domingo, 13 de junho de 2010

Obras poéticas de Basílio da Gama

Guilherme Simões Gomes Júnior
Departamento de Antropologia - PUC/SP

TEIXEIRA, Ivan (ed.). Obras poéticas de Basílio da Gama. São Paulo, EDUSP, 1996.

"Quem vem lá? quem nos honra? Este estudante,
Que das Musas quer ter o magistério,
Aprendeu com varões do sacro império,
Porém, se tolo foi, veio ignorante.

Examinando ele é um pedante
Das Musas portuguesas vitupério,
Foi criado no cálido hemisfério,
Fidalgo pobre, cavaleiro andante". (...) 1



O fato de ter tomado o tempo da pena satírica de Correia Garção, no soneto em epígrafe, faz crer que Basílio da Gama perfilou-se aos grandes das letras portuguesas em tempos arcádicos. A fortuna póstuma é conhecida e até hoje repercute, mas o pouco que se sabe sobre a atribulada carreira do poeta do Rio das Mortes, depois árcade romano Termindo Sipílio, não permite com segurança afirmar a amplitude de sua fama em vida. De qualquer forma, os versos de Garção constituem forte indício.

Indícios são também seus diplomas romanos2, o fato de ter sido alvo da contrapropaganda jesuítica irada com o que se fala dos padres no Uraguai -, e os postos que ocupou, tão próximos dos grandes da coroa portuguesa.

É sabido que a habilidade poética, em época de sociabilidade cortesã e absolutismo monárquico, quando associada a outras habilidades próprias dos secretários de Estado e chancelarias, muito bem ensinadas pela ratio studiorum dos jesuítas, era capaz de abrir muitas portas e promover muitas famas.

Basílio da Gama, por estes atributos, foi reconhecido na corte e nos circuitos internacionais do arcadismo. Mas, mais do que isso, por uma série feliz de acasos acabou por aportar na "Ilha da Imortalidade", que é descrita como "albergue feliz dos heróis, estância plausível dos varões famosos". Aquela que, no dizer de Gracián - como ele, fina flor da formação jesuítica - só é alcançada pelos que são águia, cisne ou fênix, aqueles naturalmente superiores, mas Ilha que pode também ser atingida "remando e suando", pelos que dependem do esforço e do mérito pessoal3. Termindo, o fidalgo pobre do cálido hemisfério, além do esforço, soube manipular a seu favor a roda da fortuna e teve também uma sorte suplementar que, creio eu, estava longe de seus cálculos.

Com isso, o vaticínio final do insigne poema, "Serás lido Uraguai", foi concretizado; e, mais de dois séculos depois, estamos aqui às voltas com a décima sexta edição, que reafirma a regularidade da presença de Basílio da Gama no universo letrado da língua portuguesa (1769, 1811, 1822, 1844, 1845, 1855, 1891, 1895, 1900, 1920, 1922, 1941, 1964, 1982, 1984, 1996). Edição crítica das obras poéticas, com longo ensaio introdutório, aos cuidados de Ivan Teixeira.

Não é descabido pensar que a fortuna poética d'O Uraguai dependeu principalmente de algo que não estava nos horizontes de seu autor, nem de seus próximos, nos idos de 1769. Dependeu da formação posterior de uma literatura nacional que julgou adequado inclui-lo em seu cânone.

Esta matéria é certamente controvertida, pois há os que admitem que a poesia de Basílio da Gama já faz parte, desde sua origem, da literatura nacional brasileira e que, portanto, o "Serás lido Uraguai" já pressupunha a vizinhança dos livros de uma biblioteca de autores brasileiros. Exemplo desta perspectiva encontra-se na própria edição aqui resenhada, que arrola, entre os mais distinguidos interpretes do poeta, texto de Vania Pinheiro Chaves que encontra no Uraguai um verdadeiro conteúdo "nacionalista":

O Uraguai realiza a passagem de um nativismo que cultuava a natureza bruta, característico das obras de seus antecessores, para um 'nacionalismo' que celebra a conquista da terra como espaço de desenvolvimento da 'Nação' (p. 466).

Visto desta ótica, o poema pode ser dito não apenas brasileiro, em função do lugar de origem de seu autor e de parte da matéria tratada, mas empenhado na construção da nacionalidade.

