sábado, 30 de julho de 2011

A Verdadeira Vida de Sebastian Knight

Paródia da crítica e de tramas policiais
Em A Verdadeira Vida de Sebastian Knight, que ganha nova edição, Vladimir Nabokov consolida modelo de romances posteriores

Vinicius Jatobá
A Verdadeira Vida de Sebastian Knight (1941), de Vladimir Nabokov, representou um duplo batismo. Em primeiro lugar, foi o primeiro romance escrito em inglês por um reconhecido mestre da língua russa, que se tornou três décadas depois um consagrado mestre da língua inglesa. O romance também representou a possibilidade de fuga de Nabokov para a América - o que lhe deu uma nova vida, uma vez que o antissemitismo estava tomando conta de Paris, lugar onde vivia anteriormente -, e um cartão de visitas que lhe abriu portas em universidades e revistas. O livro, por sinal, trata também de renascimento - narrado por um biógrafo literário, o Sr. V, ele tenta resgatar a verdadeira vida de seu meio-irmão, Sebastian Knight, que vê mal digerida pela mente limitada de seu ex-secretário particular, Mr. Goodman, autor de A Tragédia de Sebastian Knight.

A obra de Nabokov é ao mesmo tempo paródia de crítica literária acadêmica (esse gênero narrativo sisudo) e de romances policiais (V é um grotesco concentrado do melhor da literatura investigativa). Enquanto V avança desvendando os verdadeiros objetos, lugares e pessoas aos quais seu meio-irmão alude em poemas e romances, ele acaba por se tornar, aos poucos, Sebastian Knight. Começa a especular como ele especularia; a se comportar como ele se comportaria; e, por fim, a amar como ele, ao se apaixonar pela misteriosa Nina.

De certa forma, Sebastian Knight é o protótipo de todos os romances posteriores de Nabokov. Nele estão sinalizadas as futuras obsessões literárias do autor: o narrador culto, letrado e bem viajado que se encontra em estado de confusão por não mais conseguir, de repente, interagir adequadamente com o mundo ao seu redor; a provocação que a inocência brinda a maturidade, fazendo com que ela se constranja e se movimente; a matemática existencial do puzzle, do jogo, da regra, que faz com que o narrador tenha que se desdobrar entre os limites que ele mesmo, muitas vezes, se autoimpõe (como, por exemplo, a tristeza com que Humbert Humbert constata ser Lolita sua amante decadente conforme ela envelhece diante de seus olhos). Em 1962, Nabokov publicaria Fogo Pálido, a obra-prima daquilo que poderia se chamar de romance pós-moderno. É curioso como o grande escritor é um animal peculiar: Fogo Pálido, a história de um professor universitário que decifra a vida de um escritor por meio de seus versos, é Sebastian Knight reescrito, da mesma forma que Lolita (reimaginação de Machenka, a primeiríssima novela de Nabokov, de 1926), foi retrabalhada em proporções épicas como Ada, em 1969.

Nabokov sofre do mesmo problema crônico que aflige quase todos os grandes escritores do século passado; ao se afastar da trama dos romances de folhetim de Balzac e Dickens, e decompor todas as técnicas que lhes davam suporte, a geração modernista acabou se aprisionando em um território nebuloso: uma paixão encabulada pela peripécia, que se desdobra em um ritmo narrativo trôpego.

Autores como o colombiano Gabriel García Márquez e o americano Saul Bellow, dois titãs das letras, são fantásticos fabuladores e seus livros têm tantas páginas quanto peripécias. O mesmo não se pode dizer de Nabokov. Uma resenha sobre suas obras sempre parece um ato de charlatanismo - seus livros podem ser facilmente descritos em um parágrafo. A experiência de leitura de Nabokov é uma experiência de linguagem: a prosa cinzelada, o ritmo preciso, a metáfora engenhosa. Mais universo que prateleira, o leitor que experimentar ao menos três de suas obras já sofrerá contágio suficiente para gravitar sua órbita descobrindo o prazer miúdo de uma prosa detalhista.

VINICIUS JATOBÁ É CRÍTICO LITERÁRIO
Jornal O Estado de S.Paulo

Preciosas Coisas Vãs Fundamentais


Garimpo da palavra
Poemas e textos do escultor Sergio Camargo são reunidos pela primeira vez em Preciosas Coisas Vãs Fundamentais


Marco Giannotti

Para os que escrevem
A palavra é uma
Matéria possível
Sergio Camargo


Após 20 anos de sua morte em 1990 surge uma antologia dos poemas e escritos de um dos nossos maiores artistas e escultores, Sergio Camargo. A compilação foi realizada pacientemente por Maria Camargo e Iole de Freitas. Preciosas Coisas Vãs Fundamentais é uma edição cuidadosamente feita pela editora Bei em que se destaca o desenho gráfico apurado. Devemos celebrar o fato de que alguns escritos de artista finalmente fazem parte do nosso repertório editorial, onde se destaca a Gaveta dos Guardados, de Iberê Camargo, e Escritos e Reflexões sobre a Arte, de Matisse. Outro texto vital, Aspiro ao Grande Labirinto, de Hélio Oiticica, infelizmente espera uma segunda edição há anos.

Mediante estes escritos podemos adentrar no fulcro da produção poética destes artistas. Ou seja, uma reflexão que ocorre concomitante à produção plástica, como poiésis, algo muito diferente da reflexão do que ocorre após a obra ter sido feita: trata-se da "aventura práxis" como define o artista. A escrita aqui adquire uma dimensão projetiva, fruto da inspiração e do convívio cotidiano com os dilemas da criação. Sergio Camargo nos diz que graças a Brancusi, seu grande mestre, aprendeu que os artistas trabalham como respiram. Escrever se torna uma forma de produzir arte em outro meio, onde a palavra tem de ser lapidada de forma distinta da pedra.

O embate entre o artista e a pedra é algo que já aparece no Renascimento, quando Michelangelo procura libertar seus escravos do bloco de mármore. Esta angustia neoplatônica aparece também em seu escritos: "Non ha l’ottimo artista alcun concetto ch'un marmo solo in sé non circoscriva" (Não tem o ótimo artista algum conceito/ que um só mármore em si não circunscreve). Como afirma Luciano Miggliaccio, professor da FAU-USP, "todos os poemas têm em comum a comparação entre o processo criativo da forma na escultura e o contraste entre a imperfeição do amante e a perfeição do objeto do desejo amoroso…. O conjunto das imagens de Michelangelo gira ao redor do tema da imperfeição, isto é, do inacabado. Todavia, a imperfeição da obra aparece em relação à perfeição do modelo, que é o conceito, a imagem mental da figura. A figura, por sua vez, apresenta-se como linhas que limitam o cheio do mármore ou o vazio da forma".

O amor pelo mármore de Carrara é comum a estes artistas; aliás, Sergio Camargo chegou a trabalhar na mesma gruta que Michelangelo, me informa sua marchand, Raquel Arnaud. Ambos buscam forma eterna mediante o desenho. A linha para Sergio Camargo é "abstrata, ferramenta para conceitos quando projeta no plano as plantas e máquinas, quando usada na escultura, do desenho das palavras e na arte do desenho". Aparecem nesta bela edição muitas ilustrações que brincam com a ambiguidade primordial entre desenho, grafia e palavra, a palavra amor é escrita e desenhada de várias formas, de modo a adquirir significados distintos, por vezes assumindo uma qualidade concreta, noutras vezes a qualidade lírica de uma linha sinuosa e fugaz.

O texto revela uma preocupação constante com o tempo, seja nas memórias da infância, como também na consciência inexorável da morte : "ao morrer morrerei", " viver também morrer" afirma o artista logo no início de seus poemas. Mas um dos aspectos mais fascinantes deste livro está na herança que Sergio Camargo deixa na forma de poema para os artistas mais jovens. Torna-se muito interessante ver em que medida o que está no texto de Sergio aparecerá posteriormente na obra dos seus interlocutores: ao utilizar o termo "vertebrar planos" podemos antever o aspecto vital e a forma orgânica dos bichos de Lygia Clark; para Mira Schendel o artista recorre à "poesia ilimitada"; "lumiar" diz respeito à obra de Iole de Freitas, em que a linha se concretiza no espaço real, o apreço pela concretude da pedra; "o canto da pedra na pedra" está na obra de José Resende; e a dimensão poética e lúdica da linha surge em Waltercio Caldas, em que a "palavra ... escoa única, constrói e serve lavra". Há algo de premonitório nestas homenagens, pois estes escritos nos levam ao fundo da experiência poética desses artistas. Premonitório também é o juízo que o artista faz da arte contemporânea, que consiste em um "processo contínuo de desmaterialização da obra de arte... o objeto que quase desaparece, se dilui num campo psíquico, espaço lírico, palpitação, espécie de auréola que para si mesmo cria a obra". Um obra que se faz cada vez mais na tomada de consciência do observador mediante uma experiência fenomenológica com a obra, de modo a produzir uma "confluência de conceitos variados sobre um único objeto". Neste sentido, Sergio Camargo invoca o aparecer, o "aparecer parecer" da obra, o embate corporal, algo que o distancia da experiência platônica.

Talvez a "poesia avolume" de fato neste livro, as imagens suscitadas pelas palavras adquirem força gravitacional. A presença da palavra-luz ilumina o poema, a luz física por sua vez anima os relevos de Sergio Camargo, explicitando sua volumetria. O livro de fato torna precioso nosso embate diante de uma obra que está sempre por se fazer na medida em que transformamos nossas experiências de coisas vãs em algo fundamental.

MARCO GIANNOTTI É PINTOR E PROFESSOR DA ESCOLA DE COMUNICAÇÃO E ARTES DA USP.

