Sergio B. F. Tavolaro
Doutorando em Ciências Sociais pelo IFCH/UNICAMP
A Questão Ambiental: sustentabilidade e políticas públicas no Brasil
Leila da Costa Ferreira
São Paulo, Boitempo Editorial, 1998, pp. 154.
Quem se coloca como desafio analisar a problemática ambiental a partir da investigação da formulação, implementação e gerenciamento de políticas públicas no mundo contemporâneo se depara com um paradoxo absolutamente determinante na vida política deste final de século: ao mesmo tempo em que demandas sociais de uma nova natureza emergem em decorrência da crise ambiental e da disseminação de situações de incerteza exigindo do aparato político-administrativo intervenções que o tornariam ainda mais presente na vida pública, é notória a perda de capacidade do Estado de determinar os rumos principais da dinâmica social e de proporcionar eficientemente políticas que vão ao encontro dessas novas carências. Em A Questão Ambiental: sustentabilidade e políticas públicas no Brasil, Leila Ferreira tem a sua frente exatamente este cenário como referência para refletir a respeito dos esforços e das experiências que têm sido levados adiante no importante processo de internalização da questão ambiental pelas políticas públicas internacionais e brasileiras. No momento em que categorias como globalização e mundialização tornam-se cada vez mais significativas para a qualificação da dinâmica político-decisória de nossa própria vida cotidiana, em que a consciência de que nossas possibilidades de reprodução da vida material encontram-se inexoravelmente atreladas a limites ecossistêmicos (que, diga-se de passagem, estamos ainda por melhor compreender), a busca de sustentabilidade por meio de alternativas políticas que considerem a importância da participação local se transforma em uma meta com crescente legitimidade. É numa situação como essa que o livro de Leila Ferreira, ao questionar o modelo de gestão do Estado até então prevalecente, mostra ter inegável valor. O grande desafio que permeia toda a reflexão da autora, ao longo dos 8 capítulos que constituem seu trabalho, é exatamente avaliar qual a nova configuração de poder capaz de, com sucesso, concretizar a tarefa de institucionalizar políticas ambientais em um momento cada vez mais marcado: a) pelo fato de muitas das questões políticas mais candentes e significativas estarem se desenrolando fora da esfera política até então concebida como "oficial", ou seja, fora de um espaço passível de ser controlado pelo Estado. Nesse sentido, assiste-se a um processo em que a subpolítica (da qual fala Ulrich Beck) passa a ter peso mais significativo nos rumos tomados pela sociedade na exata proporção em que ela mais se complexifica. Empresários, movimentos sociais, sociedades científicas, sindicatos, etc., politizam e tornam públicas questões antes vistas seja como próprias dos âmbitos privados, seja como próprias única e exclusivamente do aparato político-administrativo oficial; b) pelo fato das emergentes demandas sociais desafiarem os até então adequados códigos e instrumentos de gestão da vida pública, até não muito tempo capazes de proporcionar medidas de proteção aos cidadãos. Com a disseminação das situações de risco, a determinação dos danos a serem compensados, dos culpados por sua ocorrência, e daqueles a quem tais políticas de proteção deveriam se dirigir, torna-se cada vez mais difícil de ser efetivada. Numa situação como essa, qual seria o melhor desenho institucional a ser implantado, qual papel o Estado deveria assumir? Estaria ele sendo forçado a despedir-se completamente de suas tradicionais tarefas de propor e implementar políticas diante do surgimento de tantos novos atores na cena política contemporânea e de demandas sociais que desafiam seu modus operandi convencional?
Desde logo, é preciso dizer que a resposta de Ferreira a essas perguntas é negativa: como ela mesma prefere reforçar, "parece que somente a possibilidade de ação de diferentes atores sociais não solucionaria a questão" (p. 66). O Estado deve permanecer sendo um elemento central para que seja possível a institucionalização das questões ambientais e para que formulação, implementação e gerenciamento de políticas de sustentabilidade ocorram com sucesso. Para isso é preciso que, em primeiro lugar, afastemos a idéia de que o Estado é um corpo monolítico, dotado de uma homogeneidade inflexível. Ora, na verdade, conforme defende a autora, as políticas públicas, enquanto expressão do Estado em ação, são, dentre outras coisas, o resultado da interação entre os atores coletivos e individuais, que se relacionam de maneira estratégica a fim de fazerem valer e articular seus diferentes projetos. É nesse sentido que, por exemplo, "em várias ações governamentais na área de meio ambiente (...) os motivos, as crenças dos policymakers que formularam e implementaram essas políticas, foram na verdade resultado de uma rede de ações interdependentes" (p. 117). Diante disso, e em segundo lugar, é preciso reconhecer que "estilos alternativos de desenvolvimento só podem ser alcançados sob regimes políticos de democracia participativa, que garantam a criatividade e a gestão autônoma da sociedade" (p. 144). Sendo assim o Estado, obviamente, permanece tendo um papel central para a efetivação desse conjunto de transformações da gestão pública. Mas, em que direção as transformações na gestão pública devem ser levadas a cabo?
