terça-feira, 17 de setembro de 2013

Sperandio


Claudio Lachini_livro

Sperandio


Claudio Lachini
Barcarola
224 págs
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A saga de um povo

ADRIANO KOEHLER

A história da saga dos italianos que vieram ao Brasil ganha mais um capítulo ilustre com o lançamento de Sperandio, livro do jornalista Claudio Lachini. Nele, Lachini conta a história de Sperandio Zibaldone, imigrante italiano que chega ao Brasil em 1878 para viver no Espírito Santo, fazendo parte das primeiras levas de imigrantes que chegaram ao Brasil. Narrado em primeira pessoa, Sperandio narra a história de sua família, dos outros italianos que aqui aportaram e de seus descendentes.

Lachini, até por ser descendente de italianos, faz um apanhado histórico minucioso de muitas das dificuldades que os primeiros chegados às matas da Serra do Mar capixaba enfrentaram: o clima, o solo, as plantas, os animais silvestres, as doenças tropicais, a língua estranha, os costumes diversos, a escravidão que estava por acabar, o preconceito contra os estrangeiros. Enfim, um rol de problemas sem fim. Sperandio, nosso narrador, vai mostrando através de seu relato como uns e outros enfrentavam estes problemas, uns vencendo o ambiente, outros desistindo e de alguma maneira retornando à Itália, outros ainda se matando por angústia de não pertencerem a nenhum outro lugar.

Nesta saga, a família de Sperandio vai crescendo e buscando novos rumos. Sem ser um nostálgico, ele anota os avanços da civilização com uma certa admiração, ao mesmo tempo em que contempla com algum pesar o movimento de aculturação pelo qual passaram os imigrantes italianos. Em especial, Sperandio conta com tristeza o período do Estado Novo em que Getúlio Vargas proibiu diversas práticas e costumes dos italianos no Brasil, em especial a proibição do ensino do italiano. Para Sperandio, era o início do fim da preservação da cultura italiana na nova terra.

Com o passar dos anos, ainda que Sperandio morra, seu espírito permanece para nos contar a história de seus descendentes até os tempos modernos. Assim, temos o caso de seu bisneto Toni, que retorna à Itália durante os Anos de Chumbo, refugiado político, para perceber que sua pátria já não era mais a de seus bisavós.

No entanto, se Lachini é bastante detalhista ao contar o passado, acaba correndo com as palavras para narrar os tempos modernos. Esta mudança de ritmo acaba prejudicando o que o livro tem de melhor, que é mostrar ao leitor quais foram os sentimentos do povo italiano que veio para o Brasil e ficou por aqui para influenciar e muito a cultura brasileira até os dias de hoje. Falta um gancho entre o passado e o presente.

Outro ponto do livro que joga contra o autor é o linguajar rebuscado com que narra as histórias de Sperandio e seus descendentes. Se o autor tivesse optado por uma linguagem mais moderna, sem tantos rococós, o livro seguiria seu ritmo de uma forma mais harmônica. Perdemos algum tempo tentando entender os floreios usados para contar a história, tempo precioso em que poderíamos mergulhar na vida dos personagens fascinantes criados pelo autor. Este fato é tão marcante que quando chegamos finalmente a uma expressão mais natural no livro (“A pimenta do reino, que faltava, foi substituída pela malagueta nativa, picante e saudável, porque todos teriam seus escapamentos preservados, particularmente eu, sofredor de hemorróidas e da próstata. Era o calor infernal destes trópicos. Uma dia a medicina daria conta disso, obrando a refrigeração da bunda da gente, a minha incluída.”), damos um sorriso de “ufa, finalmente ele percebeu que é um homem como os outros”.

Por fim, uma nota negativa para a editora do livro. Ao escolher um corpo de texto bem pequeno, com uma entrelinha menor ainda, a editora conseguiu deixar a leitura um pouco mais prejudicada. Uma pena, pois a história destes pilares da cultura brasileira merecia um tratamento gráfico e editorial mais cuidadoso.