Jornal O Estado de S. Paulo

Mitologias

A ideologia por trás dos discursos
Edição francesa do clássico Mitologias, de Roland Barthes, recupera imagens analisadas por ele nos anos 50 ao investigar os mecanismos de influência da sociedade de consumo no dia a dia das pessoas

Leda Tenório da Motta
Trinta anos depois de seu desaparecimento, Roland Barthes parece afirmar-se como o mais influente dos intelectuais ligados ao linguistic turn francês que chamamos "estruturalismo". É o que nos convida a pensar, primeiro, o jorro incessante de suas obras póstumas, que não acabam nunca de ser editadas, o que não é dado, por exemplo, aos legados de Michel Foucault e Jacques Lacan, por mais que possam ser expressivos. Segundo, o fato de que, entre seus contemporâneos de maior prestígio, ele é hoje o que mais se resenha, traduz, revê, interpreta, como atesta uma fortuna crítica que, de tão gigantesca, já começa a ser inadministrável, até mesmo para o pesquisador interessado num estado da arte barthesiana. Terceiro e mais importante, a coesão interna de seus escritos, tal como nos é retrospectivamente revelada. Ligada ao círculo virtuoso do desarme dos mitos, é principalmente esta última hipótese que vem derrubando a ideia do pensador errático, cujo único trunfo seria o estilo suntuoso.

Muitos tem ressaltado, além disso, a generosidade com que o mais refinado dos literatos voltou suas armas para a sociedade de consumo - inclusive para as imagens, objeto sempre desconfortável para letrados -, e notado como esse inesperado foco de interesse terminou por nos render um instigante pensador do mundo contemporâneo. E ainda, a extrema coerência com que o semiólogo versou sobre "a morte do autor", sem extrapolar as fronteiras da realidade simbólica em que escolheu se fixar, quando outros da mesma escola falavam da "morte do homem", e se envolviam em ambiciosos projetos anti-humanistas. Organizador dos atuais cinco tomos das obras completas de Barthes e certamente o maior conhecedor do colossal conjunto formado por elas, Éric Marty anotou aí, numa de suas apresentações, que ele foi um dos raros estruturalistas rigorosos, tendo escapado à tentação de fazer do estruturalismo uma anti-filosofia.

Em meio a essa recepção tardia febricitante, mal nos havíamos dado conta dos Carnês da viagem à China (elaborados quando da visita de um Barthes mais para ceticista ao país de Mao Tsé-tung, e só agora publicados) e de um derradeiro relato íntimo, o Diário do Luto (com notas inéditas de Barthes em torno da morte da mãe), e já somos surpreendidos por mais um acontecimento importante: acaba de sair a versão ilustrada de Mitologias. Estamos falando de um título da primeiríssima safra e do mais conhecido, do mais cultuado dos livros de Barthes. Daquele que pega bem citar mesmo quando não se leu. Sobre ele Philippe Sollers disse recentemente, num dossiê da revista Magazine Littéraire, que é "sublime, insólito, corrosivo". Outros lhe apontam o caráter fulgurante. Outros ainda, o castigat mores, o quadro da vida francesa cotidiana que descreve, do ângulo da falsa consciência da pequena-burguesia, aí flagrada através das mídias em que se dá em representação, verbal como visual. Trata-se de uma expertise imperdível. Neste sentido, meio século depois, os loucos por Barthes podem agora contemplar o universo visual do autor, a face visível de tudo aquilo que, nos alvores dos anos 1950, estava sendo alvejado.

Realizado por Jacqueline Guittard, outra grande especialista a trabalhar na França, o trabalho entremeia o texto integral de Mitologias com 120 ilustrações. Elas são diferentemente autênticas. Algumas remetem-nos à iconografia mesma com que Barthes trabalhou: tal publicidade do sabão em pó Persil, que diz que ele lava em profundidade, como se os tecidos fossem profundos; tal fotografia de tal celebridade na revista Paris Match, que diz que aquela pessoa é igual a todos nós, para melhor mantê-la em sua posição de intocável; tal coluna do jornal Le Figaro a propósito da presença francesa na África, que diz que a Argélia "é" francesa, essencializando a História... Mas, dada, por vezes, a impossibilidade de se chegar à imagem exata, outras restituem a imagem possível, aquela que Barthes bem pode ter tido sob sua mira ao escrever. O método é tão mais feliz quanto se sabe que o próprio Barthes - fazendo como Proust, cujas personagens condensam muitas chaves biográficas ao mesmo tempo - não partiu de uma única impressão, mas lançou sobre essa França da era da Guerra Fria o instrumento mais perscrutador de sua atenção flutuante. Assim, mais que um levantamento fotográfico, o que temos é algo sutil: o ar do tempo dos anos 1950.

O marxismo, como se sabe, foi uma paixão intelectual do século 20, e Barthes a representa plenamente, nesse momento, imediatamente posterior a O Grau Zero da Escritura, em que já trabalha sob a divisa do engajamento sartriano, tanto assim que este seu primeiro livro gira em torno do que chama "a moral da forma". É a esse parti pris de esquerda que alude Julia Kristeva, em depoimento ao jornal Le Monde, em outubro passado, ao observar que o papel de cada mitológica barthesiana é mostrar a ideologia que se dissimula sob o discurso supostamente inocente. Na mesma direção vão todos aqueles que assinalam que Mitologias explode, como nunca antes, os estereótipos sobre os quais se assenta a opinião pública, que Barthes renomeou "a Doxa".

Mas vale notar também quanto Marx já se vê aqui atravessado por Saussure, pois é nesse cruzamento que está toda a diferença. De fato, uma coisa é denunciar o valor ideológico da cultura de massa, outra é ir, caprichosamente, ao trabalho dos signos, inclusive ao falatório das legendas das imagens, supondo, com Saussure, que a língua tem profundidade, e trabalhando na faixa de ressonância das palavras, na bolha retórica das conotações, na jactância dos discursos. Como nos diz o próprio Barthes, neste trecho célebre do prólogo de Mitologias, que, aliás, ajuda a entender a nouvelle critique: "Eu acabava de ler Saussure e tinha a convicção de que, tratando as representações coletivas como sistemas de signos, podia esperar escapar da denúncia piedosa e dar conta, no detalhe, da mistificação que transforma a cultura pequeno-burguesa numa natureza universal". A crítica piedosa procede à da exumação do sentido, a crítica fina, à tentativa de demonstração das operações de construção do sentido opressivo. Bom motivo para saudarmos a reedição de Mitologias.

LEDA TENÓRIO DA MOTTA, PROFESSORA DA PUC-SP, É AUTORA, ENTRE OUTROS, DE PROUST - A VIOLÊNCIA SUTIL DO RISO (PERSPECTIVA)
Jornal O Estado de S.Paulo

A Box of Darkness

Viúva relata em livro choque ao descobrir 'vida secreta gay' do marido
Sally Ryder Brady conta jornada 'agridoce' em livro de memórias de seu casamento de 46 anos.

Ao mesmo tempo em que lidava com a dor de ter se tornado viúva, após um casamento de 46 anos, a americana Sally Ryder Brady se viu, em 2008, diante de outro desafio: o que fazer com a constatação de que seu marido era homossexual?

Esse é o tema do recém-lançado livro A Box of Darkness (St Martin's Press), em que Sally tenta mostrar como tentou fazer as pazes, na viuvez, com as "duas vidas" de seu marido, Upton.

Em uma delas, Upton era carinhoso, bom pai, divertido, inteligente, erudito, um editor bem-sucedido. Na outra vida, era introspectivo, violento, homofóbico, com tendências ao alcoolismo - e gay.

Em seu site, a autora diz que a jornada "agridoce" pela qual passou ao redescobrir seu marido atesta "os desafios e os prazeres universais do amor duradouro".

A constatação da homossexualidade ocorreu pouco após a morte de Upton, de causas naturais, em 2008, quando Sally encontrou uma pilha de revistas de nudez masculina em meio aos pertences do marido.

"Respirei fundo diversas vezes, sentindo-me de repente sem oxigênio e um pouco doente", recorda ela em seu livro.

A cena a levou de volta a 1970, quando, após uma noite de bebedeira, Upton admitiu para Sally ter tido relações homossexuais com um velho amigo. Ele atribuiu o ocorrido ao álcool e à "negligência" da esposa, que não estaria lhe dando atenção suficiente.

Pouco depois de fazer a confissão, Upton encerrou a conversa. E nunca mais o casal tocou no assunto.

'Será que eu sabia?'

Com a descoberta das revistas pornográficas, a questão voltou a atormentar Sally.

"Quero jogá-las (as revistas) fora, mas, como um advogado ou detetive coletando provas, coloco-as de volta na gaveta. Rendo-me a uma enxurrada de tristeza - primeiro, a tristeza de autopiedade de uma amante enganada; então, a tristeza pelo sexo que compartilhamos tão pouco nos últimos 15 anos; finalmente, tristeza por Upton e pelo grande fardo de seu segredo. Como eu posso não ter sabido que ele era gay? Ou será que eu sabia?"

Sally conversou com os quatro filhos, com amigos e com a terapeuta de Upton e constatou que pouco se sabia dessa "vida secreta" do marido e ele havia mantido sua homossexualidade em uma existência isolada.

"Não (eram) dois Uptons, mas duas realidades, dois mundos que ele deve ter lutado durante toda a sua vida para manter separado. (...) Posso passar o resto da minha vida tentando entendê-lo. Mas quem pode realmente saber o que passa no coração de outra pessoa? O que sei é que Upton me escolheu e que me amou. Acho que isso é suficiente", conclui a autora em sua obra.

O livro recebeu críticas distintas. Uma resenha no Washington Post desdenhou o fato de "sentirmos como se tivéssemos assistido uma esposa arrastar seu marido (aos holofotes) e dar-lhe o tratamento que ele deve ter merecido. Exceto pelo fato de que ele está morto".

