quarta-feira, 30 de junho de 2010

O Enigma de Os Sertões


ABREU, Regina. 1998. O Enigma de Os Sertões. Rio de Janeiro: Funarte/Rocco. 410 pp.

Candice Vidal e Souza
Doutoranda, PPGAS-MN-UFRJ


A reputação de Os Sertões como um clássico nacional ao longo do século XX e a consagração de Euclides da Cunha como autor de um dos maiores retratos da nacionalidade estão no centro da investigação de Regina Abreu. Na corrente de revisitações e inovações na pesquisa sobre os acontecimentos em torno da comunidade de Canudos, esta versão da tese de doutoramento, defendida em 1997 no PPGAS/MN/UFRJ, é publicada em boa hora, atestando que os eventos ocorridos há cem anos e suas interpretações constituem ainda desafios intelectuais contemporâneos. O trabalho de Abreu acerta ao escolher uma leitura de Os Sertões que privilegia sua dimensão de narrativa da nacionalidade, pois é em sua dimensão de peça explicadora da brasilidade que reside seu desconcertante prestígio e sua perenidade na memória nacional.

O primeiro capítulo, "O Livro `Número Um'", recupera uma ocasião recente de reapresentação das qualidades de Os Sertões na estante dos clássicos representativos da cultura brasileira. Na enquete feita pela revista Veja em 1994, entre quinze prestigiados intelectuais, a obra de Euclides da Cunha foi a que mais recebeu indicações. A autora reconhece nesse resultado um sintoma da eficácia das inúmeras ações consagradoras que construíram, desde sua primeira edição, um lugar para a obra e seu autor no sacrário da nação. Abreu sugere que a longevidade do valor simbólico de Os Sertões seria uma propriedade dos textos que respondem a demandas sociais, e que são capazes de redimensionar seu horizonte original de significação. A gênese de um clássico nacional é, pois, a questão teórica de fundo para pensar Os Sertões. Para fazê-lo, a autora recorre ao modelo construído por Bourdieu como apoio para elucidar os mecanismos institucionais de produção dos clássicos e identificar os agentes de consagração e as estratégias empregadas. O trabalho cumpre esse roteiro ao indagar sobre os antecedentes da obra e, em seguida, dedicar-se a própria criação do texto euclidiano, sua difusão e glorificação entre os letrados nacionais.

O capítulo seguinte, "Espaço dos Possíveis", situa Euclides da Cunha nas relações familiares que o envolviam e na sociedade imperial onde o futuro escritor encaminhou sua trajetória escolar e formou seus valores pessoais. Abreu apresenta, assim, "os caminhos possíveis e as perspectivas concretas" colocados diante do jovem nascido em 1866. A autora acrescenta informações sobre as condições do campo intelectual na segunda metade do século XIX, apresentando as trajetórias de José de Alencar e Machado de Assis como contraste face àquela que se desenhava para Euclides da Cunha. Nesse panorama, há apenas um equívoco, que, se auxilia a traçar o perfil conservador da família de José de Alencar, não corresponde aos fatos da história cearense. Ao contrário do que se afirma (:55), a avó paterna de Alencar, D. Bárbara, foi partidária dos revolucionários de 1817.

O capítulo 3, "Domínio das Opções", trata das alternativas efetivamente seguidas por Euclides da Cunha, ressaltando os significados de uma carreira militar no contexto da formação das elites imperiais, uma vez que escolheu cursar engenharia na Escola Militar. Desse período, destaca-se o episódio de insubordinação do cadete diante de seus comandantes, que o levou a ser expulso daquela instituição e a seguir a carreira jornalística. A colaboração com o jornal Província de São Paulo (O Estado de São Paulo depois de 1889) permitiu a ele expressar suas idéias republicanas e, mais tarde, o enviaria ao campo de batalha nos sertões baianos. Nesse momento, como enfatiza a autora, as esperanças políticas de Euclides da Cunha se concentravam em seu trabalho de engenheiro. A tarefa modernizadora que cabia aos engenheiros de seu tempo representava igualmente a nova ordem baseada na competência e no mérito que se deveria instalar no cenário republicano para que a nação pudesse ser refeita.

O seu duplo ofício de engenheiro e jornalista diante da guerra em Canudos é o tema do interessante quarto capítulo, que acompanha "Um Cientista no Front". Os primeiros registros da opinião euclidiana sobre Canudos foram publicados em primeira página de O Estado de S. Paulo, sob o título de "A Nossa Vendéia", artigo inaugural de 14 de março de 1897, que se seguiu à derrota da terceira expedição contra Canudos, comandada por Moreira César. No segundo texto - publicado em 17 de julho de 1897 (:108) ou 18 de julho de 1897 (:116) - o autor trata das "dificuldades encontradas pelo Exército brasileiro para pôr fim ao conflito de Canudos" (:116). Como bem percebe a autora, esses artigos esclarecem as posições de Euclides da Cunha antes da escrita de Os Sertões, quando a autoridade do comentarista era reforçada por seus conhecimentos militares. Estão aqui, sob o olhar distanciado do militar cientista, as primeiras observações sobre o sertão e os sertanejos.

Na função de correspondente de guerra, Euclides da Cunha empreende a viagem rumo aos sertões. A experiência do conflito e o conhecimento direto do cenário físico e social em que ele se produzia funcionou como uma autenticação tanto do texto jornalístico quanto da reflexão antropológica de Os Sertões. Regina Abreu é hábil ao explorar os significados, inclusive metafóricos, dessa viagem. O bom uso de trechos do "diário de uma expedição", escrito entre 7 de agosto e 3 de outubro de 1897, demonstra ao leitor que o autor realizou uma travessia particular entre dois mundos, entre duas formas de pensar o sertão e sua gente: "a viagem vai aos poucos humanizando o articulista de 'A Nossa Vendéia', obsedado pela adesão ideológica à causa da República" (:128). Daí porque "a eloqüência desse primeiro olhar constituiria a matéria bruta para o futuro livro" (:135).

