segunda-feira, 14 de junho de 2010

Crisis and Continuity. Land and Town in the Late Medieval Castile


Carlos Roberto F. Nogueira
Departamento de História-FFLCH/USP

RUIZ, Teofilo F. Crisis and Continuity. Land and Town in the Late Medieval Castile. Philadelphia, University of Pennsylvania Press, 1994.

Como entender todo o vigor expansionista de Castela, que a partir de condições altamente desfavoráveis de sobrevivência, de nobres belicosos e de bolsa vazia, expulsaram o mouro de seu Al-Andalus e edificaram um império em escala mundial? Problema que tomou a atenção de muitos historiadores, e que Ruiz tenta responder, em uma obra que é ao mesmo tempo uma revisão historiográfica e um mergulho na documentação medieval para tentar contribuir com o aclaramento da questão.

Este livro, tem sua origem em um artigo publicado nos Annales, em 19791, no qual o autor afirmava que a conquista castelhana de Sevilha, em 1248, e a subseqüente expansão cristã por Al-Andalus, constituíam um ponto de viragem, para a história posterior do reino de Castela. O impacto desta conquista teria modificado e remodelado estruturas sociais, políticas e culturais, provocando um novo arranjo das forças políticas na Castela Medieval.

Contudo, revendo esta afirmação com um estudo mais aprofundado que resultou neste trabalho, Ruiz coloca a ênfase na longa duração, na continuidade, onde a crise provocada pela conquista é muito mais um movimento de reorganização das forças políticas, econômicas e sociais, que uma ruptura ou em suas palavras - um evento, que marcaria uma nova era histórica na península ibérica. Aqui, o autor se coloca como um herdeiro de Fernand Braudel, descrevendo um processo que começa cinco séculos antes e ultrapassa o marco do século XIII, se expandindo para o Norte da África, para outras partes do continente europeu e por fim, para as colônias ultramarinas castelhanas.

Igualmente de inspiração braudeliana é a estrutura da obra que começa com a descrição do clima e da geografia de Castilla, la Vieja, para depois analisar os homens que nela conseguiram obter os meios de sobrevivência, senhores e camponeses e as suas relações com a terra. Em seguida, as cidades, as trocas com outras cidades e com o campo e os seus habitantes, nobres, plebeus e minorias religiosas, para enfim, procurar a real determinação de rupturas e continuidades na história castelhana.

Ao longo do trabalho, a proposta do autor vai se desvelando, mostrando que a Reconquista, embora motor da história peninsular, teve também uma impacto pernicioso na sociedade castelhana. A vida de enfrentamento contínuo e constante contra condições naturais desfavoráveis e as incessante batalhas contra o Islão, moldaram a sociedade espanhola para os séculos futuros. Assim, as instituições de Castela foram impostas em Andaluzia em meados do século XIII e igualmente trazidas para o Novo Mundo, pelos conquistadores no início dos tempos modernos. "O empreendimento atlântico, a dramática viagem de Colombo, a hegemonia da Espanha imperial, não podem ser totalmente entendidas sem o background castelhano "(RUIZ, p.6).

Para entender este "pano de fundo", Ruiz descreve a formação de uma sociedade eminentemente rural, engendrada pelas limitações de suas condições de sobrevivência, para demonstrar que em Castela as fronteiras entre o rural e o urbano são "freqüentemente vagas, e por vezes inexistentes". No mundo medieval castelhano, tais distinções são, em última instância, arbitrárias e imprecisas. Nessa perspectiva, ao final da Idade média, a maioria das cidades do Norte de Castela, são na realidade, centros rurais.

O campo, e um campo ingrato e avarento, domina o horizonte castelhano, com a sua agricultura de subsistência e a atividade pecuária. Fundamentalmente mais lucrativa em uma terra aberta a freqüentes razzias dos mouros, a ganadería, a riqueza transumante, era o investimento mais sensato e lucrativo, determinando uma estrutura de ocupação do solo que resistirá inclusive, ao impacto da conquista das férteis terras andaluzas.

E Teofilo Ruiz valendo-se de uma copiosa documentação passa a esquadrinhar as formas de ocupação da terra, animais e ferramentas de modo exaustivo, e ao nosso ver um tanto preciosista, com inúmeras tabelas e estatísticas, que culminam com um estudo de caso que, a despeito de sua inegável qualidade, prejudica um pouco a estrutura do livro diminuindo a força da análise cumulativa que partindo dos meios de produção, passa a descrever as forças produtivas, para culminar com as relações de produção engendradas no reino castelhano. Este estudo de caso, do convento de Santa Maria la Real de Aguilar del Campóo, poderia, ao nosso ver, ser remetido para o final da obra como apêndice, pois nos capítulos anteriores, independente do mesmo, o autor já nos oferece dados suficientes para entendermos a análise proposta.