Já texto do New York Times pondera que "ainda que nós, como leitores, fiquemos perturbados pela certeza de que Upton ficaria aterrorizado pela versão pública de sua história, é mérito (de Sally) o fato de que sentimos tanta compaixão pelo sofrimento dele quanto pelo dela". BBC Brasil - Todos os direitos reservados. É proibido todo tipo de reprodução sem autorização por escrito da BBC.
Jornal O Estado de São Paulo

Biografia de Churchill

Retrato de um protagonista do século 20
Biografia de Churchill, escrita por seu único filho e publicada há 45 anos foi destaque na seção 'Resenha Bibliográfica'

Randolph Churchill, WINSTON S. CHURCHILL, Vol. 1, Youth, 1874-1900, Ilustrado, Houghton Mifflin, 1966, 614 pags.

Eis uma biografia que oferece esperança a muitos pais, cujos filhos na infancia foram considerados incorrigiveis pelos mestres ou, quando jovens, impossiveis de suportar pelos progenitores.

Não é tarefa facil biografar Winston Churchill. Sua vida politica prolongou-se por sessenta anos. Sua juventude foi tudo menos banal - aos 26 anos já tinha lutado em três guerras, escrito três livros e ganho as eleições para membro do Parlamento.

Randolph Churchill, unico filho de Churchill, lançou-se á tarefa ingente de escrever uma biografia paterna em cinco volumes, tendo agora aparecido o primeiro deles. O A., de inteligencia clara e espirito pratico, planejou com tempo e calma o material de que dispunha e assim nos apresenta um volume de excelente leitura. Dispondo de um arquivo excepcional de documentos, usou de muito bom senso ao separar os documentos da narrativa propriamente dita. (...)

O primeiro volume abrange o mesmo espaço de tempo relatado por Winston Churchill em sua autobiografia "My Early Life". Ou seja, desde o seu nascimento em 1874 até 1900, quando ingressa em sua vida política, como membro conservador do Parlamento. O volume termina realmente com a morte da Rainha Vitoria em 1901 e nos deixa o jovem Churchill no inicio de sua longa carreira politica, além de muitas outras há uma diferença a fazer entre as duas obras - a do pai e a do filho. "My Early Life" é uma autobiografia discreta, pois que foi escrita para publicação imediata. Randolph Churchill é um bom filho, mas é também um historiador honesto e não se deixa prender por certos detalhes menos favoraveis. Parte do principio que toda a verdade acerca de Churchill pode ser dita (...).

O que o pai em sua autobiografia contou veladamente, por exemplo suas relações com seus progenitores, já o filho pode relatar abertamente, atendo-se á verdade e dando ao mundo uma visão ampla e clara da infancia de Churchill. Quando este diz venerar o pai e idolatrar a mãe, Randolph explica que tanto o pai como a mãe pouca atenção e carinho dispensaram ao filho. Lord Randolph achava o filho um fracasso, pouco se importava com o mesmo, absorvido que sempre estava em politica. Lady Randolph se dedicava á sua intensa vida social; não tinha tempo para escrever ao filho nem visita-lo no colegio, nem sequer o queria em casa nas ferias para não atrapalhar suas festas e reuniões. A atitude dos dois via desde preocupação pelo futuro do jovem, até uma fria indiferença, para não dizer quase crueldade. (...)L.Z.

NOTAS CRÍTICAS

A seção "Resenha Bibliográfica" integrava a "Parte fixa" do SL, conforme o projeto elaborado por Antonio Candido. Segundo ele, nela entrariam "artigos curtos, de duas laudas, no máximo três, sobre livros que escapem ao rodapé (outra seção da "Parte fixa"), visando a fornecer ao leitor um conjunto de notas críticas e informativas sobre publicações nacionais e estrangeiras". Os autores do texto tinham seus nomes escritos no alto, junto ao título da seção; em cada nota, constavam apenas suas iniciais. Neste texto, "L.Z." se refere a Laura Zamarin, colaboradora na área de literatura de língua inglesa.
Jornal O Estado de São Paulo

Open City


Solidão com vista para a metrópole
Nascido nos EUA mas criado na Nigéria, Teju Cole, de 36 anos, fala de seu elogiado romance de estreia, Open City - que o levou a ser comparado a Albert Camus -, no qual lança um olhar de desilusão sobre a Nova York pós-11 de Setembro
Francisco Quinteiro Pires
NOVA YORK

Julius é obrigado a fazer uma escolha todos os dias. Ele decide, sobretudo quando caminha sem rumo por Nova York, quem gostaria de ser. "Andar pelas ruas é uma lembrança de liberdade", acredita. A sua decisão, porém, é difícil. Julius não sabe o que deseja ser, e talvez a cidade onde mora não seja um lugar favorável para reinventar uma identidade. Nova York é uma cidade aberta, produtora incessante de possibilidades que escondem uma armadilha: a fartura de caminhos leva à paralisia do indivíduo.

Teju Cole é americano, nascido no Estado de Michigan, mas criado em Lagos, na Nigéria. Mora nos Estados Unidos desde 1992. Tem 36 anos, é escritor e criador de Julius, protagonista de Open City, o seu elogiado romance de estreia. Cole confunde nesse livro a própria perspectiva com a do personagem. "Julius é a parte nebulosa e sensível da minha alma", diz. "Ou talvez ele seja a alma coletiva de Nova York. Ele está ferido e também fere. Gosta das pessoas, mas se aparta delas. É um homem do pós-11 de Setembro que luta para descobrir como eventos recentes e antigos continuam a ecoar no presente."

O romance retrata Nova York como uma cidade subjugada. "O título Open City soa positivo porque a palavra open (aberto) sugere significados positivos", comenta. "Open city pode significar, porém, a cidade que um exército invasor ocupou durante uma guerra e preservou da destruição em troca de rendição. Bruxelas, Paris, Roma e Atenas foram cidades abertas durante a 2.ª Guerra Mundial. Sem dúvida, o termo tem conotações diabólicas."

Nova York, segundo o personagem Julius, é uma cidade traumatizada pelos ataques ao World Trade Center em 11 de Setembro de 2001. Ela inspira pesadelos. O protagonista confunde com pessoas entrando em catacumbas os nova-iorquinos que descem as escadas da estação de metrô. O seu olhar tem a influência do passado - ele observa os edifícios de Wall Street, centro financeiro da cidade, e recorda que foram erguidos por fortunas acumuladas com a venda de escravos durante o século 18. Esse é o contexto em que se desenrola a narrativa de Open City, pelo qual Teju Cole foi comparado aos escritores W.G. Sebald, Albert Camus e Joseph O"Neill.

A revista The New Yorker dedicou cinco páginas de crítica ao romance, considerado original e penetrante. Segundo James Wood, o autor da resenha e do livro Como Funciona a Ficção (Cosac Naify), "Cole criou um romance o mais próximo possível que se pode chegar de um diário, com espaço para reflexão, autobiografia, entorpecimento e repetição. Essa realização é extremamente difícil, muitos romancistas consagrados perderiam a mão, ao contrário de Cole que, misteriosamente, maravilhosamente, não desanda". Para Colm Tóibín, autor de Brooklyn (Companhia das Letras), "Open City é uma meditação sobre história e cultura, identidade e solidão, é um romance para saborear e guardar como um tesouro". Em entrevista à Time, Wole Soyinka, ganhador do prêmio Nobel de 1986, recomendou Open City como leitura de verão. A obra já tem traduções encomendadas para o alemão, o francês e o espanhol. Não há ainda previsão de lançamento no Brasil.

Nigeriano de ascendência alemã, Julius se mudou para Nova York para fazer residência médica. O enredo, porém, segundo o autor, não foi criado para abordar os problemas da imigração. "O personagem é só um imigrante envolvido com as próprias experiências", diz Cole. "Ele não representa um grupo." Julius conduz no hospital uma pesquisa sobre idosos com distúrbios emocionais. O romance começa no outono e termina um ano depois, enquanto o inverno cinza se aproxima, metáfora para a desilusão do protagonista. "Eu entendo a melancolia do Julius", diz o escritor. "Tinha de entendê-la, pois do contrário não seria capaz de escrever com convicção. Em certos dias, eu e Julius temos a mesma visão de Nova York."

De duas a três vezes por semana, Julius vaga sem objetivo pela cidade. Assim, ele pretende fugir da vida previsível representada pelo trabalho no hospital, onde as relações com pacientes e colegas se tornaram mecânicas. Para ele, cada região de Nova York é "nutrida por um tipo diferente de substância" - sendo Manhattan "a mais estranha das ilhas", e não a mais incrível. O personagem, porém, não consegue extrair nada dessa constatação. O que ele observa, e oferece ao leitor como fato constante até a última página, é a solidão absoluta dos moradores de Nova York. "Eu vejo, no entanto, mais beleza e elegância na cidade do que o meu personagem."

Teju Cole mora no Brooklyn e, ao contrário de Julius, visita os outros boroughs da cidade: Manhattan, Queens, The Bronx e Staten Island. A sua perspectiva, admite o escritor, é mais ampla do ponto de vista histórico-cultural se comparada com a do narrador, para quem o passado é um "grande espaço vazio". Nesse universo, talvez inexistente segundo o personagem, "as pessoas e os acontecimentos estão flutuando à deriva". A Nigéria, a sua terra natal, encontra-se nesse lugar onde boiam as memórias esquecidas.

O coração vazio de Julius precisa das ruas cheias da cidade para processar o esquecimento do passado e a incapacidade de acessar o presente. As várias faces dos habitantes de Nova York o oprimem porque remetem à solidão. A descrição dos lugares em Open City é realista, mas o desdobramento dos fatos depende de uma dinâmica absurda. "Open City é um trabalho de ficção, mas eu quis escrevê-lo o mais próximo da realidade", diz Cole. "Essa opção significa incluir algo do ritmo e da inércia do cotidiano. Para conceber o livro, além de ler muito sobre Nova York, realizei longas caminhadas e descrevi em detalhes o que observei."