O "nacionalismo" do Uraguai poderia ser visto como um efeito da recepção no século XIX, nacionalista e romântico, mas a intérprete é bastante incisiva em identificá-lo na própria letra do poema, como um dado a ele intrínseco.

Para avaliar esta tese é necessário acompanhar seus argumentos.

Vânia Pinheiro Chaves vê n'O Uraguai a glorificação do Tratado de Madri, mesmo reconhecendo que, na data da publicação do poema (1769), o Tratado já era letra morta. Negociado sob D. João V e assinado em 1750, na década seguinte, depois da morte do monarca, não condizia mais com os interesses estratégicos do marquês de Pombal, em cuja sombra Basílio da Gama realizou trajetória ascendente.

A interpretação está baseada neste paradoxo e tenta tirar dele o melhor proveito para comprovar a tese do nacionalismo.

Por que Basílio, cortesão do novo reinado, que fez de tudo para obter o favor de Sebastião José de Carvalho e Melo, faria o elogio do tratado contra a vontade de seu protetor?

Para solucionar este problema a intérprete estabelece uma curiosa linha de raciocínio, baseada nas seguintes premissas:

1- quem negociou o Tratado em nome de D. João V foi o paulista Alexandre de Gusmão.

2- os paulistas tinham interesse na região das missões e no aprisionamento dos índios, e foram eles os responsáveis pela expansão territorial portuguesa para além dos limites do Tratado de Tordesilias.

3- os limites do mundo português na América acabaram, em um longo processo histórico, estabelecidos mais ou menos nos termos previstos no Tratado de Madri.

E destas premissas decorrem as conclusões:

1- ao negociar o tratado, Alexandre de Gusmão já era nacionalista, por querer expandir o raio de alcance de seus conterrâneos paulistas4.

2- Basílio da Gama ao transformar a guerra guaranítica - conseqüência do Tratado - em matéria épica colaborou subrepticiamente no sentido de consolidar os amplos limites futuros do Brasil para seus confrades brasileiros. Daí seu nacionalismo: glorificando um empreendimento colonial português visava, no entanto, a grandeza do Brasil5.

Como arremate final, a intérprete identifica no poema um caráter libertador: "(...) a glorificação da empresa colonial e a heroicização do colonizador estão amoldadas às concepções iluministas do nosso poeta, apresentando-se como um projeto civilizador e libertador" (p. 465).

Pode parecer um pouco caricatural mas estes são de fato os argumentos expostos por Vania Pinheiro Chaves em "A glorificação do Tratado de Madri, forma original da brasilidade de O Uraguai". Texto que fecha o último segmento do volume aqui em questão, dedicado à fortuna crítica da poesia de Basílio da Gama, que vem junto com escritos de Januário da Cunha Barbosa, José Veríssimo, Eugênio Gomes, Antonio Candido e outros estudiosos do poeta. Texto no qual esperamos encontrar, depois de alguma controvérsia, a palavra final.

Ivan Teixeira, autor da longa introdução das Obras, não chega a acompanhar Vania Chaves no seu argumento nacionalista, mas não deixa de encontrar motivos humanistas e libertários ocultos na letra do poema. Tomando-o como metonímia da formação histórica do Brasil, afirma que O Uraguai tem dupla função: "mitificar os índios americanos, estimulando

o sentimento de piedade no leitor; e caracterizar criticamente o processo civilizatório dos europeus, baseado na destruição física e cultural dos povos dominados." (p. 77); "(...) com uma inequívoca intenção ideológica de denúncia" (p. 106). A finalidade do poema é, portanto, mais ampla: realizar, de forma indireta, a crítica do processo de colonização do europeu no Novo Mundo. Mas as indecisões do intérprete são tantas que ficamos sem saber se o poeta está mais para Las Casas ou para Darcy Ribeiro6.

Como é sabido, Basílio da Gama nascido em 1741 na vila de São José do Rio das Mortes, hoje Tiradentes, transfere-se para a Europa no começo de 1760, provavelmente antes de completar 19 anos. Depois disto, consta que tenha estado no Brasil por uma curta temporada, entre 1767 e 1768. Uma outra estada no Brasil, por volta de 1787, afirmada por al-guns, parece não ter confirmação. Portanto, concluise que viveu predominantemente na Europa até seu falecimento em 1795. Quanto à terra natal, não consta que lá tenha voltado desde que deixou Minas com destino ao Rio de Janeiro, após a morte do pai, em "tenra idade". Formado entre os jesuítas no Rio de Janeiro, é testemunha de sua expulsão em 1759, e supõe-se que completa sua formação, entre eles, em Roma, onde permanece de 1760 a 1767, tendo sido admitido na Arcádia Romana em 1763.