ADRIANO KOEHLER
É jornalista. Vive em Curitiba (PR).

Minha formação

O império de um estadista
Aprendizado intelectual de Joaquim Nabuco e sua peculiar acuidade de visão são retratados em “Minha formação”

PERON RIOS
Joaquim Nabuco por Robson Vilalba

Constituído de artigos publicados inicialmente nos periódicos O Comércio de São Paulo eRevista Brasileira, Minha formação, de Joaquim Nabuco, é um livro redigido entre 1889 e 1899. O texto, com um pano de fundo memorialístico, ganha reedição da Editora 34, fazendo-se acompanhar de valiosas imagens emprestadas de fontes diversas, como a Fundação Biblioteca Nacional, a Academia Brasileira de Letras e a própria Fundação Joaquim Nabuco. A edição é enriquecida por um estudo penetrante de Alfredo Bosi e pelo ensaio Massangana no seu original francês (Foi voulue).

Joaquim Nabuco guardou do pai, o senador Nabuco de Araújo, a prática liberal que consiste em cultivar a “velha experiência”, sem o abandono da “nova experimentação”. Aqui, o olhar é certeiramente poético: à tradição aprendida, cabe ao escritor seu acréscimo de tonus individual. De início, percebemos um aprendiz de vinte e um anos, deslumbrado pela república estadunidense — marca, no seu entender, de uma plena liberdade em exercício. É a leitura de A constituição inglesa, de Walter Bagehot, que lhe confere uma virada fundamental na lida política: a simpatia pelo regime monárquico ali encontrou, a um só tempo, sua fonte e volume. A Carta britânica despontou-lhe, então, como uma Pedra de Roseta, à qual Bagehot serviu de Champollion. Assim, Joaquim Nabuco pôde observar que, ao contrário do que pensava, a forma dinástica de governar trazia um liberalismo mais largo do que o regime republicano. O monarca limitava sua tirania aparente à emblemática nacional, ao passo que o presidente inverteria o jogo de forças e, regiamente, seria o centro e o cetro do país. Além disso, a comunhão entre os Poderes Executivo e Legislativo — que a república preferia autônomos e, na prática, dissociados — promovia a lisura e a racionalidade da gestão pública. Para demonstrar a precisão e a transparência dos regimes, o escritor coteja exatamente as estruturas britânica e ianque, mas agora com preferências arrevesadas: “Comparados os dois governos, o norte-americano ficou-me parecendo um relógio que marca as horas da opinião, o inglês, um relógio que marca até os segundos”.

Sua peculiar acuidade de visão, todavia, proveio de um longo aprendizado, de uma verdadeira Bildung, na expressão certeira dos alemães, com a qual o título do livro indisfarçadamente dialoga. Apesar de Nabuco afirmar que o estilo dos autores não vai além daquilo que eles já desenvolveram na juventude, a lapidação de suas idéias — e da linguagem que lhes fosse fiel — submeteu-se a muito reajuste de forma e estilo, como seu abandono da escrita de poesia pode confirmar. Tão sólido processo formativo veio associado a um espírito vigorosamente cosmopolita, livre e atento aos eventos de todas as latitudes. Tal disposição de alma não poderia deixar de supor no ultranacionalista José de Alencar um duro adversário, como observamos na famosa polêmica, travada por ambos, entre setembro e novembro de 1875. Eis o que lemos, no capítulo “Atração do mundo”, da presente obra:

Sou antes um espectador do meu século do que do meu país; a peça é para mim a civilização, e se está representando em todos os teatros da humanidade, ligados hoje pelo telégrafo.