Os encontros do médico com outros personagens são fortuitos. Cole inventou territórios sociais que Julius se sente impelido a cruzar. No que o médico se transforma depois das perambulações pela metrópole multicultural é difícil saber; o que o protagonista traz sob a superfície está bem guardado. Esses segredos se mantêm inacessíveis mesmo nas situações mais dramáticas. É o caso do término do namoro com Nádege, que havia se mudado para São Francisco meses antes. O fim da relação foi comunicado sem surpresas por telefone.

Teju Cole se preocupa em enquadrar os tempos da tragédia, que representam uma ruptura emocional e temporal na trajetória do indivíduo, mas evita descrevê-los em tom melodramático ou sensacional. "Recentemente, enquanto editava algumas das minhas fotos, percebi que existem fortes conexões entre o meu jeito de fotografar e o meu estilo de escrita. Há uma tendência de capturar o momento decisivo na vida cotidiana", afirma Cole, que é fotógrafo e especialista em história da arte holandesa.

A observação precisa e a paciência na descrição parecem ser a herança do escritor para Julius. "Consigo ter uma visão mais ampla em fotografia, ajustando a profundidade do campo: o que está perto e o que está longe entram assim em foco", ressalta o ficcionista. "Quando escrevo, coloco os seres humanos sob uma perspectiva histórica abrangente, o hoje pode ser o mesmo período de 100 anos atrás."

Depois de explorar as raízes de Nova York, Julius passa a investigar as próprias. De repente, o médico viaja para Bruxelas, capital da Bélgica, onde teria a chance - implausível - de contactar a avó alemã. A mãe e a avó sobreviveram ao nazismo. No lugar dos familiares, porém, ele encontra Farouq, marroquino que trabalha num cybercafe e deseja ser o próximo Edward Said (1935-2003), ensaísta que criticou a definição ocidental do Oriente. Farouq afirma que a sua tese sobre o mundo árabe foi rejeitada pela universidade por ter sido apresentada uma semana após o 11 de Setembro.

"Escrever sobre Nova York e Bruxelas me deu a oportunidade de pensar sobre dois lugares frequentemente comparados, por estarem em luta com o presente e o passado de maneira similar." Nenhuma das duas sugere esperança, segundo o enredo de Open City. Tema da próxima obra do escritor americano, Lagos, na Nigéria, talvez desperte a mesma desilusão. Cole admite estabelecer padrões ao observar o comportamento humano. Se ele mantiver esse hábito no atual projeto, vai mostrar a anomia de Lagos, a capital econômica de uma nação afundada em pobreza, que poderia ser considerada mais uma cidade aberta.
Jornal O Estado de S.Paulo

domingo, 24 de julho de 2011

O Fim dos Alimentos

Nathan Debortoli
Referência(s):

(tradução de Ana Gibson do original The end of food, 2008, Boston, Houghton Mifflin. ISBN 9780618606238., 416 pages), Rio de Janeiro, Elsevier, 364 p. ISBN 978-85-352-3208-0


Jornalista desde 1983, Roberts escreve e ministra palestras freqüentes sobre a interação complexa da economia, da tecnologia e do mundo natural. The End of Food seu livro mais recente, foi publicado em 2008. Roberts tem escrito também para jornais de prestígio como The Los Angeles Times, The Washington Post e The Guardian. Dá palestras frequentes sobre questões energéticas e outros recursos no Fórum Econômico Mundial (Davos), E.U. Environmental Protection Agency, Biotechnology Industry Organization (BIO) e o Council on Foreign Relations. A obra “O Fim dos Alimentos” conduz de forma interdisciplinar temas socioeconomicos, ambientais e institucionais.

Na narrativa de Roberts a crise dos alimentos é fundamentalmente econômica e de sustentabilidade, com raízes no excedente agrícola (primera fonte de troca geradora do comércio e do lucro) dando origem a um paradigma econômico explícito - o capitalismo - criador de escalas maiores de produção e um sistema globalizado de comércio de alimentos, propiciando a revolução industrial. Nesta obra o autor não pretende criar uma teoria da crise mundial dos alimentos, contudo, constrói uma amálgama teórica fundamentando e correlacionando aspectos explicativos do estado da arte da economia alimentar. Dividida em três seções e dez capítulos cronológicos a obra contempla conceitos da agricultura primitiva, bem como a evolução das diversas técnicas de cultivo e produção animal, perpassando tecnologias alimentares criadas na revolução industrial e a produção da agricultura moderna em larga escala, intensiva em insumos. Explica-se na obra que o novo modelo industrializado da agricultura tornou a fazenda um empreendimento racional - quanto maior a entrada de capital - fertilizantes, pesticidas, sementes - maiores os lucros. A pecuária e a agricultura intensivas de substâncias químicas degradaram a capacidade produtiva dos sistemas naturais.

A espiral tecnológica da crescente produtividade reduziu de forma generalizada os preços dos produtos no mercado, incrementando o poder de compra dos consumidores, contudo, gerando lento desastre para os produtores. Empresas farmacêuticas e petroquímicas engoliram os produtores pequenos e menos eficientes oligopolizando setores de insumos e sementes, assim como processadores detiveram a maior parte do mercado de carnes. Graças aos lobbies dessas empresasaboliram-se em muitos países leis e restrições quanto à procedência de produtos alimentícios. Tais prerrogativas geraram protocolos universais isentando de barreiras diplomáticas e comercias o mercado mundial de investidores da indústria de alimentos, como a Nestlé e o McDonald’s. Na sua crítica Roberts inclui conceitos de externalidades ambientais e sociais ocasionadas pelo consumo maciço dos recursos naturais, bem como a escassez iminente das fontes de energia que propiciam essa produção (e.g. o petróleo e atualmente a água) e demonstra como todos fatores se interrelacionam gerando a insustentabilidade socioambiental da economia alimentar.

De acordo com Roberts a revolução do setor do varejo deu-se pela seguinte lógica: (a) agricultores são reféns dos (b) insumos, que são providos por (c) multinacionais petroquímicas e farmacêuticas que agregam valor aos produtos enviados para (d) grandes marcas que processam os alimentos e (e) distribuem alimentos acabados ou semi-acabados para varejistas que são (f) controlados pelo preço e a demanda do mercado. (g) Os quais criam suas próprias marcas (setor supermercadista) de menor qualidade e com menor valor de venda (genéricos) (h), usurpando o poder de venda de redes menores que fundem-se para criar poucas grandes redes varejistas (i), aumentando o custo do produtor primário e alimentando a hegemonia varejista. Neste processo os produtos alimentícios ganham alto valor agregado devido ao marketing embutido. Cadeias varejistas como Walmart contabilizam cada centímetro das prateleiras para vender os produtos de maior receita, utilizando-se de itens não alimentícios geradores de taxas de lucros mais elevadas para subsidiar de forma eficaz a venda dos alimentos.

Ao mesmo tempo que populações de países do norte (desenvolvidos) e do sul (em desenvolvimento) lutam contra as consequências da dieta moderna, como a obesidade, doenças cardíacas e diabetes, uma em cada sete pessoas no mundo vive em estado de “insegurança alimentar”. A busca por produtos mais saudáveis e sustentáveis tem sido limitada por meio das fronteiras dos limites fiscais, estruturais e técnicos do setor alimentício. A cultura just-in-time obriga produtores a entregarem produtos em tempo recorde; os alimentos viajam globalmente portando patógenos, estimulando a contaminação por mutações de vírus como a gripe suína, gripe aviária e salmonella. O just-in-time diminuiu a oferta de empregos por meio da logística e reduziu os níveis salariais. Por um lado estimulou a superprodução via exigência de alimentos de aparência perfeita; e por outro, varejistas exigem que produtores comprovem que a produção é efetuada da forma mais barata possível. Reduzindo a capacidade dos produtores de lidar com contratempos como: greves, brechas nas cadeias de abastecimento e surtos de doenças.

Alternativas como impostos de sustentabilidade dos alimentos vêm sendo discutidas no congresso norte-americano. Os preços dos alimentos dependeriam de suas externalidades na produção e de seus possíveis benefícios ou danos á saúde. Inexoravelmente propostas desse tipo são barradas por político patrocinados por produtores de alimentos. Do ponto de vista ecossistêmico, a agricultura é a maior poluidora dos sistemas aquáticos pois utiliza amplamente o nitrogêneo juntamente com organofosfatos encontrados nos pesticidas. A produção agrícola a curto prazo agrava a extração e a exploração de recursos naturais e humanos dos quais depende sua produtividade a longo prazo. Os produtos transgênicos são alívios temporários para a escassez de alimentos. Para além desses existem limites biológicos na produção de carnes e de alimentos em geral. A redução do estoque de terras agricultáveis e a redução de outras culturas em favor do milho e da soja escassearam diversas fontes de alimento em detrimento da produção da carne.

Tendo a agricultura industrial esgotado as suas capacidades renovadoras, a nova agricultura sustentável surge como alternativa de maior consciência sobre os limites naturais. Tendo automaticamente diminuído a obsessão por soluções tecnológicas e milagres científicos da trasngenia. Pesquisas demonstram que milhares de fazendas de pequeno e médio porte têm adotando a produção diversificada/rotação, mais eficientes que o agronegócio monocultor. Novos modelos de agricultura sistêmica natural reintegram gado e lavoura, cultivando plantas que estimulam o ciclo de nutrientes complexos. Os alimentos tendem a se tornar mais sociais, engendrando a revalorização do agricultor. Os números da agricultura orgânica já alcançam cifras altas de concorrência em relação à agricultura industrial, com maior valor agregado e menor poluição. Esse sistema contudo ainda sofre embates com forças do mercado, que descaracterizam os seus fundamentos principais.