Uma vez desvendada a estrutura da sociedade rural, a obra passa a tratar da propriedade fundiária e a construção de um mercado para a terra, que apesar de despido de um caráter urbano, desenvolve-se ao sabor das migrações para o Sul, das pressões fiscais, ou a coerção predatória dos terratenentes mais poderosos. Do mercado fundiário passamos para os "centros urbanos" e a natureza do comércio neles realizado, com especial ênfase para a alteração ocorrida no "comércio internacional" após a conquista de Sevilha, que acarretou o desaparecimento de Al-Andalus, como entidade política e econômica independente. Ao examinar o volume das transações comerciais, seja na costa de Biscaia, seja no interior castelhano, uma coisa fica patente, a ausência quase que absoluta da produção têxtil local. Os têxteis importados monopolizam o mercado, o que levou historicamente a uma inibição do artesanato local, pela falta de investimento dos mercadores, pelos altos ganhos com o produto importado e da própria Coroa, que recebia um substancioso ingresso derivado dos direitos alfandegários dos panos estrangeiros.

Ruiz examina cuidadosamente as atividades produtivas em toda Castela, buscando isonomias e diferenças que lhe permitam descrever todas as atividades que expliquem o desenvolvimento histórico deste reino ibérico, descobrindo um sofisticado sistema de interdependência e trocas que são vitais à economia do reino e seguindo a sua linha explicativa, estreitamente relacionado com o mundo rural. O comércio é o meio pelo qual as tão distintas regiões castelhanas dialogam entre si e encontram o equilíbrio, possibilitando uma interdependência econômica que patrocina o progressivo fortalecimento do poder político, motivo pelo qual os reis castelhanos empenharam-se ao máximo em assegurar o controle de rotas e mercados.

E o exame termina pela análise dos papéis desempenhados pelos grupos urbanos naquela sociedade. Aí diversidade é a palavra-chave. A dinâmica interna de cada região dita a estrutura e os agrupamentos sociais. A organização social e econômica, a sua relação com o poder real em suma, o seu destino político, dependem da sua situação geográfica e da dominância de uma certa forma de produção.

Utilizando de um estudo mais aprofundado do caso de Burgos - que, segundo o autor, serve de paradigma para o restante das cidades do norte de Castela - conclui por um traço comum a quase todos os centros urbanos: a existência de uma "burguesia" armada. Aquilo que é um lugar comum em toda a Europa medieval, o "cidadão soldado" ou o mercador pronto para usar as armas, em Castela é uma velha e solidamente estabelecida tradição. Em uma sociedade permanentemente organizada para a guerra, o serviço militar é um aspecto necessário e essencial da vida. "Dos camponeses livres aos mercadores todos estavam sujeitos seja a servir, ou ao menos, contribuir financeiramente com o esforço de guerra"(RUIZ, p.237).

As milícias urbanas serviram por sucessivas vezes na fronteira, por vezes muitos dias distante de seus lares, e freqüentemente suportavam o ônus da campanha militar. Mas ainda mais importante que a guerra contra os mouros, os cavaleiros-vilões se colocavam entre o rei e uma nobreza freqüentemente em rebelião, servindo de anteparo e salvaguarda do poder real. Segundo Ruiz, mais que em qualquer outra região da Europa, os reis de Castela, dependiam dos recursos militares urbanos para as suas campanhas contra os inimigos externos e de modo muito mais significativo para manter uma barreira interna contra ameaças à sua autoridade. Não deve causar surpresa, por conseguinte, que a maioria dos privilégios reais concedidos às cidades castelhanas foram outorgados em recompensa de uma serviço militar específico.

A partir do reinado de Alfonso X, a situação tende a mudar. Concedendo isenção de taxas aos cavaleiros-vilões, inicia-se um processo gradual de aristocratização da "burguesia" castelhana, e com este um antagonismo profundo instaura-se no interior das cidades, ou seja, entre os que possuíam cavalos e armaduras e os outros grupos urbanos. Burgos, em especial, é o modelo. Os privilégios concedidos aos cavaleiros armados, vão traduzir-se no aparecimento de elites hereditárias, elites que no afã de garantir seus privilégios se organizarão em cofradias e hermandades, para demarcar o seu espaço, com a conseqüente exclusão social, religiosa e econômica, de outros grupos urbanos.

