quarta-feira, 9 de setembro de 2009

Historiador e Pintor


LIMA, Valéria. J.-B. Debret. Historiador e Pintor. Campinas: Editora da Unicamp, 2008.
Leticia Squeff
Instituto de Artes/Unicamp1
Quando se trata do tema ‘viajantes no Brasil’ o nome de Jean-Baptiste Debret é, radicionalmente, o primeiro a ser lembrado. Na ampla iconografia sobre o Brasil oitocentista, as imagens criadas por ele tiveram uma acolhida sem igual. Suas litografias ilustram livros didáticos e monografias há décadas.
Houve um tempo em que reproduções de suas obras, devidamente emolduradas, decoravam a entrada de edifícios ou salas de espera de escritórios médicos e afins. Suas aquarelas já foram usadas na abertura de conhecida novela, exportada para os quatro cantos do mundo. Até mesmo aqueles que não se interessam por iconografia são capazes de lembrar, de memória, de pelo menos uma imagem criada pelo artista. Dos meios acadêmicos aos ambientes mais prosaicos, da tese erudita ao folhetim televisivo, a obra pictórica de Debret grudou-se à imaginação sobre o século XIX brasileiro.
Daí a importância do livro de Valéria Lima. Seu J.-B. Debret, historiador e pintor vem desfazer lugares-comuns e visões tradicionalmente estabelecidas. O leitor termina a leitura e percebe que, apesar de tão conhecida, a iconografia criada pelo artista guarda mistérios ainda não desvendados pelos historiadores.
Percebe, sobretudo, que talvez esteja na hora de mudar o lugar ocupado por Debret na história cultural do século XIX. Nesse sentido, a tese da autora é extremamente interessante no âmbito deste dossiê sobre a vinda da família real portuguesa para o Brasil.
O livro, originalmente uma tese de doutorado, tem como objeto central a Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil (1831-39). Trata-se de uma obra que traz grandes desafios ao pesquisador. Ao associar textos e imagens, organizados em permanente relação de complementaridade, a obra de Debret exige um duplo esforço interpretativo. O primeiro ocorre no âmbito da história das idéias e se realiza no embate com o texto. O outro exige um olho capaz de perscrutar a iconografia, buscando não apenas a tão falada “verossimilhança” – sempre cobrada pelos espíritos mais rápidos –, como também – muito mais sutis e muitíssimo mais interessantes para a história cultural – suas relações com as imagens produzidas por outros viajantes e com a história da arte em geral. A autora se entrega à dupla tarefa com coragem e honestidade, alcançando melhores resultados nas análises iconográficas.
No primeiro capítulo Valéria Lima reconstitui a biografia de Debret, consultando documentação inédita, principalmente francesa, sobre a trajetória do pintor. O capítulo desfaz alguns mitos que vinham sendo repetidos pela historiografia há tempos, como o que atribuía a Debret a direção do ateliê do primo famoso, e líder do neoclassicismo francês, o pintor Jacques-Louis David. Os outros capítulos são dedicados à Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil. A organização dos volumes, o percurso editorial da obra, uma contextualização do desenvolvimento e consolidação das técnicas da aquarela e da litografia são tratados no capítulo II. O capítulo III questiona em que medida o livro de Debret pode ser incluído no gênero Literatura de Viagem. O último capítulo pretende discutir o discurso histórico subjacente a imagens e textos da Viagem.
A autora parte de duas hipóteses importantes sobre Debret, já parcialmente enunciadas pela historiografia anterior. A primeira refere-se à ategoria ‘viajantes’.
O termo abriga desde naturalistas até pintores, passando por diplomatas, comerciantes, nobres curiosos ou aventureiros, entre muitos outros. Trata-se, assim, de uma categoria completamente genérica, que nem de longe dá conta das diferentes experiências “de viagem” que abriga.2 Só levando em conta esseenorme “balaio” de personalidades e perfis profissionais diferentes é que se pode chamar Debret de ‘viajante’. Mesmo assim é preciso cuidado. Ele morou 15 anos no Brasil, tendo um trabalho regular como professor de pintura e pintor oficial da corte. Só esses dois aspectos já o desqualificam como um ‘viajante’ no sentido tradicional. E aqui chegamos ao segundo ponto.
A seguir, a autora compara a Viagem pitoresca e Histórica ao Brasil com outras realizações do período. Em Debret, arte e história se conjugam para construir uma interpretação que privilegia o Brasil ‘civilizado’. É, sobretudo, a cidade que interessa ao artista. Os principais objetos de suas aquarelas são os hábitos urbanos, o cotidiano de escravos e seus senhores no Rio de Janeiro.
Esse partido distingue a narrativa debretiana de toda uma série de obras que destacavam exatamente o contrário: o índio não ‘amansado’, a vida nas fazendas, a rude e exuberante natureza tropical, tão diferente da européia. Para boa parte dos estrangeiros, o novo império vinha associado à natureza intocada e ao homem natural. Para Debret, ele era domínio da ação do homem civilizado.
Além disso, na contramão de boa parte dos relatos de viagem, a obra de Debret não segue uma linha cronológica. Obedece a um programa pré-estabelecido.
Trata-se de reconstituir o progresso da civilização no Brasil. Nos três volumes da Viagem, a intenção classificatória do francês não deixa dúvidas de suas intenções: separa os grupos indígenas conforme a familiaridade com os europeus, destaca as etapas de aproximação e entendimento pelos escravos dos hábitos civilizados.3 Ou seja, para Valéria Lima, Debret não fez um relato deviagem. Quis fazer uma obra de história.
Atrelado a esse discurso civilizatório, e como que o embasando, Debret teria produzido uma narrativa que destaca o Rio de Janeiro. Atraindo o olhar do pintor e a pena do historiador, a cidade é o eixo a partir do qual se constrói um discurso, sobretudo visual, a respeito do processo civilizatório no Reino, e mais tarde, Império independente. Nesse discurso, como bem enfatiza a autora, o domínio de Debret sobre os cânones da pintura histórica tem um papel fundamental. Ao fazer composições a partir das aquarelas elaboradas no calor da hora, o artista seleciona, organiza, classifica. A despeito das imagens de escravos castigados – aspecto da obra que incomodou os membros do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, por exemplo – o resultado geral cumpre, segundo Valéria Lima, a função de construir uma visão civilizada do império americano.
