Alexandre Hecker
Professor de História Contemporânea da Unesp/Assis
MORAES, Antônio Carlos Robert de. Bases da formação territorial do Brasil. São Paulo, Hucitec, 2000.
Uma história do Brasil para refletir
Há uma moda intelectual renitente que, vitoriosa em determinados círculos, exige submissão dos estudos sobre o passado a uma história frágil, a temas de caráter privado e de preferência individualistas, a um andamento leve e superficial da escritura, apropriada quase que apenas ao deleite. Estamos diante de uma sociedade que demanda uma reflexão histórica de impostação imaginária, no sentido de que valorizamos aquilo que parece, como se, declarar o que é, impusesse mais perigos, demandasse definições que não ousamos assumir. A razão dessa fragilidade, talvez seja possível encontrar numa nova ordem mundial capitalista que pretende controlar as manifestações da vida, inclusive, ou principalmente, as do pensamento. Essa nova soberania requer o controle sobre o saber e, nesse sentido, sobre a história, matéria básica para compreensão das coisas relativas à ordem social e à sua mudança ao longo do tempo e possível transformação. Ao invés da velha questão ideológica, colocada em termos da dicotômica luta de classes marxista, é preciso entender que nenhuma nova lei lógica aboliu o "direito" das pessoas perceberem a relação existente entre suas existências e as dos outros, entre os seus problemas, sejam coletivos ou individuais, e os da sociedade na qual se inserem. Essa tarefa de refletir, entender e explicar – perdoe-se o truísmo – continua tão necessária quanto sempre foi. Não se trata de restabelecer uma grande narrativa, mas de reconhecer que os esforços teóricos têm hoje, neste início de milênio, mais do que nunca, a função de participar do entendimento geral das estruturas que movem o mundo, a fim de que possam contribuir para a possibilidade de uma vida mais digna para as pessoas, mostrando a elas como a grande maioria sofre dos mesmos problemas que as fazem penar, e que não há soluções somente individuais. O conhecimento, quando se apresenta em conformidade com uma realidade externa a si mesmo, é libertação e não profanação, como a moda parece impor. Por outro lado, a mesma globalização que explora e compartimenta diversas populações no mundo, poderá encerrar conteúdos democráticos, e servir ao congraçamento. Mas para isso – além de uma série de necessárias reformas na ordem econômica e social, não há dúvida – é preciso uma outra história, diferente dessa contingencial que se apontou. Experimentamos, hoje, um momento em que de novo uma história de largos horizontes se faz necessária, uma história que se contraponha ao ceticismo epistemológico que progressivamente nos tem invadido, e que reconheça teoricamente a relação fundante entre o pensamento e a sociedade que o elabora.
Certamente não foi pensando em seguir os ditames da historiografia acima identificada que Antônio Carlos Robert de Moraes reescreveu Bases da formação territorial do Brasil: o território colonial brasileiro no 'longo' século XVI. Diz-se reescreveu porque o trabalho foi sua tese de doutoramento defendida no início da década de 90, que agora passou por "levantamentos e reflexões trabalhosas", conforme o próprio autor declara.
Trata-se de uma tentativa tão ousada quanto frutífera de compreender o Brasil em um momento crucial – o autor trata do que denomina longo século XVI, isto é, o período compreendido entre 1460 e 1640 – um esforço de síntese que dá conta, para usar expressão consagrada, da história "a partir do porão". Um livro fundamental para refletir sobre as bases nas quais se assentam os 500 anos que acabamos de completar, e que não pretendemos repetir com os mesmos equívocos e mazelas sociais. Enfim, uma obra, como acima foi apontado, necessária para a construção de uma história consistente, mas nem por isso acima da crítica ou isenta das dificuldades próprias das grandes tentativas.
O livro está composto de 12 capítulos apresentados num andamento cronológico evolutivo, e divididos em quatro partes que tratam: a primeira, da expansão européia e da formação da economia-mundo capitalista; a segunda, da expansão de Portugal e da formação do império colonial lusitano; a terceira, do estudo da formação dos territórios coloniais ibero-americanos; e, a quarta parte, que dá título ao trabalho, cuida das bases da formação territorial do Brasil.