O pouco que se sabe de sua biografia, portanto, é apenas suficiente para se concluir que o poeta viveu muito pouco qualquer tipo de sociabilidade propriamente brasileira. Desde a "tenra idade" entre os jesuítas, corporação eminentemente internacional, e depois uma longa trajetória na corte portuguesa, construída através de habilidades cortesãs.

Além disso, há que se lembrar que o poeta publicou o Uraguai pouco depois de iniciar uma carreira ascendente na época de Pombal, período em que foi notório o esforço no sentido de reforçar a presença e o controle da Metrópole sobre o mundo colonial, inclusive no plano da cultura. O movimento político, econômico e cultural da época pombalina teve um claro sentido de tornar o Brasil mais português.

Hoje a historiografia da América portuguesa no século XVIII tem deixado cada vez mais evidente o escasso nacionalismo e mesmo nativismo dos homens de letras que estiveram envolvidos na Inconfidência Mineira. O grande7 Rodrigues Lapa prestou um enorme serviço ao desmontar algumas fantasias de nacionalismo poético na poesia dos árcades, a começar pela interpretação da famosa sátira, atribuída por ele a Gonzaga:

Nas Cartas chilenas não há, nem poderia haver sombra de nativismo. O ataque ao régulo que tiranizava a terra faz realmente pensar na afeição pela própria terra. Mas não é isso: as Cartas são sobretudo a entronização da idéia de justiça, para além de toda consideração patriótica8.

Se nas Cartas, escritas na terra, por um homem que vivia intensamente os problemas da terra, não parece haver nativismo, o que dizer do Uraguai, escrito bem antes por alguém tão longe da terra e tão comprometido com a política do Estado português?

A partir de qual exemplo, local ou internacional, sobre que base social, com quais artefatos ideológicos, construiria Basílio da Gama seu nacionalismo? Ou seria ele um precursor da revolução americana? Ou dos franceses insurrectos que, 20 anos depois da publicação do Uraguai, declararam que a reunião dos Estados Gerais se transformaria em Assembléia Nacional? Ou do romantismo alemão?

Resta talvez pensar na altivez do indígena que chamou a atenção de tantos comentadores e suscitou interpretações de proto-romantismo.

Como sempre, encontramos em Antonio Candido uma das mais elegantes e persuasivas interpretações do poema de Basílio da Gama em "A dois séculos d'O Uraguai", texto publicado em Vários escritos e parcialmente transcrito na edição de Ivan Teixeira, no segmento dedicado à fortuna crítica. E não é difícil notar que sua conclusão final está na base da interpretação de Ivan Teixeira que trata o poema como metonímia da formação histórica do Brasil.

Segundo Candido, uma das maiores virtudes de Basílio da Gama reside no fato de que

percebeu o diálogo das culturas (em choque na guerra guaranítica) do ângulo americano. Por isso identificou-se à realidade física da terra e do índio; e indo mais além dos intuitos ostensivos da campanha antijesuítica, transformou-os em significados capazes de levar à mentalidade dos homens cultos da Europa o peso específico do mundo natural, estraçalhado pela ambição colonizadora (p. 449).

A operação interpretativa que valida esta conclusão depende de uma divisão do poema em partes e na atribuição de valores distintos a cada uma delas. Isto é, aquilo que diz respeito à campanha antijesuítica, que sempre foi considerado central no poema, passa a ser visto como periférico e "esteticamente ruim"; daí o Canto Quinto, abarrotado de notas explicativas do próprio poeta, ser colocado estruturalmente fora do poema por Antonio Candido. Como se fosse um apêndice que serve apenas às conveniências ideológicas do autor, na busca de contribuir com a campanha contrária aos padres movida por Pombal.

E o verdadeiro eixo estrutural passa a ser encontrado nos episódios que se espalham do Canto Segundo até o Quarto, nos quais aparece de forma viva o encontro entre as culturas do Velho e do Novo Mundo; e o conflito que antepõe os líderes guaranis Cepé e Cacambo, representando a "razão natural", ao general português Gomes Freire de Andrade, representando "as conveniências da razão de Estado" (p. 444). Da conferência entre os líderes das duas partes em guerra derivaria a estrutura nuclear do poema, e já estaria delineada a posição de Basílio no sentido de uma maior simpatia pelos nativos do Novo Mundo, confirmada mais tarde pela descrição do caráter heróico dos índios na luta contra os invasores de suas terras.

