domingo, 20 de junho de 2010

CACILDA BECKER: FÚRIA SANTA


Joceley Vieira de Souza
Mestrando em História Social – FFLCH/USP


PRADO, LUÍS ANDRÉ DO. CACILDA BECKER: FÚRIA SANTA. SÃO PAULO: GERAÇÃO EDITORIAL, 2002. 623P. (ILUSTRADO).

Numa apresentação vespertina para estudantes secundaristas, durante o intervalo da peça Esperando Godot de Samuel Beckett, Cacilda Becker sentiu fortes dores de cabeça e levada às pressas para um hospital foi submetida a uma cirurgia. Trinta e nove dias após a internação, faleceu vítima de um aneurisma cerebral: era 14 de junho de 1969 e o país vivia sob o olhar censor do regime militar. Quem foi Cacilda Becker? Por que motivo é considerada a maior atriz brasileira? Que contribuição teria legado às artes cênicas? Como se deu a construção e o que há por trás do mito Cacilda Becker?

A intenção do jornalista Luís André do Prado, autor do livro, é declarada e busca responder a algumas questões: "decifrar o mito Cacilda Becker, explicá-lo a mim mesmo e às gerações posteriores" (p. 571). Com propostas e enfoques diversificados a atriz já foi abordada em outras obras01, mas esta é a primeira biografia (de fôlego) publicada sobre ela. Construída a partir de entrevistas de história oral, diários, correspondências, programas de peças de teatro, jornais, prontuários do Deops, fotografias, programas de peças teatrais, além de bibliografia específica, compõe o painel de uma atriz e sua época.

Cacilda Becker: Fúria Santa, é composto por dezenove capítulos em seqüência cronológica apresentando a genealogia familiar da atriz: "em 1770, nasceu ao norte do rio Reno, região que hoje faz parte do Estado da Renânia do Norte-Vestefália, Johan Graff Von Becker, o tataravô de Cacilda" (p.36), indo até os primeiros passos na dança, a luta da mãe abandonada pelo marido e carente de recursos materiais até a projeção como maior atriz brasileira nos são dados com riqueza de detalhes e vão, como que num mosaico, construindo a imagem da protagonista, que se confunde com a instauração do teatro profissional em São Paulo, tão imbricada e comprometida que esteve com o desenvolvimento das artes cênicas nessa cidade.

A jovem bailarina Cacilda foi descoberta pelo crítico Miroel Silveira que a indicou para o Teatro do Estudante do Brasil, no Rio de Janeiro, onde iniciou sua carreira de atriz amadora em 1941. Passou por outros grupos, mas seria na cidade de São Paulo que firmaria sua carreira e confirmaria seu talento: convidada por Décio de Almeida Prado passou a integrar o elenco de amadores do Grupo Universitário de Teatro (criado e dirigido pelo intelectual) vinculado ao Fundo de Pesquisa da USP. Sua interpretação de Brízida Vaz, em O auto da barca do inferno, de Gil Vicente rendeu-lhe algum reconhecimento e daí para o Teatro Brasileiro de Comédias-TBC02 foi um passo. Nesse grupo de amadores foi a primeira a se profissionalizar, assinando um contrato de trabalho e recebendo mensalmente o mais alto salário. Protagonizou inúmeros sucessos, grandes clássicos da dramaturgia mundial e a cada montagem seus dotes artísticos eram melhor elaborados, o sentido da arte era apreendido, dado o alto nível de erudição dos diretores estrangeiros com quem trabalhou e se formou. Dessa maneira, o respeito como artista foi se solidificando à medida que galgava o lugar definitivo como principal intérprete de sua época. Sua notabilização foi tamanha que desmentiu o presságio do diretor polonês Zbigniew Marian Ziembinsky, segundo o qual ela nunca seria uma atriz.

Em 1957 rompeu com a empresa de Franco Zampari e junto de Walmor Chagas e outros atores criou sua própria companhia, o TCB - Teatro Cacilda Becker. No contexto fecundo de 1958, esse grupo estreou no Rio de Janeiro O Santo e a Porca de Ariano Suassuna, enquanto nos palcos paulistas encenava-se a primeira montagem profissional de Bertold Brecht pela Cia.Maria Della Costa (A alma boa de Setsuan) e o revolucionário Eles não usam black-tie, do grupo Arena. Cacilda pretendia um repertório de peças que seriam levadas às cidades do interior, para outros Estados e até mesmo a outros países, como Portugal e França. Objetivava, antes de tudo, que sua empresa se apresentasse em âmbito nacional.