Enxergar a Viagem Pitoresca como obra histórica parece-me extremamenterenovador e estimulante. Não poderíamos incluir também a obra escrita de Debret entre as fontes documentais que mais influenciaram a historiografia posterior? Refiro-me, por exemplo, à interpretação, logo consagrada por alguns historiadores, da Independência e da posterior consolidação territorial do país como fatos ‘naturalmente’ relacionados à chegada de d. João VI à América Portuguesa. A vinda da família real, a chegada da “Colônia Lebreton”, que atradição denominaria mais tarde, e erroneamente, de “Missão Francesa”,4 os conflitos que resultaram na emancipação política, a instalação de milhares de estrangeiros no novo país; tudo seria interpretado como etapa no processo que levava a ex-colônia na direção do progresso, que seria consubstanciado no Estado Monárquico brasileiro.
Outro mérito da obra é sem dúvida o tratamento diferenciado que dá à iconografia. Manuseando com desenvoltura instrumental teórico próprio da história da arte, a autora busca estabelecer diálogos ou contraposições entre os partidos adotados por Debret e por outros artistas. Nesse compasso, situa melhor a posição do pintor perante outras representações da vida cotidiana carioca do oitocentos. Também alcança extrapolar a questão do estilo, que suscitou tantas discussões tempos atrás, e que se mostra tão estéril num momento como o vivido por Debret, em que o neoclassicismo francês sofria um lento processo de diluição. Debret faria apropriações variadas das correntes artísticas em voga, como, aliás, outros contemporâneos que também foram alunos de David, como Gérard, Girodet, Gros, entre muitos outros.5
Ao tirar o peso da questão estilística, a autora consegue dar a Debret e sua produção o que ele merece. Substitui a pergunta um tanto ingênua de saber o quanto sua obra foi ou não fiel ao que via no Brasil, para propor um questionamento muito mais relevante do ponto de vista não apenas da história da arte no sentido tradicional, mas propriamente da história da imagem. O método warburguiano permite dar às imagens criadas pelo artista outro estatuto: não oresultado cru de um embate puro com o visível – aliás, virtualmente inexistente6–, mas como reelaboração de um amplo universo iconográfico, que parte da tradição artística européia e pelo neoclássico, até encontrar novos temas e, algumas vezes, novo vocabulário artístico e simbólico nas imagens da América produzidas por outros artistas. E Debret se serviu amplamente das obras de outros contemporâneos, como era, aliás, prática na época: casos de Chamberlain, Thomas Ender, Spix e Martius, Wied Neuwied... – apenas para citar alguns dos artistas ou viajantes cujas criações foram reelaboradas por Debret, de acordo com vasta historiografia.7
O leitor sente, por outro lado, algumas ausências. A principal e mais séria é a do próprio autor estudado. No decorrer dos capítulos, Valéria Lima formula diversas hipóteses, apontando possíveis relações entre a obra de Debret e a de outros escritores, principalmente franceses. Essas interpretações, geralmente instigantes, se ressentem, porém, de um problema: quase não há citações no livro. A “voz” de Debret raramente é recuperada, o que compromete, às vezes seriamente, as discussões propostas. Por exemplo, a autora afirma que ao escrever sua Viagem Pitoresca e Histórica, Debret certamente se valeu da leitura das Considérations sur les méthodes à suivre dans l´observation des peuples sauvages, impressas em 1800 por Joseph-Marie De Gérando, membro de uma “Société des Observateurs de l´Homme”, de curta existência (1800-1804).
Como não se transcreve uma única linha nem de um autor, nem de outro, resta ao leitor torcer para que Valéria Lima tenha razão. A outra lacuna do trabalho liga-se, paradoxalmente, à sua maior contribuição.
A obra traz um notável e amplo levantamento bibliográfico e documental entre obras francesas, apontando as relações de Debret com as viagens pitorescas européias, ou, por outro lado, com livros de história. Contudo, as relações literárias de Debret com o Brasil, ou com o Rio de Janeiro, são pouco discutidas.
As críticas que a obra recebeu dos membros do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro certamente dariam vazão a análises mais abrangentes do que a realizada pela autora. Ela discute a questão no final do capítulo II, mas não a explora como poderia. Sendo o objetivo de Debret fazer uma obra histórica, e sendo ele, como observa argutamente Valéria Lima, ao mesmo tempo pintor histórico e historiador/cronista, teria valido muito a pena apontar as relações da
Viagem Pitoresca com os textos sobre história do Brasil disponíveis na época.
Será que Debret leu a História dos Principais Sucessos Políticos do Império do Brasil (1825), do Visconde de Cairu? Poderia se aventar também se teve acesso ao History of Brazil, de robert Southey, cujos volumes saíram em 1810, 1817 e 1819. Ou se travou contato, no rio de Janeiro, com John Armitage, que publicaria em 1836 sua História do Brasil.
Por que foram as imagens criadas por Debret, e não as de outros artistas, que ganharam tamanha divulgação? Seria porque ele foca exatamente o Brasil urbano, “quase” civilizado, bem como gostavam de acreditar boa parte dos bacharéis do Império,8 e bem ao gosto de autores que mais tarde contribuíram para a visão um tanto edulcorada do período joanino? Não custa lembrar que Oliveira Lima – grande defensor da importância de d. João na história brasileira
– elogia as imagens de Debret como “a mais completa e interessante documentação artística da residência americana de d. João VI”9.
São questões como essas que a leitura do livro de Valeria Lima mobiliza no leitor interessado. Ponto para ela e seu belo livro. Cabe aos novos historiadores continuar, a partir daí, a reflexão.

