sexta-feira, 27 de julho de 2012

Bolívia: Democracia e revolução (A comuna de La Paz de 1971)


Everaldo de Oliveira Andrade, Ed. Alameda


A Comuna de La Paz, ou Assembleia Popular, movimento operário de cunho político ocorrido em 1971, na Bolívia, em pleno contexto das ditaduras militares na América do Sul, consistiu na organização de um conselho operário e popular que buscava atuação parlamentar. Tendo como base organizações sindicais e o movimento dos mineiros bolivianos, propunha o “aprofundamento e radicalização da democracia”. À medida que se constituía, a Assembleia incorporava setores do movimento camponês, militares de baixa patente, organizações de profissionais da classe média e universitários. Organizava-se de forma a garantir a representação de todas as instituições e movimentos envolvidos, tendo como pressuposto a democracia direta para tomadas de decisão. Articulava comissões e assembleias em vários departamentos bolivianos, buscando combinar a autonomia local e a unidade nacional.
As medidas propostas pela Assembleia Popular buscavam contemplar os interesses dos grupos envolvidos, passando pela redistribuição de terras, reforma universitária, democratização do acesso à arte e cultura, estatização do setor minerador, entre outras propostas de reformas e reestruturação política e social boliviana.
O livro de Everaldo de Oliveira Andrade é resultado de sua tese de douramento pela FFLCH-USP e traz, combinado ao rigor acadêmico, o compromisso com a narrativa dos fatos. A escrita, fluida e instigante, nos coloca diante do importante processo revolucionário de um dos países mais pobres e ao mesmo tempo de população com mais tradição combativa da América do Sul.
O trabalho do autor contribui ao entendimento da realidade boliviana e dos triunfos dos movimentos populares nesse país. Entender o processo que leva Evo Morales à Presidência do Estado Plurinacional da Bolívia passa por conhecer a Comuna de La Paz e seus desdobramentos. Estudar a história da Bolívia é estudar o continente latino-americano, além de processos que nos aproximam e nos envolvem numa história compartilhada de lutas e resistência.


Kena Azevedo Chaves
Geógrafa pela Universidade Estadual de Campinas e pós-graduanda em Gestão Pública e Sociedade pela UFT/Senaes/Gapi-Unicamp. Pesquisa políticas de geração de trabalho e renda na América do Sul.
Le Monde Diplomatique Brasil

"Nunca antes na história desse país..."? Um balanço das políticas do Governo Lula


Marilene de Paula (Org), Ed. Fundação Henrich Boll


A Fundação Heinrich Böll organizou essa coletânea para avaliar as políticas nas quais atua no Brasil: meio ambiente, política para mulheres, igualdade racial, direitos humanos, política externa e economia.
Voltados “tanto a pesquisadores quanto a ativistas que estão na linha de frente da luta por justiça social no Brasil”, os artigos procuraram analisar as conquistas e os retrocessos nas políticas “sempre pela perspectiva dos direitos, da justiça social e ambiental, que são, mais que nunca, indissociáveis”.
Vale anotar que nem sempre essa orientação foi seguida, como expõe o artigo que trata da política econômica do governo Lula. O texto de Alexandre Ciconello, que defende o conceito amplo de direitos humanos – Dhesca – e discorre sobre o processo de elaboração do 3º Programa Nacional de Direitos Humanos, poderia ser o primeiro da série. E o PNDH-3, instituído por decreto presidencial, poderia ter sido adotado como referência de toda a coletânea: pela avaliação do grau de cumprimento pelo governo de suas diretrizes, objetivos estratégicos e ações programáticas, seria uma contribuição para que ele não permaneça como “peça de ficção” durante o governo Dilma.
A coletânea contém informações e análises bastante preciosas, e merece uma leitura atenta para que o diálogo e a interação com o governo Dilma possa ganhar um novo patamar – por exemplo, no Fórum Interconselhos, inaugurado este ano. Afinal, o aprofundamento da crise planetária do capitalismo financeirizado e a eclosão em nosso país das mobilizações dos trabalhadores das grandes obras do PAC, dos Correios, bancários, dos segmentos atingidos pelas obras da Copa e das Olimpíadas sinalizam para mudanças necessárias e urgentes no funcionamento do Estado brasileiro.
 A publicação pode ser acessada na página da fundação: www.boell.org.br.


Jorge Kayano
Médico sanitarista e pesquisador do Instituto Pólis
Le Monde Diplomatique Brasil

Novos Estados e a divisão territorial do Brasi: uma visão geográfica


 
José Donizete Cazzolato, Ed. Oficina de Textos e Centro de Estudos da Metrópole

O princípio central do livro Novos estados e a divisão territorial do Brasil, de José Donizete Cazzolato, é que o conceito de igualdade social pode ser estendido para a estrutura territorial da federação brasileira gerando maior igualdade entre os cidadãos. Essa ideia perpassa o livro inteiro, no qual se explora a questão da criação dos estados de Carajás e Tapajós.
Nessa obra, o termo “território” tem conteúdo econômico, político, identitário e geográfico, o que mostra a interdisciplinaridade e a complexidade do problema tratado, além de revelar a importância da geografia para abordá-lo.
A preocupação principal do autor é que diversas propostas de criação de novos estados brasileiros, mediante emancipação de velhos estados, venham a alterar de maneira prejudicial o “frágil equilíbrio” da federação brasileira. A omissão de nossa Constituição em detalhar tecnicamente a questão da criação de estados e a ausência de outras normas legais que discorram sobre o assunto trazem preocupações, pois abrem a possibilidade de uma questão crucial ser tratada mediante projetos improvisados, frágeis e sem compromissos com a federação como um todo.
A sugestão de Cazzolato é que tais propostas devam atender a certos critérios técnicos para que então possam ser tratadas como viáveis. A grande contribuição desse livro está no fornecimento de tais critérios e na observação da existência de um padrão territorial brasileiro ao qual a maioria de nossos estados se conforma.
O padrão territorial seria apenas um primeiro passo para tornar a criação de novos estados um ponto menos vulnerável em nosso desenho institucional. Neste ponto, o livro de Cazzolato é uma recomendação e um convite ao debate, pois a criação de novos estados, dentro ou fora do padrão proposto, gera impacto no sistema político e econômico de nossa federação. A análise técnica leva o debate para um novo patamar, no qual opiniões apaixonadas perdem espaço para cuidadosas observações.


Paulo Cesar Pereira Loyola
Mestrando em Ciência Política pela USP e assistente de pesquisa no Centro de Estudos da Metrópole

Le Monde Diplomatique Brasil 

As coisas: uma história dos anos sessenta


 
Georges Perec, Ed. Companhia das Letras

Primeiro romance de um dos mais inventivos e prolíficos escritores do século XX, As coisas: uma história dos anos sessenta é um livro sobre os encantos do prazer consumista e os sonhos de riqueza do casal Sylvie e Jérôme. Os dois trabalham em pesquisas de opinião para agências de publicidade (tão comuns atualmente no Brasil da emergente e desejada classe C, cujos gostos e preferências não param de ser mapeados). O emprego, embora precário, permite que eles tenham certa mobilidade no dia a dia (“Flanavam como só os estudantes sabem flanar”), mas oferece pouco para seus infindáveis sonhos com produtos refinados.
Os personagens procuram a felicidade em lojas de usados e acreditam que a satisfação plena estaria no exato equilíbrio entre recursos e desejos. Brigam por dinheiro. Sonham com uma eventual herança e com a ideia de que, como mágica, tudo o que quisessem estaria ao alcance de seus bolsos. O problema, perfeitamente descrito no livro, está em outra espécie de magia: a conversa fantasmagórica entre as coisas.
São as coisas que falam, subordinam e revelam as pessoas. Perec faz uma escolha descritiva que dá voz aos objetos, às mercadorias. Até quando Sylvie e Jérôme decidem aderir ao protesto contra a Guerra da Argélia e participam de comitês e manifestações, lugares onde vozes se encontram para encorpar uma contramaré, os personagens ainda parecem silenciosos: “o engajamento deles foi apenas epidérmico”.
Nem a aventura extracontinental dos jovens foi suficiente para que enxergassem melhor o lugar que ocupavam. Ao contrário dos beats, que buscavam o autêntico em suas viagens, Sylvie e Jérôme viram-se perdidos quando distantes de suas referências de consumo.
As coisas, embora não tenha a experimentação formal de outras obras de Perec, é um excelente romance e prenuncia o grande escritor que estava por vir. Além disso, é original pelo enfoque com que ele põe à vista a sociedade de consumo: sem perceber, pode-se estar vivendo (e sonhando) às margens de um imenso vazio.



João Carlos Ribeiro Jr.
Graduado em Ciências Sociais e mestrando em Teoria Kiterária e Literatura Comparada na Universidade de São Paulo

Le Monde Diplomatique Brasil

Efêmero revisitado: conversas sobre teatro e cultura digital


Leonardo Foletto, Ed. Baixa Cultura



Junto do advento da fotografia vieram os rumores de que a pintura acabaria. Surgiu o cinema e proclamaram o fim da fotografia! Quando apareceram os e-books, o fim dos livros. Picasso, Pollock, Man Ray, Mia Couto... Nenhum deu ouvidos. Scorsese e Bob Wilson continuam fazendo sua arte. Então sem papos sobre o fim dos atores ou do teatro, OK?
Os avanços tecnológicos apenas possibilitam que novas linguagens transitem pelo universo das relações humanas. Não matam as artes, que, em constante processo de transformação, rearticulam-se dentro dessa realidade mutável. Estamos em plena revolução digital, e do olho desse furacão Leonardo Foletto estabelece conexões entre o teatro, sobrevivente a tantas revoluções, e a cultura digital.
Uma das questões definidoras do teatro é a presença. O digital relativiza a presença, e a própria cena contemporânea vem colocando isso em xeque a todo momento. Seria então possível um teatro digital? Esse termo em si seria uma contradição?
O livro traça um panorama da relação entre teatro e tecnologia e traz entrevistas com pesquisadores e realizadores, desde os que se utilizam do digital como ferramenta para o teatro até os que investigam possibilidades de criação de linguagem por meio de sua apropriação.
Efêmero revisitado fotografa o momento histórico em meio à incerteza saudável de pensadores e experimentadores do teatro digital. Ou seja lá qual for o nome disso, essa não é a questão. Estamos assistindo a uma linguagem nova em folha sendo gestada. Nos primórdios, o cinema não era ainda o que hoje conhecemos como cinema, somente aos poucos, ao encontrar os elementos específicos de sua linguagem, foi se transformando em arte. Experimentar é preciso. É disso que se ocupam os grupos brasileiros Teatro para Alguém e Phila 7, entrevistados por Foletto. Cada qual à sua maneira e com iniciativas tão sinceras e instigantes quanto os diálogos que o autor promove por meio de seu livro.
Livro disponível para download em http://baixacultura.org/2011/12/20/efemero-revisitado-para-download.