O desejo de ver e conhecer tudo o que fosse digno de admiração lhe rendeu excessos, mas também o preveniu da percepção localista a que a intelligentsia nacional cedia sem muitas resistências. A sensibilidade poética lhe foi acinzelada, e se “cada um de nós é só o raio estético que há no interior do seu pensamento”, ele pôde contemplar a beleza com o olhar desacelerado, contrário à experiência do turista que tudo vê sem que nada lhe produza um significado vivo. Em variadas circunstâncias, abrandou assumidamente a curiosidade política em nome da experiência artística: a vocação do tribuno, no cerne de um debate político, submetia-se à paixão do estilista atento à sonoridade das palavras pronunciadas pelos oradores. É preciso entender, assim, que suas aspirações de foro, pelo menos no período anterior às refregas abolicionistas, são conseqüência de uma inflamação estética, e que, nele, as idéias são um reflexo da forma.

Sua maturidade crítica pode ser captada, sem perdas, na observação que elabora nas linhas que seguem:

Talvez o dia em que viram pela primeira vez a Vênus de Milo ou a Gioconda tenha passado indiferente para muitos que notaram as suas menores impressões políticas. Eu, porém, não poderia sequer lembrar-me de que fora político diante do mármore dos mármores ou do colorido que se esvai e de um traço que se apaga de Leonardo. Na própria política eu me achava dividido pela mais positiva dualidade que se pudesse dar. De sentimento, de temperamento, de razão, eu era um tão exaltado partidário de Thiers como qualquer republicano francês; pela imaginação histórica e estética era porém legitimista; isto é, perante o artista imperfeito e incompleto que há em mim, a figura do conde de Chambord reduzia a de Thiers a proporções moralmente insignificantes.

Em relação ao especificamente poético, o escritor é lapidar: “[...] o que não se pode expressar em verso não vale quase a pena ser conservado”. A atenção estética de Nabuco expõe a contemporânea falta de zelo com as artes, lacaias das disputas políticas e dos litígios encampados por toda sorte de minorias. Também é esse contato permanente e afetivo com a literatura que lhe dá, um tanto à revelia, relativa intuição teórica: “[...] o que neles [nos seus versos] podia soar agradavelmente era declamação poética, e não poesia; pertenceria à retórica, ou à eloqüência, e não à arte, que em tudo é criação. [...] Nada é mais contrário à poesia do que a ênfase, o lugar-comum e o patético da oratória. Onde começa o advogado ou o tribuno, acaba o poeta”. Vê-se, portanto, a distinção essencial e lúcida entre o domínio técnico do verso e o vigor criativo que a empresa artística exige. Apesar da perspicácia reflexiva e do apuro crítico — ao dar o devido peso aos seus contemporâneos —, Nabuco mostra que também é filho de seu tempo, quando exclui da arte de Bilac o labor contínuo. Entretanto, como ele bem assinala, no mare magnum da inteligência não há possibilidade de ancoradouro. Assim, diz adiante com beleza expressiva: “O meu juízo estético foi, em todas as épocas, ainda o é hoje, imperfeito, instintivo, oscilante, como uma agulha que girasse por todo o mostrador”.

Propósito e importância
O homem político amadurece e começa, em fins da década de 1870, a esboçar o que viria a ser o abolicionista filósofo e propagandista, da palavra pública e privada. As tentativas de interpretar a nação assomam inevitáveis e, mesmo quando escreve sobre os países que visita, como a pátria norte-americana, seu olhar é mais sintético do que descritivo. Realiza, igualmente, uma análise fina e sensível da instabilidade política francesa fin-de-siècle e,sobre a sua terra, ele discorre: “O adiantamento de um país prova-se pela extensão da idéia de que a política é inseparável dos mais vitais interesses da sociedade, e por aí, de cada um. No Brasil, essa idéia não se derramou, pelas condições especiais em que nos achamos, de território, população, trabalho escravo, etc. Aqui ela está em cada cabeça”. Impressiona como, mais de cento e trinta anos depois, a avaliação de Nabuco infelizmente é atual: entre nós, a ideação política, em boa medida, se resume a opiniões particulares e difusas, que se dissolvem, sem profunda reflexão, no caldo coletivo das revoltas de manada.