A fim de chegar a uma resposta que ao menos sugira uma certa tendência para tais mudanças Leila Ferreira investiga os primórdios da política ambiental brasileira (desde o início dos anos 70) além de realizar vários estudos de caso em municípios do Estado de São Paulo, nos últimos 10 anos. Tendo em mãos um amplo material de pesquisa e preocupada que está com as discussões teóricas recentes, Ferreira salienta a necessidade do Estado abordar os problemas sociais de maneira sistêmica, avançando, portanto, em relação ao tradicional tratamento fragmentário até então predominante na gestão pública por meio do qual demandas e propostas são setorizadas e pulverizadas ao longo dos diversos ministérios, secretarias e departamentos que constituem o aparato político-administrativo em seus vários níveis (federal, estadual, e municipal). Desse modo, duas das principais mudanças na gestão pública essenciais para que a internalização da questão ambiental pelas políticas públicas ocorra com sucesso passam, necessariamente, pelo tratamento sistêmico dos problemas sociais, e pela redefinição da relação Estado - Sociedade civil, por meio da qual a esfera de atuação política possa ser ampliada graças ao reconhecimento de que, no mundo contemporâneo, a legitimidade de inúmeras medidas governamentais depende do sentimento de que sua concepção, implementação e gerenciamento são fruto do envolvimento ativo da população.
A análise ganha um peso ainda mais expressivo pelo fato de Leila Ferreira se propor a investigar o sentido dessas questões na concretude da política brasileira, levando em consideração as especificidades de nossa vida pública, de nossa cultura política, da maneira como a problemática ambiental foi gradativamente ganhando importância no país a ponto de chegar a ser, em determinadas ocasiões (como o foi na Rio-92), pauta essencial na agenda política oficial. Trata-se de um desafio analítico ainda maior em função de agregar-se às incertezas das crescentes situações de risco do mundo contemporâneo e ao novo perfil que a esfera política começou a ganhar, as nossas próprias idiossincrasias, aquelas características que dão singularidade ao processo de modernização da sociedade brasileira. Ora, se a disseminação das situações de incerteza contribui para que dificilmente consigamos vislumbrar com clarividência o cenário no interior do qual a questão ambiental poderá vir a se tornar pauta prioritária na agenda política oficial das principais nações do planeta a ponto de servir como referência inclusive às relações internacionais, o que dizer da internalização da preocupação com a sustentabilidade e com a qualidade de vida pelas políticas públicas de um país que há muitos anos vem lutando a qualquer custo para atingir taxas de crescimento econômico capazes de lançá-lo em evidência no cenário mundial? Em que medida seria possível impor restrições para a atividade econômica de um país que após um período milagroso de produção de riqueza seguido de um intervalo de uma "década perdida", mostra-se sedento por retomar sua caminhada em direção ao "crescimento a todo vapor"? Não se trata de reforçar o falso impasse que polariza desenvolvimento econômico e proteção ambiental, mas de salientar que a sustentabilidade demanda certos cuidados até o momento pouco considerados. Além disso, se é verdade que os problemas ambientais de fato trazem à tona novos atores sociais que buscam legitimidade para seus interesses e para suas reivindicações, como estará se processando essa nova dinâmica social e política no Brasil, país inegavelmente marcado pelo traço anti-democrático e clientelista de sua vida política? Haverá algum indício de mudança quando consideramos diferenciadamente os três níveis de poder (federal, estadual, municipal)? O que dizer das mais recentes tentativas de se institucionalizar a questão ambiental? Quais seus graus de efetividade? São essas interrogações que parecem também estar na base de A Questão Ambiental e que a autora coloca como tarefa a ser enfrentada.