"O Uraguai é belo e mal composto", arremata Candido, depois de demonstrar a variedade de eixos de ordenação do poema, que acabou por se mostrar nociva perturbando a harmonia pela má integração do material. Mas é belo, sobretudo, quando deixa de lado a verrina antijesuítica, para tratar do duro encontro das culturas, base da civilização brasileira. Com isso, O Uraguai, ao lado do Caramuru de Durão, passa a ser considerado um momento importante na tomada de consciência do Brasil pela literatura que lança as bases do indianismo (p. 445).

Como sempre, desde a Formação da literatura brasileira, Antonio Candido elabora seus juízos fundados numa preferência que quase sempre vira as costas para os aspectos de sociabilidade contidos na poesia neoclássica e barroca9. O Canto Um é exageradamente encomiástico e apresenta de forma naturalmente laudatória os heróis da contenda do lado europeu. O Canto Quinto é arte do vitupério em chave elevada, um painel dos males disseminados pela Companhia de Jesus por todo o mundo.

Mas é também boa poesia e fecha de maneira notável a peça, já que subtrai os episódios particulares da guerra guaranítica de seu quadro local e os enquadra no eixo da história universal. De forma movimentada e panorâmica, apresenta o combate que antepôs as monarquias absolutas, com seus reis investidos de poderes divinos, ao universalismo da monarquia católica em seus últimos estertores.

Com isso, desloca o foco de atenção do cenário da guerra guaranítica, no qual se processa o drama do encontro das culturas, para um contexto mais amplo, que acaba por obscurecer tanto a temática indianista quanto a notável descrição da natureza, vista como fator de identificação do poeta com da terra natal. O que leva Antonio Candido a qualificar a parte final de O Uraguai de "o importuno Canto V" (p. 446).

"Importuno" por que?

Talvez porque não se adeque ao esquema específico elaborado para a interpretação do poema, nem faça parte do campo da "verdadeira poesia" circunscrito pelas "operações do gosto" que caracterizam a visão de Antonio Candido.

A bela e altiva caracterização do nativo do Novo Mundo lida a posteriori, depois do indianismo romântico, realmente faz pensar n'O Uraguai como um precursor. E não há dúvida que alguns dos melhores momentos do poema são dedicados aos nativos, o que parece confirmar a idéia de que Basílio da Gama teria de fato tratado do conflito entre as culturas do ângulo americano, fazendo do indígena um emblema do porvir. Mas talvez seja proveitoso duvidar um pouco desta operação, pelo menos por dois bons motivos. Um interno e outro externo.

Boa parte da força dramática do poema está ancorada no confronto do nativo com o europeu, mas este confronto é apenas decorrência de outro maior entre europeus: das coroas ibéricas com a Companhia de Jesus. O fato do indígena ser apresentado de forma virtuosa pode ser visto por dois prismas. Do ponto de vista da guerra, a valorização do indígena só faz ressaltar a força dos exércitos comandados por Gomes Freire de Andrade que os derrotam; já do ponto de vista do confronto maior, quanto mais virtuoso é caracterizado o nativo, mais ímpio torna-se o jesuíta que o conduz à guerra e à destruição.

Por outro lado, do ponto de vista externo, há que se lembrar que a visão virtuosa do selvagem, antes de ser romântica e de servir a ideologias nacionais, teve uma longa história, dentro da qual podem ser lembrados os "canibais" de Montaigne, e até a própria tradição da qual os jesuítas foram caudatários. Foi ela, a tradição tomista, que postulou de forma muito clara que, independente da revelação da palavra divina, o homem é capaz de obrar o bem e viver de forma justa, o que conduziu a uma visão positiva dos nativos do Novo Mundo.

Com isso, abre-se a possibilidade de pensar a figura do nativo n'O Uraguai não na chave da visão do selvagem própria do século XIX, mas como continuidade de uma tradição mais antiga. E de pensar que sua valorização só faz elevar a estatura do português e rebaixar ao limite o jesuíta.