Como Robert de Moraes afirma logo na primeira página do texto, seu alvo no ensaio "é, mediante a revisão de uma bibliografia do campo da história, esclarecer algumas questões teóricas oriundas de discussões metodológicas praticadas na investigação geográfica. O objetivo maior perseguido é fortalecer e sedimentar uma perspectiva histórico-dialética, dedicada à análise dos processos sociais de formação de territórios. Isto é, a visão da geografia humana como uma história territorial". (p.11) Mais adiante, lê-se um desdobramento da questão: "O desenvolvimento histórico faz-se sobre e com o espaço terrestre, e, nesse sentido, toda formação social é também territorial, pois necessariamente se espacializa. Valorização do espaço e formação territorial, dois níveis de abordagem de um mesmo processo. De um lado, as determinações genéricas, fornecendo os macroindicadores que delimitam grandes períodos e iluminando suas lógicas estruturais de funcionamento. De outro, a malha fina do desenrolar das conjunturas, permitindo identificar vontades e atitudes individualizadas, interesses específicos, enfim, movimentos singulares. Tem-se, assim, dois planos de análise e reflexão, em cuja união se desenha o projeto de uma Geografia interpretativa, social e histórica". (p. 18)
Com essas determinações tão explícitas, o leitor não poderá alegar desconhecimento ao se aventurar pelos austeros entremeios especulativos que o aguardam: saberá desde o início que se trata de um livro de história, embora direcionado à discussão geográfica concomitante – ou, muitas vezes, posterior – e que a teoria social de Marx é o paradigma orientador do estudo.
Do ponto de vista do andamento do texto, o que ressalta é a seriedade e a eficiente fluência, ambas marcadas por uma didática de quem, há décadas, vive a intimidade da cátedra acadêmica. Na totalidade, os capítulos seguem um desenvolvimento semelhante. Tome-se, por exemplo, o denominado "A produção do espaço iberoamericano", que dá bem a entender a maneira pela qual Robert Moraes construiu o conjunto do seu exaustivo trabalho. Nele, o autor partiu do pressuposto de que "é o uso social que qualifica os lugares", e que, portanto, para entender os territórios coloniais constituídos na América colonial "não há como fugir à reflexão acerca do(s) modo(s) de produção vigente(s) nestas longínquas paragens da economia mundo européia".
Feitas essas definições iniciais, o Autor passa a discutir, longa e rigorosamente, as interpretações consignadas sobre o tema na bibliografia especializada. E o faz de forma minuciosa e erudita, construindo uma verdadeira exposição cartográfica do pensamento pertinente àquele tema. Passeiam sobre nossos olhos "todos" os autores consagrados da polêmica discussão a respeito dos modos de produção na América colonial. Robert de Moraes os torna claros e transparentes. Discute a matriz interpretativa de autores que "concebem a ordem feudal como plenamente vigente nas colônias americanas desde suas fundações", envereda pela nuança daqueles que "definem como feudal apenas o momento da conquista", discorre sobre a "tese do feudalismo puro" tanto quanto raciocina com os autores que se distanciam da "idéia de uma pureza... mesmo acatando a dominância do feudalismo". Incansável, apresenta a proposta de análise do tipo "mercantilista", examina a linha que propõe uma "combinação de modos de produção", investiga atentamente a "tese da determinação capitalista... (que) pode revestir-se também de múltiplos matizes". Assim, acompanhamos cuidadosamente as idéias de uma lista infindável de autores como J.C. Chiaromonte, S. Hirano, N.W. Sodré, C.S. Assadourian, F. Fernandes,O. Ianni, Malavé-Mata, J.C. Garavaglia, C.F. Cardoso, H. Brignoli, J. Gorender, E. Genovese, A.B. de Castro, J.R. do Amaral Lapa, F. Novaes, M.S. de Carvalho Franco, entre outros, além de J.A. Giannotti. Com este, o autor, por fim e no fim, identificase, e o toma como indicador de uma diretriz interpretativa, já que "não há como fugir à localização do antigo sistema colonial dentro de sua (do capitalismo como categoria histórica de macroperiodização) órbita".
É tanto o afã de levar a cabo uma tarefa fecunda e completa, que Robert de Moraes produziu – não só no capítulo ao qual nos referimos, mas no volume todo – um imenso conjunto de notas de rodapé, em caracteres pequenos, que concorre, em termos de espaço ocupado, com o corpo do texto, formando praticamente dois livros, o de leitura a par com o de referências.
Assim, tendo o mundo capitalista como espaço, a formação da Idade Moderna como tempo e a constituição do país como tema, Robert de Moraes produziu um estudo de conjunto sobre a inclusão do Brasil no mapa mundial. Deste estudo ressalta a importância da lógica capitalista na formação histórica colonial: ela "induz à condição periférica, postos o papel subordinado e a função complementar na estrutura da economia-mundo capitalista, experimentada desde a origem" (p. 416).
Como se procurou observar, não se trata de trabalho sobre especificidades, mas uma discussão de conjunto, aberta ao aproveitamento pelo público geral interessado em geografia, história, economia, política, etc. A única condição para cumprir uma boa leitura, retomando o que ficou dito acima, reside em reconhecer a oportunidade atual de estabelecer um conhecimento que reflita, entenda e explique.