Fica evidente a hipótese que norteia esse momento da análise de Leila Ferreira: "(...) na minha opinião, iniciativas inovadoras na área ambiental aparecem, mais freqüentemente, junto ao poder local em nosso país. (...) em alguns casos o tratamento dos rumos do desenvolvimento urbano foram discutidos de forma mais integrada e sistêmica e a política ambiental no nível local apresentou-se mais realista com o quadro de exclusão social que caracteriza várias cidades do mundo, inclusive as brasileiras" (p. 16-7). Tal hipótese, uma vez confirmada, seria de extrema relevância quando lembramos que, no Brasil, a maior parte das iniciativas de internalização da questão ambiental pela esfera federal freqüentemente possuiu um traço artificial: em 1974, a SEMA foi criada após o péssimo impacto internacional da posição do Brasil na Conferência de Estocolmo (1972), liderando os países em desenvolvimento que não queriam ver seus planos frustrados por "mais uma estratégia primeiro-mundista" para barrar o crescimento econômico daqueles que tinham mão-de-obra barata e matéria-prima abundante. Em 1989, a criação do IBAMA pelo governo Sarney foi conseqüência do aumento exorbitante das queimadas na Amazônia nos dois anos anteriores e da efervescência do debate internacional a respeito das incertezas que decorreriam de mudanças climáticas alavancadas pelo aumento exorbitante das emissões de dióxido de carbono. No governo seguinte, como salienta Ferreira, "a súbita conversão ambientalista [de Collor] (...) explica-se pela necessidade de ganhar confiança da opinião pública dos europeus e norte-americanos para seu programa econômico, que requeria como um de seus elementos cruciais a vinda de novos investimentos estrangeiros ao país" (p. 15). Por fim, no governo F.H.C., a autora sugere que a política ambiental permanece não sendo considerada nem uma política social, nem uma política de desenvolvimento, mantendo-se desvinculada tanto das demais políticas públicas como das políticas econômicas.
Poderíamos dizer, então, que nem mesmo nossas legislações incorporaram significativamente a preocupação com a qualidade ambiental? Não é este o caso. Ao contrário disso, nossas legislações representaram muitos passos adiante no processo de institucionalização da questão ambiental. Como assinala Leila Ferreira, "a importância discursiva da questão ambiental traduziu-se numa legislação comparativamente avançada, porém os comportamentos individuais estão muito aquém da consciência ambiental presente no discurso" (p. 107). Dessa forma, se por um lado, acompanhamos os avanços legais internacionais, por outro, no entanto, é fácil observar uma incapacidade ou mesmo falta de vontade política de fazer cumprir tais determinações legais. Onde estarão as raízes dessa particular maneira de internalizar a problemática ambiental na política oficial brasileira?
A chave para entendermos tal singularidade está na consideração de alguns dos mais importantes elementos da formação social brasileira assinalados por Ferreira: hierarquia, paternalismo, repressão e autoritarismo. Essas categorias expressam, em primeiro lugar, nossa mania de ignorar leis e regulamentos como forma de favorecer relações de parentesco e amizade e de reforçar relações clientelistas. Em segundo lugar, sugerem outro aspecto que nos é essencial: o burocratismo, predominante até mesmo (e fundamentalmente) quando os militares exerciam o domínio político. Em terceiro lugar, a conexão do indivíduo com o Estado é inequivocamente fonte de prestígio e status social. A tudo isso veio se juntar o peso político que adquiriu a tecnocracia que, após 64, passou a fazer prevalecer a concepção de que o desenvolvimento econômico deve ser encarado como um objetivo prioritário ao desenvolvimento social e político. Como não poderia deixar de ser, o aparato político-administrativo que resulta da combinação dessas características é dos mais perversos para uma gestão pública que se pretenda moderna e democrática: "A formação do Estado brasileiro corresponde a uma estrutura de poder concentrada e exclusivista, obedece a processos de decisão que respondem a interesses particulares de grupos mais bem organizados e, finalmente, segue um forte padrão tecnocrata, hierárquico e formalista de resolução de conflitos" (p. 80). Com isso, o tripé da internalização da problemática ambiental pela política oficial brasileira se constitui dos seguintes termos: a) primazia do crescimento econômico; b) consideração dos problemas ambientais de acordo com os preceitos de soberania e segurança nacional; c) compartimentação do gerenciamento ambiental através da perícia burocrática. Que tipo de política pública ambiental pode resultar de uma combinação de fatores como esta apontada pela autora?