Esta análise nos parece trazer uma importante contribuição (ainda que Ruiz não a desenvolva) para o estudos das minorias étnico-religiosas na Espanha e a sua exclusão e perseguição ao final da Idade Média. A emergência de uma elite urbana ansiosa por privilégios e por apagar o seu passado plebeu, vai alterar profundamente uma relação que esteve longe de ser antagônica nos séculos anteriores. Ruiz nos mostra os judeus da aljama de Burgos, uma das mais numerosas e ricas do reino, comprando propriedades na cidade e em seus arredores, com somas suficientes para colocá-los em igualdade econômica com a aristocracia governante da cidade. De outro lado, nos campos de Calahorra e Aguilar del Campóo, encontramos judeus como proprietários de vinhedos, terras de cereais e direitos sobre a moagem de grãos. Neste caso, a transferência do poder econômico para os cavaleiros vilãos, alterará dramaticamente esta situação. A ascensão de novos grupos sociais dentro das cidades se converterá em uma crescente exclusão e uma animosidade crescente às comunidades não cristãs, em especial, aquelas que detinham uma parcela da riqueza urbana.

A quarta e última parte da obra é decisiva. Aqui a análise se adensa e todo o conjunto erudito de documentação cifras e tabelas que o autor utiliza para descrever as estruturas econômicas e sociais de Castela, cedem lugar à interpretação, à tentativa de entender o papel desempenhado por Castela, ao final da Idade Média e o início dos tempos modernos e o significado último da Reconquista.

Sem sombra de dúvida, esta é a melhor parte da obra, onde a dimensão historiográfica da obra de Teofilo Ruiz se clarifica para o leitor e onde o próprio enunciado do título, que por vezes, parece estar um pouco distanciado no transcorrer do livro, ressurge para dar sentido aos conceitos de Crise e Continuidade. Só lamentamos a exiguidade do espaço reservado a esta análise, a qual ainda que presente no decorrer da obra, aparece um tanto distanciada e fragmentada e poderia ser mais aprofundada, dada a importância da temática e das conclusões apresentadas pelo autor.

"Após examinar os padrões gerais da vida rural e urbana em Castela, eu gostaria de executar uma diferente tarefa"(RUIZ, p.289), diz o autor, ao se propor três objetivos, a saber: estudar as mudanças -a maioria delas catastróficas - na vida rural e urbana; tentar explicar como e porquê estas transformações tiveram lugar e por fim, colocar a crise de Castela no contexto da crise geral da sociedade européia ao final da Idade Média.

Como vimos acima, a conquista de Sevilha aparece na argumentação do autor, como mais um estágio de uma longa história de sangria "de homens, mulheres e recursos materiais, para atender aos apelos das necessidades da maioria de suas fronteiras."(p.290). O contínuo reajustamento da força de trabalho, motivado pela incessante drenagem de seus limitados recursos demográficos, não constitui um novo desafio, mas um processo antigo e bem conhecido de ajustamento "quase bem-sucedido" nos séculos anteriores à conquista da Andaluzia. Esta flutuação populacional é um traço permanente de Castela, responsável pela modelagem de sua estrutura econômica e social. É nesse contexto de um movimento de longa duração que pode ser explicado o desenvolvimento da Mesta, e as profundas implicações no desenvolvimento posterior da Espanha.

Nesta linha de raciocínio, a crise que assola Castela no final da Idade Média, em que pese ao surto de violência aristocrática, a deterioração das condições e a Peste Negra, vem potencializar, uma estrutura de demografia rarefeita e decréscimo de áreas cultivadas. Assim, as razões que muitos historiadores apresentam para a Crise do século XIV, como a superexploração das áreas cultivadas, o cultivo de terras marginais, a drástica redução da produção de alimentos e a conseqüente redução populacional, não servem para o contexto castelhano. Em Castela, o problema nunca foi a redução da extensão das terras cultivadas, mas a falta de homens e animais para trabalhar o solo.