Drika Nery
Escritora, dramaturga e roteirista
Le Monde Diplomatique Brasil

O enigma do capital e as crises do capitalismo


David Harvey, Ed. Boitempo Editorial


David Harvey, geógrafo e professor de Antropologia da City University of New York (Cuny), coloca ao alcance de estudiosos e também do grande público uma obra audaciosa, fruto de análise crítica e rigorosa sobre a maneira pela qual o capital se movimenta em busca do lucro, superando todas as barreiras e submetendo a sociabilidade humana à lógica da acumulação.
A obra parte da discussão da crise de 2008 para demonstrar que esta, assim como as anteriores, é intrínseca e inerente ao modo de produção capitalista. Procede então a uma análise das crises na evolução do capitalismo na tentativa – bem-sucedida – de explicar o processo pelo qual o capital, por meio delas, realimenta, sempre com novos arranjos temporais e espaciais, sua expansão e acumulação.
A tese central do autor é que o capitalismo consiste em um modo de produção contraditório e destrutivo, voltado para a acumulação e o lucro, sendo para tanto necessária sua contínua expansão e inovação.
Retomando nesse livro os pressupostos de Marx, Harvey realiza um profundo diagnóstico sobre as inter-relações entre as “esferas de atividades” humanas, as quais devem ser pensadas de forma interdependente. O autor faz duras críticas às concepções teóricas “monocausais”, que não consideram a tensão dialética do capitalismo e de suas contradições.
Tratando de um tema relevante de forma instigante, Harvey dirige-se a todos que desejam refletir e construir uma alternativa anticapitalista, tornando imprescindível a leitura de sua obra.


Fabiane Santana Previtali
Docente do Instituto de Ciências Sociais da Universidade Federal de Uberlândia, coordenadora do Grupo de pesquisa Trabalho, Educação e Sociedade e pesquisadora FAPEMIG / PPM
Le Monde Diplomatique Brasil

São Paulo: Novos percursos e atores - sociedade, cultura e política


 
Lúcio Kowarick e Eduardo Marques (orgs.), Ed. Editora 34


A tentativa de entender as transformações e as continuidades de variados processos urbanos faz a relação entre passado e presente ter um lugar de destaque no livro São Paulo: novos percursos e atores, organizado por Lúcio Kowarick e Eduardo Marques. Kowarick é um dos principais nomes dos estudos urbanos sobre São Paulo. Desde a década de 1960 até os dias atuais, o autor vem analisando com profundidade e originalidade processos sociais que ocorrem nessa metrópole. Seu parceiro nesse livro é Eduardo Marques, um dos principais pesquisadores do Centro de Estudos da Metrópole (CEM), instituição que nos últimos dez anos contribuiu com novos aportes metodológicos e pesquisas indispensáveis sobre distintos aspectos de São Paulo.
A união dessas duas grandes referências dos estudos urbanos, somada aos textos de 25 autores que produziram muitas das principais contribuições ao tema nos últimos anos, faz de São Paulo: novos percursos e atores um livro ousado em muitos aspectos: pela tentativa de atualização das interpretações sobre São Paulo; pela sempre bem-vinda busca da totalidade, ao alargar as temáticas abordadas; por fazer coexistir num mesmo livro distintas disciplinas e técnicas de pesquisa; por unir pesquisadores de várias gerações.
O que se apresenta é uma São Paulo contraditória, onde se diminuiu a pobreza, mas mantiveram-se padrões de desigualdade social. Ou seja, os pobres ficaram menos pobres, mas os ricos ficaram mais ricos. Hoje as periferias estão mais bem assistidas em termos de serviços públicos. Contudo, muros reais e simbólicos seguem separando as classes sociais. A cidade é uma potência econômica mundial. No entanto, a violência ainda é um dos temas ordenadores da vida social.
Em síntese, o livro oferece uma boa dimensão sobre alguns fenômenos sociais que ora ocorrem em São Paulo, e ainda que possa parecer uma radiografia de nosso tempo, sabe ser depositário de uma consolidada tradição de estudos urbanos nas ciências sociais. Imperdível para quem quer conhecer algumas chaves de interpretação dessa multifacetada e desigual metrópole.
 



Tiarajú D'Andrea
Doutorando em Sociologia Urbana pela USP

Le Monde Diplomatique Brasil

São Paulo: Novos percursos e atores - sociedade, cultura e política


 
Lúcio Kowarick e Eduardo Marques (orgs.), Ed. Editora 34


A tentativa de entender as transformações e as continuidades de variados processos urbanos faz a relação entre passado e presente ter um lugar de destaque no livro São Paulo: novos percursos e atores, organizado por Lúcio Kowarick e Eduardo Marques. Kowarick é um dos principais nomes dos estudos urbanos sobre São Paulo. Desde a década de 1960 até os dias atuais, o autor vem analisando com profundidade e originalidade processos sociais que ocorrem nessa metrópole. Seu parceiro nesse livro é Eduardo Marques, um dos principais pesquisadores do Centro de Estudos da Metrópole (CEM), instituição que nos últimos dez anos contribuiu com novos aportes metodológicos e pesquisas indispensáveis sobre distintos aspectos de São Paulo.
A união dessas duas grandes referências dos estudos urbanos, somada aos textos de 25 autores que produziram muitas das principais contribuições ao tema nos últimos anos, faz de São Paulo: novos percursos e atores um livro ousado em muitos aspectos: pela tentativa de atualização das interpretações sobre São Paulo; pela sempre bem-vinda busca da totalidade, ao alargar as temáticas abordadas; por fazer coexistir num mesmo livro distintas disciplinas e técnicas de pesquisa; por unir pesquisadores de várias gerações.
O que se apresenta é uma São Paulo contraditória, onde se diminuiu a pobreza, mas mantiveram-se padrões de desigualdade social. Ou seja, os pobres ficaram menos pobres, mas os ricos ficaram mais ricos. Hoje as periferias estão mais bem assistidas em termos de serviços públicos. Contudo, muros reais e simbólicos seguem separando as classes sociais. A cidade é uma potência econômica mundial. No entanto, a violência ainda é um dos temas ordenadores da vida social.
Em síntese, o livro oferece uma boa dimensão sobre alguns fenômenos sociais que ora ocorrem em São Paulo, e ainda que possa parecer uma radiografia de nosso tempo, sabe ser depositário de uma consolidada tradição de estudos urbanos nas ciências sociais. Imperdível para quem quer conhecer algumas chaves de interpretação dessa multifacetada e desigual metrópole.
 



Tiarajú D'Andrea
Doutorando em Sociologia Urbana pela USP

Le Monde Diplomatique Brasil

Saídas de emergência: ganhar/perder a vida na periferia de São Paulo


Robert Cabanes, Isabel Georges, Cibele Rizek e Vera Telles (Orgs.), Ed. Boitempo Editorial


Salve-se quem puder! Com Saídas de emergêncianos aproximamos da crua realidade das periferias de São Paulo. Os vários pesquisadores, por meio de etnografias, delineiam o que é viver nessa cidade e trazem a público as trajetórias e experiências daqueles que ganham e perdem a vida em sua periferia.
Sem adjetivar essa dinâmica social, os autores se dispõem a retratar a realidade das camadas populares sem partir de ausências ou comparações com outras épocas e, portanto, abandonam toda valoração comparativa. Narram o que ouvem e veem desde seu movimento próprio para compreender como quem mora nas periferias longínquas, ou nem tão longínquas, sobrevive e vive.
Os relatos reunidos dão notícias das escolhas – ou da redução de seus horizontes – diante de políticas sociais transformadas em gestão da pobreza, do truncamento das trajetórias pessoais e coletivas diante da erosão do mercado de trabalho nos anos 1990, das políticas de encarceramento em massa que fizeram explodir a população juvenil nas cadeias, da transformação das formas de representação das entidades sociais e das associações − trânsitos esses que alteram e ressignificam as categorias do mundo público e dos espaços privados. Trata-se de perceber, a partir das várias perspectivas, as respostas das camadas mais pobres à tormenta neoliberal.
O estranhamento em Saídas de emergência não vem das condições de vida retratadas, que, do ponto de vista de alguns indicadores de acesso a serviços básicos, até melhorou. O que impressiona é o “salve-se quem puder” como lógica, que recrudesce a privatização da vida, de modo que não se plasma – pelo menos não ainda de maneira tangível – algum tipo de organização política/pública que se contraponha ao mundo administrado da gestão do social por organizações sociais e filantrópicas ou as saídas através do individualismo religioso e solidário.
O leitor tem em mãos um livro que nos faz questionar a naturalização do inferno urbano nos quais se transformaram nossas cidades, especialmente aqueles territórios onde vivem Doralices e Amaros, e suas saídas de emergência.