“O Fim dos Alimentos” captura a atenção do leitor pela detalhada análise da lacuna e do paradoxo crescente entre a economia alimentar moderna e as bilhões de pessoas que deveriam ser alimentadas por ela. Roberts elucida meticulosamente como o varejo desenvolveu uma cadeia de produção de alimentos baseada na alta lucratividade e nos preços baixos para o consumidor. Explica como a iminente catástrofe da escassez alimentar é reflexo da produção mundial de commodities, do oligopólio empresarial e do consumo maciço de alimentos industrializados. Este livro é de leitura obrigatória para indivíduos que preocupam-se com os alimentos, seus hábitos de consumo, e como a produção mundial ditará a sobrevivência no planeta.. Um prato cheio para quem deseja atualizar-se e aprofundar conhecimentos relativos a complexa rede de elementos que envolve uma de nossas fontes primordiais de vida: os alimentos.

Uma geografia dos Yanomami


Os Yanomami são um pouco menos de 30.000 (dos quais 14.000 no Brasil) e vivem em uma área de aproximadamente 192.000 quilômetros quadrados, em ambos os lados da fronteira Brasil-Venezuela, em áreas que vão desde ambiente de floresta amazônica de várzea – na bacia do Orinoco e do Amazonas – até regiões francamente montanhosas. Na década de 1990, do lado brasileiro, foram dizimadas por incursões de garimpeiros que levaram doenças graves – em especial a malária – a comunidades até então relativamente isoladas. A luta dos grupos indígenas, apoiada pelo lobby indigenista permitiu que na década de 2000 ganhassem o controle de um território que os torna imunes à expulsão e à perda de recursos econômicos e sociais associados: reconhecida e homologada em 1992, a Terra indígena Yanomami (TIY) abrange agora 96 650 km2 (aproximadamente a área de Portugal ou da Hungria).

As etapas da ocupação
René Somain
Referência(s):

Les Yanomami du Brésil - Géographie d’un territoire amérindien

François-Michel Le Tourneau

Collection Mappemonde, Éditions Belin (Paris), 480 pages, 32 Euros


Recentemente a maneira de ver os Yanomami mudou, e este livro é a prova disso. O declínio das populações indígenas do Brasil era apresentado como inevitável, levando à desintegração destas sociedades. Porém, de acordo com François-Michel Le Tourneau, uma espécie de “revolução copernicana” aconteceu, “começamos a considerar a transformações sociais em curso nos grupos indígenas não como uma degeneração, mas como um processo de adaptação às novas circunstâncias, um fenômeno compartilhado por todas as culturas do mundo, dominante ou não: a partir daí, podemos considerar que os atuais Indios e não como relíquias de um passado misterioso, mas comos nossos contemporâneos”.

3A primeira parte do livro, “A descoberta de um povo”, mostra os primeiros contatos com os Brancos, a instalação de missões religiosas, dos garimpeiros e os projetos dos militares. A segunda parte, “Que território para os Yanomami?”, é dedicado às etapas de definição do território Yanomami e aos vários ataques aos quais ele foi submetido. A terceira parte, “Novos desafios”, refere-se ao papel fundamental da assistência sanitaria e da organização dos Yanomami. A seção final, “Anatomia do território Yanomami”, abrange a sua organização interna, seus mecanismos, a sua periferia e os seus impactos no exterior.

Os reconhecimentos


François-Michel Le Tourneau é pesquisador no CNRS-Creda, para quem completou quinze missões, entre 2002 e 2006, para estudar o estilo de vida dos Yanomami e as suas relações com o entorno. Neste trabalho bem documentado (tirado da sua Livre Docência), ele explica como este povo se vê e se define em relação a grupos em torno dele. Como ele é geógrafo, não antropólogo (mesmo que tenha trabalhado com eles), este livro centra-se na geografia atual de um povo “que teve a chance de sobreviver e de poder se definir hoje mais em relação às civilizações circundantes do que em relação ao seu passado”.

As regiões


François-Michel Le Tourneau narra em detalhes a gênese deste território, aliando a abordagem geo-histórica (que perfaz três quartos do livro) e a análise geográfica deste território. Ele vota até origem dos Yanomami, conta os contatos iniciais (durante a delimitação da fronteira entre Brasil e Venezuela em 1940), e a descoberta que as várias tribos reconhecidas ao longo dos anos formavam na verdade um único povo, que fala quatro dialetos de um mesmo idioma. Ele analisa objetivamente o papel das missões católicas e protestantes, as atividades das organizações humanitárias, o dano causado pela chegada dos Brancos, atraídos pelas riquezas minerais do subsolo, o papel da geopolítica, as alianças e contra-alianças entre as oligarquias locais, federais, militares e científicos. A segunda abordagem é apoiada por um notável conjunto de mapas resultantes da análise de imagens de satélite e das muitas horas gastas andando pelo território Yanomami, GPS na mochila.

A invasão dos garimpeiros



O livro fornece, portanto, uma quantidade de “fatos e conhecimentos para compreender os sucessos e os desafios que esperam, no século XXI, este território vasto e tão especial”. O tom é tão objetivo quanto possível, toda a literatura disponível é mobilizada, todos os recursos da análise de imagens de satelite são usados, mas François-Michel Le Tourneau não esconde uma profunda empatia com este povo que lutou e ainda lutando para manter seu território e o seu modo de vida em condições adversas. Pode ser tomado como evidência de que essa adaptação inteligente a foto da página 305 do livro: pode-se ver, colado na parede da escola (bilingue) de Demini, um cartaz que explica - em Yanomami - o uso do software Photoshop.
http://confins.revues.org

Paisagens francesas


João Carlos Nucci

Referência(s):
Paisagens francesas, terroirs, cidades e litorais
Andrea De Castro Panizza (Organizadora)
Editora da FECILCAM (Faculdade Estadual de Ciências e Letras de Campo Mourão, Paraná). O livro encontra-se disponível para download gratuito no site:
http://www.fecilcam.br/editora, no link Obras Digitais

O livro “Paisagens Francesas: terroirs, cidades e litorais”, organizado e traduzido pela geógrafa e doutora Andrea de Castro Panizza, é fruto de pesquisas elaboradas por geógrafos de diversas universidades e institutos de pesquisa da França, especialistas em estudos de paisagens. Os nove capítulos, textos inéditos relacionados às pesquisas desenvolvidas pelos autores, conduzem o leitor a uma viagem por algumas regiões da França, passando por cidades, vilarejos, jardins, vinhedos, baías e ilhas, comprovando a expressividade de sua diversidade paisagística.

No primeiro capítulo, o doutor Bernard Gauthiez, professor titular da Universidade de Lyon 3, escreve sobre a evolução da paisagem urbana do Centro de Lyon, originada há 2.000 anos às margens do rio Saône. Descreve as construções de habitações coletivas do século XVII, com 4 a 6 andares, onde coabitavam burgueses e operários, explicando que com a aplicação, no século XIX e no início do século XX, nos novos bairros dessa mesma regra construtiva, atualmente a distinção de um edifício construído em 1680 de outro edificado em 1840 torna-se difícil, resultando em uma grande homogeneidade do espaço urbano produzido até o final do século XIX. Gauthiez explica que entre 1810 e 1914 ocorreu um desenvolvimento urbano muito rápido e uma destruição de quase metade dos bairros centrais de Lyon em nome da solução dos problemas de insalubridade, que foi acompanhada de um crescimento horizontal, com a canalização de rios, que hoje em dia foram remodelados para o passeio, arborizados com fileiras de plátanos e ladeados por edifícios dos séculos XVIII-XIX. Essa expansão horizontal da mancha urbana ocorreu com maior intensidade após 1945, assim como por toda Europa, na forma de grandes conjuntos de habitação social coletiva, frequentemente situados a 5-10 quilômetros do centro, e na forma de loteamentos de casas individuais até 20-30 quilômetros do centro, perfurando os espaços rurais, às vezes de grande qualidade paisagística. O autor informa que nas últimas décadas o poder público tem dado atenção ao modo de ocupação do solo, impedindo a colonização dos pontos altos da cidade, o que conserva a vista magnífica e, em paralelo, o centro da cidade tem sido renovado, com adaptações das vias para automóveis e construção de estacionamentos subterrâneos, tentando reparar os erros do passado recente, e com ênfase na requalificação dos espaços públicos, para uso de pedestres, recreação e descanso. Porém, mais distante do centro a expansão de loteamentos continua a um ritmo acelerado. Chama-se a atenção para o termo “mitage” utilizado pelo autor para essa questão e que, segundo nota da tradução, significa a multiplicação, o espalhamento, de residências em um espaço rural próximo a uma aglomeração urbana; ainda conforme a tradução, a palavra mitage faz preferência a mite, a traça que corrói tecidos deixando após sua passagem furos aleatórios em um tecido inicialmente uniforme. Com esse crescimento, afirma o autor, Lyon poderá se fundir a cidades vizinhas, como Saint-Étienne a sudeste, cujo centro está a apenas 60 quilômetros, podendo alcançar os 4 milhões de habitantes, gangrenando os espaços rurais cuja qualidade paisagística está cada vez mais comprometida, e com regras de urbanismo banais que unificam a paisagem das cidades francesas, sendo o restante negligenciado. O autor conclui afirmando que a imagem de Lyon, hoje, se constrói principalmente ao redor de projetos pontuais de planejamento, de exibição decididamente contemporânea, mas pouco ancorados na história e no espírito do lugar.

