quinta-feira, 12 de outubro de 2017

Terra de índio:, imagens em aldeamentos do Império


Além do sertão: indígenas no Brasil do século XIX

Fernanda Sposito*

1Universidade Federal de São Paulo. São Paulo - São Paulo - Brasil
AMOROSO, Marta. Terra de índio:, imagens em aldeamentos do Império. São Paulo: Terceiro Nome, 2014.

Conheçamos o projeto de uma fazenda ideal, imaginada por um francês no Brasil durante a primeira metade do século XIX. O sujeito pensou-a cercada por um cenário paradisíaco na Serra da Mantiqueira, interior de Minas Gerais. Seria uma fazenda produtiva e assentada em terras férteis. Para viabilizar tal prosperidade, o francês acreditava ser possível manter índios e negros em paz, submissos a ele e trabalhando de maneira eficiente. Os africanos escravizados, a benevolência de seu senhor faria que eles se portassem de maneira cordata, retribuindo com dedicação ao trabalho. Já os índios, estes deveriam ser atraídos com presentes. Uma vez que se tornassem aliados, o caminho para sua submissão seria a catequese (p. 38-39). Esse foi um projeto idílico de Auguste de Saint-Hilaire, botânico que viajou por diversas partes do Brasil entre 1816 e 1822, coletando milhares de espécies vegetais e animais, escrevendo relatos. Seus textos são alguns dos mais preciosos escritos sobre o Brasil no século XIX. Apresentam elementos não só sobre a fauna, a flora e a geografia do território, mas também sobre as populações dos sertões do Brasil, incluindo os povos indígenas das várias províncias que conheceu.

O projeto idílico da fazenda Saint-Hilaire, nunca realizado, era apenas uma miragem, uma idealização de como controlar a natureza submetendo-a aos interesses da ciência e do desenvolvimento econômico. Dentro dessa visão, alguns cientistas como ele acreditavam que os povos ameríndios representavam um estágio de degeneração da espécie humana e que cabia aos povos europeus encontrar caminhos para os “civilizar”.

A passagem descrita acima é uma das preciosidades apresentadas e analisadas neste novo trabalho de Marta Amoroso, publicado em 2014 e lançado em 2015 pela editora Terceiro Nome. Com base em arquivos sediados em diferentes países, em especial a documentação da Ordem Menor dos Frades Capuchinhos, de orientação franciscana, sediada no Rio de Janeiro (Arquivo da Custódia dos Padres Capuchinhos no Rio de Janeiro), - Amoroso escreveu uma importante contribuição aos estudos sobre os índios do século XIX. Utilizando-se das ferramentas teóricas da Antropologia, relendo os estudos clássicos de Telêmaco Borba e Curt Ninuemdaju sobre os Guarani no início do século XX, a autora visa não só descrever as políticas de Estado e os dilemas que os freis enfrentaram nos interiores do Brasil, principalmente no Paraná, mas problematizar como os coletivos indígenas (termo up to date entre os etnólogos para se referir aos grupos indígenas) se inseriram nos aldeamentos.

Os aldeamentos no Império do Brasil foram um novo-velho modelo de controle dos índios. A política das aldeias sob controle dos brancos no XIX pode ser lida no sentido de uma reedição, uma espécie de mescla de referências jesuíticas e pombalinas do período colonial. Ao mesmo tempo, traz as novidades de um Estado nacional que buscava controlar as populações do território que pretendia como seu, dinamizando a economia dessas regiões dentro da lógica produtiva do capitalismo. Além disso, a autora mapeia os fundamentos científicos que embasaram as ações dos viajantes europeus ao Brasil no XIX, das concepções dos padres capuchinhos e das formas como os diferentes grupos indígenas traduziam e se inseriam nas novas situações.

Marta Amoroso é antropóloga, professora titular do Departamento de Antropologia da Universidade de São Paulo. Defendeu o seu mestrado na Unicamp, sob orientação de Roberto Cardoso de Oliveira, estudando o povo Mura na Amazônia no século XVIII. No doutorado, na USP, sob orientação de Manuela Carneiro da Cunha, fez uma etnografia do aldeamento São Pedro de Alcântara (1855-1895), onde viveram populações Guarani, Kaiowá e Kaingang na província do Paraná. Ingressou na USP como docente no ano de 2000. Desde então vem integrando importantes grupos de pesquisa, orientando pesquisadores e produzindo uma série de artigos e coletâneas centrados nos temas da Etnologia Indígena, História dos Índios no Brasil e estudos sobre os Mura na Amazônia. É uma das pesquisadoras principais do Centro de Estudos Ameríndios (CEstA) na USP, coordenado por Dominique Gallois.

A tese de doutorado de Marta Amoroso, “Catequese e evasão. Etnografia do aldeamento indígena de São Pedro de Alcântara, Paraná (1855-1895)”, defendida na USP em 1998 é um estudo denso que articula dados de arquivos e levantamentos quantitativos por meio de uma refinada leitura etnográfica. Amoroso, ao longo de sua obra e especialmente em sua tese de doutorado, resolve muito bem a leitura dos dados etnográficos sobre as sociedades indígenas, conseguindo fazer esses dados serem compreendidos dentro do contexto em que foram gerados. Realizar esse tipo de análise com méritos tanto no campo da História como na Antropologia, à maneira de Manuela Carneiro da Cunha e Nádia Farage, é algo raro e merece ser celebrado.1

No entanto, a tese de doutorado de Marta Amoroso permanece inédita, pois o livro não é a tese, avisa a autora logo na introdução. Terra de índio: imagens em aldeamentos do Império é uma síntese dos estudos realizados nos últimos 20 anos pela autora. É certo que esses estudos se iniciam na tese, mas transcendem a ela. O presente livro, dividido em três partes, se propõe permitir uma melhor compreensão dos aspectos que cercaram seu objeto inicial, a experiência do aldeamento São Pedro de Alcântara no Paraná e os relatos do frei capuchinho Timotheo de Castelnuovo. É importante registrar que a não publicação da tese configura-se numa grande perda, pois ela é quase inacessível, estando disponível apenas para empréstimo físico na Biblioteca Florestan Fernandes da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. O banco de teses online da universidade não possui a tese de Amoroso em seu catálogo, visto que ela foi defendida antes de a USP implantar seu acervo digital de acesso universal.

Voltemos ao livro. A primeira parte, “Explorando a Mata Atlântica”, é composta pelos capítulos “O mal-estar de Guido Marlière” e “Dos Andes e Amazônia, rumo ao crânio botocudo”. Discute os princípios científicos que respaldaram a atuação de muitos viajantes estrangeiros atraídos para o Brasil depois da chegada da Corte portuguesa ao Rio de Janeiro. É nessa parte que está situada a análise da “fazenda imaginária” de Saint-Hilaire, mencionada no início desta resenha.

Já a segunda parte, “Propondo a catequese e civilização”, integrada pelos capítulos “Das selvas ao solo ubérrimo” “Descontinuidades”, aparece como um ensaio antropológico. Aqui a autora utiliza o conceito de “equivocações controladas”, de Eduardo Viveiros de Castro, para pensar desencontros e traduções dentro e fora dos aldeamentos entre os diversos coletivos indígenas, capuchinhos, escravos negros, imigrantes e demais moradores do entorno.

A terceira e última parte, “Construindo o aldeamento indígena”, que contém os capítulos “Ficções em frei Timotheo de Castelnuovo”; “Lavoura (s)” e “Um kiki-koi para Arepquembe”, é identificada pela própria autora como uma releitura de sua tese.

Como já mencionado, há várias passagens riquíssimas no livro. Destaco aqui o capítulo intitulado “Um kiki-koipara Arepquembe”, em que Amoroso apresenta a forma como os Kaingang aldeados, mesmo já convertidos ao cristianismo, conseguem retomar um ritual funerário típico de seu grupo, o kiki-koi, para enterrar o cacique Manoel Arepquembe, assassinado em 1872. Uma das grandezas do capítulo está nas relações que a autora estabelece entre as doenças mortais que atingiram diversas vezes os índios dos aldeamentos e de seu entorno e as releituras das mitologias de fim de mundo entre os Guarani e Kaiowá. Outro aspecto analisado é que o modelo de missão do século XIX eliminou uma estratégia fundamental dos jesuítas no período colonial, que era a tradução das línguas indígenas. No Oitocentos, isso resultou no fato de que os freis Timotheo de Castelnuovo e Luís de Cimitille tinham muito menos elementos para descrever e compreender os rituais funerários Kaingang do que os missionários de séculos anteriores tiveram em relação às etnias com as quais conviveram.

Para o historiador Carlos Zeron, que escreve a orelha do livro, o trabalho de Amoroso prima justamente pelas “pontes” que estabelece com outros períodos históricos. De um lado, o modelo de catequese capuchinha é obrigado a dialogar com a tradição colonial jesuítica, que vigeu no Brasil durante cerca de 200 anos. De outro, a realidade dos indígenas no Brasil de hoje é tributária de ações de avanço sobre os territórios indígenas no século XIX.