Ferreira é taxativa: "As políticas públicas estão hoje a meio caminho entre um discurso atualizado e um comportamento social bastante predatório: por um lado, as políticas públicas têm contribuído para o estabelecimento de um sistema de proteção ambiental no país; mas, por outro, o poder público é incapaz de fazer cumprir aos indivíduos e às empresas uma proporção importante da legislação ambiental" (p. 107). Tal quadro parece repetir-se no momento em que descemos ao nível estadual e vislumbramos a política ambiental no Estado de São Paulo. A autora afirma que houve também um notável avanço institucional e legal em São Paulo mas que a implementação dessas políticas restringiu-se ao caráter preservacionista da questão, além das agências estaduais de meio ambiente atuarem de forma marginal, com poucos recursos, e desconectadas das demais políticas. Vista desse ângulo, por que apostar tantas fichas na internalização da questão ambiental pelas políticas públicas municipais no caso brasileiro? Há uma razão teórica e outra empírica para isso. Do ponto de vista teórico, a autora vem trabalhando com uma literatura que salienta o espaço urbano como privilegiado para uma série de inovações de gestão pública que apontem para novos estilos de planejamento, ampla participação da sociedade civil, políticas em busca de sustentabilidade, tentativas de imprimir um caráter mais sistêmico às políticas sociais, além de tentativas de novas construções institucionais que busquem solucionar problemas que envolvem mais de uma cidade. A razão empírica para sua crença na centralidade da gestão municipal para o conjunto dessas transformações é que a Constituição Brasileira de 1988 conferiu amplos poderes aos municípios, transferiu a eles inúmeros encargos, e concedeu-lhes um montante bastante significativo de recursos se comparado aos anos anteriores, caracterizados por extremo centralismo federal. No rastro dessas mudanças, algumas gestões colocaram em suas pautas de governo exatamente levar adiante uma administração comprometida com a democratização decisória e com a implementação de políticas atreladas à preocupação com a sustentabilidade ambiental e com a qualidade de vida da população. Esse foi o caso de São Paulo, Campinas, Santos, Piracicaba, Sumaré e Cosmópolis nas gestões que tiveram início em 1988. Em sua pesquisa, Leila Ferreira procedeu de maneira a avaliar documentos oficiais e alguns materiais impressos por ONGs e associações locais, e a entrevistar os principais representantes dos órgãos governamentais das cidades pesquisadas e os mais destacados participantes de seus CONDEMAs (Conselhos Municipais de Meio Ambiente).
O resultado, contudo, é que a hipótese da autora não se comprova plenamente em suas pesquisas. Conforme ela mesma procurou acentuar, "como podemos observar através dos dados levantados nos estudos de caso analisados, esse processo é bastante incipiente, indicando entretanto avanços políticos significativos no processo de formulação e implementação das políticas ambientais brasileiras" (p. 56). No caso do município de Campinas, por exemplo, Ferreira afirma ficar claro na leitura do plano diretor a não realização de metas e propostas previstas na lei orgânica, além de ser possível observar uma total generalização de propostas, sem nenhum compromisso efetivo na elaboração e implementação real de políticas de meio ambiente. Nota-se ainda que em Campinas, a sociedade civil efetivamente não participou do processo de discussão e elaboração do plano diretor. Em Piracicaba, onde a busca de uma gestão integrada dos recursos hídricos com as demais cidades da região foi motivo de elogios, a autora sublinha a ausência de um trabalho conjunto e integrado entre as diferentes áreas do governo municipal. De todos, o caso mais positivo nas análises presentes em A Questão Ambiental parece ter sido o de Santos onde foi possível observar a disposição de "prover o município (...) de leis que regulamentam a vida da cidade, garantindo (...) pontos específicos para o desenvolvimento urbano e a preservação ambiental aliados a uma preocupação com a melhoria das condições de vida das populações de baixa renda, bem como a sua inserção na vida formal da cidade" (p. 45-6).
Finda a leitura, o sentimento é de que há ainda muito a ser feito para que tenhamos certeza de que a consideração dos limites ecossistêmicos e a preocupação com a qualidade de vida dos indivíduos pelo poder público tornem-se uma referência definitiva para a proposição de políticas sociais e de desenvolvimento no país. Sabemos bem como, no Brasil, muitas conquistas que se traduziram na forma de lei foram esquecidas no dia-a-dia da gestão pública. Ferreira também sabe muito bem dessa armadilha da vida pública brasileira. Mas, ao mesmo tempo, acredita que sem que concretizemos esses primeiros passos de institucionalização da questão ambiental, não conseguiremos alcançar metas mais pretensiosas. Para finalizar, é preciso dizer que A Questão Ambiental, por ser a reunião de vários trabalhos produzidos independentemente pela autora em momentos diferentes dos anos 90, não possui aquele grau de articulação que caracteriza um livro com "começo, meio e fim". Com isso, muitas vezes, certas informações e argumentações se repetem em diversas passagens do trabalho sem importância para a compreensão das reflexões de Ferreira. Tal deficiência, no entanto, não põe em cheque a qualidade desse esforço de sintetizar o resultado final dessas inovadoras investigações a respeito das políticas ambientais no Brasil. É ler para conferir.