Edson Miagusko e Joana da Silva Barros
Respectivamente, professor adjunto de Ciências Sociais da UFRR e doutoranda em Sociologia pela USP

Liberalismo autoritário: Discurso liberal e práxis autoritária na imprensa brasileira



Francisco Fonseca, Ed. Editora Hucitec


Autor de O consenso forjado: a grande imprensa e a formação da agenda ultraliberal no Brasil (Hucitec, 2005), o professor Francisco Fonseca entrega ao público novo livro: Liberalismo autoritário: discurso liberal e práxis autoritária na imprensa brasileira.
Trata-se de uma linha de continuidade temática – o estudo aprofundado do liberalismo, por meio do desvendamento de suas contradições e de seu modus operandi profundamente autoritário – e de atores: a grande imprensa.
Em ambos os livros, o liberalismo, em seu veio teórico (matrizes doutrinárias e ideológicas) e empírico (a atuação concreta da imprensa que se diz pautar por essa doutrina), é desvendado para demonstrar, à luz de Gramsci, a atuação autoritária e ideológica desses “aparelhos privados de hegemonia”.
Particularmente, Liberalismo autoritário, escrito há dezessete anos como tese acadêmica, não apenas se mantém radicalmente atual como, sobretudo neste momento em que a grande mídia pauta governos e rejeita qualquer forma de controle democrático, é fundamental para a compreensão dos embates ideológicos no mundo contemporâneo.
O livro analisa de forma exaustiva, profunda e criteriosa como dois representantes da grande imprensa autodeclarada liberal – a revistaVisão, hoje extinta, e o jornal O Estado de S. Paulo – postaram-se perante a transição para a democracia na década de 1980, influenciando-a. A importância desses embates é atestada pelo caráter da democracia que temos hoje.
O autor analisou as posições tomadas perante a agenda concreta da transição – a relação com sindicatos e partidos à esquerda, com o “entulho autoritário”, com a campanha das “diretas já” e com diversos temas socioeconômicos – e as cotejou com as distintas matrizes doutrinárias de ambos. Observou e apontou, clara e objetivamente, as confluências e dissonâncias entre alegação e práxis.
Nesse momento histórico em que o pensamento liberal está em crise, é indispensável refletir sobre seus pressupostos e legados deletérios. Por tudo isso, o livro do professor Fonseca torna-se leitura obrigatória.


Flávio George Aderaldo
Editor da Hucitec
Le Monde Diplomatique Brasil

Experiências da Emancipação


Flávio Gomes e Petrônio Domingues, Ed. Selo Negro Edições


Somos um povo de memória deficiente. Longe de ser uma displicência congênita, essa realidade é uma construção social muito bem articulada pelas elites brasileiras. A história de nosso povo é contada pelos “vitoriosos”, com uma versão oficial reproduzida nas escolas, na mídia, na academia, imprimindo em nós uma imagem de cordialidade, de intrínseca e inquebrantável alegria – que nada mais são do que mecanismos para naturalizar e aprofundar a subserviência e as desigualdades.
Os negros e as negras africanos (estas ainda mais que os primeiros) e seus descendentes talvez tenham sido os que mais sofreram. Sequestrados de sua terra e tratados como mercadoria, aqui tiveram sua força de trabalho sugada ao extremo, foram submetidos às mais variadas e cruéis formas de violência e tiveram sua história distorcida. Na contramão do establishmentExperiências da emancipação reúne treze artigos cujo conjunto constrói um painel denso sobre as histórias de resistência e busca por emancipação do povo negro no Brasil, elucidando com maestria o papel desses sujeitos sociais e suas organizações no contexto político pós-abolição.
Esse livro mostra a ativa participação dos negros em movimentos de resistência armada, confrarias e agremiações recreativas, nas lutas sindicais, nas esferas políticas institucionais e na literatura, recompondo o imaginário desses sujeitos político-sociais que souberam demarcar posições num contexto de transformações econômicas, políticas e sociais no final do século XIX e ao longo do século XX, articulando-se das mais diferentes formas para enfrentar a pobreza, a marginalização, a precária inserção no mundo do trabalho assalariado e os preconceitos raciais a que eram submetidos.
Ao apresentar elementos históricos da construção das políticas de branqueamento e repressão, a obra torna-se um documento fundamental no atual momento em que assistimos a crescentes manifestações explícitas de racismo e ao genocídio de jovens negros nas periferias das grandes cidades, e nos ajuda a perceber o profundo enraizamento e naturalização desses processos em nossa sociedade.
É um trabalho valioso que tem muito a contribuir para o resgate da memória e da identidade do povo negro e do povo brasileiro em geral.


Jonathan Constantino
biólogo e professor da rede pública de São Paulo
Le Monde Diplomatique Brasil

O continente do labor


Ricardo Antunes, Ed. Boitempo Editorial


O continente do laboré uma reflexão sobre as lutas sociais na história recente da América Latina. O balanço feito por Ricardo Antunes sobre a evolução da relação capital-trabalho e suas ligações com as lutas sindicais e políticas desde 1930 retrata a história do continente do ponto de vista da resistência dos trabalhadores aos ataques sistemáticos do capital. O livro mostra como operários, camponeses, trabalhadores rurais, sem terra, desempregados, indígenas, enfim, todos os que dependem do próprio trabalho para sobreviver responderam com formas criativas de autodefesa e rebeldia ao caráter particularmente opressivo de exploração e dominação do capitalismo dependente.
O continente do labor procura desvendar as características perversas da nova ofensiva do capital sobre o trabalho e sua manifestação devastadora na América Latina e no Brasil. A tese de Antunes é inequívoca. A “desertificação neoliberal” aprofunda os nexos entre desenvolvimento capitalista e barbárie, e coloca na ordem do dia a necessidade histórica da revolução socialista.
Sem se esquivar de questões controversas, o autor expõe, franca e corajosamente, sua interpretação sobre as limitações das experiências socialistas do século XX, assim como sobre as esperanças e as frustrações que acompanharam as lutas sindicais e socialistas na América Latina. Ênfase particular é dada à compreensão da trajetória e do significado histórico do PCB, do PT, da CUT e do MST – organizações que tiveram maior influência sobre os trabalhadores brasileiros. Resgatando o pensamento de Marx, Mariátegui, Florestan Fernandes e István Mészáros, Antunes explicita os parâmetros que, a seu ver, devem balizar o movimento socialista latino-americano no século XXI.
Escritos em linguagem simples e despretensiosa, perfeitamente acessível ao grande público, os artigos reunidos em O continente do labor sintetizam uma densa reflexão, alicerçada em anos de docência, pesquisa e militância, sobre as características da dominação burguesa e sobre as lutas de resistência da classe trabalhadora no continente. É leitura necessária para todos os preocupados em deter o avanço da barbárie.


Plínio de Arruda Sampaio
Ativista, político e membro do Psol
Le Monde Diplomatique Brasil

terça-feira, 24 de julho de 2012

Alunos de uma escola francesa, no início do século XX




No quadro de  ardósia: O povo que possui as melhores escolas é o primeiro entre todos os povos; se o não é hoje, sê-lo-á amanhã.
Buigny-los-Gamaches, Somme. Dezembro.

Homenagem 
Educação hoje, amanhã e depois. 
Parabéns EDUCADORES.

segunda-feira, 16 de julho de 2012

De Rousseau a Gramsci: Ensaios de Teoria Política


Carlos Nelson Coutinho, Ed. Boitempo Editorial


O fio norteador de De Rousseau a Gramsci é a questão da democracia na teoria política. O livro, dividido em duas partes é composto de oito ensaios, publicados anteriormente em revistas acadêmicas e coletâneas, entre 1996 e 2011, que no conjunto delineiam o perfil intelectual de Carlos Nelson Coutinho. O primeiro ensaio discute a crítica da desigualdade em Rousseau, para quem a sociedade burguesa, baseada na distribuição desigual da propriedade, não cria as condições necessárias para a democracia, definida como expressão política da vontade geral. O segundo trata do conceito de vontade geral em Hegel, que lhe confere uma base objetiva, isto é, determinada por condições históricas e sociais. Hegel avança nesse sentido em relação a Rousseau, que considerava a vontade geral o resultado da evolução virtuosa das vontades dos indivíduos. O terceiro traz as contribuições de Marx e Engels, especialmente no Manifesto Comunista, para o conceito de vontade geral, analisado por eles segundo uma compreensão materialista da história. Para Marx e Engels, o capitalismo é especial entre as ordens econômicas, pois nele surge uma classe social, o proletariado, cujos interesses materiais se orientam para o igualitarismo democrático universal.
Os cinco últimos ensaios são sobre o pensamento político de Gramsci: a redação e as edições de sua obra principal, Cadernos do cárcere, incluindo a chegada de suas ideias ao Brasil; a crítica ontológica a que submete a ciência política; um léxico de seus principais conceitos; as contribuições de um dos principais comentadores da obra do marxista italiano, Valentino Gerratana; e uma comparação entre o pensamento materialista de Gramsci e Lukács. Nesses textos, ficam claras a evolução e a tensão do pensamento gramsciano, que, ao mesmo tempo, busca entender o mundo como ele é e como deveria ser. A análise de Coutinho sobre o pensamento gramsciano é tão conhecida que já se tornou ela mesma clássica, e De Rousseau a Gramsciconsolida ainda mais Coutinho como o principal intérprete da obra de Gramsci no Brasil.

