quarta-feira, 30 de junho de 2010

Coleções e Expedições Vigiadas: Os Etnólogos no Conselho de Fiscalização das Expedições Artísticas e Científicas no Brasil

GRUPIONI, Luís Donisete Benzi. 1998. Coleções e Expedições Vigiadas: Os Etnólogos no Conselho de Fiscalização das Expedições Artísticas e Científicas no Brasil. São Paulo: Hucitec/Anpocs. 341 pp.

Marco Antonio Gonçalves
Prof. de Antropologia, PPGSA-IFCS-UFRJ


Este livro representa uma contribuição significativa à história da etnologia brasileira. Originalmente uma dissertação de mestrado em Antropologia Social apresentada à USP, recebeu a premiação da Anpocs como melhor dissertação no ano de 1997. A pesquisa realizou-se nos arquivos do Conselho de Fiscalização das Expedições Artísticas e Científicas no Brasil, hoje sediado no Museu de Astronomia, no Rio de Janeiro. O Conselho funcionou de 1933 a 1968, fiscalizando as expedições científicas realizadas por pesquisadores estrangeiros ou por brasileiros não vinculados a uma instituição científica.

O autor redescobre este acervo como fonte importante para a compreensão do desenvolvimento da ciência e das instituições científicas no Brasil. Sob uma aparência burocrática, o acervo apresenta uma rica documentação sobre as expedições científicas, que revelam percepções sobre "patrimônio", "ciência", "nação", e as relações e estratégias que se estabeleceram entre diferentes cientistas e instituições de pesquisa no Brasil e no exterior. O arquivo reúne onze mil documentos bastante diversos – cartas, ofícios, atas de reunião, relatórios de atividades, listas de freqüências, demonstrativos de pagamentos, telegramas, recortes de jornais, fotografias – e é de tal forma abrangente, que o autor teve de realizar sucessivos recortes até chegar ao núcleo documental que é seu objeto privilegiado de análise: os pedidos de licença para expedições etnográficas, antropológicas e arqueológicas.

Na estrutura documental do acervo destacam-se os "dossiês expedicionários"; são, ao todo, 437 dossiês, dos quais 61 são relativos a pedidos de licença para expedições classificadas como etnográficas, arqueológicas e antropológicas. Neste universo, o autor focaliza cinco dossiês, dando maior ênfase a dois: os de Claude Lévi-Strauss e Curt Nimuendajú, que constituem o núcleo do livro (capítulos 4 e 5); a análise dos outros três (Charles Wagley; William Lipkind e Buell Quain; e David Maybury-Lewis) integra o capítulo 3.

A intenção de Grupioni é entender como esses etnólogos realizaram suas pesquisas e a relação destas com suas carreiras futuras. Não analisa, contudo, as obras dos pesquisadores cujos dossiês são investigados, mas sim o "dossiê em si mesmo". Segundo o autor, "a análise é construída de dentro do conjunto documental para fora dele", etnografia que "implica elevar o documento investigado à condição de parte constitutiva da análise, e não à de mera ilustração" (:26-27). Entretanto, a escolha inicial do objeto e os recortes que procedeu até chegar aos dossiês efetivamente analisados implicam mediações que são impostas por outros contextos que não os dos dossiês tomados como peças isoladas. Sua concepção da história da antropologia no Brasil, por exemplo, leva-o a um recorte específico do material a ser analisado, que, por sua vez, o leva a uma classificação dos autores escolhidos e a um determinado quadro temporal.

O capítulo 1, "O Campo Indigenista", localiza o Conselho em um campo bastante heterogêneo que envolvia disputas, travadas desde o começo deste século, sobre o lugar dos índios no projeto de construção nacional, idéias e práticas que circulavam naquele momento e que fizeram parte da constituição e da elaboração de uma política indigenista fomentada pelo Estado brasileiro. Grupioni, a partir do Conselho, repensa o campo indigenista, propondo um alargamento do mesmo para incorporar não apenas as chamadas políticas de intervenções nas populações indígenas, mas também a produção do conhecimento sobre esses grupos e, assim, a relação dos antropólogos com o Estado. Embora o material restrinja-se aos antropólogos estrangeiros, pode-se vislumbrar uma rede complexa de relações entre as instituições brasileiras e seus pesquisadores e suas respectivas relações com o Estado. Outro ponto importante evocado por Grupioni é que, no momento em que se elabora uma política sobre as expedições científicas e de preservação de coleções percebidas como parte do patrimônio histórico e cultural da nação, "os índios passam a ocupar um lugar de destaque na idéia de nação que o Estado está construindo"(:44).

No capítulo 2, "O Conselho de Fiscalização", o autor faz uma análise minuciosa da estrutura do Conselho, seus objetivos, seu papel fiscalizador, dos princípios que nortearam sua criação e do debate político em jogo. A instituição do Conselho produziu um universo de categorias classificatórias como "expedições científicas", "expedicionário", "pesquisador", "especialista", "coleções etnográficas" – categorias que não eram, até aquele momento, constitutivas de um campo organizado. A própria categoria "expedição científica" já evidencia uma percepção específica do que significa pesquisa e do modo como esta deve ser conduzida (para produção de conhecimento e para apropriação de bens culturais e científicos). O "expedicionário" – seja ele nacional sem vinculação institucional, ou estrangeiro – tem de submeter seu projeto ao Conselho, que documenta suas atividades e lhe concede uma autorização para pesquisa. Para tanto, o Conselho cria as figuras de "conselheiros" e "consultores", muitos destes formalmente vinculados às instituições de pesquisa no país, que passam a opinar, vetar ou autorizar as "expedições científicas". Com isso, o Conselho legitimava o "pesquisador nacional".