A antropóloga Manuela Carneiro da Cunha, no prefácio do livro, destaca por sua vez as peculiaridades do Brasil do século XIX. Tratava-se de um território que, ainda sob o domínio português, se abriu aos interesses de artistas e cientistas europeus convidados pelo príncipe-regente João VI e que culminou com uma política de civilização e catequese de índios a partir de 1845, a qual também previa a vinda de estrangeiros, desta vez padres, sob controle do Estado para se efetivar.

O livro de Amoroso possui uma característica relevante, menos de conteúdo e mais de forma, que eu gostaria de apontar nesta resenha. É uma reflexão que nos ajuda a pensar a eficácia dos formatos aos quais destinamos nossas pesquisas acadêmicas. Por uma série de motivos profissionais e pessoais, podemos deixar de publicar, em formato de livro, as teses e dissertações que produzimos. O que não significa que sejamos pouco produtivos. Ao contrário, desenvolvemos uma série de pesquisas, obtemos financiamento, realizamos trabalhos de campo, vamos a arquivos fora do país, participamos de congressos em diversas partes do mundo. As pesquisas são ricas, como no caso de Marta Amoroso, as análises refinadas, os resultados promissores. No entanto, a exigência de uma produtividade acadêmica que nos remete a uma escala de produção industrial obriga-nos a realizar muito, porém muito fragmentado. Papers em congressos, conferências e comunicações, artigos com número de palavras e páginas estritamente controlado. Com isso, os textos que produzimos, pelos limites impostos pelo tempo e espaço, não conseguem aprofundar os assuntos, muitas vezes são pinceladas a respeito de uma pesquisa maior. A pergunta é: quando, em nosso meio, conseguimos dar a conhecer essa pesquisa maior tanto em tamanho quanto em grau de aprofundamento?

Assim, quando Amoroso opta por publicar um livro que é uma coletânea de artigos, acaba trazendo resultados panorâmicos inconclusos. O leitor fica com muitas indagações que foram mais bem respondidas em outros artigos e na própria tese da autora. Uma das questões, por exemplo, refere-se às articulações e arranjos políticos que estiveram por trás da vinda dos missionários capuchinhos ao Brasil, medida efetivada com a lei de 1845 (Decreto 426 de 24/07/1845). Em artigo publicado em 2006 a autora arriscou uma hipótese, bastante plausível, envolvendo o casamento do imperador Pedro II com a princesa Teresa Cristina, de Nápoles, em 1843, demonstrando que a aliança matrimonial tinha também sentido político e estratégico. Daí concluirmos, seguindo os passos da autora, não ser por acaso a vinda de trabalhadores imigrantes italianos e padres capuchinhos ao Brasil a partir da segunda metade do Oitocentos.2

A despeito da ressalva, é evidente que o livro releva grandes achados. No capítulo 4, por exemplo, a autora inicia uma discussão sobre os termos da legislação indigenista do Império e seus desdobramentos. Amoroso nos mostra que os aldeamentos do período significariam uma “descontinuidade” em relação às ações missionárias cristãs. Para a autora, a política dos aldeamentos do Império (1845-1889) trouxe o conceito de tutela do Estado aos índios e, ao mesmo tempo, propôs que seu direito à terra estivesse atrelado ao grau de “selvageria” (p. 76). Dentro dessa lógica, os antigos aldeados não teriam mais direito de permanecer nas missões. Os Guarani-Kaiowá rapidamente aprenderam a jogar dentro desse esquema: se necessário, antigos aldeados “vestiam-se de selvagens” para poder entrar nos novos aldeamentos que se iam fundando (p. 78-80).

No Capítulo 2, Amoroso mostra que o príncipe alemão Maximiliamo Wied-Neuwied, após uma convivência intensa entre os Botocudos, subverteu o binômio tupi-tapuia no século XIX, ao afirmar que os “botocudos” com os quais conviveu eram tão amistosos quanto os tupis do passado. A despeito dessa interpretação mais progressista, os cientistas no período se pautavam nos pressupostos da nascente antropologia física, que postulava os princípios da degeneração das espécies da América, crendo que os botocudos se assemelhariam aos animais, pois não tinham chefia, uma liderança como os andinos (p. 43-8).

Já no capítulo 6, Amoroso mostra uma das formas através das quais os franciscanos tiveram êxito no programa de catequese: com a montagem de uma destilaria de aguardente no aldeamento de São Pedro de Alcântara em 1870. O assunto não foi propagandeado, na verdade seguiu oculto no meio da documentação da Ordem Menor (no Arquivo da Custódia dos Padres Capuchinhos do Rio de Janeiro), visto que o consumo de bebidas alcoólicas entre os índios foi sempre uma prática condenada pela religião católica, o que obviamente não evitou o seu uso, especialmente de bebidas fermentadas e utilizadas nos rituais indígenas. No caso da cachaça, seu consumo esteve sempre relacionado aos danos que causava às populações indígenas, daí o ocultamento do tema (p. 160-1).

Por fim, Amoroso traz novos aportes para que os especialistas enfrentem uma antiga polêmica. Trata-se da afirmação de Manuela Carneiro da Cunha, escrita no começo dos anos de 1990, de que “questão indígena no século XIX era uma questão de terras”:

A “questão indígena”, no século XIX, deixou de ser uma questão de mão-de-obra, para se converter essencialmente numa questão de terras. Há variações regionais, é claro: na Amazônia, onde a penúria de capitais locais não permitiu a importação de escravos africanos, o trabalho indígena continuou sendo fundamental, e foi reaviventado no fim do século, com a exploração da balata, da borracha e do caucho. No Mato Grosso e no Paraná, ou mesmo em Minas Gerais e no Espírito Santo, as rotas fluviais a serem descobertas e consolidadas exigiram a submissão dos índios da região. Mas se se pode arriscar falar “em geral” de um século inteiro e do Brasil como um todo, a tônica foi, no século XIX, a conquista de espaço. Em áreas de índios ditos então “bravios”, tentava-se controlá-los, controlando-os em aldeamentos, “desinfestavam-se” assim os sertões. Nas áreas de ocupação colonial antiga, tentavam-se ao contrário extinguir os aldeamentos, liberando as terras para os moradores. Essas diferenças regionais nada mais eram, portanto, do que duas etapas de um mesmo processo de expropriação. 3

Amoroso demonstra em seu livro que o projeto dos aldeamentos no Paraná a partir da segunda metade do XIX não tinha por objetivo engajar trabalhadores em atividades de interesse do Império, mas retirar os índios de terras e caminhos estratégicos, abrindo espaço para que chegassem outros trabalhadores, como os imigrantes europeus, considerados mais lucrativos no sistema capitalista. Nisso a afirmação de Cunha casa-se com os dados levantados aqui. De todo modo, a análise de Cunha assenta numa generalidade que o próprio trabalho de Amoroso permite contradizer ao exibir inúmeros episódios em que os índios trabalhavam para além dos aldeamentos, especialmente quando já eram considerados “civilizados” e empregavam-se como “camaradas” contratados por jornadas pelos fazendeiros paulistas (p. 173). Além disso, o problema do texto clássico de Manuela Carneiro da Cunha é afirmar isso para o século XIX como um todo, quando estudos mais recentes sobre a primeira metade daquele século vêm mostrando a importância dos índios como mão de obra em várias partes do território brasileiro.4

Outro dado importante, que instiga o leitor a compreender melhor, mas que a autora não fornece maiores dados no livro, ao contrário do que faz na tese, é sobre a presença de população de negros nos aldeamentos e em seu entorno. Esse dado gera perguntas no leitor sobre como se dava essa convivência, que papel ocupavam os negros nesse contexto. Na tese de 1998 é possível descobrir alguns dados mais sobre essas populações que, no entanto, não são explicados no livro. Assim, a presença de africanos e afrodescendentes nos aldeamentos esteve relacionada ao envio de trabalhadores especializados, como ferreiros, marceneiros etc. para trabalhar na Fábrica de Ferro de Ipanema em Sorocaba na década de 1850. Não eram necessariamente libertos, mas estavam na condição de “tutela”, sofrendo ainda castigos físicos conforme as vontades de seus senhores.5

Em síntese, os estudos de Marta Amoroso, em seu conjunto, são de uma qualidade ímpar, de grande importância tanto no campo da História quanto da Antropologia, principalmente na intersecção entre elas. A única coisa a lamentar é que o livro foi muito curto perto dos dados que a autora levantou ao longo das últimas duas décadas.

1CUNHA, Manuela Carneiro da. (org.) História dos Índios no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras/Fapesp/SMC, 1992 (como organizadora e autora de um dos capítulos); _____ (org.). Legislação indigenista no século XIX. Uma compilação (1808-1889). São Paulo: Comissão Pró-Índio/Edusp, 1992; FARAGE, Nádia. As Muralhas dos Sertões. Os Povos Indígenas no Rio Branco e a Colonização. Rio de Janeiro: Paz e Terra ANPOCS, 1991.

