"Unequal freedoms: the global market as an ethical system"
John McMurtry
Garamond, Toronto
Este livro, lançado em 1998, com 410 páginas, é apenas uma parte da pesquisa empreendida pelo autor a partir do tema: "Sobrevivendo à globalização: dimensões econômicas, sociais e ambientais". John McMurtry informa que, aceita a proposta de escrever sobre o assunto, foram mais de três anos de pesquisa resultando em 1.200 páginas que retratam o quanto foi aprendido durante o período. O resultado fascina o leitor. Com efeito, convencido de que não há decisão de mercado que não seja expressão do sistema de valores do mercado, o autor— doutor pela University of London e professor de filosofia na University of Guelph, Canadá— buscou ligaras mudanças ambientais e sociais ao quadro de valores a elas subjacente e teve como parceiros nesse empreendimento Adam Smith e Karl Polanyi, filósofos que ao seu tempo realizaram empresa semelhante. Afirmando que o mercado global não é o mesmo que o mercado capitalista clássico, do qual deriva, assim como este pouco se assemelha ao mercado do produtor e que, portanto, o uso apenas do termo "mercado" representa uma confusão de valores de natureza metafísica, John McMurtry usou técnicas de pesquisa da filosofia, da economia, da ciência política e da teologia.
Unequal freedoms: the global market as an ethical system é dividido em três partes: Atrás da mão invisível; Teoria e prática do mercado: argumentos a favor e contra; e Saúde planetária, o mercado global e os cidadãos comuns. Na primeira, o autor, a partir das grandes teorias econômicas, em seu entender, profundamente desviadas da teoria de Smith, busca levantar as camadas de suposições para revelar os mais básicos pressupostos morais subjacentes à aparente neutralidade valorativa do mundo das transações de mercado e suas análises.
Elencando alguns argumentos relativos à teoria e à prática do mercado — na segunda parte — John McMurtry discute o sentido da liberdade e da propriedade privada, de Locke à Nova Ordem Mundial — enfatizando a estreita ligação entre o sucesso do mercado capitalista e a escravidão humana — e alerta para o fato de que toda a teoria do mercado pressupõe o trabalho humano como mercadoria e de que, em tempos de mercado global, a proteção do trabalhador tende a ser considerada "barreira regulatória" que deve ser removida para reduzir os custos de compra do trabalho. Para concluir que o direito de propriedade não implica obrigação de propriedade, o autor argumenta, então, que as sociedades — com rendimentos diminuídos — devem cortar seu gasto público para pagar pela competitividade sem qualquer obrigação dos investidores e empresas. Ainda nessa parte, abordando o lucro individual, a competição e o bem público, John McMurtry parte da constatação — comum a pensadores tão diferentes e mesmo opostos como Adam Smith, Hegel, Darwin, Nietzsche e Marx— de que a ação exclusivamente egoísta na competição é boa para a sociedade como um todo e termina por perguntar: bom para que?, lembrando que o padrão uniforme gerado pela competição no mercado global tem conseqüências que são destruidoras da vida, como a diminuição da biodiversidade, a depressão decorrente da constatação de que "as pessoas se tornam cada vez mais instrumentos numa estrutura de comando vertical, funcionários substituíveis nas máquinas corporativas para maximizar os lucros e benefícios dos investidores" (pág. 155). Continuando a elencar os argumentos a favor e contra a prática do mercado, o autor apresenta o argumento de ser a economia global baseada no conhecimento e o ataca com "as seis razões pelas quais a economia-baseada-no-conhecimento está estruturada contra o conhecimento da verdade", entre elas o fato de que existe o conhecimento sobre as propriedades medicinais de muitas substâncias naturais, das quais os grandes laboratórios farmacêuticos, por exemplo, não testam sua segurança de forma a permitir sua aprovação pelos órgãos sanitários, apenas por não serem patenteáveis. A discussão sobre a economia-baseada-no-conhecimento envolve, também, a análise da censura do "pensamento único" nos meios de comunicação de massa. John McMurty encerra a segunda parte de seu livro destruindo, com grande quantidade de exemplos, o mito de que o mercado, mesmo em seus modos mais laissez-faire, é livre da interferência do Estado. Com efeito, desde sistemas policiais e judiciais para proteger os capitais até as forças armadas para proteger os investimentos privados no estrangeiro, passando por rodovias para o transporte de bens privados para a produção ou comércio, assim como treinamento gratuito para fornecer os recursos humanos requeridos pela produção, são evidências claras da importante participação do Estado para manter o chamado livre mercado. Fica óbvio, então, que a intervenção estatal da qual pretendem se livrar os defensores do mercado é aquela legislação protetora da vida, especialmente em duas áreas: segurança e saúde ocupacional e ambiente. Ele trata aí, também, de demonstrar a falsidade do argumento a favor da remoção das barreiras de fronteiras ao comércio, instaurando a discussão sobre os povos que foram obrigados a suportar o "próspero comércio internacional" e invalidando a afirmação de que os free trade agreements foram acordados pelas sociedades por eles afetadas. De fato, desde a ausência de participação dos parlamentos na redação dos acordos e em sua negociação até a entrega para a legalmente obrigatória apreciação do Labour Advisory Council, no último dia do prazo para manifestação (no caso da aprovação do NAFTA nos Estados Unidos da América), deixam clara a efetiva exclusão do povo desse processo. E, no mesmo sentido, enumera vários exemplos que esclarecem que a condenação aos "almoços grátis" (transferências de valores monetários da propriedade pública para a posse e uso privados por pessoas físicas ou jurídicas) feita pelos defensores do mercado tem uma longa história moral de inquietação sobre o modo como as pessoas se degradam quando não trabalham duro para seus senhores. Além disso, ter dinheiro é considerado uma virtude no código moral do mercado e não tê-lo ou possui-lo em pequena quantidade é condenável. Assim, a defesa estatal do monopólio sobre a produção e distribuição de medicamentos, por exemplo, não é considerada "almoço grátis".