1 Mestre em História Social - FFLCH/USP e doutora em Arquitetura (FAU/USP). Atualmente inicia projeto de pós-doutorado no Instituto de Artes da Unicamp (IA/UNICAMP).
2 Cf., por exemplo, “introdução” In: LEITE, Miriam Lifchitz Moreira (org.). A condição femininano Rio de Janeiro, século XIX: antologia de textos de viajantes estrangeiros. São Paulo: Hucitec /Edusp, Brasília: INL - Fundação Nacional Pró-Memória, 1984; Valéria observa que Debret também não se encaixa nas categorias mencionadas por PrATT, M.L. Os olhos do Império: relatos de viagem e transculturação. Santa Catarina, Edusc, 2002.
3 LIMA, Heloísa Pires mostra que a Viagem ao Brasil de Debret reforça e justifica os valores escravistas. In: “Negros Debretianos: um momento da Academia Imperial de Belas Artes do Rio de Janeiro – século XIX”. Anais do Seminário EBA 180. rio de Janeiro: EBA/UFrJ, 1997.
4 Questionei o termo “Missão Francesa” in SQUEFF, Leticia. “Revendo a Missão Francesa: a Missão Artística de 1816, de Afonso D’Escragnolle Taunay”. In Anais do I Encontro de História da Arte do IFCH. Campinas: Unicamp, 2006, p 133-139.
5 Cf., por exemplo, WRIGTH, Beth. Painting and history during the french restoration - abandoned by the past. New York : Cambridge University Press, 1997 ou CHASTEL, André. L´art français - le temps de l´Éloquence (1775-1825). Paris : Flammarion, 1996.
6 Gombrich discute a questão em vários textos. Cf., por exemplo, “The Renaissance theory of art and the rise of landscape”. Norm and Form - studies in the art of the Renaissance. Londres, s.n., 1966, ou “Image and Code: scope and limits on conventionalism in pictorial representation” In: STEINER, Wendy, ed. Image and Code. S.L. e., Michigan Studies in the Humanities, 1981, p. 11-42.
7 Tal como apontado por autores como HArTMANN, Thekla. A contribuição da iconografia
para o conhecimento de índios brasileiros do século XIX. In Coleção Museu Paulista. Série de Etnologia., v.1, São Paulo: Fundo de Pesquisas do Museu Paulista, 1975; BELLUZZO, Ana Maria. O Brasil dos viajantes. São Paulo: Metalivros, Salvador: Fundação Emílio Odebrecht, 1994, v.3; SELA, Eneida Maria Mercadante. Desvendando figurinhas: um olhar histórico para as aquarelas de Guillobel. Diss. Mestrado, IFCH, Campinas, 2001; PICOLI, Valeria. A pátria de minhas saudades: o Brasil na viagem pitoresca e histórica de Debret. Dissertação de mestrado apresentada à FAU /USP, 2002

8 ALENCASTRO, Luis Felipe de. “O fardo dos bacharéis”, in Novos Estudos Cebrap, n.19, 1987.
9 LIMA, Manuel de Oliveira. D. João VI no Brasil (1908), 3ª Ed, rio de Janeiro: Topbooks,

Revista de História da USP

quarta-feira, 2 de setembro de 2009

A revolução da linguagem


Uma ode à diversidade lingüística
Revolução da linguagem decorrente do advento da internet é tema de livro de pesquisador britânico


– Qual a boa do fds?! Ou ainda: – Vc tah afim de fzer alguma coisa hj? O leitor habituado com a internet certamente não estranhou as sentenças acima, tampouco deixou de entendê-las. O que soa muito natural para muitos internautas é, para o lingüista britânico David Crystal uma manifestação da revolução da linguagem que o mundo atravessa neste início do século 21.

