sábado, 5 de junho de 2010

A ascensão do romance: estudos sobre Defoe, Richardson e Fielding


Orlando M. Ferreira
Departamento de História/USP


WATT, Ian. A ascensão do romance: estudos sobre Defoe, Richardson e Fielding. São Paulo, Editora Schwarcz, 1990.

A literatura em suas amplas relações com as ciências humanas possui variadas faces enquanto objeto de pesquisa. O olhar que as diferentes áreas das humanidades dirigem a ela se diferencia de acordo com os interesses específicos de cada disciplina.

Ian Watt1 tem por mérito nesta obra2 sua capacidade em dirigir um estudo atentando para o valor literário dos romances de Defoe, Richardson e Fielding, para isso se utilizando de análises da História Social3 e das Idéias, da época na qual os romances foram escritos (séc. XVIII) e das vertentes filosóficas que passam a orientar e a refletir um novo posicionamento do homem frente ao mundo e à sociedade na qual vivia.

O principal fato ao qual o autor se refere - e que passará a orientar toda a obra - é o advento do que ele denomina de "o individualismo moderno"4 ou "individualismo puritano"5, no seio da "classe média" londrina6 durante o século XVIII. Neste sentido Watt é profundamente influenciado pelas idéias de Max Weber.

Para conceituar a nova forma literária o autor dirige-se a um estudo das idéias filosóficas que surgiram a partir do século XVII, principalmente os desdobramentos da filosofia cartesiana em Locke, Hume e Hobbes. Segundo Watt tais idéias se identificam na criação do que denomina "realismo filosófico"7, cujo reflexo na literatura viria a constituir o "realismo formal"8: a própria "forma romance"9.

Transparece claramente na obra de Ian Watt um conflito, em nível literário, filosófico e social; entre concepções aristocráticas e burguesas. Por um lado temos uma visão que parece prestes a ser derrotada, relativa aos universais, ao genérico em detrimento do específico; por outro lado temos uma nova concepção de mundo, oriunda do desenvolvimento do capitalismo, da valorização da experiência individual e privada, do individualismo enquanto sede do conhecimento sensível, racional. Uma concepção, na literatura, é representada pelas formas clássicas, a outra pelo romance; ambas se opõem quase sempre de forma linear.

Sua análise para aqui. Não seria justo criticar o mérito da obra nesse sentido; o objeto que foi delimitado consiste especificamente no valor literário das obras estudadas, tomando-se para isso todo um contexto de época. Porém tal estudo me parece insuficiente para o historiador. Devemos fazer a História? Me agrada mais a segunda opção. Para a compreensão exata das obras faz-se necessária uma passagem a um contexto social e mental mais amplo.

Ao analisar o romance 'Clarissa' de Richardson, um ponto chamou a atenção de Watt10: a ênfase exagerada dada à morte da personagem-título. Quanto a isso comenta a forte presença do tema da morte na época: a existência de toda uma "literatura da morte"11, bem como uma extrema ritualização dos cultos funerários puritanos12. Porém, ao sondar o significado de tais cultos para os contemporâneos ele afirma que "tal ênfase se justificava por si mesma; e talvez só nos reste vê-la sob a mesma luz em que vemos boa parte da escultura barroca fúnebre - esquecer a banalidade de simbolismo e reter apenas o esmero da execução"13. Nesta perspectiva interpretativa, um tanto simplificada, creio que reside uma das principais falhas da obra de Ian Watt, pois ao se reter numa análise fortemente sociologisada, às "significações aparentes"14, foge por vezes à toda complexidade existente no interior das estruturas mentais que se acondicionam no social e lhe conferem sentido. A obra de Philippe Aries15 nos demonstra muito bem como interpretar tal ênfase dada aos temas macabros na literatura do século XVIII.

Para eleger seu objeto, Watt define as obras a seu ver estilisticamente boas, mais representativas do gênero; porém o historiador não pode proceder desta forma, segundo tais juízos de valor: - "Com raras exceções a ficção da segunda metade do século XVIII, embora possa ter algum interesse para o estudo da vida da época ou de várias tendências literárias efêmeras como o sentimentalismo ou o terror gótivo, possui pouco mérito intrínseco"16Ora; mesmo no estudo da Literatura em si, o 'sentimentalismo' e o 'terror gótico' tiveram desdobramentos importantes durante o século XIX e mesmo durante o século XX. Horace Walpole, o autor de 'O castelo de Otranto' -um clássico do gênero - afirma em seu prefácio à segunda edição de 1765, que pretende "combinar dois tipos de romance, o antigo e o moderno. Naquele tudo é imaginação e inverossímil; neste há sempre a pretensão, por vezes conseguida de copiar fielmente a natureza. Não há falta de imaginação; mas tem sido condenados os grandes recursos da fantasia, em favor de uma rigorosa obediência à vida quotidiana"17. Neste ponto Walpole polemiza claramente com a 'forma romance', com o "realismo formal"18 tal como foi conceituado por Watt.

Levando-se em conta que a primeira edição desta obra de Ian Watt data de 1957, não há porque exigir do autor procedimentos teórico-metodológicos que só posteriormente iriam se difundir19. Ademais, a própria abordagem do tema - levando-se em conta a época do estudo, e o caráter interdisciplinar da pesquisa, a forma como ela se desenvolveu: contestualizando os romances devidamente - me parece plenamente satisfatória.

Tal estudo afigura-se-me como um ponto de partida. A literatura é uma grande fonte para a compreensão das sensibilidades de uma época. Nela se reflete não só o que foi pensado e executado, mas também as frustrações dos projetos humanos. Além do real, porém parte constitutiva dele. Material ao mesmo tempo rico e prazeiroso para o estudo da História.

BIBLIOGRAFIA

ARIES, Philippe. O homem diante da morte. Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1982.
GOULEMOT, Jean Marie. As práticas literárias ou a publicidade do privado. In. Roger CHARTTER (org.) História da Vida Privada 3: da Renascença ao Século das Luzes. São Paulo, Editora Schwarcz, 1986.
WALPOLE, Horace. O castelo de Otranto. Lisboa, Editorial Estampa, 1978.
WATT, Ian. A ascensão do romance: estudos sobre Defoe, Richardson e Fielding. São Paulo, Editora Schwarcz, 1990.
WATT, Ian. The rise of the novel: studies in Defoe, Richardson and Fielding. London, Chatto & Windos, 1967. 1ª edição 1957.


1 Ian Watt: nascido em 1917, é professor da Universidade de Stanford desde 1964.
2 WATT, Ian. A ascensão do romance: estudos sobre Defoe, Richardson e Fielding.
3 Ibid., p. 11.
4 Ibid.
5 Ibid.
6 Ibid.
7 Ibid.
8 Ibid.
9 Ibid.
10 Ibid., p. 181-207.
11 Ibid., p. 188-189.
12 Ibid., p. 188-189.
13 Ibid pp. 189-190.
14 GOULEMOT, Jean Marie. As práticas literárias ou a publicidade do privado. In: CHARTIER, Roger (Org.) História da vida privada 3: da Renascença ao Século das Luzes, p. 392.
15 ARIES, Philippe. O homem diante da morte, vol.II.
16 WATT, Ian. Op. cit., p. 252.
17 WALPOLE, Horace. Prefácio do autor a segunda edição. In WALPOLE, Horace, O castelo de Otranto, p. 23. [ Links ]
18 WATT, Ian, op. cit. , p. 30-33.
19 WATT, Ian. The rise of the novel. 1ª ed. 1957.

Revista de História - USP

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