Se o Canto Quinto for visto não de forma excêntrica, não como um apêndice, percebe-se que ele tem a virtude de integrar o particular no universal, de dar conta simultaneamente das perspectivas local e cosmopolita; e, mais do que isso, de revelar o foco da elocução, o lugar de onde se fala: de Lisboa, a capital do império, e não de um anacrônico Brasil a ensaiar independência e identidade cultural.

* * *

Alguns reparos devem ser feitos à oportuna publicação das obras poéticas de Basílio da Gama realizada por Ivan Teixeira. Em primeiro lugar, a não inclusão dos escritos de Sérgio Buarque de Holanda, particularmente de "Arcádia heróica", entre os textos arrolados na "Fortuna crítica", por seu caráter altamente esclarecedor tanto do ponto vista histórico quanto estilístico. Em segundo lugar, o fato de ter deixado fora das Obras poéticas uma série de "descobertas recentes" - oito sonetos, duas décimas, uma glosa e uma paródia - de "autoria comprovada", boa parte exumada por Vania Pinheiro Chaves. Os critérios estabelecidos para a edição não justificam tal exclusão, e o leitor perde a oportunidade de uma visão mais ampla da poesia de Termindo Sipílio, para além do corpus previamente estabelecido por Joaquim Norberto e José Veríssimo para a edição da Garnier de 1920.

Ivan Teixeira apresenta uma série de argumentos que privilegiam a obra editada em vida pelo poeta, "a verdadeira e indiscutível obra de Basílio da Gama" (p. 171); as peças que "trazem, indubitavelmente, os traços literários de Basílio da Gama, pois foram impressas segundo sua vontade e sob seus cuidados" (p. 172). No entanto, cede à tradição fixada na edição de 1920, que inclui peças não publicadas em vida pelo autor. Se a edição Garnier é considerada "um trabalho defeituoso, com erros de toda espécie", por que não superá-la inclusive através da renovação de seu corpus? Por que deixar fora as descobertas mais recentes se são ditas pelo próprio Ivan Teixeira de autoria comprovada?

Quanto às considerações estilísticas presentes na longa introdução ao volume ressaltam algumas dúvidas. Uma, em particular, que diz respeito a uma característica do artesanato poético de Basílio da Gama que é motivo de muitos elogios da parte do intérprete: a brevidade de muitos períodos através dos quais se tecem os versos d'O Uraguai.

Por um lado, Ivan Teixeira considera inovadora esta característica, verdadeiro experimentalismo formal, que o leva a estabelecer uma relação entre O Uraguai e as Memórias sentimentais de João Miramar de Oswald de Andrade e, de forma um tanto anacrônica, intuir uma antecipação cubo-futurista nos versos de Termindo Sipílio, tudo isso contribuindo para o aspecto de atualidade do poema (pp. 30-34).

Mas, para surpresa do leitor, bem mais adiante, tratando de um conjunto de versos que apresentam uma característica bastante referencial, que escapam, portanto, da polivalência típica da poesia barroca, afirma que tais versos "pertencem a uma outra categoria do poético: valem pela concisão, clareza e precisão, propriedades típicas do espírito clássico" (p. 58).

Ainda um pouco mais adiante, outros versos, também marcadamente referenciais, são interpretados de outra maneira: "Esta particularidade consiste no uso intencional da frase curta, de brevidade superior à média da sintaxe global dos textos clássicos. Dos cinco versos citados, três possuem sentido completo, o que contraria a frase clássica propriamente dita, de ascendência ciceroniana, alongada por natureza. Tendem, ao contrário, para o estilo cortado do barroco senequista, diminuído por opção, como o dos manifestos oswaldianos" (p.67).

Afinal de contas, a brevidade dos períodos deve ser entendida como experimentalismo formal que antecipa tendências modernas, ou como propriedade do espírito clássico, ou ainda como resquício do estilo cortado - estudado por Morris Croll - que caracterizou a prosa anticiceroniana, dita barroca, do século XVII?

Este exemplo de indecisão interpretativa, assim como outros, confunde um pouco o leitor, mas não diminui o interesse por esta edição das Obras poéticas de Basílio da Gama, bastante bem cuidadas no que diz respeito ao preparo do texto, que renova o interesse por um dos melhores poetas da língua portuguesa do século XVIII. Edição que permite, mais uma vez, a confirmação do célebre vaticínio: "Serás lido Uraguai".