As principais características dessa transformação são o tema de A revolução da linguagem, o novo livro de Crystal, recém-lançado no Brasil. Ex-professor da Universidade de Reading e professor da Universidade do País de Gales em Bangor (ambas no Reino Unido), o britânico é autor de mais de 100 livros e artigos sobre lingüística, entre eles o Dicionário de lingüística e fonética, referência entre estudiosos do tema.

Editado na Inglaterra em uma coleção chamada “Temas para o século 21”, A revolução da linguagem retoma conceitos de três trabalhos anteriores de Crystal. As idéias originalmente apresentadas em English as a global language, Language death e Language and the internet, publicados entre 1997 e 2001, são descritas na nova obra como partes de um mesmo fenômeno: uma transformação estrutural na ecologia lingüística global em curso desde a década de 1990.

A emergência do inglês como a primeira língua internacional do mundo, falada por um número de pessoas sem precedentes em toda a história, é o ponto de partida da argumentação de Crystal. Mais importante que isso: o número de falantes não-nativos do inglês já supera – e muito – o de nativos. Novas palavras e expressões gramaticais enriquecem e pluralizam a língua de Shakespeare. As mudanças são inevitáveis.

A morte das línguas, decorrente dessa supremacia do inglês, é a maior preocupação de Crystal. O autor, conhecido como um ativista pela diversidade lingüística, alerta para um cenário preocupante: a cada duas semanas, morre uma língua no mundo. Para lutar contra esse perigoso fluxo, o autor tem um plano e pretende conquistar adeptos: quer que o tema seja abordado na mídia, nas escolas primárias, nas artes plásticas, na música, na literatura. Quer um prêmio – uma espécie de Nobel da lingüística – para os militantes em prol da diversidade das línguas. Quer gritar ao mundo inteiro: os pandas precisam de nossa ajuda, mas as línguas também – vamos salvá-las da extinção!

Para Crystal, a língua na era da internet é o sinal mais claro de que a situação lingüística atual é revolucionária, sem medo da grandiosidade da palavra. A rede mundial de computadores inaugurou uma forma de comunicação singular, a meio caminho entre o oral e o escrito. O discurso da internet (o netspeak) afetou mais os processos comunicativos do que qualquer outra inovação tecnológica na história desde a invenção da escrita. E nada mais natural do que criar novos códigos compartilhados entre seus usuários – por isso Crystal rebate qualquer argumento purista de que as recorrentes abreviações e neologismos em chats e e-mails sejam prejudiciais às línguas.

A revolução da linguagem visa o grande público, pouco habituado com os conceitos da lingüística, e até os leitores não usuários da internet. A edição brasileira conta com uma introdução da lingüista Yonne Leite, professora do Museu Nacional/UFRJ, e apresenta uma boa síntese das três obras que inspiraram o livro, ainda não editadas no país.

Embora o texto seja um pouco repetitivo, a mensagem final é clara e a leitura, fluida. O livro de Crystal – uma ode ao pluralismo lingüístico – propõe soluções para questões atuais e decerto agradará ao leigo interessado em línguas e a professores de idiomas, inclusive o português.

A revolução da linguagem
David Crystal (tradução: Ricardo Quintana)
Rio de Janeiro, 2005, Jorge Zahar Editor
Fone: (21) 2240-0226
151 Páginas.



Rosa Maria Mattos
Ciência Hoje On-line
09/05/2006

A evolução do Darwinismo


Uma partida e tanto
Com analogias ao futebol, livro usa evidências da evolução para rebater argumentos criacionistas

“Se a batalha entre evolucionismo e criacionismo fosse resolvida em uma partida de futebol, Darwin ganharia de goleada.” É o que afirma o biólogo Sandro de Souza, autor do recém-publicado livro A goleada de Darwin. Com base nas evidências científicas da evolução das espécies, a obra rebate os argumentos criacionistas que ainda hoje tentam pôr em xeque a contribuição do naturalista britânico Charles Darwin para a ciência mundial.

O embate entre evolucionismo e criacionismo, que há mais de um século gera polêmica, é o tema escolhido por Souza em sua estreia no segmento literário e na divulgação científica. A obra surge em meio às comemorações dos 150 anos da publicação do livro A origem das espécies, de Charles Darwin, e à existência de inúmeras manifestações de apoio ao criacionismo no Brasil e no mundo.

“A ideia do livro surgiu depois que escrevi um artigo para o jornal Folha de S. Paulo comentando as declarações da então ministra Marina Silva em defesa do criacionismo”, revela o autor. “Percebi que faltava ao público brasileiro uma obra escrita em português que servisse como uma introdução ao debate.”

Souza, que é especialista em genética e bioinformática e há 20 anos estuda o evolucionismo, passou um ano colhendo dados e informações que contribuíssem para a argumentação do livro. Além de contestar a hipótese criacionista com evidências do trabalho de Darwin e citar exemplos que ilustram a discussão, a obra mostra por que religião e ciência não devem se misturar. Com linguagem acessível, a narrativa agrada tanto a leigos quanto a especialistas.


Duas paixões
Darwinismo hoje
Para engrossar a lista de títulos lançados em comemoração aos 150 anos da publicação de A origem das espécies, chega às livrarias A evolução do Darwinismo, de António Bracinha Vieira, professor de evolução da Universidade Nova de Lisboa e autor de diversos livros sobre o tema. Com texto breve e coeso, Vieira mostra como a ciência tem produzido novas provas que sustentam a teoria da evolução pela seleção natural.