Revista de História - USP
Professor de História Contemporânea da Unesp/Assis
MORAES, Antônio Carlos Robert de. Bases da formação territorial do Brasil. São Paulo, Hucitec, 2000.
Uma história do Brasil para refletir
Há uma moda intelectual renitente que, vitoriosa em determinados círculos, exige submissão dos estudos sobre o passado a uma história frágil, a temas de caráter privado e de preferência individualistas, a um andamento leve e superficial da escritura, apropriada quase que apenas ao deleite. Estamos diante de uma sociedade que demanda uma reflexão histórica de impostação imaginária, no sentido de que valorizamos aquilo que parece, como se, declarar o que é, impusesse mais perigos, demandasse definições que não ousamos assumir. A razão dessa fragilidade, talvez seja possível encontrar numa nova ordem mundial capitalista que pretende controlar as manifestações da vida, inclusive, ou principalmente, as do pensamento. Essa nova soberania requer o controle sobre o saber e, nesse sentido, sobre a história, matéria básica para compreensão das coisas relativas à ordem social e à sua mudança ao longo do tempo e possível transformação. Ao invés da velha questão ideológica, colocada em termos da dicotômica luta de classes marxista, é preciso entender que nenhuma nova lei lógica aboliu o "direito" das pessoas perceberem a relação existente entre suas existências e as dos outros, entre os seus problemas, sejam coletivos ou individuais, e os da sociedade na qual se inserem. Essa tarefa de refletir, entender e explicar – perdoe-se o truísmo – continua tão necessária quanto sempre foi. Não se trata de restabelecer uma grande narrativa, mas de reconhecer que os esforços teóricos têm hoje, neste início de milênio, mais do que nunca, a função de participar do entendimento geral das estruturas que movem o mundo, a fim de que possam contribuir para a possibilidade de uma vida mais digna para as pessoas, mostrando a elas como a grande maioria sofre dos mesmos problemas que as fazem penar, e que não há soluções somente individuais. O conhecimento, quando se apresenta em conformidade com uma realidade externa a si mesmo, é libertação e não profanação, como a moda parece impor. Por outro lado, a mesma globalização que explora e compartimenta diversas populações no mundo, poderá encerrar conteúdos democráticos, e servir ao congraçamento. Mas para isso – além de uma série de necessárias reformas na ordem econômica e social, não há dúvida – é preciso uma outra história, diferente dessa contingencial que se apontou. Experimentamos, hoje, um momento em que de novo uma história de largos horizontes se faz necessária, uma história que se contraponha ao ceticismo epistemológico que progressivamente nos tem invadido, e que reconheça teoricamente a relação fundante entre o pensamento e a sociedade que o elabora.
Certamente não foi pensando em seguir os ditames da historiografia acima identificada que Antônio Carlos Robert de Moraes reescreveu Bases da formação territorial do Brasil: o território colonial brasileiro no 'longo' século XVI. Diz-se reescreveu porque o trabalho foi sua tese de doutoramento defendida no início da década de 90, que agora passou por "levantamentos e reflexões trabalhosas", conforme o próprio autor declara.
Trata-se de uma tentativa tão ousada quanto frutífera de compreender o Brasil em um momento crucial – o autor trata do que denomina longo século XVI, isto é, o período compreendido entre 1460 e 1640 – um esforço de síntese que dá conta, para usar expressão consagrada, da história "a partir do porão". Um livro fundamental para refletir sobre as bases nas quais se assentam os 500 anos que acabamos de completar, e que não pretendemos repetir com os mesmos equívocos e mazelas sociais. Enfim, uma obra, como acima foi apontado, necessária para a construção de uma história consistente, mas nem por isso acima da crítica ou isenta das dificuldades próprias das grandes tentativas.
O livro está composto de 12 capítulos apresentados num andamento cronológico evolutivo, e divididos em quatro partes que tratam: a primeira, da expansão européia e da formação da economia-mundo capitalista; a segunda, da expansão de Portugal e da formação do império colonial lusitano; a terceira, do estudo da formação dos territórios coloniais ibero-americanos; e, a quarta parte, que dá título ao trabalho, cuida das bases da formação territorial do Brasil.