Nathalie Carcaud, Doutora, professora titular do InstitutNational d'Horticulture e Paysage (INHP),Agrocampus-Ouest, Centro de Angers e Arnaud de Lajartre, Doutor, professor da Universidade de Angers apresentam, no segundo capítulo, quatro estilos de jardins: a horta familiar no meio rural, o jardim de recreação, o jardim comunitário e o jardim público. Afirmam que os jardins são fiéis espelhos da nossa sociedade e que as suas concepções cristalizam uma visão em miniatura da sociedade pelo seu criador, agrupando uma grande diversidade de realidades materiais e sociais por causa de sua dimensão, sua localização, suas funções, seus usos, sua história. Sobre o primeiro tipo, a horta, chamam a atenção para o fato de que antes de se ter a necessidade de se produzir alimentos, o mais importante seria o prazer em continuar a dominar o know-how agrícola, da semeadura à colheita. No jardim de recreação, apresentam uma foto de uma vista parcial de uma casa moderna com boa parte do terreno ao redor reservado ao verde e ao lazer e, salientam que esse seria um tipo de espaço que vai contra a uma tendência de adensamento populacional, exigido por lei em uma lógica de densificação do hábitat, onde o sonho da “casa com jardim” se torna cada vez mais impossível, entretanto, comentam os autores que, mesmo assim, certos municípios continuam a vender grandes lotes visando compradores afortunados atraídos pelo alto padrão residencial e paisagístico do território. Os autores explicam que o terceiro tipo, o jardim comunitário, aparece, principalmente, em locais que durante os anos 1950 e 1960 foram construídos edifícios coletivos para a massa operária, com milhões de metros cúbicos de concreto que deixavam pouco lugar aos metros quadrados de terra a ser trabalhada. Sem possibilidades de exercerem os prazeres físicos do manuseio da terra em seu jardim particular, e segundo uma lógica paternalista de alguns chefes de empresas, espaços cultiváveis foram propostos aos assalariados ao mesmo tempo em que as cidades operárias os acolhiam. Assim nasceram os famosos jardins operários, cultivando a relação entre a origem agrícola desta mão de obra e o seu estatuto de proletário industrial. Atualmente, muitas cidades ainda reservam espaços para os jardins comunitários que permitem recriar a relação social entre os habitantes dos bairros, um tanto desumanizados pela imposição do concreto, ou pelas fracassadas políticas urbanas, fábricas de gueto social. Valorizam ainda a possibilidade de um resgate parcial da condição rural, bem como a possibilidade de se conseguir algum tipo de alimento de qualidade reconhecida para a própria mesa. Os autores ainda chamam a atenção de que a melhor agricultura continua a ser, portanto, aquela de proximidade, sendo que o jardim comunitário bate todos os recordes de distância, e se inscreve em uma lógica que respeita a dimensão do terreno na qual os defensivos agrícolas químicos são pouco utilizados. No caso do jardim público os autores apresentam uma questão terminológica, também importante aqui no Brasil, ao se tratar de termos relacionados a espaços verdes. Trata-se do enigma, de difícil resolução, quando se tenta definir os termos “parques e jardins”. Para os autores, qualquer que seja a escala, a definição do jardim reforça o critério do cultivo de espécies vegetais frutíferas ou ornamentais em um terreno, frequentemente, fechado, e que no sentido oposto, os parques historicamente estabelecidos ao redor dos castelos são constituídos de terrenos naturais cercados de bosques ou de campos, nos quais foram traçadas alamedas e caminhos destinados à caça, ao passeio ou ao prazer. Assim, continuam os autores, além da dimensão (um parque pode conter jardins), a diferença entre parque e jardim expressa-se, sobretudo, pelo caráter pretensamente “natural” do primeiro e pela predominância do cultivo do segundo.

No terceiro capítulo, Raphaël Schirmer, Doutor, professor da Universidade de Bordeaux3, faz uma apresentação das paisagens dos vinhedos da França, com descrição dos estilos de adegas de acordo com a solução atribuída à conservação dos vinhos, do meio físico nos quais as vinhas crescem, considerando-se a variação zonal do clima, principalmente às necessidades de água de cada tipo de vinha, as condições do relevo e das rochas. O autor ainda comenta sobre a presença de comunidades humanas, sendo uma das características que mais marcam as paisagens de vinhedos, já que a cultura da vinha sempre necessitou de mão-de-obra numerosa e permitia a sobrevivência de agricultores em pequenas superfícies. Assim, muitos vinhedos apresentam uma coleção de burgos e vilarejos que se estendem a favor de um eixo de comunicação, acrescentando a eles atividades conexas tais como empresas que vendem máquinas, ferramentas, tanques, etc. Acrescenta que a variedade de paisagens não deixa de surpreender, porém, lamenta que a França, diferentemente de outros locais, esteja em um estado de apatia, quando se trata da valorização de tal patrimônio e explica esse imobilismo evocando vários males: as dificuldades econômicas, a atomização das empresas produtoras de vinho que obstrui realizações de grande envergadura, o peso das tradições, ou ainda certa falta de energia e coragem por parte de vereadores ou de atores econômicos. Acrescenta ser necessário considerar também as próprias paisagens, pois considera difícil inserir arquiteturas inovadoras em espaços marcados, geralmente, por uma longa história e com fortes tradições regionais. Também chama a atenção para os espaços urbanizados que, atualmente, estão avançando sobre os vinhedos, não se contando mais os vinhedos que são cortados, direta ou indiretamente, pela construção de estradas, pelo desenvolvimento de zonas industriais ou pelos loteamentos. Novamente aqui, aparece o termo mitage. Conclui, com pesar, que as paisagens vinícolas, devido a sua proximidade com as grandes aglomerações francesas são pouco protegidas e, particularmente, afetadas pelos dramáticos problemas da expansão urbana.

No quarto capítulo, Morgan Rochet, Doutor do Instituto Sandar, Lyon, apresenta as paisagens rurais de Ródano-Alpes, que mesmo passando por uma urbanização dinâmica, com três principais aglomerações Lyon, Grenoble e Saint-Étienne, ainda apresenta uma riqueza de espaços rurais e naturais. Acrescenta que devido à diversidade de rochas, solos e climas a região apresenta-se com sistemas de produções agrícolas muito diferentes: arboricultura, viticultura, horticultura, cerealicultura, produção leiteira, avicultura, aquicultura, etc., ressaltando-se, ainda, as diversidades históricas e culturais para se compreender seu funcionamento e sua originalidade. Afirma que a diversidade das paisagens rurais nascida das agriculturas realizadas em Ródano-Alpes é, hoje, reconhecida e protegida com a ajuda de Unidades de Conservação da Natureza, mas também por meio da proteção dos próprios produtos agrícolas e agro alimentares pelo intermédio dos selos de qualidade. Explica que Ródano-Alpes conta atualmente com mais de uma cinquentena de Apelações de Origem Controlada (AOC), dos quais trinta e seis no domínio vitícola e uma trintena de produtos beneficiados por uma Etiqueta Vermelha, criada em 1960 e que atesta que o alimento possui um conjunto de características específicas, como condições de produção, aspecto gustativo, etc. que lhe confere uma qualidade superior aos seus equivalentes no mercado e que mais de mil e duzentas explorações visam a agricultura orgânica. De forma mais pontual, sobre Dombes, localizada a uns trinta quilômetros de Lyon, descreve a dinâmica de uma paisagem entremeada de lagoas que são utilizadas, de acordo com os anos, ora para o cultivo de cereais, ora para a aquicultura: são 1.100 lagoas que cobrem quase 12.000 hectares e produzem até 400 quilos de peixes por hectare e que, atualmente, integram o patrimônio paisagístico da região Ródano-Alpes. O autor informa que os profissionais do turismo, em estreita colaboração com os agricultores, artesãos e donos de restaurantes, instauraram circuitos de descoberta à destinação dos turistas, que seguirão a pé ou de bicicleta a “rota das lagoas”, animadas pelos únicos homens no mundo que pescam em seus campos. Quanto as paisagens vitícolas da região Ródano-Alpes, o autor ensina que a suas origens não se limitam à influência romana, mas explica-se também pelo período de Cristianização, quando primeiramente padres e bispos e, em seguida, as invasões bárbaras, preservaram e replantaram as vinhas nas portas de suas cidades. O autor também faz uma descrição relacionando os diferentes tipos de vinhateiros da região com as características do meio físico e dos métodos de produção. Nesse ponto, uma nota da tradução esclarece o significado do termo terroir, que derivado do latim territorium, designa o conjunto de aptidões agronômicas (solo, clima, declividade, insolação) de um determinado espaço e que, por extensão, atualmente, esse termo é aplicado na designação de produtos, sobretudo alimentares, com o objetivo de ressaltar as especificidades em relação ao meio local de produção e o know-how. Rochet conclui enfatizando o papel de Lyon, desde 1934, como capital gastronômica associada a menos de vinte minutos a ricas paisagens rurais, atualmente, mantidas por uma agricultura peri-urbana dinâmica e funcionando como apoio do desenvolvimento de um turismo verde e gastronômico.

Jérôme Fournier, Doutor, pesquisador do Centre National de la Recherche Scientifique (CNRS) e Muséum National d'Histoire Naturelle (MNHN), apresenta, no quinto capítulo, Beaune, cidade que vive por e para o vinho,situada no coração da Côte d'Or, na Borgonha, região famosa no Mundo inteiro por seu vinhedo milenar. Segundo nota da tradução, o termo cote (traduzido por “costa”), apresenta denominação local e genérica do relevo de escarpas que delimita o planalto calcário borgonhês, não podendo ser considerado como sinônimo de litoral. O autor informa que foram os romanos que introduziram a vinha na região há cerca de 2.000 anos e que, atualmente, o vinhedo na Borgonha, se estende sobre uma estreita faixa de, aproximadamente 200 quilômetros de comprimento ocupando a Côte d'Or somente um quinto da totalidade. Explica que esta vasta região possui paisagens particularmente contrastadas que diferem tanto por sua geologia, quanto por sua vegetação e sua agricultura, mas também pela forma dos vilarejos e pela arquitetura das casas tradicionais (explorações agrícolas, sobretudo) que variam muito, conforme a sua função e os materiais utilizados. Fournier descreve as paisagens tradicionais da “Costa”, conforme a altitude, a inclinação e orientação das vertentes, o solo e o clima (topo e microclima), elementos fundamentais que explicam as diferenças de qualidade dos vinhos, além do tipo de videira e técnicas de fabricação. Explica que as habitações se agrupam ao redor das igrejas e de forma suficientemente próximas para não ocupar o espaço do precioso vinhedo, estando cada vilarejo totalmente cercado pelas vinhas. A título de exemplo, apresenta como uma das mais famosas vinhas e adegas da cidade de Beaune a de Patriarche, criada em 1780, com números vertiginosos: 3 milhões de garrafas nas adegas subterrâneas longas de 5 quilômetros e visitadas por quase 65.000 pessoas por ano.