1 Apud Sérgio Buarque de Holanda, "A arcádia heróica" in Capítulos de literatura colonial. Organização e Introdução de Antonio Candido. São Paulo, Brasiliense, 1991; p. 128.
2 No códice da Arcádia Romana examinado por Sérgio Buarque de Holanda, Basílio da Gama aparece inscrito em 1766, com a indicação: "De Gama - Abe Giuseppe Basilio - Americano", de nome arcádico "Termindo". Ibid., p. 119.A notícia de um importante diploma que finalmente comprova a existência de uma filial da Arcádia Romana em Vila Rica, que por muitos era pensada apenas como a designação de uma corrente estética sem caráter institucional, é dada por Antonio Candido em "Ultramarinos" (Vários escritos, terceira edição. São Paulo, Duas Cidades, 1995) Neste diploma, Termindo Sipílio aparece indicando outro brasileiro para membro da Arcádia Romana, e nele aparece o dizer "Per la Fondazione della Colonia Oltremarina". O que comprova, segundo Candido, a existência da filial e confirma Basílio como promotor da referida fundação.
3 Sobre a "Ilha da imortalidade" cf. Baltasar Gracián, El Criticón (edição de Antonio Pietro). Barcelona, Planeta, 1992; pp. 555-572. [ Links ]
4 Sobre Gusmão, diz a autora: "Os fatos expostos permitem sustentar que Alexandre de Gusmão teve sempre os olhos postos na pátria, cujos interesses procurou defender (...). Seus principais objetivos foram a definição da maior área possível para o Brasil e o aumento da sua população". E mais adiante: "... Gusmão consolidou o esforço de seus compatriotas, contribuindo para a formação do futuro Estado brasileiro" (p. 464).
5 Sobre Basílio, diz a autora: "(...) ousou Basílio da Gama dar expressão poética aos desígnios brasileiros consubstanciados no tratado (...)" (p. 464). E mais adiante: "A brasilidade de O Uraguai consistiria, portanto, na formulação poética que deu à ideologia dos homens que criaram a nação brasileira, nela se instalando como classe política, econômica e culturalmente dominante, e que consigo levaram os modelos literários de seu lugar de origem, utilizando-os para impor técnicas e valores que eram só seus" (p. 465).
6 A resposta parece tender para o último pois, paradoxalmente, Las Casas não é citado, já Ribeiro e sua crítica do etnocentrismo expansionista europeu é lembrado mais de uma vez (p. 86, p. 92).
7 O adjetivo é de Antonio Candido em "Ultramarinos", op. cit., p. 222.
8Cf. Rodrigues Lapa, As "Cartas chilenas": um problema histórico e filológico. Rio de Janeiro, MEC/INL, 1958; p. 33. Também devem ser levados em conta os apontamentos de Maria Odila da Silva Dias, estudiosa da ilustração no mundo luso-brasileiro, que demonstram a forte preocupação da geração de brasileiros ilustrados do fim do século XVIII com a realidade social e com os entraves ao desenvolvimento da colônia, mas ressalta que, a despeito disso, "[A] definição de uma consciência nacional é fenômeno bem posterior e só há de refletir-se na literatura, no movimento romântico de meados do século passado". Cf. Maria Odila da Silva Dias, "Aspectos da ilustração no Brasil" in Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, vol. 278, jan/mar, 1968; p. 133.
9 Nas "operações do gosto" de Antonio Candido encontram-se sempre ásperas críticas aos aspectos de sociabilidade próprios da poesia setecentista, aqueles que giram em torno da devoção religiosa, da lealdade monárquica e do respeito à hierarquia, e quase sempre se transformam em torneios de elogios aos poderosos e de elogios mútuos no acanhado ambiente cultural da colônia. Mesmo no caso da poesia ilustrada, com seu projeto que apontava para "a necessidade de civilizar o Brasil por uma administração adequada", Antonio Candido, apesar de reconhecer a importância, não deixa de demonstrar suas reservas: "(...) só quando aparecem poetas capazes de superar a estrita preocupação ilustrada e comunicar no verso a beleza do mundo e a emoção dos seres, é que esta geração alcançará verdadeiramente a poesia, com Tomás Gonzaga, Basílio da Gama e Silva Alvarenga" (Formação da literatura brasileira, Belo Horizonte, Itatiaia, 1981; 1º vol., p. 113).

Revista de História - USP

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