SOUZA, Candice Vidal e. 1997. A Pátria Geográfica. Sertão e Litoral no Pensamento Social Brasileiro. Goiânia: Editora UFG. 171 pp.
Fernanda Arêas Peixoto
Profª de Antropologia, Unesp/Araraquara
Para um grande número de intérpretes do Brasil, o sertão representava espaço vazio, imensidão desértica a ser conquistada. Se essa porção incógnita do país constituía fonte permanente de preocupações intelectuais e políticas, já que trazia à tona o dilema da formação do território e da nação, carregava também consigo o selo da brasilidade. O ambiente sertanejo, onde seriam produzidos os "brasileiros originais", parecia abrigar o corpo e a alma da pátria. Cobiçado, explorado e temido, o sertão foi, antes de mais nada, imagem fabricada, invenção dos homens cultos que, das varandas costeiras, olhavam para o interior. E é disso que trata o livro de Candice Vidal e Souza: das versões e visões construídas sobre o espaço interior do país.
A partir da seleção de diferentes interpretações do Brasil que ancoraram a reflexão sobre a singularidade nacional na categoria de espaço, a autora persegue o imaginário geográfico desenhado nos discursos sobre a construção da nação e a identidade brasileira. Das representações nativas da nacionalidade, mostra ela, emerge a pátria geográfica, invenção discursiva daqueles para os quais a problemática da nacionalidade deveria ser equacionada espacialmente. A unidade precária do país, composto por "porções partidas"; a "nação incompleta", descontínua territorialmente; o desequilíbrio e a heterogeneidade do espaço; e a oposição sertão/litoral, constituem tópicos recorrentes nas célebres narrativas de Euclides da Cunha, Cassiano Ricardo, Oliveira Vianna e Nelson Werneck Sodré, por exemplo, e nas menos conhecidas reflexões de Victor Vianna, Mário Travassos, Nestor Duarte e outros.
A heterogeneidade de obras e autores não intimida a analista que, sob os "olhares distintos", busca "as visões convergentes", as similaridades existentes entre os diversos "retratos do sertão". Assim, convivem lado a lado no texto a análise do movimento bandeirante empreendida por Cassiano Ricardo, em 1940, e as formulações de Oliveira Vianna e Victor Vianna sobre o espaço rural brasileiro e as bandeiras, ambas da década de 20. Os impasses colocados pela sociabilidade política própria do interior, marcada pelos espírito privatista e localista que desafiam a centralidade do Estado, aproximam os escritos de Nelson Werneck Sodré (Oeste, 1941), de Nestor Duarte (A Ordem Privada e a Organização Política Nacional, 1939), de Raymundo Faoro (Os Donos do Poder, 1958), do próprio Oliveira Vianna e de alguns outros. Euclides da Cunha, Capistrano de Abreu, Elísio de Carvalho e Mário Travassos avizinham-se no mapeamento que empreendem do universo sertanejo e no projeto de fazer do sertão "lugar perto", conhecido e passível de transformação. A narração da formação da fronteira, desdobramento do mesmo imaginário que opõe sertão e litoral, alinhava as teses de J.F. Norman, Vianna Moog, Roy Nash, Alberto Torres etc. Nas palavras da autora, o estudo faz notar "a insistência com que a temática do espaço nacional aparece na reflexão sobre fundações e sentidos de nacionalidade [...]. Fala-se de lugares nomeados sertão e litoral para informar sobre a realidade e os sonhos que situam a nação brasileira em sua particularidade" (:156).
Não há dúvida que o ensaio de Candice Vidal e Souza, originalmente dissertação de mestrado, percorre o pensamento social brasileiro de um ângulo original, o das idéias geográficas, e o faz combinando paixão interpretativa à competência narrativa. As discussões acerca da formação da nacionalidade ganham novas inflexões se observadas do prisma da conquista espacial e das políticas territoriais, mostram estudos recentes aos quais o de Candice vem se somar (lembro, a título de exemplo, o volume, também de 1997, O Corpo da Pátria, Imaginação Geográfica e a Política Externa no Brasil - 1808/1912, de Demétrio Magnoli, Unesp/Moderna).