Em 1961, em uma assembléia da "classe" teatral no Teatro de Arena, foi eleita por aclamação, presidente da União Paulista da Classe Teatral-UPCT cargo que ocupou por poucos meses e mais adiante, em 1968, assumiu a presidência da Comissão Estadual de Teatro-CET, órgão da Secretaria da Cultura do Estado de São Paulo que destinava recursos financeiros às montagens teatrais, gestão emblemática por ter conseguido quadruplicar as verbas. Por esse motivo, nessa fase se afastou dos palcos e tirou seus proventos com a apresentação na tevê, do Teatro Cacilda Becker. Quatro meses depois: "acabo de ser demitida da TV Bandeirantes sob a acusação e que minha representação é subversiva. Isso é um absurdo, pois tiveram o cuidado de dizer que não são os textos, mas sim minha atuação!" (p. 531). Nesse contexto de posicionamentos políticos bastante delineados e de acirramento das lutas pelas liberdades democráticas e de expressão, Cacilda se levantou em defesa de sua "classe" teatral, ainda que não compartilhasse da ideologia política do tão em moda teatro engajado, já que seu lema era a arte pela arte. Talvez graças a seu prestígio – conseguiu livrar da prisão colegas perseguidos pelo regime militar; outros, escondeu em sua própria casa. Num teatrinho adaptado na cobertura de seu apartamento no Edifício Baronesa de Arary03 criou o Centro de Estudos Teatrais onde peças proibidas pela censura foram lidas e debatidas por intelectuais, atores e expoentes críticos de época. Apoiou dramaturgos censurados e proibidos como Plínio Marcos, que num depoimento colhido por Luís André disse: "Na época da censura a Navalha [na carne], ela pôs o teatrinho que tinha em casa à disposição e se encarregou de convidar os intelectuais de maior peso de São Paulo. Foi aquela massa; lá foi feita a primeira leitura e a liderança dela conduziu à liberação" (p. 509). E não foram poucas as vezes que literalmente liderou sua categoria artística: presidiu órgãos representativos e sempre esteve atenta a qualquer ato arbitrário que pudesse prejudicar o teatro, pois "qualquer teatro é meu teatro".

Os capítulos finais revelam uma Cacilda muito amadurecida que dirigia sozinha sua própria companhia enquanto lidava com a separação de seu colega e marido Walmor Chagas. Nesse contexto o repertório de seu grupo espelhou a angústia do povo à mercê de um regime autoritário que fez o possível para amordaçar um teatro que encenando, lutava por liberdade. Ainda que mantivesse um extremo apuro na elaboração de seus espetáculos ou na composição de seus personagens, se levantou em defesa de sua "classe", protegeu o teatro, quer nos diversos episódios descritos ou quando da indisposição ao arbítrio dos censores. Esse contexto histórico de agudo criticismo e posicionamento político, foi profícuo e revelou atores ou dramaturgos do quilate de Oduvaldo Vianna Filho, Chico de Assis, Gianfrancesco Guarnieri, Ariano Suassuna e de grupos estáveis como o Arena e o Oficina que contribuíram para a renovação ou mesmo criação de uma dramaturgia nacional, tecendo contundentes críticas ao regime militar e ao sistema capitalista.

Além de atriz teatral – sua função mais conhecida – produziu, escreveu e apresentou programas de rádio, dirigiu peças de teatro, foi professora da Escola de Arte Dramática, fez radionovelas, telenovelas, inúmeros teleteatros e dois filmes.

Luís André do Prado se vale freqüentemente do recurso de transcrição de depoimentos para construir sua narrativa. Na maioria desses casos somente o nome do entrevistado é citado. Ao leitor, cabe vasculhar no final do livro e verificar de onde provém a citação: se das entrevistas de história oral feitas pelo próprio autor, se extraída de livros de depoimentos (como o de Plínio Marcos à página 509) ou de outras fontes. Citações de matérias jornalísticas (por exemplo páginas 334, 366, 367), muitas vezes tem a indicação do documento no meio do texto corrido, sem a complementação das informações como a data, página, etc. A indicação das fontes fica muito comprometida quando se busca a pesquisa, o que o autor justifica da seguinte maneira: "Minha narrativa é jornalística e (...) sem a preocupação acadêmica de citar as fontes de forma exaustiva (os créditos estão relacionados ao final da edição)" (p. 573). Tal procedimento, se favorece a fluência da leitura, dificulta a localização dos documentos.

Toda a narrativa do livro - aliás muito bem escrito - é entrelaçada com uma cuidadosa contextualização de época, o que permite vislumbrar o rico panorama cultural e político no qual a protagonista surgiu e solidificou sua carreira. Cada espetáculo montado pela atriz tem um pequeno resumo do enredo, uma contextualização da peça, dados biográficos do dramaturgo.