2AMOROSO, Marta. Crânios e cachaça: coleções ameríndias e exposição no século XIX. Revista de História 154 (1º, 2006), 119-150 p. 128-30. Disponível em Último acesso em 07/04/2017. Outros estudos que poderiam ajudar a problematizar a questão: SAMPAIO, Patrícia Melo. Política indigenista no Brasil imperial. In: GRINBERG, Keila; SALLES, Ricardo (Org.). O Brasil imperial. Volume I: 1808-1831. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009; SPOSITO, Fernanda. Nem cidadãos, nem brasileiros. Indígenas na formação do Estado nacional brasileiro e conflitos na província de São Paulo (1822-1845). São Paulo: Alameda, 2012

3CUNHA, Manuela Carneiro da. Prólogo. In: ____ (org). Legislação indigenista no século XIX. Op. Cit., p. 4

4Alguns trabalhos mais recentes, no campo da história sobre os índios, abordaram a participação indígena também no trabalho no Brasil império: COSTA, João Paulo Peixoto. Na lei e na guerra: Políticas indígenas e indigenistas no Ceará (1798-1845). Tese de Doutorado. Campinas: IFCH, 2016; LEMOS, Marcelo Sant’ana. O índio virou pó de café? A resistência indígena frente à expansão cafeeira no Vale do Paraíba. Jundiaí: Paco Editorial, 2016; MACHADO, André Roberto de. A quebra da mola real das sociedades: a crise política do Antigo Regime Português na província do Grão-Pará (1821-25). 1. ed. São Paulo: Hucitec / Fapesp, 2010; MOREIRA, Vania Maria Losada. Autogoverno e economia moral dos índios: liberdade, territorialidade e trabalho (Espírito Santo, 1798-1845). Revista de História, nº 166, 2012; SPOSITO, Fernanda. Nem cidadãos, nem brasileiros. Op. cit.; XAVIER, Maico Oliveira. Extintos no discurso oficial, vivos no cenário social: os índios do Ceará no período do império do Brasil. Trabalho, terras e identidades indígenas em questão. Tese de Doutorado. Fortaleza, Universidade Federal do Ceará, 2015.

5AMOROSO, Marta. Catequese e evasão. Etnografia do aldeamento indígena de São Pedro de Alcântara, Paraná (1855-1895). Tese de Doutorado em Antropologia. São Paulo: FFLCH-USP, 1998, p. 130-2.
Revista Almanack

Produzindo memórias para alimentar utopias



Das utopias que se tornam realidade, ou: sobre homens que trabalham com feminismos*


Ramon Pereira dos Reis**
** Doutorando em Ciência Social (Antropologia Social), Universidade de São Paulo (USP), São Paulo, SP, Brasil, com bolsa Fapesp. ramonrei@gmail.com

Medrado, Benedito; Lyra, Jorge. Produzindo memórias para alimentar utopias: Narrativas sobre uma organização feminista brasileira que, desde 1997, ousa trabalhar com homens e sobre masculinidades. 2015. Instituto PAPAI, Recife:

O problema da questão de gênero é que ela prescreve como devemos ser em vez de reconhecer como somos. Seríamos bem mais felizes, mais livres para sermos quem realmente somos, se não tivéssemos o peso das expectativas de gênero (Adichie, 2014).

Desde as formulações clássicas de Simone de Beauvoir (2009 [1949]) sobre a força político-identitária da categoria mulher e do quanto essa identificação é transitória e situacional, até os escritos de Judith Butler (2003) a respeito da desestabilização do termo gênero, a partir do confronto com uma determinada matriz de inteligibilidade sexual, já se passaram 66 anos, levando em conta os dias atuais.

Do ponto de vista do feminismo, enquanto marcação acadêmica, temporal e política, percorremos, ao longo desses anos, algumas vertentes balizadas pelos estudos feministas e de gênero, que, conforme o tempo, tornaram cada vez mais próxima a relação entre militância e academia, quais sejam: “feminismo socialista”, “feminismo radical” e “feminismo global” (Piscitelli, 2002), além daquela que há algum tempo demanda pautas mais detidas no entrecruzamento de raça, classe e sexualidade, a exemplo do feminismo negro (hooks, 1981; Davis, 1983; Collins, 1990). Um dos elos que une tais feminismos é que a grande maioria, se não todos, são protagonizados por mulheres.

É possível, então, ser homem feminista, ou ser homem e trabalhar com feminismos? Como articular a(s) pauta(s) feminista(s) aos estudos sobre homens e masculinidades? Com o intuito de percorrer tais questionamentos é que Benedito Medrado e Jorge Lyra (2015), psicólogos e fundadores do Instituto PAPAI (Programa de Apoio ao Pai) e do Núcleo de Pesquisas em Gênero e Masculinidades (GEMA) – ambos vinculados à Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) –, produzem memórias e alimentam utopias em torno da recuperação de narrativas sobre uma organização feminista brasileira que, desde 1997, ousa trabalhar com homens e sobre masculinidades, como assim intitulam o livro que celebra a maioridade do PAPAI, e cujas memórias servem de aporte explicativo a respeito do jogo político cotidiano que ocorre dentro e fora da universidade.

Trata-se de um livro em tom de memorial, composto por um prefácio, uma introdução, 12 pequenos capítulos (que compreendem a história, os projetos de desenvolvimento e visibilidade, até os objetivos de missão e gestão da organização), um posfácio (escrito por duas mulheres e dois homens que integram a equipe do PAPAI) e um registro fotográfico com uma seleção de imagens dos eventos mais emblemáticos, cuja intenção é


[...] registrar os acontecimentos e pessoas que tornaram essa história uma produção coletiva e um empreendimento compartilhado com vários/as em diferentes ocasiões e desafios. Não estamos aqui preocupados com o conteúdo, mas com os processos. Não estamos preocupados em sermos “fiéis aos fatos” porque não partimos de uma leitura realista sobre memória. O que nos comprometemos aqui foi, sobretudo, em fazer um exercício de (re)cordar e refletir criticamente sobre nossas escolhas, decisões e possíveis erros, colocando em suspensão e suspeição as ideias que acreditamos e defendemos (p.16).

Ressalto que, assim como os autores, não estou interessado em uma construção textual linear e que por isso darei ênfase ao processo de construção da organização, seu raio de desenvolvimento e ação, e os efeitos de sua permanência no cenário nacional dos estudos feministas e de gênero. Noto ainda que, do mesmo modo que existe uma funcionalidade e uma seleção dos eventos que terão lugar no livro, não posso deixar de perceber que esse exercício de recuperação de dados e de situações está sempre envolto da relação dialógica entre indivíduo e coletividade, passível das transformações do tempo (Cf. Halbwachs, 2006), e que também localiza a(s) memória(s) e a(s) identidade(s) como valores em constante disputa (Cf. Pollak, 1992).

Ao longo desses 18 anos de existência do Instituto PAPAI fica evidente, na composição da trajetória dessa organização, seu importante potencial enquanto disseminadora e multiplicadora de conhecimento dentro e fora da UFPE. Ressalto as articulações do PAPAI com organizações e grupos, em âmbito nacional e internacional, que atuam na publicação de conteúdos sobre gênero, sexualidade, saúde sexual, e no combate a violências de gênero e por orientação sexual: ECOS, Promundo, Núcleo Margens/UFSC, Fundação Carlos Chagas, Núcleo de Estudos de Gênero Pagu/Unicamp, Faculdade de Medicina da USP, Grupo de Pesquisa NósMulheres. Pela equidade de gênero étnico-racial/UFPA, entre outras.

O percurso histórico que sistematiza e sustenta o argumento central do livro garante, do início ao fim, o protagonismo e o reconhecimento à(s) figura(s) da(s) mulher(es), bem como leva em conta o importante papel dos estudos feministas e de gênero enquanto referências para a consolidação do PAPAI. Não se trata, assim, de uma instituição que invisibiliza lutas ou que pretende ser porta-voz da militância feminista. Nesse sentido, não há como negar


que os feminismos criaram modos específicos de existência mais integrados e humanizados, desfazendo as oposições binárias que hierarquizam razão e emoção, público e privado, masculino e feminino, heterossexualidade e homossexualidade (Rago, 2013:27).

Medrado e Lyra creditam à Fúlvia Rosemberg (in memoriam) – educadora com formação em psicologia social, pesquisadora e militante da causa feminista – o importante papel de incentivadora para que ambos pudessem fundar o PAPAI e o GEMA, além de ela ter servido de inspiração para que eles começassem a trabalhar efetivamente com as temáticas sobre homens e masculinidades dentro da perspectiva do campo de conhecimento supracitado.

A construção textual irá se sustentar sobre dois pilares: a emoção, menos de uma “emoção raciocinada” (Miceli, 2005) que age como disciplinadora de afetos, mas como uma pletora de significados e de sensações agenciadas pelo raciocínio e sobretudo pelo coração; e a política (cotidiana). A partir dessa chave é possível compreender sobre qual tripé se assenta o PAPAI e a maneira como produz ativismos dentro e fora da academia. Desse modo, o ensino, a pesquisa, e a intervenção política comunitária irão se associar ao que os autores concebem como tríade temporal deinteração, vivência e duração como formas de produzir, repassar e publicar conhecimento. Foi preciso, acima de tudo, de uma articulação efetiva entre teoria e prática para que esse projeto pudesse se tornar palpável.