A quantidade de questões que o livro levanta - mais um de seus méritos - permitiria enfrentá-lo de diferentes pontos de vista. Mas, nos limites de uma resenha, concentrarei este comentário no que considero o problema de fundo da interpretação: o do foco analítico. Vejamos. Já na Introdução, a autora explicita a sua visada crítica: trata-se de exercitar uma perspectiva etnográfica na abordagem dos discursos e não de realizar uma história das idéias. Nesse sentido, a análise descarta um olhar de rigor historiográfico sobre esses autores, ou os debates internos ao campo histórico. Não se trata tampouco de discutir com os intérpretes as suas teses. Estes são, antes de mais nada, informantes, nativos falando do Brasil. E diante das narrativas cultas sobre a nacionalidade que produzem, "busca-se tão-somente anotar e relacionar trechos das histórias relatadas, ou seja, de que acontecimentos estão povoadas as narrativas e por qual lógica os autores organizam os fatos" (:20).
Os diversos fragmentos de textos escolhidos - a partir de um critério de seleção extremamente vago, diga-se de passagem - compõem, ao fim da análise, uma única narrativa sobre o país, que o singular empregado durante todo o texto permite flagrar: "o escritor" afirma; "o olhar que narra"; "o sujeito classificador"; o "viajante" etc. Ora, se colocar a autoria em suspeição não é novidade (vide, por exemplo, a proposta arqueológica de Foucault, estranhamente não mencionada), não se encontra de modo nenhum descartada no trabalho de Edward Said sobre o orientalismo, uma das principais inspirações da análise de Candice. Se a autora rejeita as "semantizações fechadas", como ela mesma diz, e não está interessada nos contextos históricos, talvez pudesse ter levado a sério o paradigma lévi-straussiano, assumindo que se trata de construir um mito (seu) a partir da manipulação de "materiais míticos" de diversas procedências, e de procurar desvendar os processos de transformação que permitem passar de um mito a outro. Nesse caso, não haveria por que indicar autores e obras, mas de afirmar o singular com todas as letras. Ou, então, poderia ter seguido as sugestões de Said até o fim, que não apenas parte das obras, como empreende detalhadas contextualizações históricas para montar a trama discursiva sobre o Oriente.
Os titubeios da autora em relação ao foco escolhido são responsáveis por desequilíbrios na análise que se revelam, por exemplo, no tratamento extremamente desigual dado aos autores. Em alguns casos, nota-se um esforço por situar e analisar mais pormenorizadamente uma obra (apesar das expressas intenções contrárias); em outros, ao inverso, trata-se de menções rápidas a trabalhos importantes ou de referências ligeiras em notas de rodapé. Além disso, pergunto-me se a excessiva preocupação com as figuras de linguagem não acaba desviando a análise de certas problemáticas clássicas, mencionadas de raspão, mas nunca enfrentadas. Assim, a controvérsia sobre os "dois Brasis", que mobiliza adeptos e críticos em diversos momentos do debate intelectual sobre o país, parece se reduzir a um mero jogo discursivo que opõe sertão e litoral. Do mesmo modo, as explicações sobre algumas posturas políticas e intervencionistas deslizam do plano sociológico para o terreno da pura subjetividade, e o engajamento - que aliás possui sentidos inteiramente diversos no século XIX e nas décadas de 30 ou 60 -, explicado, ora pelo inconformismo, ora pela insatisfação ou pelas intenções do narrador.
A indecisão analítica que faz a interpretação pender, em linhas gerais, entre uma inspiração mais estruturalista, não levada a termo, e outra mais afeita aos conteúdos e contextos, tampouco assumida, tenta encontrar equilíbrio e justificativa em uma espécie de colagem teórica, em que se juntam pedaços das sugestões de Edward Said, Hayden White, Benedict Anderson, Lévi-Strauss, Almir de Andrade e outros (curiosamente, Clifford Geertz, referência importante quando o assunto é etnografia do pensamento, não engrossa o rol de autores citados). Desse mosaico de enfoques, algo inusitado, emerge a perspectiva etnográfica anunciada. Etnografia que, contrariando os ensinamentos clássicos da disciplina, retira os informantes de suas "tribos" de origem, mas não os coloca em relação, tal como propõe Lévi-Strauss.
Ao lidar com autores e obras - alguns inclusive já bastante estudados - a partir de uma seleta de imagens - em que são cortados os nexos das obras com os seus contextos de produção, das obras entre si e, no limite, das imagens com a própria obra em questão -, a análise corre o risco de aplainar diálogos e controvérsias, os argumentos viram metáforas, os debates transformam-se em representações.
Ao levantar esses problemas não pretendo proceder a uma condenação do método (aliás, não há, como sabemos, métodos bons ou ruins em si mesmos), mas de chamar a atenção para os limites da escolha feita, ou de refletir sobre a sua rentabilidade para o material em questão.