Na última parte de seu livro, John McMurtry procura realçar o caráter de absolutismo moral do sistema de mercado global, infenso a qualquer controle normativo e totalmente irresponsável frente a qualquer governo. Assim, para todos os problemas sociais decorrentes da abertura dos mercados, receita-se maior abertura dos mercados e os economistas globais afirmam que o mundo real do mercado não inclui qualquer apreciação a respeito da submissão das pessoas ou da devastação do ambiente e que a ciência é neutra, o que torna os mandamentos dessa doutrina análogos às leis da natureza. A conclusão é evidente: nem mesmo Marx percebeu o que era claro para Adam Smith, as leis de ferro da economia são realmente um sistema dogmático de valores, que passou a ser obedecido como lei natural. Algumas idéias para corrigir o sistema de lucro são apresentadas, então: condicionar a emissão da carta bancária ao emprego da moeda — formada pelo trabalho da sociedade — para crédito, empréstimo e investimento que proteja e incremente os interesses vitais da sociedade; tornar a emissão de moeda absolutamente vinculada a objetivos públicos vitais (tais como: a criação e manutenção de sistemas nacionais de saúde pública, de educação superior, de assistência social e desemprego, de monitoramento e proteção do ambiente, de comunicações públicas), entre elas. A verdadeira correção do sistema, contudo, está baseada na definição de civil commons, o que é socialmente necessário para proporcionar vida, tornando disponíveis os recursos básicos para a vida para todos os membros dessa sociedade (pág. 370). Introduzir a vida como valor no sistema de valores do mercado, portanto, é indispensável, não se podendo aceitar o argumento da insustentabilidade de um programa social apenas porque "ele não aumenta a renda monetária total gerada pelos bens e serviços sociais que têm preço ou porque ele importa em gastos governamentais que deverão ser extraídos dos rendimentos do mercado" (pág. 375). Trata-se, também, de re-instalar o governo como função do Governo, que hoje serve às demandas do mercado global. Aqui o autor introduz o conceito de falso capital (o input monetário que se transforma em mais dinheiro — output — sem produzir maior estoque de riqueza, mas produzindo maior demanda monetária sobre a riqueza, enquanto degrada ou destrói a riqueza já existente: a usura bancária, por exemplo), examina o conceito de capital natural (dos economistas de vanguarda), de capital físico (diferenciando-o entre aquele dos espaços públicos e o que subsidia os interesses privados das companhias em prejuízo da vida civil e ambiental), capital humano (alertando para os riscos lógicos embutidos na consideração do capital humano apenas enquanto possa ser avaliado como recurso para o mercado).
John McMurtry conclui Unequal fredoms: the global market as an ethical system, entretanto, em um tom otimista: apesar de a monstruosidade do sistema de valores abrigado na teoria e prática do mercado global ter permanecido oculta, começam a aparecer alguns sinais de que se inicia o processo de desvendamento. Com efeito, as pessoas em vários Estados (Chiapas, no México, Timor Oriental, Alemanha, França) ou em reuniões internacionais (OMC em Seatle) e mesmo organizações transnacionais (OECD) começam a manifestar um mal-estar-global. Que essa revelação a gente do povo certamente irá proporcionar — como a história humana sempre demonstrou — a cooperação organizada para superar as ameaças à vida individual, social e planetária, é a conclusão do autor nessa instigante obra.
Sueli Gandolfi Dallari
Professor Titular, Faculdade de Saúde Pública/USP
Livre-Docente em Direito Sanitário, Universidade São Paulo
Centro de Estudos e Pesquisas de Direito Sanitário - CEPEDISA e Núcleo de Pesquisas em Direito Sanitário da Universidade de São Paulo - NAP-DISA/USP
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