Revista Ambiente e Sociedade
Doutorando em Ciências Sociais pelo IFCH/UNICAMP
A Questão Ambiental: sustentabilidade e políticas públicas no Brasil
Leila da Costa Ferreira
São Paulo, Boitempo Editorial, 1998, pp. 154.
Quem se coloca como desafio analisar a problemática ambiental a partir da investigação da formulação, implementação e gerenciamento de políticas públicas no mundo contemporâneo se depara com um paradoxo absolutamente determinante na vida política deste final de século: ao mesmo tempo em que demandas sociais de uma nova natureza emergem em decorrência da crise ambiental e da disseminação de situações de incerteza exigindo do aparato político-administrativo intervenções que o tornariam ainda mais presente na vida pública, é notória a perda de capacidade do Estado de determinar os rumos principais da dinâmica social e de proporcionar eficientemente políticas que vão ao encontro dessas novas carências. Em A Questão Ambiental: sustentabilidade e políticas públicas no Brasil, Leila Ferreira tem a sua frente exatamente este cenário como referência para refletir a respeito dos esforços e das experiências que têm sido levados adiante no importante processo de internalização da questão ambiental pelas políticas públicas internacionais e brasileiras. No momento em que categorias como globalização e mundialização tornam-se cada vez mais significativas para a qualificação da dinâmica político-decisória de nossa própria vida cotidiana, em que a consciência de que nossas possibilidades de reprodução da vida material encontram-se inexoravelmente atreladas a limites ecossistêmicos (que, diga-se de passagem, estamos ainda por melhor compreender), a busca de sustentabilidade por meio de alternativas políticas que considerem a importância da participação local se transforma em uma meta com crescente legitimidade. É numa situação como essa que o livro de Leila Ferreira, ao questionar o modelo de gestão do Estado até então prevalecente, mostra ter inegável valor. O grande desafio que permeia toda a reflexão da autora, ao longo dos 8 capítulos que constituem seu trabalho, é exatamente avaliar qual a nova configuração de poder capaz de, com sucesso, concretizar a tarefa de institucionalizar políticas ambientais em um momento cada vez mais marcado: a) pelo fato de muitas das questões políticas mais candentes e significativas estarem se desenrolando fora da esfera política até então concebida como "oficial", ou seja, fora de um espaço passível de ser controlado pelo Estado. Nesse sentido, assiste-se a um processo em que a subpolítica (da qual fala Ulrich Beck) passa a ter peso mais significativo nos rumos tomados pela sociedade na exata proporção em que ela mais se complexifica. Empresários, movimentos sociais, sociedades científicas, sindicatos, etc., politizam e tornam públicas questões antes vistas seja como próprias dos âmbitos privados, seja como próprias única e exclusivamente do aparato político-administrativo oficial; b) pelo fato das emergentes demandas sociais desafiarem os até então adequados códigos e instrumentos de gestão da vida pública, até não muito tempo capazes de proporcionar medidas de proteção aos cidadãos. Com a disseminação das situações de risco, a determinação dos danos a serem compensados, dos culpados por sua ocorrência, e daqueles a quem tais políticas de proteção deveriam se dirigir, torna-se cada vez mais difícil de ser efetivada. Numa situação como essa, qual seria o melhor desenho institucional a ser implantado, qual papel o Estado deveria assumir? Estaria ele sendo forçado a despedir-se completamente de suas tradicionais tarefas de propor e implementar políticas diante do surgimento de tantos novos atores na cena política contemporânea e de demandas sociais que desafiam seu modus operandi convencional?
Desde logo, é preciso dizer que a resposta de Ferreira a essas perguntas é negativa: como ela mesma prefere reforçar, "parece que somente a possibilidade de ação de diferentes atores sociais não solucionaria a questão" (p. 66). O Estado deve permanecer sendo um elemento central para que seja possível a institucionalização das questões ambientais e para que formulação, implementação e gerenciamento de políticas de sustentabilidade ocorram com sucesso. Para isso é preciso que, em primeiro lugar, afastemos a idéia de que o Estado é um corpo monolítico, dotado de uma homogeneidade inflexível. Ora, na verdade, conforme defende a autora, as políticas públicas, enquanto expressão do Estado em ação, são, dentre outras coisas, o resultado da interação entre os atores coletivos e individuais, que se relacionam de maneira estratégica a fim de fazerem valer e articular seus diferentes projetos. É nesse sentido que, por exemplo, "em várias ações governamentais na área de meio ambiente (...) os motivos, as crenças dos policymakers que formularam e implementaram essas políticas, foram na verdade resultado de uma rede de ações interdependentes" (p. 117). Diante disso, e em segundo lugar, é preciso reconhecer que "estilos alternativos de desenvolvimento só podem ser alcançados sob regimes políticos de democracia participativa, que garantam a criatividade e a gestão autônoma da sociedade" (p. 144). Sendo assim o Estado, obviamente, permanece tendo um papel central para a efetivação desse conjunto de transformações da gestão pública. Mas, em que direção as transformações na gestão pública devem ser levadas a cabo?