Como Robert de Moraes afirma logo na primeira página do texto, seu alvo no ensaio "é, mediante a revisão de uma bibliografia do campo da história, esclarecer algumas questões teóricas oriundas de discussões metodológicas praticadas na investigação geográfica. O objetivo maior perseguido é fortalecer e sedimentar uma perspectiva histórico-dialética, dedicada à análise dos processos sociais de formação de territórios. Isto é, a visão da geografia humana como uma história territorial". (p.11) Mais adiante, lê-se um desdobramento da questão: "O desenvolvimento histórico faz-se sobre e com o espaço terrestre, e, nesse sentido, toda formação social é também territorial, pois necessariamente se espacializa. Valorização do espaço e formação territorial, dois níveis de abordagem de um mesmo processo. De um lado, as determinações genéricas, fornecendo os macroindicadores que delimitam grandes períodos e iluminando suas lógicas estruturais de funcionamento. De outro, a malha fina do desenrolar das conjunturas, permitindo identificar vontades e atitudes individualizadas, interesses específicos, enfim, movimentos singulares. Tem-se, assim, dois planos de análise e reflexão, em cuja união se desenha o projeto de uma Geografia interpretativa, social e histórica". (p. 18)
Com essas determinações tão explícitas, o leitor não poderá alegar desconhecimento ao se aventurar pelos austeros entremeios especulativos que o aguardam: saberá desde o início que se trata de um livro de história, embora direcionado à discussão geográfica concomitante – ou, muitas vezes, posterior – e que a teoria social de Marx é o paradigma orientador do estudo.
Do ponto de vista do andamento do texto, o que ressalta é a seriedade e a eficiente fluência, ambas marcadas por uma didática de quem, há décadas, vive a intimidade da cátedra acadêmica. Na totalidade, os capítulos seguem um desenvolvimento semelhante. Tome-se, por exemplo, o denominado "A produção do espaço iberoamericano", que dá bem a entender a maneira pela qual Robert Moraes construiu o conjunto do seu exaustivo trabalho. Nele, o autor partiu do pressuposto de que "é o uso social que qualifica os lugares", e que, portanto, para entender os territórios coloniais constituídos na América colonial "não há como fugir à reflexão acerca do(s) modo(s) de produção vigente(s) nestas longínquas paragens da economia mundo européia".
Feitas essas definições iniciais, o Autor passa a discutir, longa e rigorosamente, as interpretações consignadas sobre o tema na bibliografia especializada. E o faz de forma minuciosa e erudita, construindo uma verdadeira exposição cartográfica do pensamento pertinente àquele tema. Passeiam sobre nossos olhos "todos" os autores consagrados da polêmica discussão a respeito dos modos de produção na América colonial. Robert de Moraes os torna claros e transparentes. Discute a matriz interpretativa de autores que "concebem a ordem feudal como plenamente vigente nas colônias americanas desde suas fundações", envereda pela nuança daqueles que "definem como feudal apenas o momento da conquista", discorre sobre a "tese do feudalismo puro" tanto quanto raciocina com os autores que se distanciam da "idéia de uma pureza... mesmo acatando a dominância do feudalismo". Incansável, apresenta a proposta de análise do tipo "mercantilista", examina a linha que propõe uma "combinação de modos de produção", investiga atentamente a "tese da determinação capitalista... (que) pode revestir-se também de múltiplos matizes". Assim, acompanhamos cuidadosamente as idéias de uma lista infindável de autores como J.C. Chiaromonte, S. Hirano, N.W. Sodré, C.S. Assadourian, F. Fernandes,O. Ianni, Malavé-Mata, J.C. Garavaglia, C.F. Cardoso, H. Brignoli, J. Gorender, E. Genovese, A.B. de Castro, J.R. do Amaral Lapa, F. Novaes, M.S. de Carvalho Franco, entre outros, além de J.A. Giannotti. Com este, o autor, por fim e no fim, identificase, e o toma como indicador de uma diretriz interpretativa, já que "não há como fugir à localização do antigo sistema colonial dentro de sua (do capitalismo como categoria histórica de macroperiodização) órbita".
É tanto o afã de levar a cabo uma tarefa fecunda e completa, que Robert de Moraes produziu – não só no capítulo ao qual nos referimos, mas no volume todo – um imenso conjunto de notas de rodapé, em caracteres pequenos, que concorre, em termos de espaço ocupado, com o corpo do texto, formando praticamente dois livros, o de leitura a par com o de referências.
Assim, tendo o mundo capitalista como espaço, a formação da Idade Moderna como tempo e a constituição do país como tema, Robert de Moraes produziu um estudo de conjunto sobre a inclusão do Brasil no mapa mundial. Deste estudo ressalta a importância da lógica capitalista na formação histórica colonial: ela "induz à condição periférica, postos o papel subordinado e a função complementar na estrutura da economia-mundo capitalista, experimentada desde a origem" (p. 416).
Como se procurou observar, não se trata de trabalho sobre especificidades, mas uma discussão de conjunto, aberta ao aproveitamento pelo público geral interessado em geografia, história, economia, política, etc. A única condição para cumprir uma boa leitura, retomando o que ficou dito acima, reside em reconhecer a oportunidade atual de estabelecer um conhecimento que reflita, entenda e explique.
Revista de História - USP
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