RAMOS, Alcida Rita. 1998. Indigenism: Ethnic Politics in Brazil. Madison, Wisconsin: The University of Wisconsin Press. 336 pp.
Maria José Alfaro Freire
Mestranda, PPGAS-MN-UFRJ
"[...] por que os índios brasileiros, sendo tão poucos, têm um lugar tão proeminente na consciência nacional?" (:3). A pergunta que abre o livro revela a preocupação central de Alcida Ramos nos dez artigos que compõem Indigenism: Ethnic Politics in Brazil: refletir sobre o lugar do índio no imaginário da sociedade brasileira, a partir do ma-peamento das mais diversas "zonas de contato" entre as populações indígenas e as várias instâncias da sociedade nacional em uma perspectiva diacrônica. Ao reunir e organizar uma grande quantidade de informações, o livro dá uma visão panorâmica das relações interétnicas no país, apresentando cuidados com um público leigo no que se refere a dados contextuais da história do Brasil e oferecendo ao pesquisador pistas, tanto temáticas quanto bibliográficas, para futuros trabalhos. Essa opção, no entanto, não permite um tratamento mais detido e sistemático de questões específicas relativas ao tema.
A proposta de Ramos está vinculada a uma determinada concepção de indigenismo. Ainda que não se detenha em uma discussão teórica a respeito, propõe a ampliação desse conceito, acrescentando à sua definição enquanto domínio das políticas indigenistas estatais ou privadas, a dimensão do imaginário nacional: "O que a mídia escreve e difunde, novelistas criam, missionários revelam, ativistas dos di-reitos humanos defendem, antropólogos analisam e índios negam ou corroboram sobre o Índio, contribui para um edifício ideológico que toma a 'questão indígena' como seu building block" (:6). Assim, aportando dados diversos, como relatos de viajantes, cartas de agentes missionários, textos da literatura brasileira, verbetes de dicionários, trechos de discursos de agentes como políticos, militares, sertanistas e lideranças indígenas, material de imprensa escrita, artigos da legislação brasileira, a própria produção antropológica e a sua experiência como ativista política, Ramos analisa manifestações do indigenismo tais como "o preconceito re-gional, a comiseração urbana, o controle estatal, a curiosidade antropológica, o compromisso religioso, o sensacionalismo na mídia ou discursos indígenas verbais, escritos ou gestuais" (:7).
Os artigos, que podem ser lidos isoladamente, foram produzidos em diferentes momentos da trajetória da autora quatro deles estão sendo publicados pela primeira vez e os outros seis são reedições modificadas de publicações anteriores. Ainda que cada um focalize questões específicas, eles estão atravessados por um mesmo conjunto de preocupações.
Das três partes que compõem o livro, a primeira "Setting the Stage" trata da história das representações sobre as populações indígenas operantes nas relações interétnicas brasileiras. Ramos analisa as designações atribuídas aos índios por não-índios: criança, pagão, nômade, primitivo e selvagem (cap. 1) e os discursos edênico e civilizatório (cap. 2), que põem em circulação representações do índio, de um lado, como puro, digno, ingênuo, e de outro, como inferior, incapaz, bárbaro, ameaçador, inábil para a vida moderna. Ramos argúi que essas representações fazem parte de discursos acionados pela Igreja, pelo Estado e pelos militares na configuração de um consenso em torno à necessidade do zelo protetor. Essas mesmas representações vêm à tona na construção de um discurso antiindígena, que legitima a dominação, o controle das terras, a ação missionária e a dependência econômica, justificando a atitude paternalista e intolerante das agências de contato.
Alguns momentos da história das relações interétnicas em que o índio se colocou politicamente enquanto interlocutor do homem branco são recuperados na segunda parte do livro, "Speaking to the Whiteman". Seja no caso do Tribunal Russell organizado em 1980 na Holanda para avaliar genocídios ou etnocídios contra as populações indígenas americanas, em que a questão indígena alcançou visibilidade nacional e internacional (cap. 3), ou na análise dos discursos de três lideranças indígenas (cap. 4), a autora mostra como se articulam as noções de etnici- dade, cidadania e universalismo, no posicionamento de setores da Igreja, ONGs, pesquisadores e lideranças. O conceito de cidadania, por exemplo, serve para as populações indígenas como um instrumento de sobrevivência, mostrando, dessa forma, que o sucesso do contato depende da capacidade de manipulação dessa categoria. É oferecido um panorama da emergência das organizações indígenas no Brasil, no início da década de 80 (cap. 4), momento em que o "índio" se constrói como uma categoria reconhecida e legitimada no cenário político nacional. Ao mesmo tempo, a autora mostra como a questão indígena, nessa época, serviu como válvula de escape para setores da sociedade brasileira insatisfeitos e silenciados pelo governo militar.