João Alexandre Peschanski
Doutorando em Sociologia pela Universidade de Wisconsin-Madison e integrante do comitê de redação de Margem Esquerda: Ensaios Marxistas
Le Monde Diplomatique Brasil 

A coragem da verdade


Michel Foucault, Ed. Martins Fontes


A questão da constituição do sujeito perpassa a obra de Michel Foucault, e neste curso – o último antes de sua morte – ele questiona os modos de constituição ética dos sujeitos por meio da coragem de dizer-a-verdade (parresía). A parresía é uma missão de vida filosófica e traduz-se em coragem de mostrar ao outro a “verdadeira vida”.
Para tanto, Foucault perfaz a história da parresíadesde a ironia socrática, que alia o dizer da verdade ao cuidado de si e do outro (epiméleia). A prática de verdade socrática não diz respeito à vida na pólis, mas é atinente ao indivíduo e suas formas de conduzir-se em relação a si mesmo e aos outros.
Por conseguinte, Foucault conclui que a parresíasocrática conduz às duas grandes concepções filosóficas ocidentais: de um lado, a metafísica platônica, pautada nas questões da alma e no cuidado de si mesmo com o fim de alcançar outro mundo – a verdade é, pois, transcendental. De outro lado, a constituição de uma estética da existência, em que a vida mesma manifesta a verdade, na resistência às convenções sociais e na insistência em escandalizar o mundo, mostrando “a vida outra”, que não a imposta socialmente.
Os cínicos e seu inflexível desafio às normas seriam o exemplo dessa manifestação da verdade em sua concretude. Por fim, Foucault chega à parresía cristã, a qual atravessa a busca platônica pelo “outro mundo” engendrando neste mundo uma “vida outra”, de ascese e obediência à verdade transcendente.
Enfim, A coragem da verdadedemonstra que a constituição de modos de ser (éthos) exige uma relação efetiva do indivíduo consigo mesmo e com o outro. Nesse sentido, se a manifestação da verdade exige alteridade, um posicionamento verdadeiro sobre a própria vida só se mostra pela coragem.


Katiuska Izaguirry Marçal
Graduada em Filosofia e mestranda em Educação pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM)
Le Monde Diplomatique Brasil 

Retrato da repressão política no campo - Brasil 1962 -1985


Ana Carneiro e Marta Cioccari, Ed. Ministério do Desenvolvimento Agrário e Secretaria de Direitos Humanos

O livro Retrato da repressão política no campo – Brasil 1962-1985 vem ao encontro da recente criação da Comissão da Verdade e Justiça pela presidente Dilma Rousseff, e de inúmeros esforços para elucidar os acontecimentos durante o período da ditadura civil-militar (1964-1985).
Escrito por Ana Carneiro e Marta Cioccari, esse livro vem na esteira dos chamados “Dossiês políticos” que tentam contabilizar as vítimas da repressão policial e militar do período, com foco específico na fração camponesa do proletariado.
Se no “Dossiê ditadura dos mortos e desaparecidos políticos do Brasil: 1965-1985”, de 2009, constam 33 casos de camponeses mortos e desaparecidos nesse espaço de tempo, livros comoAssassinatos no campo: crime e impunidade, organizado pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, contabilizam 1.566 trabalhadores rurais assassinados, o que altera drasticamente a percepção acerca da repressão ao proletariado, diferentemente de uma visão historiográfica majoritária que colocava o estudante como o grande agente de resistência e o mais atingido pelo terrorismo de Estado.
Em Retrato da repressão temos uma ampliação no quadro de vítimas, constando não só mortos e desaparecidos, mas também a iniciativa, corajosa, de retratar os torturados, contando com inúmeras fontes orais, que enriquecem a pesquisa, auxiliada pelo Projeto Memória Camponesa, do Núcleo de Antropologia Política (NuAP) da Universidade Federal do Rio de Janeiro/Museu Nacional.
Com o objetivo claro de dar voz àqueles que foram silenciados tanto pela repressão como pelo Estado de direito no pós-1985, o livro tem sucesso ao evidenciar as experiências e os casos de resistência dos trabalhadores do campo. O recado é claro: não só de estudantes de classe média se fez a luta contra a ditadura; o proletariado esteve presente em um dos momentos cruciais da luta de classes no Brasil.


Yuri Rosa de Carvalho
Mestrando em História pela Universidade Federal de Santa Mria - UFSM.

Le Monde Diplomatique Brasil 

Espectro


Perry Anderson, Ed. Boitempo Editoral


Há exatamente cinquenta anos, quando, com um grupo de jovens intelectuais, Perry Anderson assumiu a direção da revista marxista britânica New Left Review, o panorama intelectual da esquerda no mundo começou a mudar. Como uma das poucas revistas sobreviventes da débacle que afetou a esquerda no mundo, aNLRcontinua a ser uma referência teórica essencial, com Anderson levando a voz cantante no grupo que a publica. No conjunto de sua obra, o autor reservou um lugar essencial para o debate intelectual, desde quando, enfant terribleda nova esquerda britânica, polemizou com Edward Thompson. Desde então ele colecionou uma série de ensaios de balanço de autores – em geral contemporâneos – relevantes.
Desde seu Considerações sobre o marxismo ocidental – o melhor exame das primeiras gerações de pensadores marxistas –, passando pelo balanço geral da obra de Gramsci – As antinomias de Gramsci –, Anderson foi desenvolvendo uma metodologia de análise em que, como ele destaca, “ideias de qualquer grau de complexidade são mais bem estudadas por meio do trabalho detalhado dos autores que as produzem, como textos inseparáveis de contextos históricos ao mesmo tempos sociais e conceituais, mas que não podem ser reduzidos a estes”.
Em Afinidades seletivas, estavam, entre outros, ensaios sobre Gramsci, Berman, Deutscher, Bobbio, Rawls, a que se somam, no livro agora lançado, ensaios sobre Habermas, García Márquez, Therborn, Thompson, Hobsbawm. Fecha-se assim um espectro de direita à esquerda, impressionante pela abrangência e qualidade das análises.
Em Espectro, merece destaque especial o ensaio “Armas e direitos”, em que Anderson mostra como as posições de Habermas, Bobbio e Rawls sobre a existência de “guerras justas”, “humanitárias”, acabaram apoiando as intervenções militares norte-americanas na década de 1990, revelando até onde pode chegar o liberalismo humanista. Dois ensaios particulares sobre Rawls e sobre Habermas complementam a visão de Anderson sobre esses autores.


Emir Sader
Sociólogo, cientista político e coordenador do Laboratório de Políticas Públicas (LPP) da UERJ
Le Monde Diplomatique Brasil

18 crônicas e mais algumas


Maria Rita Kehl, Ed. Boitempo



E aí, vai encarar?! Esse é o tom do novo livro de Maria Rita Kehl. Em 18 crônicas e mais algumas, “roubada pelos temas”, ela escreve apenas duas que falam do ser humano de forma romântica, para apresentar quem escreve. As demais são um convite para a briga – pela vida, pelo mundo, pela realidade, pelo coletivo.
Como Adorno, a autora parece buscar na escrita esperança para sobreviver. Temas polêmicos (aborto, crimes como os dos Nardoni, “acidentes naturais” como o do Morro do Bumba), abordados de maneira crítica, nos convocam a sair da acomodação de vê-los como programas de TV e a pensar sobre como reagimos a uma realidade que corroboramos.
Entre a raiva e o orgulho nas leituras, Mario Quintana nos tranquiliza: “Sim, um autor que nunca se contradiz deve estar mentindo”. O poeta ajuda a ler a indignação de Maria Rita Kehl ao avaliar mulheres como mais ativas e interessadas pela vida que os homens. Que generalização é essa? Assim como também é útil nas duas narrativas críticas em primeira pessoa enquanto personagem de periferia – um deslocamento no mínimo arriscado e desafiante.
Mas é aí que identificamos nossos preconceitos e carapuças e nos damos o direito de usufruir as ricas reflexões apresentadas. Como em “Repulsa ao sexo”, que permite acompanhar um pensamento crítico responsável: “Eis a face cruel da criminalização do aborto: trata-se de fazer do filho o castigo da mãe pecadora”. Também na brilhante introdução, na qual apresenta a elaboração de seu “cronicar” – entre a psicanálise, o jornalismo e a cidadania. Aparentemente muito distantes, a autora os une na função de desnaturalização, questionamento, escuta, preocupação e atenção ao outro.
“O Brasil dói”, diz Maria Rita Kehl. E cada um encontra sua forma de lidar com a dor. Alguns fingem não ver, e ela escancara a manipulação da mídia e a passividade de quem nem pensa nessa dor. Se as crônicas são elaboração dessa dor, a autora esbanja humanidade e sensibilidade, parte de sua função profissional e social.
 



Mariana Peres Stucchi
Doutoranda do Porgrama de Psicologia Clínica da Universidade Católica de Pernambuco e técnica do Instituto Fazendo História
Le Monde Diplomatique Brasil

Fronteiras de tensão


Gabriel Feltran, Ed. Centro de Estudos da Metropóle


Esse livro resulta de pesquisa etnográfica premiada pela Anpocs e definida pelo autor como “uma tradução do vivido”. Trata-se de um painel denso e pulsante da história recente da cidade de São Paulo, construído com base em longa imersão pessoal na realidade de Sapopemba. Sendo uma tradução, deve ser entendido não como retrato, mas como fabricação que pode ser expandida e/ou alterada indefinidamente. Feltran convida o leitor a um diálogo crítico com seu livro, que se quer humano, incompleto, polêmico – mas não ficcional, pois o material empírico a sustentar o argumento é enorme.
O autor introduz a dimensão temporal em seu quadro de referência a partir de longo contato com os jovens de Sapopemba, cujas práticas lhe impuseram uma reflexão sobre a relação entre mudanças socioculturais e diferenças geracionais nas ideias sociopolíticas. Disso resulta que o presente da etnografia se forma com profundidade histórica, o que faz da pesquisa uma reconstrução da saga dos moradores de Sapopemba.
A base do argumento é que as periferias urbanas são lugares (produtos de vivências e não simplesmente espaços sem densidade social própria) marcados pela ausência de linearidade na relação entre o funcionamento do sistema jurídico-institucional e os processos de legitimação da dominação. Daí o título do livro, Fronteiras, porque a autoridade constituída precisa afirmar-se permanentemente diante de outras formas de poder que também buscam legitimar-se; o resultado é a tensão expressa no título, em que a organização estatal da vida pública se constrói junto com processos que a questionam todo o tempo. Produzem-se mutuamente as regras do mundo do crime, sua gestão jurídico-institucional com os respectivos desvios, os movimentos sociais locais e supralocais.
Mas o leitor não precisa se preocupar: o espaço disponível obriga a uma apresentação seca e pobre da argumentação. No livro, ao contrário, ela se desenvolve por meio de saborosas descrições da vivência pelos moradores de Sapopemba (especialmente os jovens) e das vicissitudes da atuação de organizações não estatais da região. O leitor terá em mãos um trabalho que merece plenamente o prêmio que recebeu.