A fim de chegar a uma resposta que ao menos sugira uma certa tendência para tais mudanças Leila Ferreira investiga os primórdios da política ambiental brasileira (desde o início dos anos 70) além de realizar vários estudos de caso em municípios do Estado de São Paulo, nos últimos 10 anos. Tendo em mãos um amplo material de pesquisa e preocupada que está com as discussões teóricas recentes, Ferreira salienta a necessidade do Estado abordar os problemas sociais de maneira sistêmica, avançando, portanto, em relação ao tradicional tratamento fragmentário até então predominante na gestão pública por meio do qual demandas e propostas são setorizadas e pulverizadas ao longo dos diversos ministérios, secretarias e departamentos que constituem o aparato político-administrativo em seus vários níveis (federal, estadual, e municipal). Desse modo, duas das principais mudanças na gestão pública essenciais para que a internalização da questão ambiental pelas políticas públicas ocorra com sucesso passam, necessariamente, pelo tratamento sistêmico dos problemas sociais, e pela redefinição da relação Estado - Sociedade civil, por meio da qual a esfera de atuação política possa ser ampliada graças ao reconhecimento de que, no mundo contemporâneo, a legitimidade de inúmeras medidas governamentais depende do sentimento de que sua concepção, implementação e gerenciamento são fruto do envolvimento ativo da população.
A análise ganha um peso ainda mais expressivo pelo fato de Leila Ferreira se propor a investigar o sentido dessas questões na concretude da política brasileira, levando em consideração as especificidades de nossa vida pública, de nossa cultura política, da maneira como a problemática ambiental foi gradativamente ganhando importância no país a ponto de chegar a ser, em determinadas ocasiões (como o foi na Rio-92), pauta essencial na agenda política oficial. Trata-se de um desafio analítico ainda maior em função de agregar-se às incertezas das crescentes situações de risco do mundo contemporâneo e ao novo perfil que a esfera política começou a ganhar, as nossas próprias idiossincrasias, aquelas características que dão singularidade ao processo de modernização da sociedade brasileira. Ora, se a disseminação das situações de incerteza contribui para que dificilmente consigamos vislumbrar com clarividência o cenário no interior do qual a questão ambiental poderá vir a se tornar pauta prioritária na agenda política oficial das principais nações do planeta a ponto de servir como referência inclusive às relações internacionais, o que dizer da internalização da preocupação com a sustentabilidade e com a qualidade de vida pelas políticas públicas de um país que há muitos anos vem lutando a qualquer custo para atingir taxas de crescimento econômico capazes de lançá-lo em evidência no cenário mundial? Em que medida seria possível impor restrições para a atividade econômica de um país que após um período milagroso de produção de riqueza seguido de um intervalo de uma "década perdida", mostra-se sedento por retomar sua caminhada em direção ao "crescimento a todo vapor"? Não se trata de reforçar o falso impasse que polariza desenvolvimento econômico e proteção ambiental, mas de salientar que a sustentabilidade demanda certos cuidados até o momento pouco considerados. Além disso, se é verdade que os problemas ambientais de fato trazem à tona novos atores sociais que buscam legitimidade para seus interesses e para suas reivindicações, como estará se processando essa nova dinâmica social e política no Brasil, país inegavelmente marcado pelo traço anti-democrático e clientelista de sua vida política? Haverá algum indício de mudança quando consideramos diferenciadamente os três níveis de poder (federal, estadual, municipal)? O que dizer das mais recentes tentativas de se institucionalizar a questão ambiental? Quais seus graus de efetividade? São essas interrogações que parecem também estar na base de A Questão Ambiental e que a autora coloca como tarefa a ser enfrentada.