Se a segunda parte destaca inici- ativas da participação dos índios nas relações interétnicas, a terceira parte "Speaking Through the Indians" aborda ações, práticas e representações de vários setores da sociedade nacional em relação aos índios, em que é observada uma "expropriação" do discurso indígena como uma forma tática de submeter os índios ao controle de diferentes instâncias de poder. A autora descreve e analisa o sistema de pacificação que, através da estratégia de sedução, reforça a relação de dependência econômica dos índios em relação à sociedade nacional, visível nas políticas de um Estado paternalista (cap. 5).
Quanto às reações do governo à emergência do movimento indigenista no Brasil, Ramos vê nelas atitudes reveladoras da tradição autoritária do Estado brasileiro. Analisando o caso da União das Nações Indígenas (UNI), formada em 1981, destaca que o uso público da idéia de nação indígena incomodou as elites brasileiras da época, na medida em que acionou a imagem "ameaçadora" da diversidade associada a poder, autonomia e autodeterminação. As noções de "etnicidade" e "nação" são problematizadas, observando-se aí um investimento teórico mais significativo.
Seqüencialmente, levanta-se a re-lação de compatibilidade ou não entre o projeto desenvolvimentista e as po-pulações indígenas (cap. 7). A autora recupera um conjunto de exemplos históricos em que iniciativas desenvolvimentistas trouxeram conseqüências nefastas para as populações indígenas, como morte, doenças, perda de terra, disrupção social, bem como exemplos positivos em que a identidade étnico-cultural foi reafirmada. Segundo ela, a incorporação das populações indígenas à economia nacional ou mundial não é, necessariamente, incompatível com a manutenção de suas identidades étnicas e culturais, ainda que sofrendo transformações devidas a esse contato.
A análise de projetos desenvolvimentistas e militares na Amazônia (cap. 8) como o Calha Norte dá inteligibilidade aos discursos agenciados pelas instâncias responsáveis, como uma estratégia para as ambições econômicas sobre a região. Dois argumentos inter-relacionados são utilizados pelos militares como forma de legitimar o controle do Estado sobre essa região e seus recursos através dos investimentos públicos e atividades privadas: a Amazônia constitui-se em um vazio demográfico, o que pressupõe uma ação imperativa com vistas à sua integração ao resto da nação para "salvaguardar a soberania nacional". Ignorar a população regional e, especialmente, as populações indígenas significa negar institucionalmente qualquer reconhecimento dos direitos indígenas.
A política oficial brasileira em relação aos índios é caracterizada por Ramos como "esquizofrênica" (cap. 9) em virtude das disparidades observadas entre as instâncias executiva e legislativa. Destaca, de um lado, a sensibilidade dos legisladores para as diferenças culturais e étnicas, tendo estes produzido proteção legal para os direitos indígenas; de outro, percebe que agentes executivos, como os administradores da Funai, governadores, ministros e presidentes da República, têm tentado solapar os efeitos das leis pró-indígenas. Um caso ilustrativo de uma dessas tentativas é o decreto de emancipação do ministro do Interior Rangel Reis, de 1978, que propunha a absorção dos índios na sociedade nacional. Ramos reúne evidências da época, mostrando que se tratava de uma tentativa de dar à Funai poder de pôr fim ao estatuto especial dos índios e, dessa forma, desmantelar o direito às reservas indígenas.
As entidades civis contemporâneas de apoio às populações indígenas constituem o último foco de análise da autora (cap. 10), reconhecendo no interior delas um processo de burocratização que opera com um índio-hiper-real, um índio idealizado, a quem se demanda integridade absoluta: "o índio perfeito, cujas virtudes, sofrimentos e incansável estoicismo lhe confere o direito de ser defendido pelos profissionais dos direitos indígenas" (:276).
A autora conclui, então, destacando a ambivalência da sociedade nacional em relação às populações indígenas. De um lado, o orgulho da multietnicidade do país, de outro, a aspiração por uma homogeneidade nacional; o "índio" construído como um poderoso símbolo da nacionalidade e, ao mesmo tempo, como um obstáculo ao desenvolvimento. Esse paradoxo é apontado por Ramos como constitutivo do campo da identidade nacional. É nesse sentido que se esboça uma resposta à questão inicial: o "índio" opera como um referencial fundamental na definição da auto-imagem nacional.