Na esteira do comprometimento acima, a idealização do Núcleo de Pesquisas em Gêneros e Masculinidades (GEMA), sediado na UFPE, se mostrou uma poderosa ferramenta de suporte e visibilidade, principalmente porque o núcleo está formalmente vinculado ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), desde 1998, mesmo ano de sua fundação. Além de formar uma série de pesquisadoras/es, em nível de graduação, mestrado e doutorado, a atuação junto à população em geral ganhou fôlego por meio das seguintes linhas de pesquisa: 1 – Saúde, sexualidade e reprodução; 2 – Homens, masculinidades e contextos sociais; 3 – Teoria feminista: conceitos e implicações políticas e 4 – Experiências geracionais e a construção social das categorias etárias.

As marcações sociais de cada uma das linhas de pesquisa acima remontam ao que AdrianaPiscitelli (2002) irá chamar de “feminismos globais” que procuram trazer à baila o debate da produção social das diferenças (Brah, 2006) pela via das articulações entre gênero, sexualidade, raça, classe (McClintock, 2010), dentre outras. Nota-se que esse caráter global articulará demandas locais de pesquisa ampliando panoramas específicos em torno de perspectivas transnacionais que não se resumem à desigualdades e/ou superposições.

Outro ponto fundamental que atuará a favor do entendimento do porque o PAPAI e o GEMA podem ser consideradas organizações feministas, e, consequentemente, dos modos sobre os quais determinadas pautas feministas podem ser desenvolvidas por homens, refere-se ao compromisso e respeito com que Medrado e Lyra circulam e se inserem nesse campo. A entrada na Rede Feminista Norte-Nordeste de Estudos e Pesquisas sobre Mulher e Relações de Gênero (REDOR), em 1999, por ocasião do 9º Encontro da Rede, realizado em Fortaleza, é um bom exemplo disso. Diante dessas vicissitudes, eles comentam:


Obviamente, nossa aproximação com o movimento feminista nem sempre foi tranquila. Apesar do respeito e cuidado de algumas colegas, especialmente Ana Alice Costa e Luzia Miranda Álvares, entre outras, em diferentes momentos, na REDOR, fomos, direta ou indiretamente, motivo de desconforto quando nossos nomes eram sugeridos para ocupar algum lugar de representação da Rede. Mas, isso não aconteceu somente na REDOR. Muitas foram as situações em que fomos questionados sobre nosso trabalho. Havia as que não entendiam ou não queriam entender nossa proposta. Porém, na grande maioria das situações houve acolhimento e a compreensão compartilhada sobre a importância e necessidade de maior envolvimento de homens em questões relativas à saúde e à vida reprodutiva (p.55).

Lembro que na reconstituição que Bourdieu (2005)faz de sua trajetória acadêmica, ele também mostra como a formação de campos de conhecimento e de atuação passam por perspectivas de tensão e conflito nas quais entram em jogo proximidades e distanciamentos que dependem do manejo dehabitus específicos; nas palavras dele:


O efeito de campo exerce-se em parte por meio do confronto com as tomadas de posição de todos ou de parcela daqueles que também estão engajados no campo (e são outras encarnações distintas, e antagônicas, da relação entre um habitus e um campo: o espaço dos possíveis realiza-se nos indivíduos que exercem uma “atração” ou uma “repulsão”, a qual depende do “peso” deles no campo, isto é, de sua visibilidade, e da maior ou menor afinidade dos habitus que leva a achar “simpáticos” ou “antipáticos” seu pensamento e sua ação (Bourdieu, 2005:55).

Nesse sentido, a aproximação mais direta com os movimentos feministas regional e nacional se mostrou uma estratégia válida para dar solidez à organização, embora nunca tivessem buscado exclusividade nesse contexto. Nas palavras deles: “[...] Nunca pleiteamos estar em espaços exclusivamente destinados às mulheres e sempre consideramos que estes espaços exclusivos, embora não fossem desejáveis, eram plenamente estratégicos e necessários” (p.57-58). Tais atuações os fizeram compreender que padrões “hegemônicos” de masculinidades e de feminilidades não se sustentam, além de entenderem que não é possível ser uma organização feminista que se propõe a trabalhar com homens e sobre masculinidades sem reconhecerem o papel crucial das mulheres, feministas ou não, nesse processo histórico de lutas e conquistas de direitos.

Foram muitas as mulheres que serviram de estimuladoras e inspiradoras para a continuidade do PAPAI, são elas: Sônia Correa, Ana Alice Costa, Margareth Arilha, Sônia Malheiros Miguel, Lilián Abrascinskas, Roxana Vazquez, Verena Stolcke, Nilza Iraci, Suely Carneiro, Edna Roland, Estela Aquino, Jaqueline Pitanguy, Simone Diniz, Débora Diniz, Suely Oliveira, Gigi, Ana Bosh, Vera Baroni, Vanete Almeida, e Maria Betânia Ávila, que também presidiu o conselho do PAPAI por alguns anos. Vale mencionar que atualmente a coordenação geral do Instituto é de uma mulher, Mariana Azevedo.

O fortalecimento dessas redes locais, regionais, nacionais e internacionais, ao mesmo tempo em que auxiliou no processo de amadurecimento tanto do PAPAI quanto do GEMA, também tonificou a produção de conhecimento em gênero e sexualidade nas regiões norte e nordeste. Infelizmente, esse é um aspecto que acabou ficando de fora da narrativa dos autores. Mesmo que eles tenham comentado de maneira pontual os esforços, individuais e coletivos, em formar um contingente de pesquisadoras/es que trabalhem com essa temática. Trata-se de uma reflexão que não ganhou força na seleção das memórias, e que necessitaria, no mínimo, de um capítulo.

O diálogo entre academia e militância é outra chave importante para a construção do livro. Essa é uma via de análise que irá se dar pela circulação e participação das/dos pesquisadoras/es que integram o PAPAI e o GEMA em eventos nacionais e internacionais e do envolvimento em campanhas tanto on quanto off line. Essa relação será mais fortemente esquadrinhada da metade para o final do texto com vistas a lançar olhar para o caráter de gestão e a própria missão das organizações referidas.

Do período de 1999 aos dias atuais, uma série de inserções foram importantes para o reconhecimento, a visibilidade e o consequente amadurecimento do Instituto em torno da temática das drogas, dos direitos humanos e sexuais, do HIV/IST/Aids, da saúde pública. Cito os seguintes eventos e organizações que tiveram lugar nesse processo de consolidação: Seminário Itinerante Latino-Americano (SILA), I Conferência Internacional sobre Consumo de Álcool e Redução de Danos, Programa Nacional de DST/Aids, Associação Brasileira de Psicologia Social (ABRAPSO), Associação Brasileira de Redutoras e Redutores de Danos (ABORDA), Programa H, Seminários Brasileiros sobre Homens e Masculinidades. Além, sobretudo, de participarem das seguintes campanhas: Machismo não combina com saúde. Por uma atenção integral à saúde dos homens; Campanha do Laço branco: Homens pelo fim da Violência contra a Mulher; Paternidade: Desejo, Direito e Compromisso; Pai não é visita! Pelo direito de ser acompanhante no pré-natal, parto e pós-parto; Dá licença, eu sou pai! Pela ampliação da licença paternidade. Machismo não combina com Saúde!; A Diversidade é Legal! Pela promoção da livre sexualidade e de expressões de gênero e, Amor Livre! Pelo fim da homofobia; estas duas últimas refletem a atuação direta do PAPAI e do GEMA na organização das Paradas do Orgulho LGBT de Recife.

As iniciativas mencionadas mostram a expressiva atuação das/dos pesquisadoras/es de maneira que suas práxis políticas não se circunscrevem ao espaço da universidade. Nesse sentido, mesmo que indiretamente, a narrativa que é construída nos auxilia a pensar metodológica e estrategicamente o que devemos fazer para garantirmos rentabilidade à(s) nossa(s) presença(s) em espaços onde somos vistos, inicialmente, comooutsiders; quais as alianças devemos estabelecer; e tantas outras questões que irão definir, a longo prazo, nossa posição enquanto sujeitos do conhecimento. É sobre essa perspectiva textual que o livro é finalizado. A partir dos breves depoimentos de Mariana, Thiago, Regina e Sirley, presentes no posfácio, sobre suas distintas entradas no PAPAI, é possível perceber a emoção e a política se renovando, ou melhor, sendo oxigenadas por meio da transparência, confiança, compromisso, respeito e humor – princípios básicos da organização.

À guisa de conclusão, esse é um livro importante para o campo de estudos feministas e de gênero não somente porque trata de modo sistemático como articular militância e academia a partir dos processos de constituição de uma organização feminista que ousa trabalhar com homens e sobre masculinidades, assim como por se comprometer em desmistificar que o conceito de “masculinidade hegemônica” (Connell, 1995) nada mais é que um arquétipo precário de representação; garantindo, então, que um amplo debate se instaure sobre homens, masculinidades, saúde sexual do(s) homem(ns) etc., e, portanto, possibilitando que homens, reconhecendo o pioneirismo das lutas feministas, possam, ainda que nem todos se identifiquem enquanto feministas, se aventurar e ousar trabalhar com feminismos.