É sob este ângulo que Ruiz analisa a crise gerada pela tomada de Sevilha. Após 1248, o comércio e a agricultura castelhanos sofrem um lento processo de readequação, acompanhado por outro um tanto mais rápido de redistribuição populacional. A expansão local é travada a partir de meados do século XIII, quando o reino dobra sua extensão. A expulsão dos muçulmanos após a Revolta Mudéjar de 1264, abre as portas à mais dramática migração presenciada em Castela.

O abandono de terras, a conseqüente redução dos impostos serão agravados pelo processo de ocupação das terras andaluzas. Os homens castelhanos, nobres e camponeses, "não quiseram entender as técnicas especiais de agricultura muçulmana"(RUIZ, p.295) e as diferentes exigências da vida rural e da economia do novo território conquistado. O processo de crise se completa. Herdeiros de uma estrutura milenar de apropriação de solos secos, os camponeses não conseguiam entender um universo bastante distinto de cultivo de oliveiras, frutas e especiarias, na qual a irrigação tem um papel determinante, o que explicará a ascensão da Mesta e de sua posição privilegiada a partir de 1273, concedida por Alfonso X. A conquista do Sul trouxe a vitória dos pecuaristas sobre os lavradores, pondo fim a um conflito secular em Castela. Graças à pecuária ovina, a Coroa recupera uma parte considerável dos impostos perdidos pelo abandono das terras e a extinção da via comercial entre o mundo islâmico e a Cristandade ibérica.

Por fim, Ruiz chama a atenção para a abertura dos portos do Atlântico e do Mediterrâneo, que colocou Castela em contato com o mundo bem maior, trazendo mercadores, especialmente italianos para as cidades andaluzas, estabelecendo novos e importantes laços econômicos com os mercados mediterrânicos e do Norte da África, processo que culminará com a descoberta e conquista do Novo Mundo.

Expansão e glória castelhanas...Mas o preço a pagar é muito alto. A análise retoma as questões de fundo essenciais para a compreensão do futuro de Castela e da Espanha, quais sejam, a sangria demográfica e a drástica redução da captação dos impostos, generalizados para a maioria do antigo reino de Castela, marcado por magras e seculares condições de subsistência. "Muito antes que a Peste Negra atingisse Castela, vilas se tornaram desertas e a soma dos impostos havia sofrido profunda erosão. Aqueles que haviam sido deixados para pagar as taxas, não poderiam suportar a crescente demanda de seus senhores seculares e eclesiásticos" (RUIZ, p.310).

A situação tende a um agravamento progressivo: a constante agitação e cobiça da aristocracia, acrescenta um pesado fardo a um campesinato enfraquecido e dizimado por perda de colheitas. As campanhas contra os mouros - em especial os gastos com o cerco de Gibraltar, são um poderoso incremento para a progressiva desestabilização econômica do reino. Desta maneira, a Peste Negra não consiste em fator da Crise em Castela, mas no coup de grâce em um reino seriamente exaurido por guerras, violência e taxações opressivas.

Declínio demográfico, ineficácia administrativa, uma monarquia peripatética e as intermináveis requisições das guerras de fronteiras e de uma Reconquista, mais vaidosa que produtiva, retardaram a emergência de uma monarquia centralizada até o final do século XV. A inacreditável violência dos séculos XIV e XV, a necessidade da monarquia de lançar mão de rituais seculares cada vez mais elaborados de celebração, ostentação exacerbada e festivais, eram o preço a ser pago por estas deficiências.

E assim, a obra de Teofilo Ruiz, vem contribuir para esclarecer, parte do "enigma de Espanha", através do estudo do reino promotor de sua grandeza. Castela, a Velha tem uma história gerada pela crise, pela luta contra o meio minguado e o mouro conquistador. A sua história, atreveríamos a dizer, é uma história de "crise permanente", que a Crise do século XIV, apenas vem potencializar e lançar em uma aventura que será a sua glória e a sua ruína. Esta, conclui o autor, "é na verdade, a triste história de Castela do Norte. Seus camponeses e mercadores resistiram valentemente contra as marés da adversidade. E apesar da desenfreada violência das crises econômicas e sociais, eles fincaram pé na sua terra e continuaram fielmente realizando suas tarefas: os prosaicos e enfadonhos deveres do cotidiano, o trabalho de sustentação dos fracos e oprimidos, construindo na obscuridade e miséria as bases das glórias futuras de Castela.

1. RUIZ, Teofilo F. "Expansion et changement: la conquête de Séville et la société castillane (1248-1350). Annales E.S.C. 3 (mai-jun 1979), p. 548-65.

Revista de História - USP

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