo.br/j/tem/a/HxDGZzXvj7tRsPphZkB79cS/?lang=pt#</div><div style="text-align: justify;"><a href="https://www.scielo.br/j/tem/a/HxDGZzXvj7tRsPphZkB79cS/?lang=pt#">» https://www.scielo.br/j/tem/a/HxDGZzXvj7tRsPphZkB79cS/?lang=pt#</a></div><div style="text-align: justify;">GONCALVES, Andrea Lisly. Estratificacao social e mobilizacões politicas no processo de formacao do Estado Nacional brasileito: minas gerais, 1831-1835. Sao Paulo, Hucitec, 2008.</div><div style="text-align: justify;">HESPANHA, Antonio Manuel. & XAVIER, Angela. As redes clientelares. In: Mattoso, Jose. Historia de Portugal: o antigo regime. Lisboa: Estampa, 1993.</div><div style="text-align: justify;">HOLANDA, Sergio Buarque de. Raizes do Brasil. 26ªed. Sao Paulo, Cia das Letras, 1995.</div><div style="text-align: justify;">MONTEIRO, Nuno. Notas sobre a nobreza, fidalguia e titulares nos finais do antigo regime. Ler historia, Lisboa, n.10., 1987.</div><div style="text-align: justify;">OLIVEIRA, Kelly Eleuterio Machado. No laboratorio da Nacao: a Camara Municipal de Mariana, Minas Gerais, e a construcao do Estado Nacional Brasileiro. Belo Horizonte: Fino Traco, 2021.</div><div style="text-align: justify;">RUSSEL-WOOD, A. J. R. O governo local na America Portuguesa: um estudo de divergencia cultural. Revista de Historia, Sao Paulo, USP. V.50. N.109, 1997, p. 1887-249. https://doi.org/10.11606/issn.2316-9141.rh.1977.77329</div><div style="text-align: justify;"><a href="https://doi.org/10.11606/issn.2316-9141.rh.1977.77329">» https://doi.org/10.11606/issn.2316-9141.rh.1977.77329</a></div><div style="text-align: justify;">SCHWARCZ, Lilia. As barbas do imperador: d. Pedro II o monarca dos tropicos. Sao Paulo, Cia das Letras , 2003.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">3</div><div style="text-align: justify;">FURTADO, Júnia Ferreira. As Câmaras municipais e o poder local: Vila rica um estudo de caso na produção acadêmica de Maria de Fátima Gouvêa. In: Tempo, 2009. < https://www.scielo.br/j/tem/a/HxDGZzXvj7tRsPphZkB79cS/?lang=pt#> P. 6.-22; RUSSEL-WOOD, A. J. R. O governo local na América Portuguesa: um estudo de divergência cultural. https://doi.org/10.11606/issn.2316-9141.rh.1977.77329 Revista de História, São Paulo, USP. V.50. N.109, 1997, p. 1887-249; MONTEIRO, Nuno. Notas sobre a nobreza, fidalguia e titulares nos finais do antigo regime. In: Ler história, Lisboa, n.10, 1887.</div><div style="text-align: justify;">4</div><div style="text-align: justify;">HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raizes do Brasil. 26ªed. São Paulo, Cia das Letras, 1995.</div><div style="text-align: justify;">5</div><div style="text-align: justify;">HESPANHA, Antonio Manuel. & XAVIER, Ângela. As redes clientelares. In: Mottoso, José. História de Portugal: o antigo regime. Lisboa: Estampa, 1993.</div><div style="text-align: justify;">6</div><div style="text-align: justify;">SCHWARCZ, Lilia. As barbas do imperador: d. Pedro II o monarca dos trópicos. São Paulo, cia das letras, 2003.</div><div style="text-align: justify;">7</div><div style="text-align: justify;">GONÇALVES, Andréa Lisly. Estratificação social e mobilizações políticas no processo de formação do Estado Nacional brasileito: minas gerais, 1831-1835. São Paulo, Hucitec, 2008.</div><div style="text-align: justify;">8</div><div style="text-align: justify;">CARVALHO, José Murilo de. A construção da Ordem: a elite imperial; Teatro de Sombras: a política imperial. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2003.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">2</div><div style="text-align: justify;">Historiadora, mestre em história pela UNIFESP. Atualmente doutoranda em Sociologia pelo PPGS/USP. Pesquisadora do NEV-USP. Bolsista FAPESP (2020/15880-0).</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">2</div><div style="text-align: justify;">Historiadora, mestre em história pela UNIFESP. Atualmente doutoranda em Sociologia pelo PPGS/USP. Pesquisadora do NEV-USP. Bolsista FAPESP (2020/15880-0).