sexta-feira, 25 de junho de 2010

Raça, Ciência e Sociedade


MAIO, Marcos Chor e SANTOS, Ricardo Ventura (orgs.). 1996. Raça, Ciência e Sociedade. Rio de Janeiro: Fiocruz/ CCBB. 252 pp.

Olívia Maria Gomes da Cunha
Profª de Antropologia, IFCS-UFRJ


Uma curiosa afinidade perpassa grande parte dos artigos dessa coletânea: a referência sutil a desejos, intenções e políticas, nem sempre manifestas mas certamente cristalizadas em textos oficiais e literários, bem como à construção da nação como um projeto estético. Sedução estética e nacionalismo, por subtração, poderiam ser citados como duas tendências incidentais, sinalizadoras de certas preocupações presentes nos campos político-institucional e intelectual que nos permitem aproximar temáticas diferentes construídas em contextos singulares. Exemplos concretos dessas conexões inauguram a primeira parte desse livro dedicado à análise das relações entre "raça, ciência e nação na virada do século". A reiteração dos vínculos entre Estado e sociedade, a importância da problemática racial incidindo nas práticas e políticas oficiais, o papel dos intelectuais, a proximidade entre literatura e ciências sociais, enfim, tentativas incessantes de elaborar, redefinir e cristalizar um certo perfil sociocultural da nação.

Referências a investimentos científicos vinculados à expansão geopolítica do Estado brasileiro se fazem presentes seja na perspectiva da antropologia física produzida nos museus de história natural na virada do século - cujo objetivo era constituir um quadro geral e hierarquizado das "raças formadoras" do país, como nos mostra John Monteiro -, seja nos projetos higienistas implementados por renomadas instituições de saúde, interessadas em sanar os males "de formação" que atingiam a "nação doente", como descrevem Nísia T. Lima e Gilberto Hochman. Esboça-se já uma vertente intelectual que não se encastela nas instituições, mas investe em um projeto quase missionário que visa transformar teorias e métodos científicos em políticas públicas, a fim de curar as doenças do país, disseminar a prevenção e os cuidados sanitários, promover a unificação e remodelar as feições e a constituição dos corpos pela cura. O higienismo da geração de Oswaldo Cruz e Belisário Pena abrirá caminho para que o próprio Estado, através de programas de saúde muitas vezes apoiados no apelo à regeneração pelo trabalho, seja o principal responsável pela concretização, na década posterior, dos sonhos eugenistas. Em nome da cura, equipararam-se políticas de prevenção e repressão sanitárias e policiais.

Mas se há um sentido capaz de alinhavar práticas e idéias nem sempre unificadas nessas políticas, este pode ser identificado em um desejo comum de perfilar esteticamente a nação. Mais que um projeto, um ideal presente nos discursos que clamam pelo embranquecimento, pela seleção da imigração, pela "mestiçagem bem dosada" e pela erradicação das doenças relacionadas à insalubridade. A perfeição deve ser buscada sobretudo em uma política de imigração seletiva, como nos mostram Giralda Seyferth e Jair de Souza Ramos. Imigração e mestiçagem impõem-se, principalmente a partir da década de 20, como faces de uma mesma moeda. Trata-se de implementar o que o conde de Gobineau preconizara como uma "mestiçagem bem dosada" (:51), assegurando que ela compreenderia não só a rejeição de uma parte substantiva das "raças" que comporiam a parte inferior da hierarquia da espécie humana, mas também daqueles apontados como responsáveis pela importação de uma ideologia de "pureza de sangue" e "pureza racial".