Revista Mana
Maria José Alfaro Freire
Mestranda, PPGAS-MN-UFRJ
"[...] por que os índios brasileiros, sendo tão poucos, têm um lugar tão proeminente na consciência nacional?" (:3). A pergunta que abre o livro revela a preocupação central de Alcida Ramos nos dez artigos que compõem Indigenism: Ethnic Politics in Brazil: refletir sobre o lugar do índio no imaginário da sociedade brasileira, a partir do ma-peamento das mais diversas "zonas de contato" entre as populações indígenas e as várias instâncias da sociedade nacional em uma perspectiva diacrônica. Ao reunir e organizar uma grande quantidade de informações, o livro dá uma visão panorâmica das relações interétnicas no país, apresentando cuidados com um público leigo no que se refere a dados contextuais da história do Brasil e oferecendo ao pesquisador pistas, tanto temáticas quanto bibliográficas, para futuros trabalhos. Essa opção, no entanto, não permite um tratamento mais detido e sistemático de questões específicas relativas ao tema.
A proposta de Ramos está vinculada a uma determinada concepção de indigenismo. Ainda que não se detenha em uma discussão teórica a respeito, propõe a ampliação desse conceito, acrescentando à sua definição enquanto domínio das políticas indigenistas estatais ou privadas, a dimensão do imaginário nacional: "O que a mídia escreve e difunde, novelistas criam, missionários revelam, ativistas dos di-reitos humanos defendem, antropólogos analisam e índios negam ou corroboram sobre o Índio, contribui para um edifício ideológico que toma a 'questão indígena' como seu building block" (:6). Assim, aportando dados diversos, como relatos de viajantes, cartas de agentes missionários, textos da literatura brasileira, verbetes de dicionários, trechos de discursos de agentes como políticos, militares, sertanistas e lideranças indígenas, material de imprensa escrita, artigos da legislação brasileira, a própria produção antropológica e a sua experiência como ativista política, Ramos analisa manifestações do indigenismo tais como "o preconceito re-gional, a comiseração urbana, o controle estatal, a curiosidade antropológica, o compromisso religioso, o sensacionalismo na mídia ou discursos indígenas verbais, escritos ou gestuais" (:7).
Os artigos, que podem ser lidos isoladamente, foram produzidos em diferentes momentos da trajetória da autora quatro deles estão sendo publicados pela primeira vez e os outros seis são reedições modificadas de publicações anteriores. Ainda que cada um focalize questões específicas, eles estão atravessados por um mesmo conjunto de preocupações.
Das três partes que compõem o livro, a primeira "Setting the Stage" trata da história das representações sobre as populações indígenas operantes nas relações interétnicas brasileiras. Ramos analisa as designações atribuídas aos índios por não-índios: criança, pagão, nômade, primitivo e selvagem (cap. 1) e os discursos edênico e civilizatório (cap. 2), que põem em circulação representações do índio, de um lado, como puro, digno, ingênuo, e de outro, como inferior, incapaz, bárbaro, ameaçador, inábil para a vida moderna. Ramos argúi que essas representações fazem parte de discursos acionados pela Igreja, pelo Estado e pelos militares na configuração de um consenso em torno à necessidade do zelo protetor. Essas mesmas representações vêm à tona na construção de um discurso antiindígena, que legitima a dominação, o controle das terras, a ação missionária e a dependência econômica, justificando a atitude paternalista e intolerante das agências de contato.
Alguns momentos da história das relações interétnicas em que o índio se colocou politicamente enquanto interlocutor do homem branco são recuperados na segunda parte do livro, "Speaking to the Whiteman". Seja no caso do Tribunal Russell organizado em 1980 na Holanda para avaliar genocídios ou etnocídios contra as populações indígenas americanas, em que a questão indígena alcançou visibilidade nacional e internacional (cap. 3), ou na análise dos discursos de três lideranças indígenas (cap. 4), a autora mostra como se articulam as noções de etnici- dade, cidadania e universalismo, no posicionamento de setores da Igreja, ONGs, pesquisadores e lideranças. O conceito de cidadania, por exemplo, serve para as populações indígenas como um instrumento de sobrevivência, mostrando, dessa forma, que o sucesso do contato depende da capacidade de manipulação dessa categoria. É oferecido um panorama da emergência das organizações indígenas no Brasil, no início da década de 80 (cap. 4), momento em que o "índio" se constrói como uma categoria reconhecida e legitimada no cenário político nacional. Ao mesmo tempo, a autora mostra como a questão indígena, nessa época, serviu como válvula de escape para setores da sociedade brasileira insatisfeitos e silenciados pelo governo militar.