Nessa fração da vida, Joaquim Nabuco percebe as antinomias entre o desideratum da política e as vontades efetivas dos cidadãos que ela supostamente representa: “A política, arte religiosa, converte em crime de sacrilégio o menor ato de liberdade individual”. Todavia, uma leitura atenta de Minha formação vem dar outra dimensão ao liberalismo de Joaquim Nabuco — que era mais receptivo à aristocracia britânica do que às igualdades sem pedigree dos americanos, mas que também entendia ser um sinal de irresponsabilidade social a suposta carência de solidariedade dos ianques.

Nos representativos capítulos “Meu pai” e “Massangana”, Nabuco assoma efetivamente como escritor, no sentido limitado da expressão. É quando podemos vislumbrar, em sua linguagem, a força dramática, a fluência narrativa e a captação de nuanças descritivas, prontas para nos falar, por exemplo, de um episódio emblemático de seus oito anos — o da criança escrava que lhe suplica o domínio, para que outro senhor não lhe inflija maus-tratos. Apenas um escritor que domina seus recursos realiza inversões violentas e reveladoras, típicas das almas efetivamente especulativas (palavra esta que, por sinal, não poderia ser etimologicamente mais adequada): ao morrer sua madrinha, observa o suplício dos escravos que foram por ela bem cuidados. Então ele arremata: “Foi assim que o problema moral da escravidão se desenhou pela primeira vez aos meus olhos em sua nitidez perfeita e com sua solução obrigatória. Não só esses escravos não se tinham queixado de sua senhora, como a tinham até o fim abençoado… A gratidão estava do lado de quem dava”.

Minha formação descreve, como todo livro autobiográfico com propósito e importância, a composição meticulosa e microscópica de eventos incontornáveis da cultura e, no seu papel de lupa, a narrativa nabuquiana exuma personalidades encobertas e esquecidas, fundamentais para o sucesso da causa emancipatória, por exemplo. Quando já ouve o “toque de recolher” da vida, abandona cada vez mais o seu círculo exterior e turbulento para vasculhar uma geografia íntima e escarpada. A religião lhe reaparece como a ave redentora ao dilúvio universal (o que muito se deve à presença luminosa do Papa Leão XIII, em sua susceptibilidade frente à causa dos escravos) e a infância primeva se vê recuperada. Apesar de tantos trânsitos e torneios pelo mundo afora, Nabuco nos diz de uma imagem marinha que lhe ficara renitente, império indissoluto na recordação. Descrito com figuração romântica e de modo poeticamente elevado, o trecho, por sua vez, torna a autobiografia inesquecível, razão pela qual o deixamos aqui estampado, por duradouro epílogo:

Muitas vezes tenho atravessado o oceano, mas se quero lembrar-me dele, tenho sempre diante dos olhos, parada instantaneamente, a primeira vaga que se levantou diante de mim, verde e transparente como um biombo de esmeralda, um dia que, atravessando por um extenso coqueiral atrás das palhoças dos jangadeiros, me achei à beira da praia e tive a revelação súbita, fulminante, da terra líquida e movente.


PERON RIOS
É mestre em Teoria da Literatura pela Universidade Federal de Pernambuco e doutorando em Literaturas Africanas pela Universidade de Lisboa e pela Université Paris III – Sorbonne Nouvelle. Autor do livro A Viagem Infinita: estudos sobre ‘Terra Sonâmbula’, de Mia Couto, é professor de Literatura do Colégio de Aplicação da UFPE.