Luiz Antonio Machado da Silva
Professor do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da UERJ (lmachado@iep.uerj.br)
Le Monde Diplomatique Brasil

Trabalho e dialética: Hegel, Marx e a teoria social do devir


Jesus Ranieri, Ed. Boitempo



Os impasses contemporâneos têm gerado um novo interesse pelo pensamento daquele a quem Goethe chamou, no sentido da grandeza, de “o primeiro filósofo da Alemanha” – isto é, Hegel. Em Trabalho e dialética, Jesus Ranieri recoloca à altura a centralidade de Hegel para uma compreensão rica da obra de Marx e para uma teoria social articuladora de uma práxis da emancipação humana.
No embate filosófico de fundo, antikantiano e crítico das teorias epistemológicas e políticas abstratas e moralistas do dever ser, o livro cumpre papel precioso, frisando o modo dialético de pensar comum a Hegel e a Marx no que tange à apreensão imanente do real como processo do devir, ou vir a ser, o que fez Hegel chamar a ciência de sistema e declarar que o absoluto não é a noite em que todos os gatos são pardos, mas também não é o pássaro que se pega na visgueira, pois o absoluto, ou o verdadeiro como processo, está sempre junto.
À luz dessa diretriz, que firma o subtítulo “Hegel, Marx e a teoria social do devir”, sob a influência de Lukács e tecido em linguagem densa, rigorosa e complexa, o livro aprofunda a categoria trabalho – especialmente em Hegel, mas também em Marx – sob a análise do lugar operativo da alienação/exteriorização (Entäusserung) e do estranhamento (Entfremdung) na constituição do ser social, terminologias que Ranieri vem fundamentando desde seu livro A câmara escura (Boitempo, 2001), passando por sua tradução dos Manuscritos econômico-filosóficos (Boitempo, 2004), de Marx.
Após isso, Ranieri discute como a metodologia dialética hegeliana – que o livro apresenta como precursora do materialismo marxiano – foi assimilada por Marx na constituição de seu sistema teórico enquanto crítica da economia política, especialmente nos Grundrisse, que também acabam de ser lançados pela Boitempo Editorial.
Trabalho e dialética, por seu propósito e grandeza, passa a ser referência e exemplo, especialmente para os que estranham ou rechaçam Hegel sem ter-se dado ao “trabalho do espírito” de estudá-lo. E isso ainda que a relação Hegel-Marx tenda a ser sempre aquela, bem tipificada por Kostas Papaioannou como “l’interminable débat”.



Paulo Denisar Fraga
Filosófo e professor do Instituto de Ciências Humanas e Letras da Universidade Federal de Alfenas ( Unifal-MG)
Le Monde Diplomatique Brasil

Cansaço, a longa estação


Luiz Bernardo Pericás, Ed. Boitempo



É com estrangeirismos, regionalismos, termos populares e até mesmo algumas palavras “de época” que Luiz Bernardo Pericás conta a história de Punaré, Baraúna e Cicica, personagens centrais de Cansaço, a longa estação, seu mais recente romance, lançado em março.
Para compor os personagens, que vivem em terras longínquas, na virada do século XIX para o XX, o autor desenvolveu ampla pesquisa e realizou diversas viagens pelo agreste e sertão do Nordeste brasileiro. O título é uma síntese muito apropriada, que enfatiza um sentimento comum a todos eles, cansados do calor, da seca, da solidão, da opressão e de todas as adversidades da vida, onde só há lugar para os fortes e destemidos.
Os leitores mais atentos observarão nomes próprios que se referem a destacadas figuras do Brasil Imperial e do início da República ao lado de outros cuja inspiração veio de seres mitológicos. O rústico, o popular e o universal, o real e a ficção são alguns dos elementos que compõem o cenário. Além dessa mistura, a obra surpreende ao relatar os fatos sob dois pontos de vista completamente diferentes, antagônicos. Na primeira parte é Punaré quem dá sua versão dos fatos. Na sequência, Baraúna simplesmente desconstrói todas as verdades e crenças do rival. E, assim, o leitor, ao longo da narrativa, vai deixando de ser apenas um agente passivo para assumir, invariavelmente, a posição de um juiz ansioso para dar seu veredicto diante da escolha de uma jovem em disputa.
A edição, muito bem cuidada, apresenta gravuras do artista plástico Fabricio Lopes, texto de abertura assinado por Antônio Abujamra e um útil glossário ao final, que enriquece a leitura e abre novas possibilidades de interpretação desse texto multifacetado e repleto de camadas e discursos, ao mesmo tempo sobrepostos e paralelos, a cada linha provocando o leitor a penetrar no mundo sutil e imaginário de Cansaço, a longa estação, um livro imperdível.



Graziela Forte
Doutoranda em sociologia pela Unicamp
Le Monde Diplomatique Brasil

Dominação e resistência no contexto trabalho e saúde


Mario Cesar Ferreira, José Newton Garcia de Araújo,Cleverson Pereira de Almeida e Ana Magnólia Mendes (orgs.), Ed. Universidade Presbiteriana Mackenzie


O (im)pacto da globalização (neo)liberal e seu mer(e)cado, o Estado mínimo, a (re)estruturação do trabalho nos últimos vinte anos, a mercan(u)tilização da vida, o capital e suas f(n)ormas de exploração da subjetividade maqui(n)am e por isso escondem muito bem um tema que urge ser mais socializado e difundido para a grande massa: a saúde do trabalhador. A crise no mundo do trabalho parece nos deixar mais atentos à necessidade de olhar para o objeto trabalho e nos desvia de um olhar mais do que necessário, o trabalhador. O livro é resultado da iniciativa de um grupo de pesquisadores do campo da saúde do trabalhador. Distinto das práticas assistencialistas e funcionalistas do campo capazes de nos distrair do assunto, o grupo de autores nos traduz a possibilidade de recaminhos a partir de perspectivas que priorizem o sujeito político e psíquico do trabalhador. Ao trazerem os conceitos de dominação e resistência, nos atualizam no diálogo que nos querem proporcionar: pensar a saúde do trabalhador com base nas abordagens da ergonomia, da atividade e sociologia da clínica e da psicodinâmica do trabalho. No primeiro capítulo, uma perspectiva mais conceitual nos ajuda a compreender as abordagens citadas, o mundo do trabalho e a condição do trabalhador em seus processos de saúde e doença. O segundo apresenta estudos empíricos que mostram situações, dificuldades e possibilidades numa realidade da qual vivemos e que nos é difícil de ver, traduzir e reconhecer. O último amplia a temática, revelando outros olhares sobre o tema, em diálogo com o consumo, a criação estética e artística, a dominação e a resistência. A possibilidade de encontrar caminhos que se conhecem a partir dos autores, no contexto trabalho-saúde, após a compreensão dos fenômenos de dominação e resistência, nos provoca aquilo que lhes era de desejo: nos sentimos mobilizados por ações de resistência às diversas faces da dominação no trabalho.


Patrícia Dorneles
Terapeuta ocupacional, mestre em Educação pela UFSC e doutora em Geografia pela UFGRS. Docente do curso de Terapia Ocupacional da Faculdade de Medicina da UFRJ
Le Monde Diplomatique Brasil

O socialismo jurídico



Friedrich Engels e Karl Kautsky, Ed. Boitempo
A obra O socialismo jurídico se volta contra os rumos da esquerda do século XIX. Aponta, no entanto, para práticas que fariam história nos séculos XX e XXI. Antevê, pois, a tragédia do reformismo e remete à necessidade de uma esquerda efetivamente anticapitalista.
Para Engels e Kautsky, é impossível se contrapor realmente ao domínio burguês caso se deixe “de modo mais ou menos intacto o cerne do problema, a transformação do modo de produção” (p.20). A centralidade da busca progressiva de conquistas jurídicas seria ilusória. O Direito pressupõe a relação-capital: sob as vestes da igualdade e da liberdade jurídicas está a relação contratual pela qual “livremente” é vendida a força de trabalho em condições de “igualdade” perante a classe detentora dos meios de produção.
A defesa de um “socialismo jurídico” seria, em verdade, a defesa do modo como a exploração da classe trabalhadora toma forma na sociedade capitalista.
Têm-se, assim, “socialistas” que perpetuam a exploração capitalista, ao passo que “a classe trabalhadora [...] não pode exprimir plenamente a própria condição de vida na ilusão jurídica da burguesia” (p.21). Com a centralidade no Direito, a transformação do modo de produção fica de lado, e qualquer “esquerda” está à direita, voltando-se, mesmo sem saber, contra os trabalhadores, e apoiando pressupostos do capitalismo.
Portanto, a mensagem que nos passa o texto de Engels e Kautsky é de atualidade marcante. Um “socialismo jurídico” é um não socialismo, é a perpetuação da relação-capital, mesmo que isso verbal e “juridicamente” possa se dar em nome dos trabalhadores. Na perspectiva socialista, é preciso afirmar, teórica e praticamente, a prioridade do conteúdo social concreto em relação à forma jurídica, das práticas classistas em relação à institucionalidade do Estado.



