sábado, 19 de junho de 2010

Myths and Memories of the Nation


João Paulo G. Pimenta
Mestre e doutorando em História-USP


SMITH, Anthony D. Myths and Memories of the Nation. New York, Oxford University Press, 1999, 288 p.

Fenômeno histórico de abrangência mundial e inscrito na longa duração, o problema nacional tem sido, pelo menos nos últimos cinqüenta anos, contemplado pelas preocupações de uma vasta gama de especialistas, que inclui historiadores, sociólogos, atropólogos, filósofos, geógrafos e psicólogos. Da extrema diversidade de abordagens investigativas propostas – concretizadas em enfoques genéricos, estudos de caso relativamente restritos ou estudos comparativos, todos às voltas com a permanente tensão entre geral e particular – resulta um conjunto nem sempre fácil de ser compreendido enquanto tal, o que por vezes induz à estagnação conceitual e à dificuldade de se propor categorias teóricas adequadas a realidades históricas precisas. Esta diversidade, que indica a complexidade inerente ao tema, parece desencorajar os trabalhos essencialmente voltados à discussão conceitual, do que resulta estes serem incômodamente escassos.

É justamente neste ponto que a obra de Anthony D. Smith configura-se singular. Sociólogo de formação, professor do European Institute da London School of Economics, Smith tem se dedicado ao estabelecimento de tipologias e categorias teóricas para o tratamento do problema do nacionalismo e, por conseguinte, da nação. Já o fizera anteriormente em The Ethnic Revival in the Modern World (Cambridge, 1981), The Ethnic Origins of Nations (Oxford, 1986), e sobretudo em Theories of Nationalism (London e New York, 1971), sua obra mais conhecida, mas é em Myths and Memories of the Nation, uma coletânea de artigos anteriormente publicados em revistas especializadas ao longo dos anos noventa, que suas posições conhecem as mais cristalizadas formulações.

A primeira grande peculiaridade da obra de Smith, presente em Myths and Memories, reside no fato de que, nela, tudo o que é exposto e discutido parte de claras definições de nacionalismo ("an ideological movement for attaining and maintaining identity, unity and autonomy of a social group some of whose members deem it to constitute an actual or potential nation", p.18) e de nação ("a named human population with shared myths and memories occupying an historic territory or homeland, and possessing a common public culture, a single unified economy and common legal rights and duties", cf.p.259-260). Esta é uma postura metodológica bem mais arrojada daquela que o próprio autor demonstrara antes em Theories of Nationalism, e bastante distinta da preferida pelos historiadores (como Eric Hobsbawm e Benedict Anderson, para citarmos apenas dois dos mais importantes estudiosos da questão). Estes, estrategicamente, evitam de antemão definições precisas e, ao adotar formulações preliminares vagas, procuram conceitos construídos a partir da própria historicidade do fenômeno nacional em suas variáveis.

O distanciamento em relação à atitude cautelosa corrente na historiografia torna a proposta de Smith ambiciosa: tendo como suporte uma extensa crítica da produção intelectual voltada para o problema nacional, propõe um novo modelo teórico de interpretação do nacionalismo. Trata-se de considerar mitos, memórias, tradições e símbolos herdados do passado (portanto, elementos históricos e culturais) e apropriados por uma determinada comunidade social como o substrato a partir do qual se constroem identidades nacionais modernas, num processo que acarreta a constituição real da própria nação. Esta alternativa, denominada pelo autor de "etno-simbólica", implica uma crítica frontal ao conhecido axioma (adotado por Hobsbawm e Ernest Gellner, dentre outros) de que as nações e nacionalismos são fenômenos essencialmente modernos, posteriores à formação dos Estados nacionais pós-revoluções burguesas do século XVIII, o que implica a assertiva de que nação e identidade nacional não são questões que se colocam anteriormente à existência dos Estados modernos. Para Smith, pelo contrário, se os mitos, memórias e tradições construídos, apropriados e reiventados por uma comunidade são elementos centrais de sua ascensão à condição de nação, é no próprio passado – muitas vezes um passado antigo, medieval, pré-moderno – que se encontram nações e identidades nacionais determinantes da configuração daquelas outras, essencialmente modernas. As portas que se fecham para uma única equação envolvendo nacionalismo, Estado, nação e identidade nacional, abrem-se para a questão da ancestralidade destes fenômenos.