Desta feita, “feminista é o homem ou a mulher que diz: ‘Sim, existe um problema de gênero ainda hoje e temos que resolvê-lo, temos que melhorar’. Todos nós, mulheres e homens, temos que melhorar” (Adichie, 2014:35). Afinal, como alertam Medrado e Lyra: não se nasce homem, torna-se homem. Desse modo, é notável o ganho epistemológico e prático que o livro apresenta a respeito da relação e da inserção de homens que ousam trabalhar com feminismos dentro do campo dos estudos de gênero e sexualidade e, sobretudo, da militância feminista.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Adichie, Chimamanda Ngozi. Sejamos todos feministas. São Paulo, Companhia das Letras, 2014. 

Beauvoir, Simone de. O segundo sexo – volume único. Rio de Janeiro, Editora Nova Fronteira, 2009. [1949]. 

Bourdieu, Pierre. Esboço de auto-análise. São Paulo, Companhia das Letras, 2005. 

Brah, Avtar. Diferença, diversidade, diferenciação. Cadernos Pagu (26), Campinas-SP, Núcleo de Estudos de Gênero-Pagu/Unicamp, jan./jun. 2006, pp.329-376. 

Butler, Judith. Problemas de gênero – Feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2003. [1990].

Collins, Patricia Hill. Black Feminist Thought: Knowledge, Consciousness and the Politics of Empowerment. New York, Routledge, 1990. 

Connell, Robert. Masculinities. Berkeley, CA, University of California, 1995. 

Davis, Angela. Women, Race and Class. United States, Random House, 1983. 

Halbwachs, Maurice. A memória coletiva. São Paulo, Centauro, 2006. 

Hooks, Bell. Ain’t I a Woman?: Black women and feminism. United States, South end Press, 1981. [ Links ]

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Miceli, Sergio. Introdução. In: Bourdieu, Pierre. Esboço de auto-análise. São Paulo, Companhia das Letras, 2005, pp.7-20. 

Piscitelli, Adriana. Recriando a (categoria) Mulher?. In: Algranti, Leila (org.). A prática feminista e o conceito de gênero. Textos Didáticos, nº 48, Campinas-SP, IFCH – Unicamp, 2002, pp.7-42. 

Pollak, Michael. Memória e Identidade Social. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 5, nº 10, 1992, pp.200-212. 

Rago, Margareth. A aventura de contar-se: feminismos, escritas de si e invenções da subjetividade. Campinas-SP, Editora da Unicamp, 2013. 

* Resenha de Medrado, Benedito; Lyra, Jorge. Produzindo memórias para alimentar utopias: Narrativas sobre uma organização feminista brasileira que, desde 1997, ousa trabalhar com homens e sobre masculinidades. Recife, Instituto PAPAI, 2015. Agradeço o cuidado que Ronney Alano Reis teve durante sua revisão gramatical do texto.
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Novas guerras sexuais, : diferença, poder religioso e identidades



Religião e sexualidade: dilemas contemporâneos brasileiros *

Rafael da Silva Noleto** 2

**Professor de Antropologia na Universidade Federal do Tocantins (UFT)
2Doutorando em Antropologia Social pela Universidade de São Paulo (USP), São Paulo, SP, Brasil. rafaelnoleto@usp.br

Natividade, Marcelo; Oliveira, Leandro de. Novas guerras sexuais, : diferença, poder religioso e identidades LGBT no Brasil. 2013. Garamond, Rio de Janeiro:

Dilemas contemporâneos brasileiros na interface entre religião e sexualidade. Talvez essa seja a discussão central enfrentada no livro recém-lançado por Marcelo Natividade e Leandro de Oliveira. Corroborando interesses mútuos de pesquisa e celebrando uma parceria acadêmica que já se desenvolve há alguns anos, a dupla de antropólogos visa lançar luz à discussão sobre as respostas religiosas brasileiras à emergência de uma comunidade LGBT que é cada vez mais visível na intricada arena de disputas do cenário político contemporâneo no Brasil.

O livro alinhava duas trajetórias de pesquisa que se construíram (e ainda se constroem) interessadas, por um lado, na discussão sobre as tensas relações entre religiões de base cristã e a diversidade sexual e de gênero (no caso de Marcelo Natividade) e, por outro lado, nas implicações dos processos de subjetivação de sujeitos não heterossexuais quando em diálogo com suas famílias de origem (no caso de Leandro de Oliveira). A partir desses dois eixos de discussão, os pesquisadores encontram nexos para desenvolverem, em conjunto, um trabalho que contempla temáticas muito relevantes para a compreensão do cenário contemporâneo brasileiro no que diz respeito ao debate sobre cidadania LGBT, às dinâmicas de transformação do campo religioso no Brasil após perdas significativas na hegemonia católica, à inserção de parlamentares cristãos que desafiam mais explicitamente a ideia de laicidade do Estado brasileiro no Congresso Nacional, ao surgimento de igrejas evangélicas inclusivas que ressignificam os sentidos da homossexualidade e outras identidades sexuais não heterossexuais, ao debate em torno das conexões entre família, ethos privado e ethos religioso .

O primeiro capítulo trata de detalhar os procedimentos metodológicos utilizados para a construção da pesquisa e coleta de dados de análise. Os autores empreenderam uma vasta revisão bibliográfica sobre “religião e sexualidade” na antropologia brasileira com intuito de mapear as discussões já realizadas nesse campo, identificando tendências temáticas e lacunas a serem preenchidas. A pesquisa foi também conduzida a partir da coleta de dados em diversos sites e blogs relacionados a instituições ou grupos filiados a certas identidades religiosas, a fim de entender seus posicionamentos públicos acerca da diversidade sexual. O acompanhamento desses sites proporcionou aos autores a construção de um enorme banco de dados com informações sobre debates que ganharam a esfera pública, especialmente aqueles que colocam em tensão os direitos sexuais e as construções cristãs sobre sexualidade, gênero e família. Além disso, os autores acompanharam cultos em igrejas inclusivas (que não prescrevem o abandono ou “cura” das identidades sexuais não heterossexuais) e, por fim, realizaram entrevistas com o intuito de compreender os processos de subjetivação enfrentados por sujeitos autodenominados como LGBT quando em confronto com os ditames religiosos em que foram socializados.

O segundo capítulo é dedicado à revisão bibliográfica do campo sobre “religião e sexualidade” no Brasil. Os autores chamam a atenção para o expressivo número de pesquisas que problematizaram o tema da homossexualidade nos cultos de religiões de matriz africana. Nesse campo, desponta como estudo precursor a etnografia de Ruth Landes (2002), antropóloga norte-americana que foi pioneira ao identificar o lugar privilegiado da homossexualidade nos cultos. Como desdobramentos dessa pesquisa, proliferam etnografias com foco na homossexualidade (sobretudo masculina) nos cultos, destacando-se os trabalhos de Peter Fry (1982), Rita Segato (2004) e Patrícia Birman (1995), que reaquecem o debate sobre o assunto nas décadas de 1980 (Fry e Segato) e 1990 (Birman), rediscutindo dados etnográficos de Landes e de seus próprios campos de pesquisa.

No campo das religiões cristãs, os autores constatam que há uma produção etnográfica exígua (p.69) quando comparada às pesquisas nos cultos afro. Nesse sentido, destacam-se as pesquisas de Maria das Dores Campo Machado (1996), Cecília Mariz (1996) e Clara Mafra (1998), que, com ênfases diferentes, ainda nos anos 1990, estavam atentas às discussões sobre “o lugar da mulher na família, na congregação e no espaço religioso” (p. 51) e também sobre o lugar da sexualidade em religiões pentecostais (mais especificamente no caso de Machado). Destacam-se também as pesquisas que tematizaram as problemáticas da sexualidade em contraposição às discussões em torno da família e da religião. Nesse caso, emergem como referências as pesquisas de Luiz Fernando Dias Duarte (2009), Edlaine Gomes (2009), Naara Luna (2009) e Márcia Couto (2001). Entretanto, no campo mais especificamente voltado à problematização da homossexualidade em contraponto às religiões cristãs, é o próprio trabalho de Marcelo Natividade que abre um campo de pesquisa no Brasil ao olhar para as vivências homossexuais (sobretudo masculinas) em tensão com as prescrições pentecostais sobre sexualidade, gênero e família. É nesse contexto que surgem as igrejas inclusivas (objeto de estudo do autor) como fruto de um processo político de visibilização das identidades LGBT no Brasil e da percepção de negociações possíveis entre sexualidade e religião no sentido de compatibilizar as experiências homossexuais, transexuais e travestis com experiências religiosas ambientadas em religiões cristãs.