Passando dos vinhedos ao litoral, o doutor Fernand Verger, professor titular emérito da École Normale Supérieur (ENS), Paris, apresenta, no sexto capítulo, os problemas da transformação das paisagens relacionadas ao Monte Saint-Michel, localizado em uma baía que apresenta um dos três recordes mundiais de amplitude de maré e que atualmente recebe mais de três milhões de visitantes por ano. Após apresentar uma breve descrição do ecossistema entre-marés, parte para a dinâmica de ocupação da área: uma briga entre conservacionistas e agricultores que cobiçam áreas que podem se tornar propícias ao desenvolvimento agrícola devido às alterações na dinâmica das marés. Informa também que o Monte Saint-Michel, pela vontade dos homens preocupados em ganhar novas terras agrícolas e de facilitar o seu acesso, foi reduzido ao estado de península por ocasião do estabelecimento, em 1879, do dique-estrada que une o Monte ao continente, construção que desde a sua inauguração vem causando indignação a certos grupos, que querem preservar a paisagem de qualquer mutilação, fazendo com que o Monte permaneça uma ilha, preservando a dupla obra da natureza e da arte. O autor informa que a esta posição, que considera tanto a natureza como o valor arquitetural e cultural do monumento prefigurou a inscrição do Monte, em outubro de 1979, pela UNESCO, na lista de patrimônio mundial, com o duplo título de patrimônio natural e de patrimônio cultural. Verger explica que o governo francês e as municipalidades locais decidiram, em 28 de março 1995, empreender trabalhos de grande envergadura a fim de manter o caráter marítimo do Monte Saint-Michel e que o mais novo projeto tem por objetivo restabelecer e manter um ambiente natural e movente de águas e de praias em um espaço suficiente ao redor do Monte, com a transposição para o continente dos parques de estacionamento e pela liberação das muralhas sobre as quais se apóia o atual dique-estrada. O autor afirma que o programa compreende uma operação demandada desde os anos 1880: a supressão parcial do dique-estrada de acesso ao Monte e a sua substituição em mais de 500 metros por uma ponte-passarela, cujos pilares oferecerão somente uma fraca resistência as correntes.


Ainda sobre as paisagens litorâneas, no sétimo capítulo, Laurent Godet e Jérôme Fournier, doutores e pesquisadores do Centre National de La Recherche Scientifique (CNRS) e Muséum National d'Histoire Naturelle (MNHN), apresentam o arquipélago de Chausey no Golfo Normando-Bretão, o mais vasto arquipélago da costa da França. Explicam que o arquipélago, constituído por granito, foi explorado durante vários séculos para a construção do Monte Saint-Michel na Idade Média, do cais de Londres, das calçadas de Paris, até da reconstrução da cidade Saint-Malo após a Segunda Guerra Mundial; assim, o arquipélago constitui uma das mais vastas pedreiras marinhas da França. Os autores fazem uma descrição das diferentes paisagens que se formam devido ao constante trabalho das marés sobre as areias. Acrescentam que recentemente, as culturas de mariscos em estacas de madeira – os bouchots, de ostras e de mexilhão de Manila se desenvolveram amplamente, associadas a uma intensa atividade de pesca a pé que se pratica, essencialmente, por ocasião das grandes marés de sizígia, com milhares de turistas, vindos do continente, para pescar os moluscos presentes nos sedimentos arenosos do arquipélago. Esclarecem sobre a importância do arquipélago como um hot-spot da biodiversidade marinha, descrevendo as várias espécies e como sua distribuição está correlacionada com as marés, o que acaba fornecendo uma diversidade única de paisagens.

No oitavo capítulo, Samuel Étienne, Doutor, professor da Universidade da Polinésia Francesa, Taiti, apresenta o quadro geográfico da Polinésia Francesa, um território ultramar situado no meio do oceano Pacífico, sendo Taiti a principal terra de um conjunto de 118 ilhas. O texto não fica apenas em clichês de cartões postais, na descrição das paisagens do paraíso, mas se preocupa em apresentar a grande diversidade de paisagens na interface terra-mar que enunciam os cinco arquipélagos que constituem a Polinésia Francesa. Étienne ensina como se deu a formação dos arquipélagos, descrevendo as atividades de vulcanismos e o surgimento dos diferentes tipos de ecossistemas de corais. Apresenta as paisagens naturais do litoral, classificando-as em ilhas altas com margem coralínea (Taiti, arquipélago da Sociedade), ilhas altas sem margem coralínea (arquipélago das Marquesas) e ilhas baixas: atol de Tikehau (arquipélago de Tuamotu). O autor apresenta também como ocorreu a evolução dessas paisagens ao longo do holoceno, principalmente quanto a oscilação do nível marinho, o afluxo de águas das geleiras e a modificação no ecossistema coralíneo, como consequência das condições de temperatura e conclui traçando um prognóstico a médio prazo, sobre a possibilidade de uma mudança climática global ocasionar impacto sobres os recifes coralinos polinésios, devido a acidificação do oceano Pacífico ocasionada pelo aumento do gás carbônico atmosférico, o que fragilizaria os organismos de esqueletos calcários e todo o ecossistema associado, além do estresse térmico que poderia aumentar a mortalidade e, a curto prazo, chama a atenção para os tsunamis mas, principalmente, para os ciclones que prometem grandes perturbações das paisagens litorâneas, principalmente as das ilhas baixas.

Por fim, no nono capítulo, Denis Mercier, Doutor, professor da Universidade de Nantes, apresenta as paisagens da França nos Polos, que apresentam uma beleza natural fascinante e também dão suporte para a elaboração de inúmeras pesquisas científicas na França. O autor apresenta as características das paisagens e das bases científicas permanentes francesas no Ártico e na Antártida. Conclui que as paisagens da França nos polos são espetaculares, principalmente, pela presença das geleiras e que essas paisagens estão se tornando o “centro” de todas as atenções no âmbito da compreensão dos efeitos do aquecimento climático.

Como explica Andrea de Castro Panizza, o livro não teve a pretensão de esgotar todas as possibilidades e de percorrer a totalidade dos territórios franceses. Mesmo assim, pôde-se constatar que a amostra é muito rica, mesmo em um livro leve e de fácil leitura, o que comprova a capacidade de síntese dos autores e a habilidade da tradução e de organização, salientando-se, ainda, que cada capítulo passou por uma revisão técnica da tradução, que contou com nove professores doutores de várias instituições de renome, além de contar com mapas, figuras e fotografias de expressiva qualidade.

Por fim, não seria possível terminar sem valorizar o fato de o livro ter sido publicado em formato digital (e-book) e de estar disponível para download gratuito graças a Editora da FECILCAM (Faculdade Estadual de Ciências e Letras de Campo Mourão).

Um atlas do esporte mundial

Gilmar Mascarenhas
Professor do Instituto de Geografia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e especialista em Geografia dos Esportes,gilmasc2001@yahoo.com.br

Há algumas décadas, a Universidade de Franché-Comté, em Besançon (França), vem sendo reconhecida internacionalmente no ramo ainda pouco explorado da Geografia dos Esportes. Igualmente, a instituição se destaca pelo primor de seu trabalho cartográfico, preocupação já presente, quando, em 1987, os professores Daniel Mathieu e Jean Praicheux publicaram Sports em France, modelo de atlas dos esportes em território francês. A tradição de produzir e bem cartografar a geografia dos esportes felizmente persistiu na geração seguinte e culminou, neste ano de 2010, com a publicação do Atlas Do Esporte Mundial. Negócios e espetáculo: o ideal esportivo em jogo (Edições Autrement, Paris).

Seus autores são os professores de Geografia da supracitada instituição: Pascal Gillon, Loïc Ravenel e Frédéric Grosjean. O primeiro, há mais de dez anos se dedica ao estudo geopolítico dos esportes, com ênfase crescente no olimpismo. O segundo, L. Ravenel, há 15 anos se debruça sobre o ramo, tendo construído uma metodologia de estudo locacional do esporte profissional e sendo fundador do Observatório de Jogadores Profisionais de Futebol, atrelado a FIFA. Por fim, Grosjean se dedica mais propriamente ao esporte amador e sua dimensão territorial, numa perspectiva regional. Ambos trabalham em conjunto no Laboratório Théma. O perfil de cada um desses três pesquisadores se complementa plenamente na formação de uma abordagem abrangente sobre os esportes. Contaram ainda com o suporte fundamental de dois cartógrafos, Donatien Cassan e Madeleine Benoit-Guyod.

Na perspectiva editorial, este atlas do esporte mundial se insere na coleção de atlas temáticos, que visa oferecer a um público mais amplo, um material de fácil acesso e assimilação, de agradável manuseio e abarcando temas de grande interesse geral. Trata-se neste caso de uma edição sucinta, de 80 páginas, que prima pela ilustração vasta e de excelente qualidade gráfica, numa proposta de natureza didática. O propósito central é demonstrar o processo de mundialização da prática esportiva, sua diversidade e sua magnitude no mundo contemporâneo. Mas ao mesmo tempo em que oferece uma visão panorâmica e informativa de inúmeras modalidades esportivas em sua abrangência e distribuição planetária, fornece também uma análise geográfica do fenômeno esportivo. Em síntese, propõe uma abordagem pela qual o esporte contemporâneo vive um paradoxo, entre sua natureza global (tendência movida pela economia) e sua identidade local-regional.