No capítulo 3 chega-se, finalmente, à análise dos dossiês dos etnólogos. São analisados os de Charles Wagley, de William Lipkind e Buell Quain, e de David Maybury-Lewis. Grupioni oferece um vívido quadro da antropologia daquele período, reconstituindo as relações entre pesquisadores brasileiros e estrangeiros, relações que definiram interesses e questões sobre os quais a antropologia no Brasil iria se debruçar no futuro. O autor reconstrói as conexões da escola americana de antropologia – por meio de representantes como Boas, Linton e Benedict e dos estudos desenvolvidos no Brasil por seus alunos Wagley, Lipkind, o casal Watson, o casal Murphy – com as instituiçoes brasileiras, uma rede que se conectava a Heloísa Alberto Torres e aos pesquisadores do Museu Nacional. A análise dos dossiês revela não apenas as disputas institucionais entre museus e órgãos de pesquisa no Brasil e de seus respectivos pesquisadores a partir do "capital intelectual" estrangeiro, mas também um estilo de condução da pesquisa etnológica, seja no que se refere aos temas (estudos lingüísticos, musicais, aculturação e mudança, cultura material, antropometria) ou ao próprio trabalho de campo. Muitos dos pesquisadores, denominados "expedicionários", faziam-se acompanhar por mateiros, carregadores, cozinheiros e assistentes, o que levava o Serviço de Proteção aos Índios a questionar não as "boas intenções" e "integridade moral" dos pesquisadores, mas a de seus acompanhantes, que entravam em contato com as populações indígenas.

O capítulo 4 analisa o dossiê Claude Lévi-Strauss enfocando sua segunda expedição. Grupioni narra a disputa intelectual que se trava entre o Departamento de Cultura de São Paulo e o Museu Nacional, mediada pelo Conselho, sobre o controle e fiscalização da expedição. A influência de Heloísa Alberto Torres acaba por impor à expedição um "delegado do Museu Nacional", Luiz de Castro Faria, "fiscal do Conselho", que acompanharia Lévi-Strauss à Serra do Norte. O capítulo reconstrói a rede de relações acadêmicas e políticas, bem como as estratégias dos atores envolvidos, que girava em torno da legitimidade da pesquisa científica desenvolvida no Brasil. Grupioni, ainda neste capítulo, redimensiona a contribuição de Lévi-Strauss para o corpus etnográfico sul-americano, reconectando suas pesquisas à sua produção intelectual mais ampla. O autor conclui que a real contribuição de Lévi-Strauss à etnologia sul-americana ficou ofuscada pela envergadura de sua obra que, se ultrapassava o americanismo tropical, não deixava de ser importante para a constituição desse campo de estudos.

Para a análise do dossiê Nimuendajú (capítulo 5), o autor lança mão de outros documentos, presentes nos arquivos do Museu Nacional, para avaliar a efetiva participação desse etnólogo no desenvolvimento da antropologia brasileira. Reconstrói as relações de Nimuendajú com museus, instituições e pesquisadores no Brasil e no exterior, por meio das quais ele se construiu como "colecionador" e depois como "pesquisador". Descrevendo os interesses políticos e acadêmicos desse jogo de alianças, Grupioni revela o campo em que Nimuendajú se movimentou durante o tempo em que contribuiu para produzir um conhecimento etnológico sobre as populações indígenas brasileiras.

Além de permitir compreender melhor um determinado período (1930-1945) da antropologia praticada no Brasil, a partir dos materiais do arquivo do Conselho Grupioni avalia, também, a produção do conhecimento na etnologia brasileira. Sua hipótese sobre as grandes influências germânica e americana na etnologia nacional, fundamenta-se na constatação de Anne-Christine Taylor, segundo a qual em inícios dos anos 70 se podiam contar apenas cinqüenta monografias sobre as sociedades da Amazônia, enquanto outra região de igual tamanho, o Oeste da África, contava com mais de duas mil. França e Inglaterra concentravam seus esforços em conhecer suas Colônias, ao mesmo tempo em que os alemãs teriam se voltado para a América, influenciando profundamente a etnologia norte-americana com suas idéias culturalistas e difusionistas, e também com os estudos sobre os índios brasileiros.

Até hoje não se escreveu uma história da etnologia praticada no Brasil, a partir de sua obra escrita e publicada, que permita uma avaliação das contribuições de seu diversos autores, ligando carreira, pesquisa e obra constituída. Os três volumes da Bibliografia Crítica da Etnologia Brasileira, sobretudo os dois primeiros organizados por Baldus, revela uma quantidade e qualidade de material que, no mínimo, torna complexa qualquer tentativa de produzir hipóteses de caráter geral sobre um material tão vasto e ainda não classificado e avaliado apropriadamente. Pensar que o boom da etnologia brasileira se inicia na década de 70, apostando numa desqualificação da produção anterior, é, antes, uma estratégia para colocar em evidência um modelo de antropologia (e, conseqüentemente, do "americanismo"), do que uma verdade ancorada em bases sólidas demonstráveis. Neste sentido, o esquecimento das contribuições anteriores e a estranha sensação dos americanistas de estarem sempre "começando do zero" revela a construção de uma história da etnologia, apoiada mais em rupturas do que em continuidades: foi o que se passou com os "estudos de contato", na década de 60, e com a chamada "etnologia pura" na década de 70. A história da etnologia a partir de sua produção escrita seria uma contrapartida importante aos trabalhos que vêm sendo desenvolvidos, nas últimas décadas, sobre as histórias da antropologia e da etnologia praticadas no Brasil, cujo livro de Grupioni é um dos seus resultados significativos.

Revista Mana

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