Buscando compreender os nexos entre religião e homofobia, Natividade e Oliveira dedicam-se à análise dos discursos religiosos na esfera pública, atentando para os pronunciamentos institucionais oficiais e não oficiais de grupos religiosos acerca da diversidade sexual. O material de análise são os textos veiculados em sites oficiais de igrejas e blogs de personalidades cristãs – como o escritor Júlio Severo – que elaboram discursos imbuídos daquilo que os autores denominam como “homofobia religiosa”, ou seja, um corpo discursivo que desqualifica a diversidade sexual com base em uma autoridade extraída de interpretações conservadoras acerca dos princípios cosmológicos e doutrinários que orientam as religiões cristãs (p. 81). Nesse cenário, despontam inúmeros “ministérios de ajuda” que se dedicam à prevenção de comportamentos que supostamente feririam uma moral cristã como, por exemplo, a homossexualidade. Os ministérios de ajuda atuam no sentido de fornecer informações, sob um ponto de vista cristão, acerca dos “perigos” da homossexualidade, visando a “cura” e a “libertação” das pessoas que vivem “atormentadas” por esse “problema”, que é visto como uma perturbação de ordem espiritual. Esses ministérios ganham força em meio a muitos discursos em torno da tramitação do projeto de lei (PL-122/2006) que visava a criminalização da homofobia.

Natividade e Oliveira coletaram discursos que apontam para uma percepção evangélica de que “diálogos entre movimentos sociais, organizações não governamentais e o poder público são retratados como articulação perigosa por propagar ‘valores não cristãos’” (p. 88). Sob a ótica das igrejas evangélicas, o projeto de criminalizar a homofobia os impediria de afastar “ministros homossexuais” de sua membresia, impondo uma “ditadura gay” às igrejas. Nesse sentido, “obstruir os direitos LGBT, em tais discursos, é uma tentativa de derrotar as influências do demônio na Terra” (p.96). Apesar de identificarem uma convergência entre evangélicos e católicos no sentido de compreender o reconhecimento de direitos LGBT como uma afronta à moral cristã, os autores percebem que a Igreja Católica é menos ruidosa quanto a pronunciamentos públicos sobre homossexualidade no sentido de que não propaga a ideia de “cura” da homossexualidade tal qual muitas denominações evangélicas. Nesse caso, há mais espaço para negociações nas esferas pastorais locais, onde homossexuais católicos podem experimentar relativo acolhimento e silenciamento quanto às suas identidades sexuais, desde que gerenciem sua visibilidade. Na maioria dos discursos católicos, as pessoas homossexuais são convidadas a viverem a castidade, pois a homossexualidade é retratada como uma “desordem” que integra a “natureza” dos sujeitos.

No campo das igrejas inclusivas, Natividade e Oliveira identificam duas ênfases ideológicas: de um lado, há as igrejas com um caráter mais histórico, que enfatizam uma teologia inclusiva e um proselitismo mais ativista. Do outro lado, há as igrejas com um caráter mais pentecostal, que enfatizam os códigos de santidade e as prescrições de uma homossexualidade baseada em valores morais cristãos mais amplos como, por exemplo, a monogamia. No primeiro grupo, destacam-se a Igreja Comunidade Metropolitana, Igreja Acalanto e Comunidade Betel, que investem em reinterpretações dos textos bíblicos, no proselitismo religioso em eventos e locais importantes para a comunidade LGBT (como a Parada Gay) e no acompanhamento da tramitação de projetos referentes à luta por direitos no campo sexual e de gênero. Essas igrejas adotam uma postura em que “militância e religião se misturam num discurso que pretende confrontar a homofobia da ‘tradição cristã’” (p. 130). No segundo grupo, destacam-se a Igreja Cristã contemporânea, Comunidade Cristã Nova Esperança e Igreja Cristã Evangelho para Todos. A ênfase recai sobre os códigos de santidade e nas linhas de continuidade estabelecidas com o pentecostalismo mais convencional. A experiência religiosa é valorizada e a retórica da batalha espiritual é evocada para “curar” não a homossexualidade, mas todo e qualquer desejo que fuja a uma moralidade cristã monogâmica ou que endosse a prática do sexo sem compromisso, sem a intenção de “amar” ou constituir um relacionamento estável. Essas diferenciações entre igrejas inclusivas não são estanques, mas permitem perceber as ênfases dadas nesse segmento religioso plural. Como ponto em comum, pode-se dizer que essas igrejas trabalham a partir de uma “pedagogia da aceitação” (p.139), na qual os fiéis passam a aceitar-se como são, pois a homossexualidade é compreendida numa perspectiva naturalizante que envolve a criação divina: Deus os fez assim.

Natividade e Oliveira também olham para o campo evangélico mais amplo, identificando as iniciativas de “acolhimento” aos homossexuais por parte das igrejas pentecostais mais conservadoras. Nos discursos que proferem, essas igrejas dizem não discriminar os homossexuais, pelo contrário, afirmam acolhê-los com o intuito de aconselhá-los e colocá-los diante da possibilidade de “cura” da homossexualidade através de um encontro com o poder de Deus. Visam a produção do “ex-homossexual”, um sujeito liberto de uma vida pregressa de pecados, que alcançará relativa superioridade moral com o testemunho de sua “cura”, não sem enfrentar desconfianças quanto a sua eficácia, pois “embora tomado como sinal do poder transformador de Deus, seu relato desperta também uma atenção e suspeita” (p.171). Os autores concluem que, na retórica do acolhimento, “esses discursos procuram conciliar o princípio do ‘amor ao próximo’ com uma atitude radical de repúdio à diferença” (p.159-160).

As experiências dos sujeitos LGBT com suas redes religiosas de origem também são analisadas no livro. A partir dos depoimentos de diversos interlocutores (especialmente homens, pois os autores sinalizam para maior frequência deles nas igrejas inclusivas), a pesquisa mostra como “o sentimento de temor diante do desejo homossexual e o medo do pecado ensejam a derradeira dúvida acerca do amor de Deus” (p.192). Os entrevistados compartilham suas experiências de exclusão nos contextos religiosos em que foram sociabilizados, apontando como marcantes os momentos em que foram alijados de seu protagonismo ministerial, sendo relegados a “estar no banco da igreja”, ou seja, a deixar de exercer cargos eclesiais por conta de sua condição de “impureza” (p.188-189). Nesse sentido, “o sujeito que adere a uma identidade LGBT não pratica um pecado, ele é o pecado” (p.193). A partir da socialização em ambientes religiosos em que o discurso não apenas patologiza, mas demoniza a homossexualidade, esses sujeitos desenvolvem conflitos interiores diversos com variados graus de gravidade, ensejando desde conflitos familiares e congregacionais até tentativas de suicídio. É nesse ponto que os autores consideram que as falas de seus entrevistados sobre seus próprios conflitos interiores não devem ser compreendidas somente como resultado de tensões intrapsíquicas, mas


como um indicador dos mecanismos de sujeição a que os entrevistados foram submetidos ao longo de suas trajetórias, para os quais a socialização religiosa colabora na modelação de sentimentos, emoções, percepções, visões de mundo, oferecendo recursos cosmológicos e doutrinários para a interpretação do desejo homoafetivo (p.209-210).

Os autores se debruçam sobre as experiências de passagem dos sujeitos entre as igrejas conservadoras e as igrejas inclusivas. Nesse segmento, “a verdade da sexualidade, fundante da identidade, passará a ser percebida como condizente com a verdade de Deus” (p. 233). Esses grupos inclusivos proporcionam aos sujeitos LGBT a retomada de uma vida congregacional, o exercício de atividades rituais, o acesso a cargos eclesiais e, principalmente, a experiência com uma espiritualidade que aceita e valoriza a diversidade sexual (p.216). Outro dado importante é o fato de que os autores buscaram entender a experiência de mães cristãs que possuem filhos homossexuais que frequentam igrejas inclusivas. Identificaram que há graus diferenciados de aceitação das identidades sexuais de seus filhos. As mães elaboram narrativas que tentam encontrar pontos de contato entre os discursos cristãos tradicionais e os discursos inclusivos. Algumas compreendem melhor a homossexualidade de seus filhos a partir da convivência anterior com pessoas homossexuais em outras redes de sociabilidade. Por outro lado, os filhos não interpretam as situações de exclusão ou rechaço vividas nas relações intrafamiliares como “homofobia” ou “preconceito”; compreendem essas situações de forma mais pessoalizada, sublinhando a maior ou menor aceitação de seus familiares quanto as suas orientações sexuais (p. 258). Essas situações tensas vividas com familiares são, muitas vezes, interpretadas como “cuidado” e “zelo” (p.260). Do ponto de vista de muitas mães, a adesão religiosa a uma igreja inclusiva é, de certo modo, positiva, pois incentiva o comedimento sexual, o estabelecimento de relacionamentos estáveis e a adoção de uma homossexualidade discreta (p.266).

O livro representa uma grande contribuição para a antropologia brasileira no sentido de que desvela um cenário religioso plural em tensas negociações com as identidades sexuais emergentes como sujeitos de direitos. Além de focar em experiências masculinas com a homossexualidade, a pesquisa traz ainda depoimentos de lésbicas (que são mais visíveis em igrejas inclusivas com lideranças lésbicas) e travestis, embora reconheça que esse campo das identidades sexuais e de gênero femininas necessite de maior atenção em pesquisas futuras. As narrativas mais pessoalizadas trazidas nos capítulos finais da obra enriquecem o debate e evidenciam como as religiões operam no sentido promover exclusões baseadas em interpretações teológicas unilaterais e universalizantes. As narrativas dos sujeitos são, em muitos casos, comoventes porque se constroem na intersecção entre a impossibilidade de se relacionar com Deus, com a família de origem e com as pessoas por quem possuem desejos de ordem afetiva e sexual. Certamente, um trabalho que merece ser lido tanto por aqueles que pesquisam sexualidade quanto por pesquisadores que se dedicam à religião como matéria de estudos.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Birman, Patrícia. Fazer estilo criando gênero . Rio de Janeiro, Relume Dumará/EDUERJ, 1995. 