Vitor Bartoletti Sartori
Mestre em História pela PUC-SP, doutorando em Filosofia do Direito pela USP e autor da obra Lukács e a crítica ontológica ao Direito.
Le Monde Diplomatique Brasil

Interpretação do Direito e Movimentos Sociais



Celso Fernandes Campilongo, Ed. Elsevier


Ao contrário do que o título pode levar a crer – e o que enseja a leitura obrigatória a todos os estudiosos das ciências sociais –, a obra afasta-se da corrente produção dogmático-jurídica e de uma análise de hermenêutica jurídica. O que se pretende é explorar a conexão entre o tratamento sociológico dos movimentos sociais e o tema da interpretação jurídica da perspectiva da teoria dos sistemas de Niklas Luhmann, base teórica utilizada no trabalho.
A fim de delimitar a noção de movimentos sociais na vasta literatura sociológica, o autor realiza um mapeamento temático, agrupando os estudos em quatro principais correntes (teoria da ação coletiva; da mobilização de recursos; estudos sobre os novos movimentos sociais; e novas orientações). Contudo, o diagnóstico principal sobre o qual recai toda a originalidade da obra é que poucas dessas teorias examinam os movimentos sociais à luz das relações que possam ter com o sistema jurídico.
Segundo o autor, a literatura sociológica vê esse sistema como obstáculo ou não o vê como área privilegiada da mobilização social. Por outro lado, a literatura de cunho jurídico sobre os movimentos sociais tende a destacar temas como o acesso ao Judiciário, o papel político do juiz etc. Romper com esse “paradigma” foi o desafio bem-sucedido de sua tese, ao demonstrar que os movimentos sociais se instalam no sistema jurídico como reação à sociedade diferenciada funcionalmente, e o sistema jurídico pode reagir aos conflitos dos quais os movimentos sociais são portadores, reordenando suas expectativas em relação ao direito.
A obra vale-se do fértil cenário proporcionado pelo início da segunda década do século XXI, marcado por intensos protestos, para fincar em terreno sólido sua contribuição. Formulada como tese para o concurso de titularidade em Filosofia e Teoria Geral do Direito na USP, o resultado não haveria de ser outro: sua aprovação, com louvor, e a apresentação de um frutífero campo para estudos interdisciplinares.



Priscilla Soares de Oliveira
Bacharel em Direito pela PUC-SP e graduanda em Ciências Sociais na USP. Assistente da disciplina Ciência Política e Teoria Geral do Estado na Faculdade de Direito da PUC-SP.
Le Monde Diplomatique Brasil

domingo, 15 de julho de 2012

Mutações: a invenção das crenças



Diz a piada que, na Irlanda do Norte, um homem, ao cruzar a fronteira que divide protestantes e católicos, é parado por um fiel que lhe aponta uma arma. “Protestante ou católico?”, pergunta indeciso. “Ateu”, responde o homem. “Mas... ateu protestante ou ateu católico?”, insiste o fiel achando a resposta insuficiente.
A anedota, que foge ao senso comum – por lembrar que também o “a-teu”, ao crer que não crê em um deus, torna-se apenas mais um crente –, serve bem para ilustrar o que aguarda o leitor desta compilação de 22 palestras apresentadas no Sesc Vila Mariana em 2010, organizada por Adauto Novaes.
De maneira análoga, o livro desconstroi afirmações que aparentemente fazem sentido, como a de que a ciência é desprovida de crença – já que, por A+B, “crer em enunciados consagrados por instâncias religiosas seria uma coisa; aceitar enunciados aprovados por uma comunidade científica seria outra”. Ou nos é tarefa fácil aceitar, sem crer na palavra dos cientistas, que cada um de nós “possui em torno de três átomos que já pertenceram a qualquer outro ser humano que já viveu”?
Da mesma forma, acredite-se ou não, engana-se quem pensa que o livro se restringe a temáticas religiosas ou científicas. Há a análise de crenças para todos os credos. Das que permeiam a economia, a história e a psicanálise àquelas que motivam “céticos acadêmicos”, seguidores do “socialismo científico” e militantes de esquerda.
Em 530 páginas – que devem ser sorvidas em pequenos goles –, além dos “clássicos” Nietzsche, Agostinho e Habermas, entre tantos outros, são mobilizados ainda improváveis “pensadores”, como Jorge Luis Borges, Dostoiévski, Savonarola, Bin Laden, Machado de Assis e Antonio Candido.
Em tempos de Facebook, em que posições há muito impublicáveis ressurgem nos feeds de notícias, sob a roupagem do “respeite, essa é a minha opinião”, um dos textos serve como um bom manual de contra-ataque a tais reações “alérgicas” cheias de razão. O diagnóstico do autor de que um processo “digestivo” vem sendo preterido com o advento da internet serve de motivação para a absorção lenta desse peculiar livro.



Marcelo Netto Rodrigues
Jornalista e mestrando em Sociologia pela USP
Le Monde Diplomatique Brasil