Se a segunda parte destaca inici- ativas da participação dos índios nas relações interétnicas, a terceira parte "Speaking Through the Indians" aborda ações, práticas e representações de vários setores da sociedade nacional em relação aos índios, em que é observada uma "expropriação" do discurso indígena como uma forma tática de submeter os índios ao controle de diferentes instâncias de poder. A autora descreve e analisa o sistema de pacificação que, através da estratégia de sedução, reforça a relação de dependência econômica dos índios em relação à sociedade nacional, visível nas políticas de um Estado paternalista (cap. 5).
Quanto às reações do governo à emergência do movimento indigenista no Brasil, Ramos vê nelas atitudes reveladoras da tradição autoritária do Estado brasileiro. Analisando o caso da União das Nações Indígenas (UNI), formada em 1981, destaca que o uso público da idéia de nação indígena incomodou as elites brasileiras da época, na medida em que acionou a imagem "ameaçadora" da diversidade associada a poder, autonomia e autodeterminação. As noções de "etnicidade" e "nação" são problematizadas, observando-se aí um investimento teórico mais significativo.
Seqüencialmente, levanta-se a re-lação de compatibilidade ou não entre o projeto desenvolvimentista e as po-pulações indígenas (cap. 7). A autora recupera um conjunto de exemplos históricos em que iniciativas desenvolvimentistas trouxeram conseqüências nefastas para as populações indígenas, como morte, doenças, perda de terra, disrupção social, bem como exemplos positivos em que a identidade étnico-cultural foi reafirmada. Segundo ela, a incorporação das populações indígenas à economia nacional ou mundial não é, necessariamente, incompatível com a manutenção de suas identidades étnicas e culturais, ainda que sofrendo transformações devidas a esse contato.
A análise de projetos desenvolvimentistas e militares na Amazônia (cap. 8) como o Calha Norte dá inteligibilidade aos discursos agenciados pelas instâncias responsáveis, como uma estratégia para as ambições econômicas sobre a região. Dois argumentos inter-relacionados são utilizados pelos militares como forma de legitimar o controle do Estado sobre essa região e seus recursos através dos investimentos públicos e atividades privadas: a Amazônia constitui-se em um vazio demográfico, o que pressupõe uma ação imperativa com vistas à sua integração ao resto da nação para "salvaguardar a soberania nacional". Ignorar a população regional e, especialmente, as populações indígenas significa negar institucionalmente qualquer reconhecimento dos direitos indígenas.
A política oficial brasileira em relação aos índios é caracterizada por Ramos como "esquizofrênica" (cap. 9) em virtude das disparidades observadas entre as instâncias executiva e legislativa. Destaca, de um lado, a sensibilidade dos legisladores para as diferenças culturais e étnicas, tendo estes produzido proteção legal para os direitos indígenas; de outro, percebe que agentes executivos, como os administradores da Funai, governadores, ministros e presidentes da República, têm tentado solapar os efeitos das leis pró-indígenas. Um caso ilustrativo de uma dessas tentativas é o decreto de emancipação do ministro do Interior Rangel Reis, de 1978, que propunha a absorção dos índios na sociedade nacional. Ramos reúne evidências da época, mostrando que se tratava de uma tentativa de dar à Funai poder de pôr fim ao estatuto especial dos índios e, dessa forma, desmantelar o direito às reservas indígenas.
As entidades civis contemporâneas de apoio às populações indígenas constituem o último foco de análise da autora (cap. 10), reconhecendo no interior delas um processo de burocratização que opera com um índio-hiper-real, um índio idealizado, a quem se demanda integridade absoluta: "o índio perfeito, cujas virtudes, sofrimentos e incansável estoicismo lhe confere o direito de ser defendido pelos profissionais dos direitos indígenas" (:276).
A autora conclui, então, destacando a ambivalência da sociedade nacional em relação às populações indígenas. De um lado, o orgulho da multietnicidade do país, de outro, a aspiração por uma homogeneidade nacional; o "índio" construído como um poderoso símbolo da nacionalidade e, ao mesmo tempo, como um obstáculo ao desenvolvimento. Esse paradoxo é apontado por Ramos como constitutivo do campo da identidade nacional. É nesse sentido que se esboça uma resposta à questão inicial: o "índio" opera como um referencial fundamental na definição da auto-imagem nacional.
Revista Mana
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