Couto, M. T. O pluralismo religioso intrafamiliar e as transformações recentes nos campos da família e da religião. Teoria & Sociedade 8, 2001, pp. 78-97. 

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Mariz, Cecília Loreto; Machado, Maria das Dores Campos. Pentecostalismo e redefinição do feminino. Religião e sociedade 17(1-2), 1996, pp.140-159. 

Natividade, Marcelo; Gomes, Edlaine. Para além da família e da religião: segredo e exercício da sexualidade. Religião e sociedade 26(2), 2006, pp.41-58. 

Segato, Rita. Inventando a natureza: família, sexo e gênero no Xangô do Recife. In: Moura, C. E. M. (org.). Candomblé: religião do corpo e da alma: tipos psicológicos nas religiões afro-brasileiras . Rio de Janeiro, Pallas, 2004, pp.45-102. [1986] 

*Resenha de Natividade, Marcelo; Oliveira, Leandro de. Novas guerras sexuais : diferença, poder religioso e identidades LGBT no Brasil. Rio de Janeiro, Garamond, 2013.
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O clamor de Antígona: parentesco entre a vida e a morte.



Tragédia e Aprendizado*

Marcos Sardá Vieira** 2

**Professor da Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS);
2doutorando pelo Programa Interdisciplinar em Ciências Humanas da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Florianópolis, SC, Brasil. marcosarda@gmail.com

Butler, Judith. O clamor de Antígona: parentesco entre a vida e a morte. 2014. Editora UFSC, Florianópolis/SC - Brasil: 128p. ISBN: 9788532806901.

No livro O Clamor de Antígona, a autora Judith Butler apresenta uma reflexão sobre as relações de parentesco que vão além do entendimento das relações consanguíneas e dos princípios normativos associados à heteronormatividade. Em busca de um diálogo aberto com Hegel e Lacan, confrontando o poder legislativo do Estado e o desejo individual, a autora apresenta a tragédia de Antígona, personagem ficcional da peça clássica de Sófocles, na sua interpretação de uma quase heroína queer, que desafia a convenção do amor, do parentesco e do seu papel social como mulher.

O livro é dividido em três capítulos principais, que apresentam, gradualmente, o enredo da peça à medida que relaciona a estrutura normativa do parentesco contida pelo valor simbólico institucional, excluindo qualquer outra representação de relações familiares no limite do que é ser humano. De acordo com Sara Salih (2013), o texto de Butler apresenta muitos questionamentos que desestabilizam a categoria do sujeito, sem chegar ao significado final e completo, em um processo contínuo de reflexão.

Na trágica ficção do dramaturgo grego Sófocles, Antígona é filha de Édipo em sua relação incestuosa com sua mãe, Jocasta. Juntos eles tiveram quatro filhos, entre eles Polinice e Etéocles que matam um ao outro na disputa pelo trono de Tebas. Com a morte dos dois irmãos de Antígona, o trono é tomado pelo tio Creonte, que decreta que o corpo de Polinice seja deixado nu e desenterrado. Defendendo um enterro digno para seu amado irmão, Antígona rebela-se declarando seu direito ao luto e enterrando o corpo de Polinice, contra a medida do rei Creonte, que condena Antígona a ser enterrada viva, exercitando seu poder soberano de fazer morrer (Foucault, 2002). Mas, porque Antígona seria castigada com extremo rigor se não fosse considerada nociva e perigosa? (Lévi-Strauss, 1982).

Em sua ação e discurso de revolta, Antígona transgride as normas de gênero e do parentesco por reconhecer verbalmente o seu ato e assumindo uma postura masculina diante do poder do Estado representado por Creonte. Antígona utiliza a fala de Creonte para afirmar sua autonomia “conquistada através da apropriação da voz autorizada daquele a quem resiste” (Butler, 2014:30) demonstrando não estar suscetível para ouvir aquilo que é ordenado pela autoridade de Creonte.

Em sua avaliação sobre essa tragédia, Judith Butler questiona a motivação de Antígona em desafiar a lei (sabendo que a morte será sua punição) e interrogando se “sua fatalidade seria uma necessidade” (Butler, 2014:49). Através do clamor de Antígona e seu ato de rebeldia, Judith Butler nos encaminha, ao longo dos capítulos do livro, para a reflexão sobre o enredo da morte de Antígona, como lição necessária para compreendermos os limites da inteligibilidade cultural e da constituição do parentesco, enquanto normas sociais que restringem as condutas sexuais e afetivas, a partir da proibição fundamentada pela maldição das relações incestuosas, como fantasias que podem ser castigadas (Butler, 2001).

No diálogo de Hegel e Lacan e nas definições sobre o funcionamento da cultura e da lógica das coisas, surgem questões sobre a teia de relações que tornam nossas vidas possíveis e os nossos amores reconhecíveis. O diálogo desses autores com Butler traz reflexões sobre novas estruturas para a transformação social entre as relações de parentesco e as epistemologias reinantes da inteligibilidade cultural. E as duas idealizações do parentesco apresentadas por Butler correspondem, justamente, às interpretações dessa tragédia pelos olhares de Hegel e Lacan.

Para Hegel, o parentesco é rigorosamente diferenciado da esfera do Estado, em que Antígona representa as leis do parentesco e Creonte representa o Estado, estando ambos implicados pela mesma linguagem. Antígona não encontra lugar na cidadania do reino porque é incapaz de reconhecer ou de ser reconhecida na ordem ética do Estado. A única forma de reconhecimento obtido por ela é através do seu irmão morto, por quem é suposto que tenha um amor incondicional. E havendo o reconhecimento enquanto irmãos, não existe desejo algum nesse relacionamento, de acordo com Hegel. Enquanto Antígona se masculiniza pelo uso da fala, Creonte é desmasculinizado por estar sujeito ao discurso de contestação. E nessa disputa, nenhum dos dois mantém sua posição fixa dentro do gênero, que é desestabilizado pelas perturbações do parentesco.

Não só o Estado pressupõe o parentesco e o parentesco pressupõe o Estado, como os atos que são realizados em nome de um desses princípios ocorrem no idioma do outro, confundindo a distinção entre os dois num nível retórico e, portanto, provocando uma crise na estabilidade (Butler, 2014:30).

Na idealização de Lacan, Antígona situa-se no limite do simbólico, enquanto registro linguístico em que as relações de parentesco são mantidas. O Estado não aparece em suas discussões sobre Antígona. Seu foco está no parentesco, que surge como função do simbólico e torna-se “rigorosamente dissociado da esfera do social, apesar de constituir o campo estrutural de inteligibilidade no qual o social nasce” (Butler, 2014:52). Em Lacan, o domínio da lei universal, abarcando uma regra cultural eterna, é a “base para a noção lacaniana do simbólico e para as tentativas posteriores de separar o simbólico tanto da esfera do biológico quanto do social” (Butler, 2014:41). A dimensão simbólica está separada da dimensão social. Para Lacan, aquilo que é universal na cultura é entendido como regras simbólicas ou linguísticas, que, a princípio, codificam e sustentam as relações de parentesco.

“A norma ideal contingente é uma forma de reificação com importantes consequências para as relações de gênero” (Butler, 2014:42). Dessa maneira, o estatuto da lei, enquanto norma ideal, torna-se indiscutível e incontestável, estabelecendo limites ao social, ao subversivo e à possibilidade de mudança. “A vida ética é precisamente uma vida estruturada pela Sittlichkeit1, em que as normas de inteligibilidade social são histórica e socialmente produzidas” (Butler, 2014:54).

A Antígona interpretada através de Lacan está entre as esferas do imaginário e do simbólico, permitindo o seu acesso à discursividade. Para o psicanalista francês, existe uma idealização na relação de Antígona com seu irmão. Polinice pertence ao plano do simbólico definido como ser puro e que é esse irmão simbólico que Antígona verdadeiramente ama. Talvez, o mesmo contexto do amor idealizado que Antígona dedicou a seu pai/irmão, Édipo. Essa relatividade do amor parental e do desejo despertado por Antígona traz à discussão o tabu do incesto e a promiscuidade, permeando o limite do humano, entre o aceitável e o abjeto.

Segundo Claude Lévi-Strauss [1908-2009], existe confusão em associar o horror ao incesto como tendências fisiológicas e psicológicas congênitas, uma vez que, não haveria “razão para proibir aquilo que, sem proibição, não correria o risco de ser executado” (Lévi-Strauss, 1982:56). Para o antropólogo e filósofo francês:

A regulamentação das relações entre os sexos constitui uma invasão da cultura no interior da natureza; por outro lado, a vida social é, no íntimo da natureza, um prenúncio da vida social, porque, dentre todos os instintos, o instinto sexual é o único que para se definir tem necessidade do estímulo de outrem (Lévi-Strauss, 1982:43).