terça-feira, 3 de julho de 2012

Geografia: Pequena Historia Critica




Universidade Federal do Acre
Centro de Filosofia e Ciências Humanas
Curso de Geografia Bacharelado
Resenha do Livro Geografia: Pequena Historia Critica
Rio Branco, Acre.
2010
MORAES, Ant. Carlos Robert. Geografia: Pequena Historia Critica. São Paulo: Hucitec, 1994.
Antonio Carlos Robert Moraes é um geógrafobrasileiro que publicou vários livros na área da geografia histórica e política. Moraes possui doutorado em Geografia Humana pela Universidade de São Paulo.Atualmente é professor titular daUniversidade de São Paulo. Bacharel em geografia (1977) e ciências sociais (1979) pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (USP), onde realizou mestrado (1983), doutorado (1991) e livre-docência (2000). É professor titular do Departamento de Geografia da USP, sendo coordenador do Laboratório de Geografia Política. Foi professor do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas (1978-1982) e ministrou cursos em várias universidades do país e do exterior, entre elas a Universidade de Buenos Aires (Argentina), a Unam (México), Universidade Nacional (Colômbia), Universidade de Cadiz (Espanha). Estagiou no Centro Nacional de Investigação Científica de Portugal (1986) e participou de vários convênios bilaterais (o último com o Credal e o Iheal na França). Desde 1996 preside a banca de geografia do concurso de ingresso na carreira de diplomata do Instituto Rio Branco do Ministério das Relações Exteriores. Possui a Ordem do Rio Branco. Elaborou para o governo brasileiro a metodologia de vários programas de política ambiental e de ordenamento territorial, notadamente interessando as áreas costeiras (entre outros o Gerco, o Projeto Orla Marítima e a Agenda Ambiental Portuária). Foi consultor do Programa de Gestão da Zona Costeira de Moçambique. Participou da elaboração do Programa Global de Ação para o Controle de Poluição Marinha do CDS-ONU.
Em seu livro o autor faz uma retrospectiva geográfica. Desde suas origens, passando por sua sistematização, principais correntes do pensamento geográfico – cada uma com sua própria definição de objeto, método, princípios, os contextos históricos de formação do pensamento entre outros. De acordo com o autor este livro foi concebido com o intuito de tentar contribuir com esclarecimentos referentes à criação, historia e principais correntes dessa ciência. Ele divide a geografia em duas grandes variedades, vamos dizer assim. A Tradicional e a Moderna.
  1. O objeto da Geografia
Alguns autores definem a Geografia como o estudo da superfície terrestre. Esta concepção é a mais usual, e ao mesmo tempo a de maior vaguidade. Pois a superfície da Terra é a teatro privilegiado (por muito tempo o único) de toda reflexão científica, o que desautoriza a colocação de seu estudo como especificidade de uma só disciplina. Esta definição do objeto apóia-se no próprio significado etimológico do termo Geografia – descrição da Terra. Assim, caberia ao estudo geográfico descrever todos os fenômenos manifestados na superfície do planeta, sendo uma espécie de síntese de todas as ciências. Desta forma a tradição kantiana coloca a Geografia como uma ciência sintética (que trabalha com dados de todas as demais ciências), descritiva (que enumera os fenômenos abarcados) e que visa abranger uma visão de conjunto do planeta.
A definição da Geografia, como estudo da diferenciação de áreas, é uma outra proposta existente. Tal perspectiva traz uma visão comparativa para o universo da analise geográfica. Existem ainda autores que buscam definir a Geografia como estudo do espaço. Para estes, o espaço seria passível de uma abordagem especifica, a qual qualificaria a análise geográfica. Tal concepção, na verdade minoritária e pouco desenvolvida pelos geógrafos, é bastante vaga e encerra aspectos problemáticos. Nesta concepção, o espaço, além de ser destituído de sua existência empírica, seria um dado de toda forma de conhecimento, não podendo qualificar a especificidade da Geografia. Finalmente, alguns autores definem a Geografia como o estudo das relações entre o homem e o meio, ou, posto de outra forma, entre a sociedade e a natureza. Assim, a especificidade estaria no fato de buscar essa disciplina explicar o relacionamento entre os dois domínios da realidade. Seria, por excelência, uma disciplina de contato entre as ciências naturais e as humanas, ou sociais. Aparecem três visões distintas do objeto: alguns autores vão apreendê-lo como as influências da natureza sobre o desenvolvimento da humanidade. “Caberia à Geografia explicar as formas e os mecanismos pelos quais esta ação se manifesta. Desta forma, o homem é posto como um elemento passivo, cuja história é determinada pelas condições naturais, que o envolvem. O peso da explicação residiria totalmente no domínio da natureza. Os fenômenos humanos seriam sempre efeitos de causas naturais; isto seria uma imposição da própria definição do objeto, identificado com aquelas influências.
Outros autores, mantendo a idéia da Geografia, como o estudo da relação entre o homem e a natureza, vão definir-lhe o objeto como a ação do homem na transformação deste meio. Assim caberia estudar como o homem se apropria dos recursos oferecidos pela natureza e os transforma, como resultado de sua ação.
Este breve painel das definições da geografia, que não pretendeu ser de modo nenhum exaustivo, já justifica a afirmação inicial, quanto às dificuldades contidas na proposta deste volume. Também se deve levar em conta que o painel abarcou somente as perspectivas da Geografia Tradicional.
Nesse primeiro passo vive-se na Geografia Tradicional, a geografia que tem seu objeto de estudo ainda indefinido, momento esse que a Geografia ainda não um grau de epistemologia seguro. Que só será alcançado na modernidade. Enquanto isso esta geografia se sustentar em conceitos naturais, e é uma ciência descritiva, de observação dos elementos naturais, calcada nos pressupostos de seus precursores Humboldt e Ritter.
Em outras palavras a Geografia nesse primeiro momento tinha o seu objeto definido em três visões distintas, e todas as indagações sobre estes objetos e sua explicação viria principalmente da abordagem do campo natural, o que dará precedente ao desenvolvimento metodológico seguinte, dessa forma de pensamento geográfico, mais conhecida como positivismo Geográfico. Que vai ser trabalhado dentro da perspectiva tradicional da Geografia.
  1. O Positivismo como fundamento da Geografia Tradicional
É nesta concepção filosófica e metodológica que os geógrafos vão buscar suas orientações gerais (as que não dizem respeito especificamente a Geografia). Os postulados do positivismo (aqui entendido como o conjunto das correntes não-dialeticas) vão ser o patamar sobre o qual se ergue o pensamento geográfico tradicional, dando-lhe unidade.
Outra manifestação da filiação positivista, também traduzida numa máxima geográfica, é a idéia da existência de um único método de interpretação comum a todas as ciências, isto é, a não-aceitaçao da diferença de qualidade entre o domínio das ciências humanas e o das ciências naturais. Tal método seria originário dos estudos da natureza, as ciências mais desenvolvidas, pelas quais outras se deveriam orientar. Esta concepção, que incide na mais grave naturalização dos fenômenos humanos, se expressa na onipresente afirmação: “A Geografia é uma ciência de contato entre o domínio da natureza e o da humanidade”. Postura esta que serviu para tentar encobrir o profundo naturalismo, que perpassa todo o pensamento geográfico tradicional. Na verdade, a Geografia sempre procurou ser uma ciência natural dos fenômenos humanos. Tal perspectiva naturalizante aparece com clareza no fato de buscar esta disciplina a compreensão do relacionamento entre o homem e a natureza, sem se preocupar com a relação entre os homens. Assim a unidade do pensamento geográfico tradicional adviria do fundamento comum tomado ao positivismo, manifesto numa postura geral, profundamente empirista e naturalista.
Esta perspectiva positivista talvez seja a mais influente do pensamento geográfico tradicional,essa perspectiva naturalização se mostra com nitidez no fato da Geografia buscar a compreensão da relação entre o homem e a natureza, sem se preocupar com as relações sociais. Desta maneira, a abordagem humana, representado nas relações sociais, fica fora do seu âmbito de estudos. Colocando o homem apenas como um elemento da paisagem.
O positivismo significava uma Geografia que deveria acumular conhecimentos empíricos e descritivos. Desta forma a Geografia passou a descrever lugares, fazendo levante de informações e a localizando fenômenos, descrevendo os traços naturais e sociais da superfície terrestre numa abordagem individualizadora dos lugares que pudesse instrumentalizar a expansão do capital monopolista do período
  1. Origens e pressupostos da Geografia
O rotulo Geografia é bastante antigo, sua origem remonta á antiguidade clássica, especificamente ao pensamento grego. Entretanto, o conteúdo referido era por demais variado. Ficando apenas ao nível do pensamento grego, ai já se delineiam algumas perspectivas distintas de Geografia: uma, com Tales e Anaximandro, privilegia a medição do espaço e a discussão da forma da Terra, englobando um conteúdo hoje definido como da Geodésia. Desta forma, pode-se dizer que o conhecimento geográfico se encontrava disperso. Assim, ate o final do século XVIII, não e possível falar de conhecimento geográfico, como algo padronizado, com um mínimo que seja de unidade temática, e de continuidade nas formulações. Designam-se como Geografia: relatos de viagem, escritos em tom literário; compêndios de curiosidades, sobre lugares exóticos; áridos relatórios estatísticos de órgãos de administração.
A sistematização do conhecimento geográfico so vai ocorrer no inicio do século XIX. E nem poderia ser outro modo, pois pensar a Geografia como um conhecimento autônomo, particular, demandava um certo número de condições históricas, que somente nesta época estarão suficientemente maturadas.
O primeiro destes pressupostos dizia respeito ao conhecimento efetivo da extensão real do planeta. Isto é, era necessário que a Terra toda fosse conhecida para que fosse pensado de forma unitária o seu estudo.
Outro pressuposto da sistematização da Geografia era a existência de um repositório de informações, sobre variados lugares da Terra. Isto é, que os dados referentes aos pontos mais diversificados da superfície já estivessem levantados (com uma margem de confiança razoável) e agrupados em alguns grandes arquivos. Tal condição incidia na formação de uma base empírica para a comparação em Geografia.
Outro pressuposto para o aparecimento de uma Geografia unitária residia no aprimoramento das técnicas cartográficas, o instrumento por excelência do geógrafo. Era necessário haver possibilidade de representação dos fenômenos observados, e da localização dos territórios.
Finalmente, o temário geográfico vai obter o pleno reconhecimento de sua autoridade, com o aparecimento das teorias do evolucionismo. Dada a difusão das teorias evolucionistas, no meio acadêmico da época, a Geografia nela teve uma base cientifica solida para suas indagações.
Como foi discutido pelo autor, vimos que o conhecimento geográfico é tão antigo quanto às demais ciências existente no mundo, é construído desde a Grécia antiga. A lembrarmos aqui de um grande pensador Aristóteles, que aparece em vários momentos na discussão de temas, hoje tidos como da Geografia, sem que houvesse a mínima conexão entre eles; caso, que discute a concepção de lugar, na sua Física, sem articulá-la com a discussão da relação homem- natureza.
A sistematização do conhecimento da Geografia, como uma ciência particular e autônoma, ocorreu, sobretudo nas transformações operadas na vida social, pela emergência do modo de produção capitalista, vai ocorrer na Alemanha em séculos posteriores, e se sustentara nas bases do evolucionismo para produção do conhecimento.
  1. A sistematização da Geografia de Humboldt e Ritter
A falta da constituição de um Estado nacional, a extrema diversidade entre os vários membros da confederação, a ausência de relações duráveis entre eles, a inexistência de um centro organizador do espaço, ou de um ponto de convergência das relações econômicas, - todos estes aspectos conferem a discussão geográfica uma relevância especial, para as classes dominantes da Alemanha, no inicio do século XIX. Temas como domínio e organização do espaço, apropriação do território, variação regional, entre outros, estarão na ordem do dia na pratica da sociedade alemã de então.
As primeiras colocações, no sentido de uma Geografia sistematizada, vão ser obra de dois autores prussianos ligados a aristocracia: Alexandre Von Humboldt, conselheiro do rei da Prússia, e Karl Ritter, tutor de uma família de banqueiros. Humboldt possuía uma formação de naturalista e realizou inúmeras viagens. Sua proposta de Geografia aparece na justificativa e explicitação de seus próprios procedimentos de analise. Humboldt entendia a Geografia como a parte terrestre da ciência do cosmos, isto é, como uma espécie de síntese de todos os conhecimentos relativos a terra. Em termos de método, Humboldt propõe o empirismo raciocinado, isto é, a intuição a partir da observação.