</div><div style="text-align: justify;"><a class="dropdown-toggle" data-toggle="dropdown" href="https://www.scielo.br/j/alm/a/zpkGJyZZrbWF9tbrDYRw3ZK/?lang=pt" style="animation-duration: 0.1s; animation-fill-mode: both; background-color: white; box-sizing: border-box; color: #00314c; font-family: Arial, sans-serif; font-size: 12.6px; font-weight: 700; outline-offset: -2px; outline: 0px; text-align: left; text-decoration-line: none; transition: color 0.1s ease-out 0s, text-indent 0.1s ease-out 0s;"><span class="text" style="box-sizing: border-box;"><span class="truncate" style="box-sizing: border-box; overflow: hidden; text-overflow: ellipsis; white-space: nowrap; width: 450px;">Almanack </span><span class="sci-ico-arrowDown" style="-webkit-font-smoothing: antialiased; box-sizing: border-box; display: inline-block; font-family: scielo-glyphs !important; font-variant-east-asian: normal; font-variant-numeric: normal; font-weight: 400; line-height: 1em; speak: none; vertical-align: middle;"></span></span></a></div>Eduardo Marculinohttp://www.blogger.com/profile/09461824103400566723noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4969040045050510246.post-60064856635224469632022-09-22T19:36:00.002-07:002022-09-22T19:36:21.606-07:00power and culture in imperial Brazil<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEg7g40BanGX7jN7VtG1-aGwt7t6Ad23m-QiXYxN8uYMuuG6NJPPdv-PjQvs54G3LFYe54Xf7j2U3BslY8RngYRjYHb4N6h6fJID0BHYVM-he2QvZIfalGKJH9EqWWAgWq6t4-PbYpElbo_xzSk_KtdrsEHD4FdPbwdY5nioeklIiKAaFTNY6ERIhJLUPg/s1000/culture.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="1000" data-original-width="667" height="320" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEg7g40BanGX7jN7VtG1-aGwt7t6Ad23m-QiXYxN8uYMuuG6NJPPdv-PjQvs54G3LFYe54Xf7j2U3BslY8RngYRjYHb4N6h6fJID0BHYVM-he2QvZIfalGKJH9EqWWAgWq6t4-PbYpElbo_xzSk_KtdrsEHD4FdPbwdY5nioeklIiKAaFTNY6ERIhJLUPg/s320/culture.jpg" width="213" /></a></div><br /><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">JORNAIS: UMA AMPLA JANELA ABERTA SOBRE O SÉCULO XIX</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Isabel Lustosa</div> <div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Resenha de: Press, power and culture in imperial Brazil; organizado por Kraay, Hendrik; Castilho, Celso Thomas; Cribelli, Teresa. .University of New Mexico Press, Albuquerque, 2021. 306 p.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">De forma bem-humorada, os organizadores deste livro incluíram no prefácio o comentário de um historiador-blogueiro ironizando o título que deram ao painel que deu origem à obra. O título era, em tradução livre para o português: “A hemeroteca digital brasileira e a pesquisa histórica: contexto, conteúdo e pesquisa em arquivos digitais”. Disse o maldoso comentarista que seria difícil até mesmo para um historiador ficar excitado diante da expectativa de assistir a três ou quatro apresentações sob esse título.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Talvez para o expectador de um país em que os recursos digitais estão avançadíssimos, a existência de uma hemeroteca como a da Biblioteca Nacional não seja um fato notável. Mas, quem, como a autora destas linhas, trabalhou com os periódicos da Independência usando aquelas carroças que são as máquinas de ler microfilme, sacrificando a vista diante das idas e vindas dos olhos da tela negra do filme para o papel branco em que fazia suas anotações, ergue a todo momento graças e louvores à hemeroteca da Biblioteca Nacional, cuja pane que a deixou fora do ar há poucos meses, apavorou o meio acadêmico.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Os caminhos para a pesquisa que esse acesso aos jornais do século XIX possibilitou estão perfeitamente demonstrados nos estudos aqui reunidos. Eles revelam muito sobre a história do Brasil, mas também sobre o papel que a imprensa jogou nessa história. Mais do que a história dos jornais ou até do o uso dos jornais como fonte, esses trabalhos demonstram na prática o papel da imprensa na história do Brasil do século XIX e o fazem também contando a história daquela imprensa.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">O grande tema a assombrar a historiografia sobre aquele período, a escravidão, emerge aqui realçado pela revelação do quanto foi daninha a atividade da imprensa e como o suposto silêncio sobre esse tema fundamental esteve submerso por opção, fruto do grande arranjo político firmado ainda na Regência entre os Regressistas e os maiores e mais importantes jornais. Como revela o capítulo assinado por Alain El Youssef, foram esses os responsáveis por permitir que a lei de 7 de novembro de 1831 que proibiu o tráfico negreiro se tornasse uma lei para inglês ver. Pode-se acompanhar através da imprensa, o processo de ruptura entre os líderes dos moderados, Evaristo e Bernardo Pereira de Vasconcelos, e das forças políticas que lideravam. Evaristo manteve-se o fiel aos ideais liberais que orientaram toda sua trajetória, apoiando a eleição e a regência única de Feijó. Vasconcelos rejeitou o liberalismo que até 1834 defendera e criou o Regresso, movimento que daria origem ao partido conservador.