Essa sedução estética parece permear outras variantes, não exclusivas, do nacionalismo brasileiro. Os artigos de Omar Ribeiro Thomaz e Lourdes Martínez-Echazábal oferecem ao leitor a oportunidade de lançar um olhar comparativo, no qual as "matrizes" desse ideal estético podem ser buscadas para além dos paradigmas científicos vigentes no país do início do século. No texto de Martínez-Echazábal, a referência à "mestiçagem" é apresentada como uma temática particular, ao conferir estilo e proeminência à literatura latino-americana a partir dos anos 30. Se há traços passíveis de comparação nos diversos discursos nacionalistas latino-americanos no período, estes estão radicados na tensão entre o apelo à integração e à "culturalização da diferença" como modelos complementares à formação da nação. A comparação entre as narrativas de Gilberto Freyre, José Martí e José de Vasconcelos aponta para a reconfiguração dos termos que aludem à "raça" e, por vezes, à "cultura", implicando a reconstrução de um modelo de nacionalidade fundado nas idéias de mistura e fusão. A identificação destes dois princípios nos mostra como, ao mesmo tempo que a idéia de fusão de "sangues", "raças" e "culturas" parece se constituir em discursos normatizados e oficiais, os elementos e critérios relacionados à noção de "mistura" são sempre seletivos. Seleção e adaptatividade evocam a construção de uma nação esteticamente em construção, onde a natureza, de acordo com as premissas lamarckianas citadas no texto de Ricardo V. Santos, se ocupa em depurar, tonificar, fortalecer e preparar um terreno para que a cultura e o "meio social" disciplinem.

O imperativo da nação como "síntese" ganha fôlego no que Martínez-Echazábal chama de "misteriosa eugenia estética" de José Vasconcelos (:114), nas referências a uma "raça cósmica" e "sintética". Mas é em Freyre que o paradigma fusão/mistura parece conter elementos mais contundentes, e é em Casa-Grande & Senzala que o ideal estético da nacionalidade brasileira ganha uma dimensão histórico-sociológica, através de um discurso que alinhava ciência e literatura em um estilo peculiar. Esse caráter menos prescritivo e normativo, e mais estilístico, sem dúvida, foi capaz de redimensionar o lugar do próprio "conhecimento científico" no texto freyreano. Subjetividade, literatura e história sobrepõem-se na construção de uma nação avessa à brancura apolínea do colonizador inglês, mas próxima ao dionisíaco por distinção, por "dosagem", por "tempero" e por gênero. O homem brasileiro é um homem novo, que se adapta às contingências dos trópicos e negocia com o torpor e a violência do civilizador. Ele se "autopacifica" não pela resistência à dominação, mas pela "altivez" com que desbrava a natureza e domina a si próprio, como se fora árido, infértil, "bugre", "boçal" por origem. A "fusão" constituiu-se historicamente no cotidiano das relações sociais, envolvendo diferentes graus de distância e afinidade, misturando (seletivamente) "sedução moral e fascinação estética" (:115).

Vale notar que imbricações singulares de novos padrões relacionais e estéticos como um projeto de nação se estendem para além das cercanias da casa-grande. O texto de Omar Ribeiro Thomaz informa-nos que o discurso freyreano, calcado no elogio tanto à distintividade do colonialismo português quanto aos seus modos caprichosos de tornar gradativas, sutis e maleáveis diferenças "raciais" e "culturais" como níveis diversos de uma identidade em construção - a do império colonial luso -, paralelo à implementação de mecanismos de dominação e reafirmação da autoridade portuguesa, deve ser visto como um projeto estético e político (:110). A análise da repercussão da morte de Papé, o "preto" das ilhas da Guiné, durante a Exposição Colonial Português no Porto em 1934, é um pretexto para explicitar os mecanismos sob os quais essa articulação é construída. Papé vivo reclama como imagem o exotismo, a estranheza e a singularidade de um exemplar das "raças coloniais". Papé morto lembra que a unidade política do Império, enquanto discurso hegemônico, foi capaz de colocar em segundo plano as hierarquias sobre as quais o reconhecimento das "diferenças" se baseavam. Por um momento, o que muitos imaginam ser um paradoxo do "modelo brasileiro" - a descontinuidade entre discursos que remetem à homogeneidade e à igualdade, e práticas que reafirmam nas relações cotidianas desigualdades e hierarquias - é confrontado de forma inovadora e criativa. Quando Thomaz diz que "Freyre vê na África Brasis em gestação" (:102), a analogia parece perfeita: as relações do intelectual brasileiro com vários representantes do "saber colonial" português durante o Estado Novo permitiram a ampliação dessa imagem para um plano transcolonial. A hierarquia agora se fortalece pela conquista de um projeto político/espiritual - o Império solidifica-se como um olhar particular que, ao se debruçar sobre os trópicos, o envolve, redescobre e redesenha. Toda a aventura quinhentista é então recontada a partir desse novo desenho geopolítico. O Império traduz-se em imagem e sentimento.