A obra de Ritter já e explicitamente metodológica. A formação de Ritter também e radicalmente distinta da de Humboldt, enquanto aquele era geólogo e botânico, este possui formação em Filosofia e Historia. Ritter define o conceito de “sistema natural”, isto é, uma área delimitada dotada de uma individualidade. A Geografia deveria estudar estes arranjos individuais, e compará-los. Assim, a Geografia de Ritter é, principalmente, um estudo dos lugares, uma busca da individualidade destes.
O que podemos ver nesse postulado é uma diferença bem clara de abordagens de pensamentos mesmo se tratando de autores clássicos do pensamento Geográfico Tradicional, Ritter produziu uma Geografia mais Regional e antropocêntrica, enquanto Humbold desenvolve o trabalho em busca de abarcar o Globo, sem privilegiar o homem, mesmo meio que sendo produções diferentes é esse conhecimento que vai formar uma base solida para uma Geografia Futura.
Fica bem claro que as maiores contribuições para a sistematização do pensamento geográfico saíram da Alemanha, isso não quer dizer não ter havido produção de conhecimentos em outros lugares, mas porque é justamente na antiga Prússia que vai haver o maior número de cientistas que abordaram essa linha de conhecimento, e ainda os precursores da Geografia Ritter e Humboldt.
  1. Ratzel e a Antropogeografia
Um revigoramento do processo de sistematização da Geografia vai ocorrer com as formulações de Friedrich Ratzel. A Geografia de Ratzel foi um instrumento poderoso de legitimação dos desígnios expansionistas do Estado alemão recém constituído. A unificação tardia da Alemanha, que não impediu um relativo desenvolvimento interno, deixou-a de fora da partilha dos territórios coloniais. Isto aumentaria com próprio desenvolvimento interno. Daí, o agressivo projeto imperial o propósito constante de anexar novos territórios. Assim, a Geografia de Ratzel expressa diretamente um elogio do imperialismo, como ao dizer, por exemplo: “Semelhante à luta pela vida, cuja finalidade básica é obter espaço, as lutas dos povos são quase sempre pelo mesmo objetivo.
O principal livro de Ratzel, publicado em 1882, denomina-se Antropogeografia – fundamentos da aplicação da Geografia à Historia. Nela , Ratzell definiu o objeto geográfico como o estudo da influencia que as condições naturais exercem sobre a humanidade. Estas influencias atuariam, primeiro na fisiologia e na psicologia dos indivíduos, e, através deste, na sociedade. Em segundo lugar, a natureza influenciaria a própria constituição social, pela riqueza que propicia, através dos recursos do meio em que esta localizada a sociedade. A natureza também atuaria na possibilidade de expansão de um povo, obstaculizando-a ou acelerando-a. Para ele a sociedade é um organismo que mantém relações duráveis com o solo, manifestas, por exemplo, nas necessidades de moradia e alimentação. O homem precisaria utilizar os recursos da natureza, para conquistar sua liberdade, que, em suas palavras “é um dom conquistado as duras penas”. Justificando essas colocações Ratzel elabora o conceito de “espaço vital”.
Vi aqui que a Geografia desenvolvida por Ratzel privilegiou o componente humano e abriu várias frentes de estudo, valorizou questões relacionadas à História e ao espaço, como: a formação dos territórios, a difusão dos homens no Globo (migrações, colonizações, etc.), a distribuição dos povos e das raças na superfície terrestre, o isolamento e suas conseqüências e etc. Objetivo central seria o estudo das influências, que as condições naturais exercem sobre a evolução das sociedades, o chamado determinismo geográfico, que ira ser criticado por Vidal de La Blache em um contexto de Estado Nacional diferente ao de Ratzel.
Ratzel manteve o caráter empírico da Geografia tradicional, e desenvolveu outra linha de pensamento a Geopolítica, esta como uma forma de calcificar a evolução do Estado Alemão. A partir da unificação do Estado Alemão criou a teoria do “espaço vital”, como forma de justificar a expansão do Estado Alemão.
  1. Vidal de La Blache e a Geografia Humana
Para compreender o processo de eclosão do pensamento geográfico na França, é necessário enfocar as feições gerais do desenvolvimento histórico Frances do século XIX. A França foi o pais que realizou, de forma mais pura, uma revolução burguesa. Ali os resquícios feudais foram totalmente varridos, a burguesia instalou seu governo, dando ao Estado a feição que mais atendia a seu interesses.
A revolução francesa foi um movimento popular, comandado pela burguesia, dirigido pelos ideólogos dessa classe. Nesse processo, o pensamento burguês gerou propostas progressistas, instituindo uma tradição liberal no país. Na segunda metade do século XIX, a França e a Alemanha, no caso ainda a Prússia, disputam a hegemonia, no controle continental da Europa. Havia entre estes dois países, um choque de interesses nacionais, uma disputa entre imperialismos. Tal situação culminou na guerra franco-prussiana. A guerra havia colocado, para classe dominante francesa, a necessidade de pensar o espaço, de fazer uma Geografia que deslegitimasse a reflexão geográfica alemã e, ao mesmo tempo, fornecesse fundamentos para o expansionismo Frances.
Uma primeira critica de principio, efetuada por Vidal as formulações de Ratzel, dizia respeito à politização explicita do discurso deste. Isto é, incidia no fato de as teses ratzelianas tratarem abertamente de questões políticas. Vidal condenou a vinculação entre pensamento geográfico e a defesa de interesses políticos imediatos, brandindo o clássico argumento liberal de “necessária neutralidade do discurso cientifico”. Na verdade, Vidal imprimiu, no pensamento geográfico, o mito da ciência asséptica, propondo uma despolitização aparente do temário dessa disciplina. Este posicionamento de acobertar o conteúdo político da ciência, originou-se do recuo do pensamento burguês (após a sedimentação dessa classe no poder) temerosa do potencial revolucionário do avanço das ciências do homem.
Outra critica de principio as formulações de Ratzel incidiu no seu caráter naturalista. Isto é, Vidal criticou a minimização do elemento humano, que aparecia como passivo nas teorias de Ratzel. Uma terceira critica de Vidal a Antropogeografia, derivada da anterior, atacou a concepção fatalista e mecanicista da relação entre os homens e a natureza. Assim atingiu diretamente a idéia de determinação da Historia pelas condições naturais. Vidal vai propor uma postura relativista, no trato dessa questão, dizendo que tudo o que se refere ao homem “é mediado pela contingência”.
Vidal de La Blache definiu o objeto da Geografia como a relação homem-natureza, na perspectiva da paisagem. Colocou o homem como um ser ativo, que sofre influencia do meio, porém que atua sobre este, transformando-o. Observou que as necessidades humanas são condicionadas pela natureza, e que o homem busca as soluções para satisfazê-las nos materiais e nas condições oferecidas pelo meio.
E bem claro aqui que ate o momento em que é declarada a guerra entre França e Prússia, a Geografia Francesa tinha limites e não era o centro das discussões geográficas da época, e por fim não tinha conhecimento que pudesse legitimar a expansão francesa, como havia feito Ratzel na Alemanha. O pensamento geográfico Frances nasceu com a tarefa de combate a Geografia de Ratzel.
E, sobretudo como forma de justificação da burguesia francesa, Vidal e Ratzel justificariam a evolução e expansão de seus países com visões semelhantes, mas porem um tentando encobrir o outro, ou seja, criaram linhas de pensamento que marcam a produção conhecimento geográfico tradicional Ratzel o Determinismo, Vidal de La Blache o Possibilismo. Vidal produz uma Geografia humana com o Possibilismo, onde a natureza existe, mas não determina, apenas dá possibilidades ao homem, ela existe serve, possibilita e sofre a ação do homem.
  1. Os desdobramentos da proposta lablachiana
La Blache criou uma doutrina, o Possibilismo, e fundou a escola francesa de Geografia. E, mais trouxe para a França o eixo da discussão geográfica, situação que se manteve durante todo o primeiro quartel do século atual (XX). Com Vidal, e de forma progressiva a partir dele, o conceito de região foi humanizado; cada vez mais, buscava-se sua individualidade nos dados humanos, logo, na historia.
A idéia de região propiciou o que viria a ser a majoritária e mais usual perspectiva de analise do pensamento geográfico: a Geografia Regional. Esta perspectiva se difundiu bastante, enfocando regiões de todos os quadrantes da Terra. Ate hoje, estes estudos são regularmente realizados. Por isso, pode-se dizer que a Geografia Regional foi o principal desdobramento da proposta vidalina.
O acumulo de estudos regionais propiciou o aparecimento de especializações, que tentaram fazer a síntese de certos elementos por eles levantados. Assim, o levantamento de regiões predominantemente agrárias ensejou o desenvolvimento de uma Geografia Agrária, tentando sintetizar as informações e as características sobre a estrutura fundiária, as técnicas de cultivo, as relações de trabalho etc. O estudo das redes de cidade, das hierarquias e das funções citadinas, levou a constituição de uma Geografia Urbana. E assim por diante, com uma Geografia das Indústrias, da População, ou do Comercio. Desta forma, as sínteses empreendidas por comparação das regiões foram especializadas. Vê-se que os desdobramentos da proposta vidalina foram múltiplos. Porém, ao nível da Geografia Francesa, o autor que realmente avançou suas formulações, gerando uma proposta mais elaborada foi Max Sorre.
O conceito central desenvolvido por Sorre foi o de habitat, uma porção do planeta vivenciada por uma comunidade que a organiza. O habitat é assim uma construção humana, uma humanização do meio, que expressa às múltiplas relações entre o homem e o ambiente que o envolve.
A Geografia de Sorre poder ser entendida como um estudo da Ecologia do homem. Isto é, da relação dos agrupamentos com o meio em que estão inseridos, processo no qual o homem transforma este meio.
Os desdobramentos da geografia vidalina, que importou o conceito de região de Gallois que o já havia trazido da Geologia se expandiram por vários elementos de estudos, com abordagem desse novo conceito, Vidal humaniza a região, e que dessa forma de analise regional, muitos conhecimentos desenvolvidos. Foi a partir dele que se desenvolveu a Geografia Regional, precipuamente a analise regional é o mais usual na Geografia.
Muitas especializações foram criadas a partir da abordagem regional, dentre ela a Geografia Urbana, Industrial, Comercio etc. As proposições de La Blache chegaram ate os historiadores, Lucien Febvre e outros.
  1. Alem do Determinismo e do Possibilismo: a proposta de Hartshorne
Outra corrente do pensamento geográfico, que se poderia denominar com certa impropriedade Geografia Racionalista, vinculou-se ao nome de A. Hettner e R. Hartshorne. O fato de se denominar racionalista esta corrente advém de sua menor carga empirista, em relação às anteriores. Esta perspectiva, a terceira grande orientação dentro da Geografia Tradicional, privilegiou um pouco mais o raciocínio dedutivo, antecipando um dos moveis da renovação geográfica nos anos sessenta.
Hettner vai propor a Geografia como ciência que estuda “a diferenciação de áreas”, isto é, a que visa explicar “por quê” e “em que” diferem as porções da superfície terrestre; diferença esta que, para ele, é apreendida ao nível do próprio senso comum. De todo modo as teses hettenerianas foram pouco divulgadas. Somente através de Hartshorne, um renomado geógrafo americano, que a proposta de Hettner passou a ser amplamente discutida.
Em termos de uma Geografia Geral, os americanos acompanhavam o pensamento europeu: E. Semple havia introduzido as teses de Ratzel e do Determinismo; I. Brown, as de Brunhes e, com elas, o Possibilismo. Hartshorne introduzira o pensamento de Hettner, porém, ao contrario dos anteriores, desenvolvendo-o e aprimorando-o.
Foi somente a partir dos anos trinta que a Geografia americana se desenvolveu, desenvolveram-se duas escolas de Geografia. Uma, na Califórnia, aproximando-se da Antropologia, seu mais destacado formulado foi Carl Sauer. A outra escola, batizada de Meio-Oeste, propondo estudos como o da organização interna das cidades. Sem duvida a produção de Hartshorne que encontrou maior repercussão, dado o seu caráter amplo (em busca de uma Geografia Geral) e explicitamente metodológico.
A primeira diferença da proposta de Hartshorne residiu em este defender a idéia de que as ciências se definiram por métodos próprios, não por objetos singulares. Para Hartshorne, o estudo geográfico não isolaria os elementos, ao contrario trabalharia com suas inter-relações. A forma anti-sistemática seria mesmo com a singularidade da analise geográfica. Desta forma, Hartshorne deixou de procurar um objeto da Geografia, entendendo-a como um “ponto de vista”. Seria um estudo das inter-relações entre fenômenos heterogêneos, apresentando-as numa visão sintética. Os conceitos básicos, formulados por Hartshorne, foram os de “área” e de “integração”, ambos referidos ao método.
Entendo que se trata de obra de cuidadoso rigor metodológico, que explora e conclui sobre o pensamento geográfico, sem desvios ou distorções. É uma obra original e valiosa porque aborda a origem do pensamento geográfico tradicional: Humboldt, Ritter, Ratzel, La Blache e etc.
Esta obra apresenta especial interesse para estudantes e pesquisadores de Geografia. Pode ser utilizada tanto para alunos de graduação, pois apresenta linguagem simples, sendo também útil como modelo, do ponto de vista metodológico.