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">A imprensa foi o palco em que antigos liberais se tornaram defensores intransigentes do tráfico negreiro e, quando assumiram o governo, usaram-na para sabotar a lei de 1831 de todas as formas. Um jornalista que crescera sob as bençãos de Evaristo, Justiniano José da Rocha, vai ser a grande inteligência por trás dos sofismas utilizados pelos conservadores para justificar a vista grossa que a sociedade brasileira fez ao aumento do tráfico clandestino que, de 18.000 africanos traficados entre 1831 e 1834, saltaria para 230.000 entre 1834 e 40. Como conclui o autor: “Essa coalizão entre políticos, fazendeiros e a impressa foi diretamente responsável por um dos maiores crimes da história do Brasil. A política, a economia e a sociedade que emergiram da Regência foram fortemente baseadas na exploração de africanos ilegalmente contrabandeados. Sem a atuação da imprensa, a sociedade brasileira talvez tivesse sido consolidada de outra forma”.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">De mesmo espírito é a revelação da imprensa como fonte fundamental para entender os esforços empreendidos ainda durante a Regência no sentido de promover a substituição do trabalho escravo pelo livre através do estímulo à imigração. Em seu capítulo, José Meléndez apresenta as ações empreendidas neste sentido por instituições como a “Sociedade promotora da colonização”, do Rio de Janeiro e suas congêneres em Salvador e em Santos. Lançadas entre 1835-1836, apesar da adesão de grandes personalidades da vida pública e da intensa atividade que desenvolveram através da imprensa, tiveram vida curta, não sobrevivendo à Regência.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Segundo o autor, por falta de documentação concernente, essas sociedades, costumam ser mencionadas apenas en passant, em trabalhos acadêmicos. Diante do volume de material que obteve nas pesquisas que fez sobre o tema na Hemeroteca Digital, Meléndez conclui que: “é na imprensa e não no parlamento, nem nas assembleias provinciais e nem em reuniões do Gabinete” que se devem realizar as pesquisas que dão acesso à dimensão mais completa do fenômeno. Os jornais abrem ao pesquisador janelas que revelam um sofisticado sistema desenvolvido para identificar, transportar e receber migrantes estrangeiros nos portos brasileiros entre 1834 e 1841. Por meio de artigos de opinião; de traduções de textos sobre o tema; de anúncios publicados e de informações logísticas relativas à colonização, a imprensa revelou-se ao autor como a primeira plataforma para conhecer a articulação que possibilitou a entrada dessa leva de imigrantes durante o período regencial.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Aspecto inédito nos estudos sobre imprensa, a ação de correspondentes nacionais nos jornais da corte do Rio de Janeiro, apresentada aqui por Hendrik Kraay, demonstra o vínculo estreito que havia entre as províncias e o poder central. Na visão do autor tais cartas teriam contribuído “para forjar a comunidade imaginada da nação brasileira”. Kraay analisou 128 cartas vindas da Bahia e publicadas em 1868 nos principais jornais do Rio que revelaram a interação que aquele tipo de correspondência pública promovia entre a província e a capital. Revelam ainda a forma como as disputas políticas da corte se reproduziam no resto do país, espelhando a divisão que marcaria as três últimas décadas do Segundo Reinado entre liberais e conservadores. No Jornal do Comércio, o mais importante do período, a seção tinha um caráter imparcial e abrigava correspondentes liberais e conservadores. Mas todos os grandes jornais mantinham esse tipo de seção que costumava ocupar um espaço generoso na página impressa. Sinal de que atendia às expectativas do público leitor da capital.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Boa contribuição à história do ofício de jornalista é a apresentação que Kraay faz do perfil do correspondente regional e de seu cotidiano: a espera do paquete com as notícias e a pressa em escrever a coluna antes que o próximo partisse. Também chama a atenção para o caráter peculiar daquele tipo de trabalho jornalístico, mais próximo da reportagem do que da crônica, levando o autor a um exercício de objetividade pela obrigação de descrever e interpretar os eventos para os leitores nacionais.