Pelas teorias lacanianas, o simbólico é definido como campo da Lei que regula o desejo no complexo de Édipo, derivado de uma proibição primária do incesto. “O simbólico é precisamente o que estabelece os limites para o todo e qualquer esforço utópico de reconfigurar e reviver as relações de parentesco a certa distância da cena edipiana” (Butler, 2014:42).

Judith Butler desconsidera a distinção entre lei simbólica e social afirmando que o simbólico é a sedimentação das práticas sociais, em acordo com as regras universais, que operam para transformar relações biológicas em cultura, sem pertencer a uma cultura específica. Portanto, o tabu do incesto é um mecanismo pelo qual a biologia é transformada em cultura, deixando de ser uma exigência biológica. Até mesmo na concepção relativa daquilo que entendemos como casamento, cada sociedade dispõe de um meio cultural para distinguir as uniões e vínculos sexuais, entre duas ou mais pessoas, enquanto legítimas, seja pela monogamia ou poligamia e pelas relações permanentes ou temporárias (Lévi-Strauss, 1986).

O ato infrator do incesto abre precedentes para sustentar a dissolução dos laços sociais que deixam de surgir a partir de uma base normativa que regula o legítimo e o ilegítimo da relação de parentesco. Diante da peça Antígona, torna-se possível uma nova reflexão sobre esse ato de proibição que se prolifera em outras operações, a partir do crime que condena.

Na medida em que o tabu do incesto contém em si sua infração, ele não proíbe simplesmente o incesto, mas o sustenta e cultiva como um espectro necessário da dissolução social, um espectro sem o qual os laços sociais não podem surgir (Butler, 2014:95).

Esse dilema pós-edipiano torna incerto o destino dos deslizamentos das relações entre irmãos, entre filhos e pais, independente de estarem vivos ou mortos. A versão psicanalítica estabelecida a partir da relação incestuosa condena sua perversão, ao mesmo tempo em que cria um sentido dialético e estático, no qual a lei define-se pelo contraste com o perverso, ainda que a própria lei não seja exatamente o que parece ser. A compreensão do perverso que surge na linguagem da lei define uma esfera de parentesco que não ajuda a criar possibilidades para novas formas de vida social. E resta saber se a questão do “tabu do incesto estabelece certas formas de parentesco como as únicas inteligíveis e que podem ser vividas” (Butler, 2014:98).

As consequências simbólicas do tabu do incesto estabelecem os fundamentos da estrutura familiar declarados como universais, dificultando a articulação de outros desvios diante da conduta heterossexual normalizada. Porém, qual o limite do que pode ser pensado como certo e inteligível? (Butler, 2001).

Dando sequência ao texto, Butler interpreta o limite do enfrentamento da lei na concepção de Lacan, afirmando que Antígona não se estabelece no simbólico. Sua morte é sempre dupla ao longo da peça. Seu destino é não ter uma vida para viver, estando condenada à morte e servindo a ela antes de qualquer possibilidade de sobrevivência. Antígona desafia a viabilidade da vida pela pulsão da morte, oferecendo uma perspectiva crítica e resistente contra a restrição do simbólico diante da viabilidade da vida, em suas foraclusões2 precipitadas, estabelecendo novos fundamentos para a comunicabilidade e para a existência.

Pelo seu legado de relações incestuosas e posições de gênero ambíguas, Antígona está longe de representar os princípios normativos do parentesco, ainda que ocupe um lugar de oposição política quando ela questiona os limites da representabilidade do parentesco e da condição humana, indo além das reivindicações feministas em questionar a hierarquia fixa na materialidade do corpo e do sexo (Butler, 2002). Representando uma aberração da norma, a interpretação da tragédia de Antígona, segundo Judith Butler, torna-se uma oportunidade de reconstrução das posições de parentesco no simbólico que postula as pré-condições da comunicabilidade linguística.

Antígona não representa o parentesco em sua forma ideal, mas em sua deformação e deslocamento, colocando em crise os regimes reinantes de representação e levantando a questão de quais poderiam ter sido as condições de inteligibilidade que teriam tornado sua vida possível (Butler, 2014:47).

Antígona perturba a base do parentesco, que é uma precondição humana. Ela representa os limites da inteligibilidade, ocupando a linguagem que nunca pode lhe pertencer. Se ela é humana, representa “alguém para quem as posições simbólicas tornaram-se incoerentes, confundindo, como ela o faz, pai com irmão” (Butler, 2014:44) e surgindo no lugar da mãe para desestabilizar o significado do materno.

Pela leitura do livro compreendemos que o parentesco é uma forma de realizar uma ação e implica na repetição de um costume a partir de uma convenção, operada pela própria contingência. Na interpretação das correntes pós-estruturalistas, exemplificadas por autoras como Gayle Rubin, Sylvia Yanagisako, Jane Collier, Michelle Rosado e David Schneider, a definição de parentesco significa:

Qualquer número de acordos sociais que organizam a reprodução da vida material, incluindo a ritualização do nascimento e morte, proporcionando laços de aliança íntima tanto duradouros quanto vulneráveis e regulando a sexualidade através da sanção e do tabu (Butler, 2014:102).

Na interpretação de Butler, a tragédia de Antígona, que transgrediu as fronteiras da inteligibilidade do parentesco, representa a fatalidade heterossexual, em uma suposição contínua do simbólico que interpreta com repulsa moral o incesto e, de maneira similar, está associado ao horror provocado pela relação gay e lésbica e, ainda, pela condenação moral e o julgamento de inferioridade na formação de famílias compostas de modo aparentemente derivativo da normatividade. Ainda assim, a morte social de Antígona não produz uma categoria heterossexual no desfecho do drama edipiano, o que permite repensar a personagem como ponto de partida para uma teoria psicanalítica, que possa rever a posição negativa do perverso e a rearticulação do essencial anunciado à norma.

“A condenação de Antígona opera pela foraclusão, eliminando desde o início qualquer vida ou amor que ela poderia ter tido” (Butler, 2014:109). De maneira similar, o tabu do incesto serve de referência para foracluir o amor não normativo, tornando sombrio o significado daquele amor fora do vivível e privando o seu sentido de durabilidade ontológica no reconhecimento institucional e público. Aceitar essa doutrina é reproduzir um estado de melancolia no nível cultural. Nesse raciocínio, Butler supõe a existência de uma melancolia na esfera pública motivada pela falta de reconhecimento do ser humano que vive no reino sombrio, por não estar incluído nos padrões de reconhecimento social que permitiu a conquista da condição humana, tornando-se sujeitos que morrem lentamente, marginalizados e sem cidadania plena para vir a ser.

De acordo com Michel Foucault (2000), interpretando o texto de Immanuel Kant [1724-1804] sobre o processo de esclarecimento individual na história do pensamento, a condição inversa para que uma pessoa seja liberta do seu estado de menoridade é obedecer mais e raciocinar menos. Nesse sentido, a suposta liberdade no uso público da razão autônoma torna-se uma garantia de obediência, desde que, o próprio princípio político ao qual é preciso obedecer esteja de acordo com a razão universal.

Compreender que a tragédia é uma forma de encarar o aprendizado a partir do conflito permite um estado de consciência para essa vivência, mesmo quando existe sofrimento e quando não se sabe ao certo como explicar o fenômeno que a tragédia narra e exibe. O conhecimento que surge desse testemunho costuma estar em algum lugar, nos arquivos da memória. E nessas situações dramáticas, como a trágica experiência de Antígona, percebe-se que nem sempre o conhecimento serve para uma aplicação objetiva. A tragédia, muitas vezes, surge para questionar a própria certeza do conhecimento sem que o personagem autoconsciente precise estar implicado, essencialmente, na força de sua ação. Até porque, a ação que promove a tragédia também determina o personagem nela envolvido.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Butler, Judith. Undoing Gender. New York, Routledge, 2004. 

Butler, Judith. Cuerpos que Importan: sobre los límites materiales y discursivos del “sexo”. Buenos Aires, Paidós, 2002 [1993]. 

Foucault, Michel. O que são as Luzes? 1984. Ditos e Escritos II. Arqueologia das ciências e história dos sistemas de pensamento. Rio de Janeiro: Forense, 2000. 

Foucault, Michel. Em defesa da sociedade. São Paulo, Marins Fontes, 2002. 

Lévi-Strauss, Claude. As Estruturas Elementares do Parentesco. Petrópolis, Vozes, 1982. 

Lévi-Strauss, Claude. O Olhar Distanciado. Lisboa, Edições 70, 1986. 

Salih, Sara. Judith Butler e a Teoria Queer. Belo Horizonte, Autêntica Editora, 2013. 

1 A esfera legitimadora da Sittlichkeit é apresentada, segundo Butler, como “as normas articuladas que governam a esfera da inteligibilidade cultural” (Butler, 2014:19).

2 De acordo com a nota do tradutor, André Cechinel, o termo foraclusão (do inglês foreclusion) “designa o mecanismo específico da psicose através do qual se produz a rejeição de um significante fundamental para fora do universo simbólico do sujeito”(Butler, 2014:11).

*Resenha de BUTLER, Judith. O Clamor de Antígona: o parentesco entre a vida e a morte. Florianópolis, Editora da UFSC, 2014.
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