Essa incursão pelas vicissitudes do colonialismo português é extremamente importante para conferir à leitura do conjunto de artigos uma outra perspectiva acerca dos lugares a partir dos quais o projeto de construção da nação brasileira, até a primeira metade do século, pode ser pensado. Contudo, se nas duas primeiras partes da coletânea a oscilação no uso dos termos "raça" e "cultura", devidamente contextualizados, evidencia tentativas diversas de erigir paradigmas "científicos" para a compreensão da formação da nação, nas duas últimas sugere categorias socialmente relevantes e sobre as quais as ciências sociais se arvoram descortinar os sentidos. Ainda assim, sua discussão permanece presa a um debate mais amplo sobre identidade nacional.

O sociólogo Guerreiro Ramos, analisado por Chor Maio por exemplo, ao apostar em uma espécie de pedagogia de "reconversão" e valorização individual e política dos negros no Brasil, acreditava que essa perspectiva os resgataria dos exotismos culturalistas rumo à "integração à nacionalidade" (:183). Joel Rufino, em um texto inspirado em Guerreiro foi mais longe. De seu ponto de vista, esse retorno à indistinção se deve ao fato de que, desconstruído o determinismo racial, reconhecida a pluralidade de experiências sociais, culturais e históricas, percebida a fragilidade dos marcadores fenotípicos ("uma vez que a maioria da nossa população tende para o escuro"), conclui-se que: "negro é povo". Desse modo, o "lugar" conferido ao negro está associado a uma perspectiva diversa, que Rufino denomina de "populismo revisitado", em que a "indistinção" se coloca como uma estratégia política. Ao "escurecer" a nação e diluir a necessidade do apelo à "diferença", Rufino parece inverter totalmente a visão das adições "bem dosadas", ao mesmo tempo que recusa a visão de uma sociedade fundamentada em classes. O problema é que ao idealizar um perfil para a identidade brasileira e ao "escurecer" o Brasil, Rufino mais uma vez desenha um perfil de nação por subtração: "brasileiro é como se deduz, o melhor sinônimo de negro; e branco sinônimo de não-brasileiro" (:223). Fica de fora uma parcela significativa da população para a qual a "cor" como marca/insígnia da distinção social não tem tal relevância.

Essa questão é retomada em outros artigos. Maggie, ao repensar as inúmeras classificações raciais utilizadas no Brasil, refere-se à de "moreno" como aquela que mais se aproxima de uma espécie de "síntese" de um gradiente de cor que também hierarquiza socialmente (:225). Sansone, relendo Freyre, faz menção ao jogo entre antagonismo e afinidade como habitus coexistentes e não excludentes (:207). Hasenbalg, insistindo contra os perigos de se tomar a "ideologia da harmonia", das etiquetas de "cordialidade" e da "democracia racial" como normas, reinveste na valorização de um modelo polarizado de leitura das "relações raciais".

Em suma, um dos principais resultados dessa coletânea é mostrar, por meio de diferentes enfoques, a existência de estreitas conexões entre o debate da "questão racial" e o nacionalismo. Um problema, no entanto, permanece: de onde provém a necessidade, demonstrada na maior parte dos artigos, de construir modelos de identidade e relações sociais que, aludindo à "raça" ou à "cor", descrevem a nação de modo distintivo?

Revista Mana

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