Revista Mana
Fernanda Arêas Peixoto
Profª de Antropologia, Unesp/Araraquara
Para um grande número de intérpretes do Brasil, o sertão representava espaço vazio, imensidão desértica a ser conquistada. Se essa porção incógnita do país constituía fonte permanente de preocupações intelectuais e políticas, já que trazia à tona o dilema da formação do território e da nação, carregava também consigo o selo da brasilidade. O ambiente sertanejo, onde seriam produzidos os "brasileiros originais", parecia abrigar o corpo e a alma da pátria. Cobiçado, explorado e temido, o sertão foi, antes de mais nada, imagem fabricada, invenção dos homens cultos que, das varandas costeiras, olhavam para o interior. E é disso que trata o livro de Candice Vidal e Souza: das versões e visões construídas sobre o espaço interior do país.
A partir da seleção de diferentes interpretações do Brasil que ancoraram a reflexão sobre a singularidade nacional na categoria de espaço, a autora persegue o imaginário geográfico desenhado nos discursos sobre a construção da nação e a identidade brasileira. Das representações nativas da nacionalidade, mostra ela, emerge a pátria geográfica, invenção discursiva daqueles para os quais a problemática da nacionalidade deveria ser equacionada espacialmente. A unidade precária do país, composto por "porções partidas"; a "nação incompleta", descontínua territorialmente; o desequilíbrio e a heterogeneidade do espaço; e a oposição sertão/litoral, constituem tópicos recorrentes nas célebres narrativas de Euclides da Cunha, Cassiano Ricardo, Oliveira Vianna e Nelson Werneck Sodré, por exemplo, e nas menos conhecidas reflexões de Victor Vianna, Mário Travassos, Nestor Duarte e outros.
A heterogeneidade de obras e autores não intimida a analista que, sob os "olhares distintos", busca "as visões convergentes", as similaridades existentes entre os diversos "retratos do sertão". Assim, convivem lado a lado no texto a análise do movimento bandeirante empreendida por Cassiano Ricardo, em 1940, e as formulações de Oliveira Vianna e Victor Vianna sobre o espaço rural brasileiro e as bandeiras, ambas da década de 20. Os impasses colocados pela sociabilidade política própria do interior, marcada pelos espírito privatista e localista que desafiam a centralidade do Estado, aproximam os escritos de Nelson Werneck Sodré (Oeste, 1941), de Nestor Duarte (A Ordem Privada e a Organização Política Nacional, 1939), de Raymundo Faoro (Os Donos do Poder, 1958), do próprio Oliveira Vianna e de alguns outros. Euclides da Cunha, Capistrano de Abreu, Elísio de Carvalho e Mário Travassos avizinham-se no mapeamento que empreendem do universo sertanejo e no projeto de fazer do sertão "lugar perto", conhecido e passível de transformação. A narração da formação da fronteira, desdobramento do mesmo imaginário que opõe sertão e litoral, alinhava as teses de J.F. Norman, Vianna Moog, Roy Nash, Alberto Torres etc. Nas palavras da autora, o estudo faz notar "a insistência com que a temática do espaço nacional aparece na reflexão sobre fundações e sentidos de nacionalidade [...]. Fala-se de lugares nomeados sertão e litoral para informar sobre a realidade e os sonhos que situam a nação brasileira em sua particularidade" (:156).
Não há dúvida que o ensaio de Candice Vidal e Souza, originalmente dissertação de mestrado, percorre o pensamento social brasileiro de um ângulo original, o das idéias geográficas, e o faz combinando paixão interpretativa à competência narrativa. As discussões acerca da formação da nacionalidade ganham novas inflexões se observadas do prisma da conquista espacial e das políticas territoriais, mostram estudos recentes aos quais o de Candice vem se somar (lembro, a título de exemplo, o volume, também de 1997, O Corpo da Pátria, Imaginação Geográfica e a Política Externa no Brasil - 1808/1912, de Demétrio Magnoli, Unesp/Moderna).