O livro tem edição bastante esmerada: uma seleção extensa de fotos pessoais e profissionais com reprodução de excelente qualidade, desenhos elaborados pela atriz, além dos anexos: relação de todas as peças, filmes e teleteatros encenados. No final da obra o leitor encontra além da relação das fontes utilizadas, índice onomástico, bem como rol dos depoimentos coletados em sua maioria por meio de entrevistas de história oral. Essas características metodológicas deixam, porém, lacunas que se constituem em grandes desafios para a historiografia sobre o teatro brasileiro e em especial acerca da própria Cacilda Becker.

Obra de importância para todos que se propõem estudar a cultura brasileira do século XX ou mesmo a história do Brasil, a biografia de Cacilda chega num momento em que é necessário desvendar o mito deixando aparente a perseverança de uma mulher que, ao escolher o teatro como meio de atuação profissional ampliou seus lastros humanos, culturais e financeiros. Guindada ao posto de maior e mais importante intérprete brasileira de todos os tempos, esse livro configura boa oportunidade para se conhecer a atriz, seus dilemas, sua geração e sua arte teatral, que traz em si o fenômeno da efemeridade, já que se dá ao vivo e diante de uma platéia, não prescindindo pois, do aqui e agora de sua realização. Como o registro da arte de Cacilda nos palcos não nos chegou, Cacilda Becker: fúria santa preenche uma lacuna tanto de sua história como do próprio teatro brasileiro no período que vai do início dos anos 1940 ao final dos anos 1960. No arquivo da rede Bandeirantes de televisão, por exemplo, provavelmente existam alguns registros dos teleteatros de Cacilda, embora de difícil acesso ao público.

"Cacilda partiu deixando o Brasil em estado de coma político: muito sangue ainda iria jorrar, manchando indelevelmente a consciência nacional. Ela, que pregava a arte pela arte, que nunca fora uma artista engajada, deixou-nos como legado uma trajetória corajosa de doação à cultura brasileira que tanto amou, conquistando um lugar que poucos ocupam na história do nosso teatro. O Brasil sobreviveria ao AI-5, mas com seqüelas graves. Ainda sofremos em conseqüência das lesões profundas causadas pelo aneurisma militar que, por 21 anos, colocou o país em vida política vegetativa e nos legou uma atrofia social e cultural contra a qual ainda lutamos" (p. 562). Desta forma Luís André encerra sua útil biografia.

Hoje o Brasil vive um clima democrático, mas, infelizmente, ainda não tão generoso para com as artes cênicas e a cultura como um todo. A subvenção governamental às artes - sonho acalentado e principal reivindicação de Cacilda Becker já naqueles tempos - ainda é uma questão longe de estar equacionada e resolvida. A produção do teatro, como se sabe, é pródiga em refletir o nível de aperfeiçoamento e a cultura de um povo. Assim sendo, a vida e época da atriz podem nos dar uma mostra da importância que teve para a cultura brasileira a geração de artistas da qual ela foi parte, com alguns posicionados politicamente à esquerda e outros sem posicionamento claramente definido, mas cada qual lutando à sua maneira e de acordo com seus ideais, contribuindo para o aprimoramento do fazer teatral.

1 FERNANDES, Nanci e VARGAS, Maria Thereza. Uma atriz, Cacilda Becker. 2ª ed. São Paulo: Perspectiva, 1984 (excelente biografia, que percorre basicamente a trajetória artística de Cacilda); PALLOTINI, Renata. Cacilda Becker, o teatro e suas chamas. São Paulo: Arte & Ciência, 1997 (biografia mais sumária); ALMEIDA, Maria Inês Barros de. Panorama visto do Rio: o Teatro Cacilda Becker. Rio de Janeiro: INACEN, 1987. (livro que descreve a produção do Teatro Cacilda Becker).
2 O TBC foi a primeira experiência de um teatro feito em moldes "industriais" pois dispunha de toda a estrutura material - então inédita - para suas montagens: "...tinha exatamente 365 cadeiras, mas apresentava qualidades que nenhum outro teatro da capital paulista possuía 'dezoito camarins, duas salas de ensaio, uma sala de leitura, uma sala de carpintaria e marcenaria, uma sala de administração, um almoxarifado de guarda-roupa, um almoxarifado de objetos de cena e um depósito de cenários usados e móveis de cena. A iluminação contava com um órgão de luz com autotransformadores de voltagem de quarenta circuitos e o som, de alta fidelidade, distribuído no palco por meio de cinco alto-falantes' (...) não havia nada igual em São Paulo e mesmo no país" (p.280).
3 Sobre esse edifício foi escrito um interessante estudo jornalístico que, além de contar a história do prédio, inclusive descreve como eram essas reuniões. RESENDE, José Venâncio de. Baronesa de Arary &– nobres, pobres, artistas, oportunistas... São Paulo: Scortecci Editora, 2003, 285p.

Revista de História - USP

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