O autor destaca que a lógica evolucionista está presente em nosso dia-a-dia, seja na prevenção e no combate a doenças, nos empreendimentos agropecuários ou nas pesquisas feitas com animais. O livro é resultado da fusão dos textos que serviram de base para duas conferências ministradas pelo professor e conta com um glossário de expressões que facilita sua compreensão pelo leitor comum.

A analogia com o futebol deve-se à união entre as duas paixões do pesquisador. O resultado aparece, por exemplo, no capítulo "O gol contra de Deus", que aborda o argumento do desenho inteligente (uma vertente mais recente do criacionismo), e no apêndice "O golaço de Jones", que reproduz parte da sentença de um juiz norte-americano que refutou o caráter científico do criacionismo.

Uma das discussões presentes no livro diz respeito ao ensino do criacionismo a alunos do Ensino Fundamental. Souza alerta para a frequência com que a teoria tem sido levada às salas de aula em oposição ao evolucionismo e para os efeitos que essa abordagem pode ter sobre uma geração de estudantes. “Isso é um retrocesso. Espero que o livro sirva como um alerta para esse problema terrível”, declara.

Em relação à oposição entre ciência e religião, quem faz o gol é Souza. O autor expõe a opinião de intelectuais, estudiosos e até do papa Bento 16 sobre o assunto, e conclui: “Como dois fenômenos oriundos da mente humana, não há razão para acreditar que a ciência e a religião não possam coexistir em um mesmo indivíduo.”

A goleada de Darwin: sobre o debate criacionismo/ darwinismo
Sandro de Souza
Rio de Janeiro, 2009, Editora Record
224 páginas.
Tel.: (21) 2585-2000
A evolução do Darwinismo
António Bracinha Vieira
Rio de Janeiro, 2009, Vieira & Lent
120 páginas.
Tel.: (21) 2262-8314


Barbara Marcolini
Ciência Hoje On-line
27/07/2009

A revolução dos q-bits: o admirável mundo da computação quântica


Uma revolução bate à porta
Livro mistura ficção e realidade para apresentar a história e os fundamentos da computação quântica


A computação quântica pode soar complexa demais para os mortais que não são especialistas no assunto. Portanto, nada mais indicado para torná-la mais palpável e compreensível do que ler as palestras do sr. Lao. Ele é, afinal, presidente da maior empresa de computadores quânticos da segunda metade do século 21 — um perfil ideal para desmistificar a ciência por trás dessa inovação que, pelo menos para nós, habitantes do início do século, é ainda tão recente.

O sr. Lao é o protagonista do livro A revolução dos q-bits: o admirável mundo da computação quântica, escrito a quatro mãos pelo físico Ivan Oliveira e pelo jornalista Cássio Leite Vieira. Com as cinco palestras que seu personagem apresenta para comemorar o 50º aniversário do primeiro chip quântico, os autores buscam apresentar ao público leigo um panorama histórico e conceitual da computação quântica, desde a física do século 19 até as dúvidas e questões mais recentes.

Ao que poderia ser um relato técnico e árido sobre o desenvolvimento dessa tecnologia, o recurso a um personagem fictício adiciona um ingrediente dinâmico e criativo, que torna o livro instigante e atraente. Os textos das palestras — que compõem a apresentação histórica do assunto — são intercalados por trechos ficcionais, em que o sr. Lao deixa de ser um mero orador e ganha contorno humano, com preocupações, desejos e expectativas.

A revolução dos q-bits trata de um tema complexo com linguagem simples e didática. O equilíbrio é fruto da dobradinha entre Oliveira, pesquisador da área de informação quântica no Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF) e editor de ciências exatas da revista Ciência Hoje, e Vieira, editor de forma e linguagem da CH. O texto da dupla não requer grande conhecimento técnico para ser compreendido, embora alguma familiaridade com noções de física e matemática ajude a acompanhar o raciocínio do sr. Lao.

Uma ciência revolucionária
Mas, afinal, o que é a computação quântica? Para entendê-la melhor, é preciso conhecer alguns conceitos da mecânica quântica. Elaborado no início do século 20, esse ramo da física é o único capaz de explicar o comportamento de átomos, moléculas e partículas subatômicas que, por conta de suas dimensões ínfimas, não obedecem às leis da física clássica.

Um dos fenômenos mais curiosos estudados pela mecânica quântica é o chamado princípio da sobreposição, que postula que uma partícula pode apresentar duas condições ao mesmo tempo. No mundo macroscópico, seria o equivalente, por exemplo, de uma moeda que, em vez de exibir cara ou coroa, apresentasse os dois estados ao mesmo tempo. É esse princípio que, aplicado para a lógica computacional, está por trás da revolução do computador quântico.

A base da computação clássica é a lógica do sistema binário, no qual toda a informação é codificada com os dígitos 0 e 1. Nos circuitos do computador, esses dígitos são representados, por exemplo, por uma pequena corrente elétrica – a presença da corrente é associada ao dígito 1, e sua ausência, ao 0.

Se os sistemas desse computador forem devidamente miniaturizados para a escala em que vigoram as leis da mecânica quântica, podemos aplicar o princípio da sobreposição. Nesse caso, além do 0 e do 1 — presença ou ausência da corrente elétrica —, as duas opções seriam possíveis. Por mais contraintuitivo que ele possa parecer, esse fenômeno permitiria que o computador processasse várias operações simultâneas e lhe daria uma velocidade incrivelmente maior que a dos computadores atuais.