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">A atuação de José Carlos Rodrigues na imprensa brasileira é um tema que tem interessado aos historiadores, tanto pelo seu papel como editor do Jornal do Comércio que adquiriu dos irmãos Villeneuve na virada do século XIX para o XX, como pela publicação, na década de 1870, nos Estados Unidos, do jornal Novo Mundo. No capítulo assinado por Roberto Saba, Rodrigues se revela não só como o grande agente da difusão no Brasil de uma imagem de progresso e modernidade do que se tornaram os EUA, depois da Guerra Civil, como, intermediário fundamental para a inserção de herdeiros da elite cafeeira paulistana no meio acadêmico norte-americano. E as consequências desse investimento se fizeram sentir no processo de modernização agrícola experimentado pelos cafeicultores do oeste de São Paulo a partir do trabalho de seus rebentos instruídos nos States.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Esse trabalho de difusão das ideias apreendidas na América do Norte foi feito pelo Novo Mundo mas também por jornais publicados pelos estudantes brasileiros que se formaram em Cornell, universidade a que Rodrigues estava ligado por laços de amizade com os dirigentes. Em seus escritos, Rodrigues e seus pupilos, divulgavam as novidades tecnológicas implementadas nos EUA, ao mesmo tempo em que analisavam e discutiam causas e tendencias do progresso daquela nação. Para os jovens estudantes paulistas e seu mentor, José Carlos Rodrigues, o importante era demonstrar que, nos EUA, a dificuldade causada pela falta de braços depois da Abolição, fez a agricultura mais intensa e científica, pela adoção de modernizações tecnológicas que foram impulsionadas pelas novas circunstâncias.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">O jornal de Rodrigues e o dos estudantes, Aurora Brasileira, depois, sugestivamente renomeada de Aurora Brazileira, tinham por objetivo promover o avanço científico da agricultura e das artes mecânicas e pregavam a superioridade do trabalho livre sobre a mão de obra escrava. O discurso que difundiam baseava-se em argumentos bem distantes dos discursos humanitários dos abolicionistas brasileiros e, como diz o autor, possibilitou que Rodrigues obtivesse o apoio dos mais cafeicultores brasileiros. A ponto de as mesmas ideias serem defendidas por um rico fazendeiro, o futuro presidente do Brasil, Campos Sales em artigo publicado na Gazeta de Campinas.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">A ideia central era que a substituição gradativa do homem pela máquina e do escravo pelo trabalhador livre suficientemente instruído para operá-las, levaria a uma considerável economia de tempo e dinheiro. A partir da boa aceitação desse discurso entre o público leitor dessas publicações no Brasil, elas passaram a ter também uma boa carteira de anunciantes que vendiam: locomotivas, fertilizantes, ferramentas, implementos agrícolas, etc. Os estudantes paulistanos formados nas universidades americanas sob a influência de Rodrigues voltaram para o Brasil e foram atores importante no processo de industrialização e modernização do Estado de São Paulo.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Outra fonte de pesquisa bem promissora é a seção conhecida como Apedidos que figurava obrigatoriamente nos jornais entre as três últimas décadas do século XIX e as primeiras do século XX. Tereza Cribelli analisou os apedidos publicados no Jornal do Comercio em janeiro de 1870 e, com essa amostra, abriu uma vereda para estudos bastante abrangentes sobre a sociedade brasileira daquele período. Incluindo uma variedade de vozes, de estilos, de insultos criativos e de humor e cobrindo um amplo leque de assuntos desde queixas contra os serviços públicas, questões entre particulares, mensagens de amor, ofensas, agradecimentos e homenagens, a seção Apedidos oferece, como diz a autora, uma visão única dos sentimentos dos brasileiros naquele contexto. O fato de poderem ser publicadas por quem quer que tivesse os trocados necessários para pagar por algumas linhas impressas no jornal fazia com que ações, pensamentos e experiencias da vida privada das pessoas comuns invadissem a esfera pública. A seção que já era publicada no Jornal do Comercio, nos anos 1850, ocupava, modestamente a segunda página, vindo logo depois dos noticiários nacionais e internacionais. Mas seu sucesso foi tamanho e os ganhos extra que o jornal obtinha com o pagamento dessas mensagens fizeram com que, na década de 1870, passasse a ser publicada na primeira página.