Na primeira das duas partes que o constituem (precedidas por uma introdução), Myths and Memories apresenta artigos mais diretamente voltados para estes e outros problemas de teoria e método: além daquele que talvez possa ser considerado como um dos pontos altos da coletânea (o capítulo 3, uma discussão sobre a modernidade do fenômeno identidade nacional, mas amparados em nações e identidades anteriores presentes nos mundos Antigo e Medieval), há um balanço crítico do estudo de nação e nacionalismo empreendido por historiadores dos séculos XIX e XX (capítulo 1); uma análise da importância dos mitos de origem na formação de nações e identidades nacionais modernas a partir dos casos de Inglaterra, França, Grécia, Turquia e Israel (capítulo 2), questão retomada sob o prisma da apropriação de idéias de "eleição" e "desígnio" por nacionalismos modernos (capítulo 4); e um estudo do papel dos territórios como integrantes fundamentais do arcabouço histórico-cultural de grupos nacionais (capítulo 5).

Na segunda parte do livro, os estudos possuem um caráter mais empírico, com ênfase em temáticas contemporâneas: os debates acerca do nacionalismo, tomado pelo autor como um tipo de "arqueologia política" por meio da qual os nacionalistas (segundo ele, basicamente membros de intelligentsias) voltam-se para o passado em busca de elementos construtores do presente (capítulo 6); as conexões entre nacionalismo e segregação de grupos sociais (capítulo 7); diásporas nacionais, como as sofridas por armênios, gregos e judeus (capítulo 8); o problema da formação da União Européia em contradição com identidades nacionais (regionais do ponto de vista continental), abordando em que medida mitos, memórias, tradições e símbolos europeus podem sobrepor-se ou associar-se aos particulares de cada nação (capítulo 9); e finalmente uma avaliação do nacionalismo e seu impacto no mundo após o colapso da União Soviética, tomado como um de seus elementos característicos, ainda que não fundamental (capítulo 10). Um índice remissivo temático e onomástico encerra a edição.

Em se tratando de uma coletânea de artigos, o leitor pode relevar a exaustiva repetição de alguns pontos presentes em todos estudos de Myths and Memories, como por exemplo a crítica historiográfica ou as definições de nação e nacionalismo. Mesmo porque, destes desdobram-se outros merecedores de particular atenção, inclusive por parte do leitor brasileiro.

Smith é extremamente competente em distinguir nação de nacionalismo. A construção ideológica do fenômeno nação, tomado portanto em sua dimensão de conceito, não a equivale ao fenômeno em si. Ainda que a modernidade do Estado-nação, das identidades nacionais e do próprio nacionalismo que a eles se atrela seja reconhecida por Smith, sua preocupação em estabelecer continuidades históricas entre o "moderno" e o "pré-moderno" conduz a uma perspectiva na qual mitos não são simples distorções históricas com a finalidade de legitimar um presente: são a própria base sobre a qual grupos humanos se constituem em nações. Isto, por seu turno, recoloca a discussão das periodizações para o estudo da questão nacional, não mais limitadas ao período aberto pelas revoluções do século XVIII, mas passeando no tempo aonde quer que um dado da realidade seja fundamental para a formação de uma nação. É evidente que cada caso é um caso, e as pretensões categorizantes de Smith não o levam a desconsiderar esta regra da boa prudência. Não se trata, portanto, de atribuir ao fenômeno nacional uma importância equânime em períodos tão distintos entre si como a Antiguidade, o mundo feudal e o mundo moderno, ao longo dos quais grupos sociais criaram e organizaram formas específicas de identidades e de atitudes perante elas (ainda que Smith seja passível de crítica no que respeita a uma certa concepção "continuísta" do nacionalismo na história, conforme bem assinalou John Breuilly). Mas como – e aqui vale novamente uma referência particular ao universo brasileiro – os estudos têm avançado cada vez mais na tese da "modernidade" do nacionalismo e da nação (nesta ordem, respectivamente), talvez a obra de Smith possa servir de advertência para a pertinência de as atenções se voltarem também para períodos e processos históricos até este momento praticamente ignorados no conjunto dos estudos sobre a questão nacional.

Revista de História - USP

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