Embora ainda esteja em estágio inicial de desenvolvimento, a pesquisa no campo da computação quântica já teve alguns resultados de sucesso nos últimos anos. No entanto, se teremos computadores quânticos ultrarrápidos em nossas casas daqui a 50 anos, só o sr. Lao pode dizer.

A revolução dos q-bits: o admirável mundo da computação quântica
Ivan S. Oliveira e Cássio Leite Vieira
Rio de Janeiro, 2009, Jorge Zahar Editor
160 páginas.
Tel: (21) 2221-1565


Isabela Fraga
Ciência Hoje On-line
31/03/2009

Na trilha da humanidade


Uma viagem de milhares de anos
Livro conta expedição do brasileiro que refez trajetória do homem pré-histórico da África até o Brasil

Seguir as pistas da evolução humana e refazer o caminho do homo sapiens ao se espalhar pelo planeta, partindo da África até chegar ao Brasil. Essa foi a mais recente aventura encarada pelo jornalista Airton Ortiz, que utilizou apenas transportes públicos para fazer essa viagem inédita. As descobertas e os episódios vividos por ele lhe renderam o livro Na trilha da humanidade , que faz parte, junto com outras expedições do escritor, da coleção Viagens Radicais. Durante três meses, o autor cruzou fronteiras perigosas e conheceu novas culturas, ao mesmo tempo em que visitou os sítios paleontológicos onde foram encontrados os principais fósseis que contam a história de 7 milhões de anos da humanidade.

As páginas do livro se revezam entre informações sobre a evolução humana, como as descobertas das diferentes espécies até o homem moderno, e histórias da expedição. Para refazer o caminho do homo sapiens , o jornalista partiu do Quênia, no leste da África, desceu para o sul do continente, depois seguiu para o norte, dobrando à direita no vale do Nilo, até chegar à Ásia. Em seguida, voou para o Alasca, caminho que há milhares de anos era possível fazer por terra, onde hoje fica o estreito de Bering. Por fim, o autor cruzou as Américas até chegar ao Brasil.

Em todo o livro, Ortiz se preocupa em manter uma linguagem clara e simples, sem muitos termos científicos, de modo a permitir o entendimento do leitor comum sobre o assunto. O escritor também se atém à descrição da cultura e dos hábitos dos lugares que visitou. Ele aproveita para ressaltar algumas questões que dominam os debates no mundo atual, como a mutilação genital de mulheres, os altos índices do vírus HIV na África e a miséria em que vive a maioria da população mundial.

Por concentrar temas polêmicos, a parte africana de sua trajetória é uma das que mais prendem a atenção do leitor. Ortiz retrata a extrema pobreza da região e suas conseqüências na vida das pessoas: corrupção, assalto, violência, fome etc. O que pensar, por exemplo, de um jovem que estava triste porque trocou duas de suas vacas por uma moça que, segundo ele, não correspondia ao valor dos animais? Ou como reagir diante de uma senhora com quatro filhos que viu pela primeira vez o seu rosto ao olhar uma fotografia tirada na máquina digital de Ortiz? São histórias como essas que fazem de Na trilha da humanidade mais do que um mero livro sobre a evolução humana para leigos, mas também uma publicação que estimula a reflexão crítica em seus leitores.

O texto é repleto de humor, o que faz com que a leitura se torne agradável, apesar do tema complicado e da necessidade de detalhes científicos, como o tamanho do crânio dos fósseis e as características diferenciadoras de cada espécie humana. Mas o autor às vezes exagera um pouco na tentativa de fazer piadas em seu texto. Escrever que, se um homo sapiens de cerca de cem mil anos estivesse “vestido à moda rastafári, poderia tranquilamente assistir a um jogo de futebol no Maracanã sem chamar a atenção dos demais torcedores” é um pouco demais.

No mais, o livro é uma boa opção para aqueles que desejam ter acesso a informações detalhadas sobre a história da evolução da humanidade em uma linguagem coloquial, ao mesmo tempo em que aprendem – e muitas vezes se chocam com – um pouco da cultura de diferentes lugares do mundo.

Na trilha da humanidade
Airton Ortiz
Coleção Viagens Radicais
Rio de Janeiro, 2006, Record
Tel.: (21) 2585-2000
277 páginas.

Mariana Benjamin
Ciência Hoje On-line
12/12/2006

A extinção dos tecnossauros – histórias de tecnologias que não emplacaram


Você quer deixar de ter aquela velha opinião formada sobre questões de ciência, tecnologia e sociedade? O livro A extinção dos tecnossauros, de Nicola Nosengo, oferece uma visita guiada com o intuito de “aproveitar os fracassos, que são momentos de crise de um sistema, para evidenciar os lugares-comuns nos quais se baseia nossa percepção da inovação tecnológica”.

Privilegiando o prazer de contar histórias sobre a elaboração de teorias, ele afirma também que a história de um fracasso é geralmente mais interessante que a de um êxito porque as histórias de sucesso são mais parecidas entre si, uma ideia já celebrizada por Tolstói: “Todas as famílias felizes são parecidas entre si, cada família infeliz é infeliz a seu modo”.