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Dois outros capítulos deste livro contemplam a presença do “homem de cor” na sociedade brasileira em perspectivas bem diversas. Rodrigo Camargo de Godoi analisa a inserção de escravos na sociedade letrada a partir da atuação de muitos deles nas gráficas que se multiplicaram no Rio de Janeiro, durante o Segundo Reinado. Apesar das restrições que havia com relação à educação do elemento escravizado, o acesso e a variedade das publicações, além do aprendizado da leitura possibilitado pelo trabalho nas tipografias, influíram também na criação de um público leitor entre os escravizados. O Homem, foi um jornal publicado por um mestiço da elite para denunciar o preconceito racial na sociedade pernambucana. Seu objetivo era claramente demonstrar que, apesar da Constituição garantir direitos iguais para todos, na prática, os homens negros livres eram discriminados nos concursos públicos, proibidos de se reunir em manifestações e até mesmo demitidos de seus empregos por causa da cor. Celso Thomas Castilho que assina esse capítulo, chama a atenção para o fato de que as reações contra o jornal por parte de outros órgãos da imprensa local demonstraram que O Homem incomodava justamente por representar uma quebra no tradicional tabu contra a publicização da discriminação racial.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">O caráter panorâmico de alguns textos certamente tornará o livro mais interessante para o leitor anglófono. Marcelo Basile, apresenta a imprensa política brasileira, entre 1822 e 1840, a partir de conclusões obtidas em trabalhos de outros colegas e nos seus próprios. Ludmila de Souza Maia se detém sobre um gênero que chegou aos nossos dias, a Crônica, e seu papel na imprensa do século XIX, como laboratório para a revelação e o desenvolvimento de talentos literário. Em panorama ainda mais abrangente, Mathew Nestler e Zephyr Frank traçam a história da imprensa brasileira do século XIX do ponto de vista de questões associadas a uma perspectiva econômica e publicitária entre 1820 e 1890. Finalmente, mas não menos importante, o capítulo de Arnaldo Lucas Pires Junior, apresenta a imprensa satírica ilustrada que tanta força teve no Brasil da segunda metade do século XIX, comparecendo aos debates centrais em torno da Guerra do Paraguai, da Abolição e da Proclamação da República.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Reunião de trabalhos de autores dedicados à história da imprensa com os de outros autores que até então usaram a imprensa como uma das fontes de seus estudos, este livro representa o merecido reconhecimento à Hemeroteca Digital Brasileira, mas é também um estímulo para a realização de mais estudos que problematizem a imprensa e o ativo papel que sempre exerceu na transformação (ou conservação) da sociedade brasileira.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Bibliografia</div><div style="text-align: justify;">Press, power and culture in imperial Brazil; organizado por Hendrik Kraay, Celso Thomas Castilho e Teresa Cribelli. University of New Mexico Press, Albuquerque, 2021. 306 p.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Investigadora integrada ao Centro de Humanidades (CHAM), Universidade Nova de Lisboa.</div><div style="text-align: justify;"><a class="dropdown-toggle" data-toggle="dropdown" href="https://www.scielo.br/j/alm/a/rbN9ZfwDNVFW8ZKzpfgcZjH/?lang=pt" style="animation-duration: 0.1s; animation-fill-mode: both; background-color: white; box-sizing: border-box; color: #00314c; font-family: Arial, sans-serif; font-size: 12.6px; font-weight: 700; outline-offset: -2px; outline: 0px; text-align: left; text-decoration-line: none; transition: color 0.1s ease-out 0s, text-indent 0.1s ease-out 0s;"><span class="text" style="box-sizing: border-box;"><span class="truncate" style="box-sizing: border-box; overflow: hidden; text-overflow: ellipsis; white-space: nowrap; width: 450px;">Almanack </span><span class="sci-ico-arrowDown" style="-webkit-font-smoothing: antialiased; box-sizing: border-box; display: inline-block; font-family: scielo-glyphs !important; font-variant-east-asian: normal; font-variant-numeric: normal; font-weight: 400; line-height: 1em; speak: none; vertical-align: middle;"></span></span></a></div>Eduardo Marculinohttp://www.blogger.com/profile/09461824103400566723noreply@blogger.com0