Fica evidente a hipótese que norteia esse momento da análise de Leila Ferreira: "(...) na minha opinião, iniciativas inovadoras na área ambiental aparecem, mais freqüentemente, junto ao poder local em nosso país. (...) em alguns casos o tratamento dos rumos do desenvolvimento urbano foram discutidos de forma mais integrada e sistêmica e a política ambiental no nível local apresentou-se mais realista com o quadro de exclusão social que caracteriza várias cidades do mundo, inclusive as brasileiras" (p. 16-7). Tal hipótese, uma vez confirmada, seria de extrema relevância quando lembramos que, no Brasil, a maior parte das iniciativas de internalização da questão ambiental pela esfera federal freqüentemente possuiu um traço artificial: em 1974, a SEMA foi criada após o péssimo impacto internacional da posição do Brasil na Conferência de Estocolmo (1972), liderando os países em desenvolvimento que não queriam ver seus planos frustrados por "mais uma estratégia primeiro-mundista" para barrar o crescimento econômico daqueles que tinham mão-de-obra barata e matéria-prima abundante. Em 1989, a criação do IBAMA pelo governo Sarney foi conseqüência do aumento exorbitante das queimadas na Amazônia nos dois anos anteriores e da efervescência do debate internacional a respeito das incertezas que decorreriam de mudanças climáticas alavancadas pelo aumento exorbitante das emissões de dióxido de carbono. No governo seguinte, como salienta Ferreira, "a súbita conversão ambientalista [de Collor] (...) explica-se pela necessidade de ganhar confiança da opinião pública dos europeus e norte-americanos para seu programa econômico, que requeria como um de seus elementos cruciais a vinda de novos investimentos estrangeiros ao país" (p. 15). Por fim, no governo F.H.C., a autora sugere que a política ambiental permanece não sendo considerada nem uma política social, nem uma política de desenvolvimento, mantendo-se desvinculada tanto das demais políticas públicas como das políticas econômicas.
Poderíamos dizer, então, que nem mesmo nossas legislações incorporaram significativamente a preocupação com a qualidade ambiental? Não é este o caso. Ao contrário disso, nossas legislações representaram muitos passos adiante no processo de institucionalização da questão ambiental. Como assinala Leila Ferreira, "a importância discursiva da questão ambiental traduziu-se numa legislação comparativamente avançada, porém os comportamentos individuais estão muito aquém da consciência ambiental presente no discurso" (p. 107). Dessa forma, se por um lado, acompanhamos os avanços legais internacionais, por outro, no entanto, é fácil observar uma incapacidade ou mesmo falta de vontade política de fazer cumprir tais determinações legais. Onde estarão as raízes dessa particular maneira de internalizar a problemática ambiental na política oficial brasileira?
A chave para entendermos tal singularidade está na consideração de alguns dos mais importantes elementos da formação social brasileira assinalados por Ferreira: hierarquia, paternalismo, repressão e autoritarismo. Essas categorias expressam, em primeiro lugar, nossa mania de ignorar leis e regulamentos como forma de favorecer relações de parentesco e amizade e de reforçar relações clientelistas. Em segundo lugar, sugerem outro aspecto que nos é essencial: o burocratismo, predominante até mesmo (e fundamentalmente) quando os militares exerciam o domínio político. Em terceiro lugar, a conexão do indivíduo com o Estado é inequivocamente fonte de prestígio e status social. A tudo isso veio se juntar o peso político que adquiriu a tecnocracia que, após 64, passou a fazer prevalecer a concepção de que o desenvolvimento econômico deve ser encarado como um objetivo prioritário ao desenvolvimento social e político. Como não poderia deixar de ser, o aparato político-administrativo que resulta da combinação dessas características é dos mais perversos para uma gestão pública que se pretenda moderna e democrática: "A formação do Estado brasileiro corresponde a uma estrutura de poder concentrada e exclusivista, obedece a processos de decisão que respondem a interesses particulares de grupos mais bem organizados e, finalmente, segue um forte padrão tecnocrata, hierárquico e formalista de resolução de conflitos" (p. 80). Com isso, o tripé da internalização da problemática ambiental pela política oficial brasileira se constitui dos seguintes termos: a) primazia do crescimento econômico; b) consideração dos problemas ambientais de acordo com os preceitos de soberania e segurança nacional; c) compartimentação do gerenciamento ambiental através da perícia burocrática. Que tipo de política pública ambiental pode resultar de uma combinação de fatores como esta apontada pela autora?
