sábado, 19 de junho de 2010

A invenção da nação: entre a Monarquia e a República


Ledonias Franco Garcia
Professora de História


FREIRE, Noé Sandes Freire. A invenção da nação: entre a Monarquia e a República. Goiânia, Editora da UFG e Agepel, 2000.

Imagens, símbolos, ritos, mitos e utopias entre a história e a memória - é essa a matéria que forma o corpo de A invenção da Nação: entre a Monarquia e a República, estudo situado no campo em que a história política se entrelaça à cultural. Noé Sandes Freire reuniu um conjunto de representações produzidas à época da Independência e em outros momentos ao longo do século XIX – a inauguração da estátua eqüestre de D. Pedro 1, em 1860, as peças teatrais do mesmo período e a apresentação do quadro sobre a Independência, de Pedro Américo, em 1888 – para jogar luz sobre as comemorações dos dois centenários, o da Independência, em 1922 e o do nascimento de D. Pedro II, em 1925.

Com inteligência e ousadia – vale lembrar que a Independência já recebeu tratamento de estudiosos de todas as correntes e tendências – o autor empreendeu a tarefa de reunir e analisar textos da historiografia e da critica literária, peças de teatro, relatos de viagens, artigos de jornais, charges, conferências, esculturas e pinturas, estabelecendo ligações entre essas várias ordens de documentos. O resultado é uma reflexão instigante que sugere, com freqüência, novos desdobramentos. Nesse empreendimento de leituras, ou melhor, de releituras da nossa história, fez abordagens ricas estabelecendo novos nexos entre os vários momentos enquanto analisava a construção e a reconstrução da memória em torno da Independência.

Assim fazendo, o autor cumpriu o que se havia proposto: acompanhar a trama do tecido formulado em tomo da independência com a finalidade de traçar um paralelo entre a constituição de uma memória da Independência, em meados do século XIX, e a sua reelaboração, cem anos mais tarde. Detectou que, ao rememorarem a fundação da nação em 1922 e em 1925, estudiosos, políticos, jornalistas e artistas criaram novas representações sobre o Sete de Setembro. O que equivale dizer: cem anos depois da Independência a memória e a história apareceram em imagens renovadas e especialmente apropriadas para aqueles tempos delicados pelos quais passava a República. Identificou, no processo de comemorações, o esforço de revalorização de imagens caras à Monarquia, que haviam sido até então condenadas pela República. Segundo sua análise, houve, portanto, em 1922 e 1925, uma reinterpretação da experiência monárquica para incorporá-1a, de forma positiva, ao acervo da memória republicana.

O Sete de Setembro, primeiro dos cinco capítulos que formam o livro, é analisado no registro das obras historiográficas – as obras fundadoras de Silva Lisboa, Canto e Mello, Varnhagen, Handelman, Arrnitage – e no processo de distanciamento da história para alojar-se na memória como marco da fundação nacional. São realçadas três manifestações significativas nesse processo de construção da memória, na segunda metade do século XIX. Em 1860, a inauguração da estátua eqüestre do Imperador D. Pedro I. Na mesma década o aparecimento das peças teatrais, em especial as de José de Alencar e Joaquim Manoel de Macedo, nas quais estavam presentes questões ligadas à Independência, à política, à idéia de pátria mesmo sendo pano de fundo para as histórias centradas nos dramas domésticos. Não raramente o texto teatral tocava em problemas relativos à composição social, ora assumindo a defesa da abolição dos escravos negros, ora exaltando os grupos indígenas, muitas vezes mesclando o amor romântico com as aspirações de liberdade. Mais para o final do século, em 1888, o Sete de Setembro aparecia imortalizado através da imagem mais forte e romântica que se poderia obter – pintado por Pedro Américo, o quadro sobre a Independência, foi exposto pela primeira vez na cidade de Florença, na presenqa do Imperador D. Pedro II e de outros monarcas europeus.

Comemorando o Centenário da Independência, o segundo capitulo, aborda o papel desempenhado pelo Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro – o guardião da história brasileira desde a sua fundação – que em 1922, foi essencial para discutir "os cem anos" uma vez que representava o espaço próprio à reflexão histórica, com tradição conquistada pelo acervo documental e pelo estudo respeitoso do passado. Nenhum outro órgão, em 1922, teria tanta maestria para retomar ao Sete de Setembro na tentativa de estabelecer os elementos norteadores da história pátria. Nesse capítulo ainda aparecem os museus como emblemas comemorativos e cumprindo a missão pedagógica de reunir e mostrar um determinado conjunto documental.

Também com a missão de reunir e mostrar, o capítulo terceiro foi dedicado à Exposição Internacional de 1922 com o título A celebração da Eternidade. Celebrava-se o presente, o centenário de 1922, como sinal de progresso dentro do sentido universal do nacionalismo. Buscava-se, em síntese, um reconhecimento externo que diminuísse as diferenças culturais.

O quarto capítulo, Os Anos 20: Memória e História da Independência, foi construído centrado na análise de obras da historiografia produzidas nos anos 20, em especial, as que se caracterizam como obras do pensamento social e político. Tobias Monteiro, Oliveira Lima, Oliveira Viana foram os autores escolhidos pela forma com que problematizaram a independência num quadro de formação da nacionalidade brasileira, pois "a república recém-proclamada carecia de tradição histórica capaz de dar suporte a um projeto de regeneração política". Também nessa empreitada a Revista do IHGB teve um papel privilegiado na publicação de artigos, estudos, documentos raros, trabalhos de síntese e cronologias, entre outros. Por último, Em Fechando o Círculo da Memória, a análise se concentra nas comemorações do centenário do nascimento de D. Pedro II, em 1925, na anulação do decreto que bania a familia imperial e no regresso dos restos mortais do casal imperial, como gestos simbó1icos de "pacificação da memória". O regime monárquico não oferecia mais perigo. É algo surpreendente observar o empenho do presidente Epitácio Pessoa – figura central nesse processo de apaziguamento da memória monárquica – quando se definia como um republicano que oferecia paz, luz e justiça à memória imperial. Colocou em cena os congressos, os estudos monográficos, os discursos e livros sobre a Independência, na tarefa de estabelecer os laços de continuidade entre a Monarquia e a República na busca da identidade e na tentativa de encontrar a harmonia superando as crises – crise política, problemas regionais, dificuldades econômicas do pósguerra, etc.

A história como mestra da vida foi, seguramente, a expressão que o autor mais utilizou ao construir o seu texto, e não sem razão, pois a história política dificilmente escapa de ser uma história mestra da vida. Em tantos momentos essa idéia adquiriu força maior para justificar o esforço na reinterpretação dos acontecimentos, de maneira a construir imagens que pudessem ser fixadas na memória, ensinando uma determinada pedagogia para olhar o passado.

Revista de História - USP

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