O atlas se divide em seis segmentos. O primeiro, A difusão mundial do esporte, constitui uma introdução ao tema, já que aborda a origem dos esportes, a formação das instituições (nacionais e internacionais) e a natureza complexa do processo de difusão das distintas modalidades (os agentes difusores, os canais de difusão etc.). O quadro de fundo é a conformação da sociedade urbano-industrial (com destaque para a Grã_Bretanha do século XIX, berço de inúmeros esportes) e o papel crucial dos modernos meios de comunicação, que permitiram a mundialização da prática esportiva, fenômeno realmente extraordinário, que fez do globo terrestre o palco das disputas, vencendo distancias e diversidades (bem como adversidades) locais e regionais .

O segundo segmento, Uma questão geopolítica para os estados, assume explicitamente a perspectiva geopolítica que, de certa forma, é um dos fios condutores de toda a obra. O esporte é tomado como vitrine nacional para o mundo, expressão privilegiada de potencias que pretendem se afirmar no cenário mundial, através das grandes competições planetárias. O olimpismo merece destaque neste segmento, em especial a questão da Guerra Fria e os famosos boicotes aos jogos olímpicos. Também o papel geopolítico do Comitê Olímpico Internacional, em ser poder de deliberar, por exemplo, a localização das sedes olímpicas, ao mesmo que as cidades fazem desta condição um poderoso instrumento de marketing urbano mundial. Para além de um enfoque global, o atlas mergulha em peculiaridades regionais, como o caso indiano (potencia emergente ainda sem destaque no plano esportivo), o sucesso do atletismo africano e o caso do Apartheid, que excluiu por certo período a África do Sul de participar dos cobiçados certames internacionais.

A terceira parte se intitula O grande mercado mundial do esporte, e portanto se dedica a conformação do império de negócios que se tornou em nossos dias o fenômeno esportivo. O papel central das mídias (em especial as transmissões televisas, alvo de negociações milionárias), os grandes patrocinadores e a busca constante pela conquista de novos mercados no âmbito da chamada industria dos esportes. Apostando nas contradições do sistema, destaque é dado à questão do dopping, que coloca em debate a ética, a tecnologia, o corpo e a lógica competitiva, inerente ao esporte, mas decerto multiplicada quando este está associado a poderosos interesses empresarias.

A quarta parte, Esportistas, reflexos da mundialização, expõe a natureza peculiar do profissional do esporte no mundo atual, em especial sua vasta mobilidade espacial, convertendo-se num dos primeiros ramos de atuação profissional que de fato tem como campo de ação disponível a totalidade do globo. Este mercado mundial de atletas desenha toda uma rede migratória global (sem escapar dos problemas de nacionalidade e nacionalismos) e uma divisão internacional do trabalho. Neste segmento, o futebol merece destaque, aproveitando o farto material produzido por um dos autores, no âmbito do já citado Observatório de Jogadores Profissionais de Futebol. Um único problema foi verificado, na p. 55, quando os autores se precipitaram ao apontar como definitivo o retorno ao Brasil do jogador de futebol Adriano. O mesmo voltou a jogar na Itália neste mesmo ano de 2010.

A quinta parte, O futebol, um esporte universal, demonstra o quanto esta modalidade, mais que qualquer outra, se mundializou a ponto de conquistar praticamente todos os espaços do ecúmeno. A partir do esquema centro-periferia, constrói-se uma perspectiva simples e ao mesmo tempo pertinente: a Europa como coração do sistema (o centro dos negócios), a America do Sul com pulmão (principal fornecedor de atletas para o mercado mundial), a África como periferia integrada (plena articulação e intercambio com a Europa) e, como territórios marginais Ásia, Oceania e America do Norte. Esta classificação por continente, como qualquer outra, incorre em simplificação forçosa, como bem apontam os autores, reconhecendo no continente asiátixo uma diversidade: Oriente Médio e Extremo Oriente não podem ser nivelados com nações do Sudeste Asiático.

A ultima parte do atlas se intitula Mundos do esporte: do regional ao local, e aborda justamente os esportes que não lograram êxito global mas apresentam forte manifestação regional, tais como o críquete, o rúgbi, e mais notadamente os esportes de inverno, premidos pelo determinismo ambiental. Especial atenção é conferida às particularidades do sistema esportivo norte-americano, auto-referenciado e intensamente associado à espetacularização midiática e às grandes empresas. A dimensão cultural é igualmente considerada, destacando movimentos identitários de minorias (judeus, gays, etc.) através do esporte.

De um modo geral, a diagramação peca em alguns momentos pela saturação de informações visuais. Todavia, e para além das qualidades já expostas, um mérito incontestável deste novo atlas é sua abrangência global. Assim como a França em 1987, outros países publicaram seus atlas nacionais do esporte, com destaque para Cuba, Estados Unidos (John ROONEY, 1992) e incluindo o Brasil, em iniciativa mais recente (DaCOSTA, 2004). Tais publicações gozam da comodidade de reunir informações fornecidas pelas próprias federações nacionais e que por isso tendem a adotar um único sistema de produção e armazenamento de dados. Ao lidar com países e realidades tão distintas, os autores do atual atlas se defrontaram com imensas dificuldades, não apenas na obtenção como também na codificação do material. Motivo pelo qual tiveram que se deter no esporte profissional, por seu grau de institucionalização. Trata-se de um grande e inovador desafio, cumprido com rigor e qualidade, por uma equipe altamente qualificada para tal missão.

Por fim, estamos diante de um material que muito bem sintetiza e ilustra a complexidade e a dimensão alcançada em nossos dias pelo fenômeno esportivo, tratado sistematicamente em sua diversidade de manifestações.
http://confins.revues.org

domingo, 17 de julho de 2011

Ideologia e contraideologia


BOSI, Alfredo. Ideologia e contraideologia. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. 448 p

Hegemonia e emancipação

Franklin Leopoldo e Silva

Ideologia e contraideologia é um título muito significativo: mais do que designar um livro, ele designa a atitude que esse livro expressa. Pensar contra não se define como uma negação que começa e acaba em si mesma. Inclui também a positividade na forma da possibilidade. E esses dois elementos se reúnem quando entendemos que a positividade, incluída no pensamento de uma outra possibilidade, é alimentada pela negação, isto é, pela recusa do existente e da representação hegemônica do mundo e da história.

Uma tarefa sempre por se fazer, isto é, estamos sempre no meio do caminho: é muito tarde para desistir e voltar ao limiar, recusando a marcha, e é muito cedo para cantar vitória - para acenar com o reconhecimento de um ponto de chegada. É sintomático que o livro não traga nem introdução nem conclusão. Começa com notas de trabalho, como se o leitor pegasse o bonde andando - o trabalho em andamento - e termina com Machado de Assis, isto é, com um mundo cujos nós só desfazemos para poder (ter de) refazê-los.

Ideologia e contraideologia inclui também os significados de pró e contra. Ainda seguindo a dialética esboçada acima, devemos mencionar que a positividade da representação ideológica, no sentido do pensamento dominante, inclui o ocultamento da realidade. Neste ocultamento está a profunda concordância da ideologia com a reconstrução do real segundo alguns interesses. A representação ideológica falseia a realidade para melhor afirmá-la enquanto estabilização de interesses dominantes. Neste sentido, é pró-realidade, pró-existente. A contraideologia não produz uma representação estável da realidade, porque pretende fazer oscilar o existente na efetividade de sua firmeza, que é também a sua pretensão à verdade. A crítica da pretensão à verdade absoluta de uma perspectiva de classe é então o que dá significação ao contra de contraideologia. Não se trata de substituir uma (pretensa) verdade por outra, mas de substituir atitudes: o dogmatismo do pensamento hegemônico pela atitude crítica de recusa de uma essência do homem, do mundo e da história.

Enquanto permanece nesta atitude, a contraideologia mostra a origem relativa de todas as hegemonias. Mas, se deixa de ser processo de desestabilização da representação hegemônica e pretende a substituição de um pensamento dominante por outro, a contraideologia torna-se mecanismo produtor de ideologia. É o momento em que a contestação torna-se reposição de poder. É o momento em que o movimento contido na ideia de contra se transmuta na consolidação contida na ideia de pró. Seria preciso pensar se esta positivação representa ganho ou perda. A questão que se pode colocar aqui é que esta oposição do contraideológico ao pró-ideológico somente se sustenta se atribuirmos à contraideologia uma acepção reativa: uma atitude que apenas reage e que, portanto, não é dotada de uma autonomia que se costuma atribuir à ação e ao agir.

Mas cabe perguntar se a autonomia assim definida não acabou ficando, no decorrer da modernidade, entre as ilusões do iluminismo ou entre as ambiguidades que a filosofia mais contemporânea teria revelado. Com efeito, a liberdade, no seu exercício concreto, é inseparável dos obstáculos que deve transpor na efetividade da experiência histórica. Neste sentido, a emancipação não é nem mesmo uma ideia reguladora em sentido kantiano, pois não é algo de que nos aproximemos continuamente, mas algo de que nos aproximamos e nos afastamos, ao mesmo tempo, na ambiguidade do progresso e da regressão. A esta altura já sabemos que a razão não realiza a emancipação e pode, por vezes, produzir uma racionalização do estado de servidão como se fora emancipação.

Assim a contraideologia é trajetória de emancipação, mas repleta de riscos. Ignorá-los é perder de vista a diferença entre ideologia e contraideologia - e a negação como valor da liberdade.

Franklin Leopoldo e Silva é professor titular do Departamento de Filosofia da FFLCH/USP.

Revista do Instituto de Estudos Brasileiros - USP