Tal como o arranjo das salas em um museu bem arquitetado, o desfile de tecnologias que não emplacaram está organizado em capítulos de narrativas vivas, mas nem por isso fantasiosas ou historicamente mal referenciadas. Os fracassos de Thomas Edson, seja com o sistema elétrico de registro de voto, patenteado em 1869, seja com o caso mais conhecido do fonógrafo, ressaltam que “um inovador tem sucesso quando acerta em cheio a combinação de elementos [heterogêneos]”.

A ideia de uma separação nítida entre sucesso técnico e fracasso comercial ou ainda a complexidade da configuração de padrões são problematizadas por um olhar atento que enxerga que “no fundo, as coisas não foram tão mal para o sistema de gravação Betamax”.

Correio pneumático e carro elétrico
O caso do correio pneumático, que desapareceu das grandes cidades onde existiu por muitas décadas, mostra que “grandes sistemas podem ser considerados verdadeiramente concretizados apenas quando atingem um ponto [provisional] de não retorno.” O caso da recorrentemente frustrada espera pelo carro elétrico ilustra que não se entra duas vezes no mesmo rio da tecnologia, pois “aquele carro elétrico permaneceu uma promessa não cumprida”.

O fracasso do videofone ressalta que “a ausência de imagem é uma qualidade [e não uma limitação] do telefone.” A inexistência do carro voador é vista como evidência de que “os grandes sistemas técnicos precisam de um complexo aparato legislativo e logístico para funcionar, e é esse fator, só em parte influenciável pelo progresso técnico, o decisivo”.

As batalhas entre o CD e o velho vinil, o long playing, ilustram que “nenhuma indústria, por mais unida e bem organizada que seja, pode impor uma inovação.” O caso da longevidade da fita cassete ilustra uma “espécie de hierarquia informal, [pois ela] se aproxima, mais do que o disco, de uma tecnologia de rede, no sentido de que sua utilidade depende em maior medida da sua difusão, de sua ‘troca’ no interior de uma trama de relações sociais.”

A televisão, o empreendimento econômico do Japão no pós-guerra, as características da escrita em uso no extremo Oriente, a evolução do mercado telefônico no Ocidente, o aparecimento de instituições transnacionais para a padronização de aparelhos eletrônicos configuraram a “primavera tardia do fax.”

Um exame do estabelecimento de padrões mostra como as regras do jogo da concorrência podem se modificar e como a afirmação de um padrão pode “ser determinada mais pelas expectativas sobre o futuro do que pelas considerações sobre o presente.”

Metáforas para uma teoria da inovação
As limitações e mesmo as controvérsias relatadas no livro podem ser melhor percebidas quando se chega ao último capítulo. O autor desenvolve ali uma breve apresentação de “metáforas para uma teoria da inovação”, após o desfile no qual seu faro de perdigueiro soube identificar e apontar a heterogeneidade do mundo em que se configuram “redes sem costura”.

Talvez o uso mais intenso e explícito destas mesmas metáforas durante a descrição dos casos tornasse mais visível também as semelhanças, as maneiras como as coisas se juntam na heterogeneidade. Mas Nicola Nosengo está consciente da opção que fez: “em primeiro lugar vêm as histórias – e o prazer de contá-las –, em seguida vem a especulação teórica...”.

No entanto, além disso, e aí talvez com maiores conseqüências, o último capítulo surpreende o leitor atento ao revelar um anseio por uma “verdadeira essência da tecnologia”, o que leva Nicola Nosengo a concluir o livro singularizando o que considera “provavelmente o mais ambicioso esforço realizado até agora para modelar e compreender o processo de inovação”, mas um esforço que parece trazer em seu bojo, tal qual um cavalo de Troia, marcações e separações pretensamente universais que o restante do livro tanto ajuda a afastar.

Mas isto de maneira alguma tira do livro seu mérito e atração: um texto leve e bem humorado que abre seriamente as portas para o tipo de construtivismo realista-relativista dos “novos” estudos de ciência-tecnologia-sociedade.

A extinção dos tecnossauros – histórias de tecnologias que não emplacaram
Nicola Nosengo (tradução: Regina Silva)
Campinas, 2008, Editora Unicamp
320 páginas.
(19) 3521-7716


Ivan da Costa Marques
Instituto de Matemática,
Departamento de Ciência da Computação,
Universidade Federal do Rio de Janeiro
10/06/2009

Revista Ciência Hoje

Entre nematoides, araras e mosquitos


Entre nematoides, araras e mosquitos
Livro apresenta a vida e obra do naturalista suíço Emílio Goeldi, que fundou o museu que leva seu nome

A história das ciências no Brasil já avançou e mudou muito desde os trabalhos pioneiros iniciados nos anos 1970 no departamento de história da Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo por Maria Amélia Dantes e Shozo Motoyama. Não apenas houve um crescimento quantitativo, mas as temáticas se diversificaram, resultando num autêntico “descobrimento científico” do Brasil.

O livro Emílio Goeldi: Aventura de um naturalista entre a Europa e o Brasil, de Nelson Sanjad, é um dos mais recentes produtos desse movimento, mirando com cuidado e em detalhes a obra e a vida do naturalista suíço Emil August Göldi – ou Emílio Goeldi, na forma aportuguesada – no Brasil.