A quantidade de questões que o livro levanta - mais um de seus méritos - permitiria enfrentá-lo de diferentes pontos de vista. Mas, nos limites de uma resenha, concentrarei este comentário no que considero o problema de fundo da interpretação: o do foco analítico. Vejamos. Já na Introdução, a autora explicita a sua visada crítica: trata-se de exercitar uma perspectiva etnográfica na abordagem dos discursos e não de realizar uma história das idéias. Nesse sentido, a análise descarta um olhar de rigor historiográfico sobre esses autores, ou os debates internos ao campo histórico. Não se trata tampouco de discutir com os intérpretes as suas teses. Estes são, antes de mais nada, informantes, nativos falando do Brasil. E diante das narrativas cultas sobre a nacionalidade que produzem, "busca-se tão-somente anotar e relacionar trechos das histórias relatadas, ou seja, de que acontecimentos estão povoadas as narrativas e por qual lógica os autores organizam os fatos" (:20).
Os diversos fragmentos de textos escolhidos - a partir de um critério de seleção extremamente vago, diga-se de passagem - compõem, ao fim da análise, uma única narrativa sobre o país, que o singular empregado durante todo o texto permite flagrar: "o escritor" afirma; "o olhar que narra"; "o sujeito classificador"; o "viajante" etc. Ora, se colocar a autoria em suspeição não é novidade (vide, por exemplo, a proposta arqueológica de Foucault, estranhamente não mencionada), não se encontra de modo nenhum descartada no trabalho de Edward Said sobre o orientalismo, uma das principais inspirações da análise de Candice. Se a autora rejeita as "semantizações fechadas", como ela mesma diz, e não está interessada nos contextos históricos, talvez pudesse ter levado a sério o paradigma lévi-straussiano, assumindo que se trata de construir um mito (seu) a partir da manipulação de "materiais míticos" de diversas procedências, e de procurar desvendar os processos de transformação que permitem passar de um mito a outro. Nesse caso, não haveria por que indicar autores e obras, mas de afirmar o singular com todas as letras. Ou, então, poderia ter seguido as sugestões de Said até o fim, que não apenas parte das obras, como empreende detalhadas contextualizações históricas para montar a trama discursiva sobre o Oriente.
Os titubeios da autora em relação ao foco escolhido são responsáveis por desequilíbrios na análise que se revelam, por exemplo, no tratamento extremamente desigual dado aos autores. Em alguns casos, nota-se um esforço por situar e analisar mais pormenorizadamente uma obra (apesar das expressas intenções contrárias); em outros, ao inverso, trata-se de menções rápidas a trabalhos importantes ou de referências ligeiras em notas de rodapé. Além disso, pergunto-me se a excessiva preocupação com as figuras de linguagem não acaba desviando a análise de certas problemáticas clássicas, mencionadas de raspão, mas nunca enfrentadas. Assim, a controvérsia sobre os "dois Brasis", que mobiliza adeptos e críticos em diversos momentos do debate intelectual sobre o país, parece se reduzir a um mero jogo discursivo que opõe sertão e litoral. Do mesmo modo, as explicações sobre algumas posturas políticas e intervencionistas deslizam do plano sociológico para o terreno da pura subjetividade, e o engajamento - que aliás possui sentidos inteiramente diversos no século XIX e nas décadas de 30 ou 60 -, explicado, ora pelo inconformismo, ora pela insatisfação ou pelas intenções do narrador.
A indecisão analítica que faz a interpretação pender, em linhas gerais, entre uma inspiração mais estruturalista, não levada a termo, e outra mais afeita aos conteúdos e contextos, tampouco assumida, tenta encontrar equilíbrio e justificativa em uma espécie de colagem teórica, em que se juntam pedaços das sugestões de Edward Said, Hayden White, Benedict Anderson, Lévi-Strauss, Almir de Andrade e outros (curiosamente, Clifford Geertz, referência importante quando o assunto é etnografia do pensamento, não engrossa o rol de autores citados). Desse mosaico de enfoques, algo inusitado, emerge a perspectiva etnográfica anunciada. Etnografia que, contrariando os ensinamentos clássicos da disciplina, retira os informantes de suas "tribos" de origem, mas não os coloca em relação, tal como propõe Lévi-Strauss.
Ao lidar com autores e obras - alguns inclusive já bastante estudados - a partir de uma seleta de imagens - em que são cortados os nexos das obras com os seus contextos de produção, das obras entre si e, no limite, das imagens com a própria obra em questão -, a análise corre o risco de aplainar diálogos e controvérsias, os argumentos viram metáforas, os debates transformam-se em representações.
Ao levantar esses problemas não pretendo proceder a uma condenação do método (aliás, não há, como sabemos, métodos bons ou ruins em si mesmos), mas de chamar a atenção para os limites da escolha feita, ou de refletir sobre a sua rentabilidade para o material em questão.
Revista Mana
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