No quinto capítulo, "Sertões no Plural", Abreu registra outros testemunhos da guerra, bem como interpretações de autores que não presenciaram o conflito, permitindo ao leitor perceber a situação do texto euclidiano entre os relatos de análise da guerra. Mais do que isso, permite apreender, sobretudo, o campo literário em que viria a circular Os Sertões e a aproximação de Euclides da Cunha a uma tradição de escrita sobre o sertão. Abreu inclui o autor entre os "escritores sertanejos", definidos como "escritores nascidos no interior, em diferentes províncias e regiões do país, em oposição àqueles que nasceram nas principais cidades, especialmente na capital federal" (:176), com produção que privilegiava o universo sertanejo em oposição à realidade urbana. A autora explora a noção de campo literário para compreender o esforço de ascensão desse grupo em um mercado literário de fraca autonomia. A preferência temática é compreendida como estratégia, na medida em que "as histórias e lendas `sertanejas'" foram percebidas como um capital diferencial no mundo das letras (:180).

Abreu acrescenta, ainda, que seriam amplos os significados da categoria sertão nessa literatura, e que Os Sertões teria contribuído decisivamente para uma estabilização semântica da categoria, quando "sertanejo e sertão passaram a ser usados para se referir a uma região geográfica específica, região árida e desértica, como a que Euclides pisou como correspondente de guerra" (:193). Essa estabilização permanece, contudo, duvidosa, uma vez que este uso não corresponde à totalidade semântica da palavra, sendo enganoso supor uma fixação da referência geográfica da categoria. Sertão, antes e depois de Euclides da Cunha, é uma categoria polissêmica, empregada também na designação de espaços físicos nem áridos nem desérticos (os cerrados mineiros e goianos, as campinas do meio-norte, por exemplo), que só podem ser assim descritos no sentido da vastidão, da liberdade de movimento e do rareamento das povoações - sentidos tão freqüentes em narrativas que tematizam sertões euclidianos e não-euclidianos.

O sexto capítulo, "Um Engenheiro Faz Literatura", trata da recepção do livro escrito em São José do Rio Pardo - enquanto seu autor trabalhava na reconstrução de uma ponte - e publicado em 1902. A autora concentra-se nas críticas dos escritores José Veríssimo, Araripe Júnior e Sílvio Romero, que seriam os primeiros responsáveis pela consagração de Os Sertões. Esse julgamento da obra euclidiana fortalecia a tarefa crítica e instituía a opinião autorizada como mecanismo adicional de reconhecimento de um escritor; reforçava igualmente a literatura regionalista e sertaneja no campo das disputas intelectuais do período. Euclides da Cunha passava a ser um escritor requisitado e esgotavam-se as edições de seu livro. O prestígio obtido levou-o ao Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e à Academia Brasileira de Letras, dois momentos de glória detalhados por Abreu.

Em "O Ideal Bandeirante", a autora destaca a produção posterior a Os Sertões, incluindo seu valioso epistolário. Nesse capítulo, vemos o autor aderir a uma representação territorial da nação, tentando fazer do ideal bandeirante uma missão do intelectual nacional. Com a morte do escritor em 1909, inicia-se outra fase da fabricação de sua notoriedade. Como observa Abreu "é com Euclides da Cunha que tem início o culto do escritor como mártir nacional, um culto organizado e de longa duração" (:281), no qual o relato biográfico passa a compor a própria obra euclidiana, reforçando sua aura excepcional.

O oitavo capítulo dedica-se às iniciativas de culto à memória de Euclides da Cunha e às inúmeras apropriações de sua obra, que produzem o que Abreu denomina "A Santificação do Escritor". Com a absolvição de seu assassino, admiradores do escritor fundam o Grêmio Euclides da Cunha. Em 1918, intelectuais paulistas aderem ao movimento euclidiano. No entanto, desde 1912, a cidade paulista de São José do Rio Pardo instituiu, por iniciativa de intelectuais regionais, o culto a Euclides da Cunha com atividades como as Semanas e Maratonas Euclidianas. Abreu apresenta uma etnografia desse euclidianismo riopardense, cujos dados impressionam pelo que revelam do circuito de produção e reprodução de um saber sobre Euclides da Cunha, nesse campo intelectual de especialistas não-acadêmicos. Outra preocupação dessa seção é mostrar o papel do Estado Novo na consagração de Os Sertões e de seu autor. É ressaltada a apropriação que Cassiano Ricardo faz das idéias euclidianas, em especial a concepção de nacionalidade e território, em Marcha para Oeste. Não obstante, o leitor conhecedor de Ricardo sentirá falta de uma compreensão mais ampla de sua concepção de sertão, associada por Abreu exclusivamente à ruralidade.

A autora conclui seu trabalho com o capítulo que sugere ser Os Sertões "Um Clássico para Pensar o Brasil". Atenta às leituras por vezes contraditórias de Euclides da Cunha por parte de seus consagradores, Abreu isola os valores fundamentais por elas retidos. Ao fim dessa extensa pesquisa, pode-se afirmar que a tarefa de desnaturalização da noção de "clássico" - no caso, a de "clássico nacional" - foi plenamente cumprida.

Revista Mana

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