A base são alguns capítulos da tese de doutorado do autor, defendida em 2005 no programa de pós-graduação da Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz, revistos, reorganizados e, sobretudo, ricamente ilustrados.

A propósito das ilustrações, saliente-se a escolha feliz da imagem de abertura, que sintetiza o personagem e o conteúdo da obra: o Ex-Libris de Emílio Goeldi mistura elementos suíços e amazônicos, a traduzir o hibridismo da atuação do cientista, formado na Suíça e reformador do Museu de História Natural de Belém que hoje leva seu nome.

Viagens complementares
O livro estrutura-se em dois grandes capítulos que conduzem o leitor por “viagens” complementares. De início, o “Itinerário de viagem” apresenta a vida de Goeldi desde o nascimento e formação inicial até seu doutoramento e vinda para o Brasil – inicialmente atuando no Museu Nacional (RJ). Ele cobre ainda sua problemática experiência como administrador de uma colônia de imigrantes suíços em Teresópolis, o convite para dinamizar o Museu Paraense, o que fez com grande competência e sucesso, e seu retorno, até certo ponto repentino e surpreendente, para a Suíça, onde desenvolveria o restante de sua carreira com destaque e reconhecimento acadêmico.

Sobre isso, é oportuno comentar que o livro de Sanjad é mais um trabalho a confirmar algo que a literatura de história das ciências no Brasil começou a identificar nos anos 1990, ou seja: certo padrão de comportamento de naturalistas estrangeiros (europeus ou norte-americanos) que se valeram de suas investigações da natureza brasileira, ainda desconhecida, para incrementar seu ‘capital científico’ e alcançar postos de maior prestígio.

Engana-se, no entanto, quem apressadamente julgue que Goeldi nada deu em troca. Além de um museu de pesquisa que se consolidaria ao longo dos anos subsequentes, ele desempenhou um papel crucial no contestado franco-brasileiro que envolveu a disputa por território na região do Amapá e Guiana Francesa, ao subsidiar com dados precisos a diplomacia brasileira, que acabou vitoriosa.

Ao trazer à tona este fato pouco conhecido, Sanjad contribui significativamente para elucidar, no plano micro, relações entre ciência e política, mostrando que plantas, animais e rochas – objetos de pesquisa da história natural – podem ter relevância para além de simples “curiosidades”.

Percurso intelectual

A publicação deste texto é fruto de uma parceria entre a CH On-line o Jornal de Resenhas. A cada nova edição do jornal, reproduziremos aqui uma de suas resenhas.

O segundo capítulo propõe-se a acompanhar o “percurso intelectual” de Goeldi: os primeiros temas de estudo, em que se destacam a taxonomia, a zoologia aplicada, especialmente à agricultura e saúde – áreas de grande relevância econômica e social na época.

Por exemplo, ele identificou e descreveu o ciclo completo de vida do nematoide que provocava a doença conhecida como “broca do café”, praga a infestar cafezais nos territórios fluminense e paulista, assim como insetos suspeitos de serem os vetores de diversas doenças, como a febre amarela.

Sanjad mostra que, desde a formação no doutoramento em Jena e Leipzig, Goeldi incorporou a visão evolucionista em biologia que marcaria para sempre seus trabalhos. É importante ressaltar que já no Museu Nacional o cientista pode seguir com trabalhos de cunho evolucionista, amparado num ambiente que, como bem mostrou Regina Gualtieri, abraçava e pesquisava seguindo a linha darwinista.

O caso específico de Goeldi é mais um reforço ao trabalho de vários pesquisadores (além de Gualtieri, Margaret Lopes, Magali Romero Sá, Heloísa Bertol Domingues, dentre outros) que têm demonstrado a atualidade e qualidade das pesquisas brasileiras em ciências naturais feitas à época, sintonizadas com o darwinismo, contrariando versões anacrônicas ainda persistentes na historiografia.

Por conta de seu darwinismo Goeldi foi, errônea e frequentemente, associado ao darwinismo social e a posições racistas no candente debate sobre a questão racial no Brasil. A cuidadosa pesquisa de Sanjad mostra como estas interpretações, sistematicamente repetidas, foram superficiais, quando não carentes de bases documentais.

Outro tema que mereceu atenção de Goeldi foi a meteorologia, mas por motivações distantes das atuais mudanças climáticas: tratava-se, como em outras instituições da época (Comissão Geográfica e Geológica de São Paulo, Instituto Agronômico de Campinas, por exemplo), de monitorar o clima para fins de melhoramentos na agricultura, o que ele fez na citada Colônia Alpina, na região serrana fluminense, e continuou em Belém. Nessa perspectiva, é um saber que se apresentava articulado ao conjunto de suas investigações aplicadas, e não uma idiossincrasia de naturalista.

O livro encerra-se com uma bibliografia detalhada, com obras de Goeldi e o restante das referências utilizadas por Sanjad, e traz uma oportuna versão em francês, certamente com vistas à sua divulgação na terra natal de Emílio Goeldi.

Emílio Goeldi: Aventura de um
naturalista entre a Europa e o Brasil
Nelson Sanjad
Rio de Janeiro, 2009, EMC Edições
232 páginas.


Silvia Figueirôa
Instituto de Geociências
Universidade Estadual de Campinas
02/09/2009

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