Ferreira é taxativa: "As políticas públicas estão hoje a meio caminho entre um discurso atualizado e um comportamento social bastante predatório: por um lado, as políticas públicas têm contribuído para o estabelecimento de um sistema de proteção ambiental no país; mas, por outro, o poder público é incapaz de fazer cumprir aos indivíduos e às empresas uma proporção importante da legislação ambiental" (p. 107). Tal quadro parece repetir-se no momento em que descemos ao nível estadual e vislumbramos a política ambiental no Estado de São Paulo. A autora afirma que houve também um notável avanço institucional e legal em São Paulo mas que a implementação dessas políticas restringiu-se ao caráter preservacionista da questão, além das agências estaduais de meio ambiente atuarem de forma marginal, com poucos recursos, e desconectadas das demais políticas. Vista desse ângulo, por que apostar tantas fichas na internalização da questão ambiental pelas políticas públicas municipais no caso brasileiro? Há uma razão teórica e outra empírica para isso. Do ponto de vista teórico, a autora vem trabalhando com uma literatura que salienta o espaço urbano como privilegiado para uma série de inovações de gestão pública que apontem para novos estilos de planejamento, ampla participação da sociedade civil, políticas em busca de sustentabilidade, tentativas de imprimir um caráter mais sistêmico às políticas sociais, além de tentativas de novas construções institucionais que busquem solucionar problemas que envolvem mais de uma cidade. A razão empírica para sua crença na centralidade da gestão municipal para o conjunto dessas transformações é que a Constituição Brasileira de 1988 conferiu amplos poderes aos municípios, transferiu a eles inúmeros encargos, e concedeu-lhes um montante bastante significativo de recursos se comparado aos anos anteriores, caracterizados por extremo centralismo federal. No rastro dessas mudanças, algumas gestões colocaram em suas pautas de governo exatamente levar adiante uma administração comprometida com a democratização decisória e com a implementação de políticas atreladas à preocupação com a sustentabilidade ambiental e com a qualidade de vida da população. Esse foi o caso de São Paulo, Campinas, Santos, Piracicaba, Sumaré e Cosmópolis nas gestões que tiveram início em 1988. Em sua pesquisa, Leila Ferreira procedeu de maneira a avaliar documentos oficiais e alguns materiais impressos por ONGs e associações locais, e a entrevistar os principais representantes dos órgãos governamentais das cidades pesquisadas e os mais destacados participantes de seus CONDEMAs (Conselhos Municipais de Meio Ambiente).
O resultado, contudo, é que a hipótese da autora não se comprova plenamente em suas pesquisas. Conforme ela mesma procurou acentuar, "como podemos observar através dos dados levantados nos estudos de caso analisados, esse processo é bastante incipiente, indicando entretanto avanços políticos significativos no processo de formulação e implementação das políticas ambientais brasileiras" (p. 56). No caso do município de Campinas, por exemplo, Ferreira afirma ficar claro na leitura do plano diretor a não realização de metas e propostas previstas na lei orgânica, além de ser possível observar uma total generalização de propostas, sem nenhum compromisso efetivo na elaboração e implementação real de políticas de meio ambiente. Nota-se ainda que em Campinas, a sociedade civil efetivamente não participou do processo de discussão e elaboração do plano diretor. Em Piracicaba, onde a busca de uma gestão integrada dos recursos hídricos com as demais cidades da região foi motivo de elogios, a autora sublinha a ausência de um trabalho conjunto e integrado entre as diferentes áreas do governo municipal. De todos, o caso mais positivo nas análises presentes em A Questão Ambiental parece ter sido o de Santos onde foi possível observar a disposição de "prover o município (...) de leis que regulamentam a vida da cidade, garantindo (...) pontos específicos para o desenvolvimento urbano e a preservação ambiental aliados a uma preocupação com a melhoria das condições de vida das populações de baixa renda, bem como a sua inserção na vida formal da cidade" (p. 45-6).
Finda a leitura, o sentimento é de que há ainda muito a ser feito para que tenhamos certeza de que a consideração dos limites ecossistêmicos e a preocupação com a qualidade de vida dos indivíduos pelo poder público tornem-se uma referência definitiva para a proposição de políticas sociais e de desenvolvimento no país. Sabemos bem como, no Brasil, muitas conquistas que se traduziram na forma de lei foram esquecidas no dia-a-dia da gestão pública. Ferreira também sabe muito bem dessa armadilha da vida pública brasileira. Mas, ao mesmo tempo, acredita que sem que concretizemos esses primeiros passos de institucionalização da questão ambiental, não conseguiremos alcançar metas mais pretensiosas. Para finalizar, é preciso dizer que A Questão Ambiental, por ser a reunião de vários trabalhos produzidos independentemente pela autora em momentos diferentes dos anos 90, não possui aquele grau de articulação que caracteriza um livro com "começo, meio e fim". Com isso, muitas vezes, certas informações e argumentações se repetem em diversas passagens do trabalho sem importância para a compreensão das reflexões de Ferreira. Tal deficiência, no entanto, não põe em cheque a qualidade desse esforço de sintetizar o resultado final dessas inovadoras investigações a respeito das políticas ambientais no Brasil. É ler para conferir.
Revista Ambiente e Sociedade
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