O autor
 JOAQUIM NABUCO
 
Nasceu no Recife, em 1849, filho do senador Nabuco de Araújo, um dos líderes do Partido Liberal durante o reinado de Dom Pedro II. Em 1870 formou-se na Faculdade de Direito do Recife, e em 1876, depois de uma série de viagens pela Europa, foi nomeado adido da Legação Brasileira em Washington, nos Estados Unidos. Em 1878, com a morte do pai, foi eleito para o parlamento brasileiro e durante anos devotou-se por completo à causa da abolição da escravatura em seu país. Até a Lei Áurea, em 1888, levou a vida de um agitador abolicionista, propagando suas idéias por todos os meios — atividades no parlamento, comícios populares, jornais e livros. Em 1889, com a proclamação da República, permaneceu fiel à Monarquia e na década seguinte dedicou-se a escrever diversos livros, como Um estadista do Império (1897-99) e Minha formação (1900), participando também, em 1897, da fundação da Academia Brasileira de Letras. Faleceu em Washington, em 1910.

Minha formação
Joaquim Nabuco
Editora 34
288 págs.
 http://rascunho.gazetadopovo.com.br

sexta-feira, 13 de setembro de 2013

GARIBALDI NA AMÉRICA DO SUL: O MITO DO GAÚCHO


Resenha: Gianni Carta mostra como surgiu o mito de Giuseppe Garibaldi

MAURICIO PULS

Quem se debruça sobre um livro de história inicialmente concentra sua atenção na trama dos acontecimentos narrados --e só lentamente toma consciência de que o próprio relato também é um produto histórico, sujeito às limitações e convicções do autor.

Todo o trabalho intelectual de compor uma sequência verossímil de fatos, eliminando as versões indesejadas, desaparece do horizonte do leitor.

Em "Garibaldi na América do Sul: o mito do gaúcho", Gianni Carta reconstitui cuidadosamente essa pré-história da história e mostra que o líder da unificação italiana soube usar a mídia para se tornar a "encarnação mais perfeita e duradoura do verdadeiro herói romântico".
Divulgação 
Litografia 'Garibaldi e Anita em defesa da República Romana'


Ao voltar para a Europa em 1848, após 13 anos lutando na América do Sul, Giuseppe Garibaldi (1807-1882) posava para pintores e fotógrafos europeus com trajes gaúchos --um poncho e uma túnica vermelha. Curiosamente, o presidente da Argentina Bartolomé Mitre (1821-1906) observou que o italiano não se vestia assim quando os dois combateram juntos no Uruguai.

Mas adotou esse figurino de caubói para ser percebido na Europa "como um homem anárquico dos pampas", que nem sempre se sujeitava às regras da política italiana. Tal imagem de destemor e virilidade obteve enorme sucesso num momento em que muitos europeus julgavam que os "italianos tinham se tornado preguiçosos e efeminados".

JORNALISTAS

Sua legenda começou graças ao esforço de dois jornalistas italianos que atuavam nos países platinos: Luigi Rossetti e Giovanni Cuneo. Eles faziam vários ajustes nos relatos para polir a imagem de Garibaldi, omitindo erros estratégicos na condução da luta e suas deficiências como disciplinador de soldados.

Os dois trabalhavam em sintonia com o republicano Giuseppe Mazzini (1805-1872). Exilado em Londres, Mazzini divulgava as façanhas de Garibaldi no seu jornal, crente de que havia encontrado no general um líder capaz de derrubar a monarquia de Savoia e unir a Itália.

Garibaldi compreendeu a importância do marketing: recebia artistas com frequência, mudava sua rota para fazer entradas espetaculares em cidades e concedia muitas entrevistas aos jornalistas. Escreveu sua autobiografia e compartilhou o manuscrito com três escritores.

Incentivava a imprensa a acompanhá-lo nas batalhas. Quando invadiu a Sicília em 1860, sua comitiva incluía a jornalista britânica Jessie White Mario e o romancista francês Alexandre Dumas, autor de "Os Três Mosqueteiros" e "O Conde de Monte Cristo". Dumas propagou as vitórias de Garibaldi e o tornou mundialmente famoso.

Gianni Carta descreve ainda como o mito foi apropriado politicamente tanto pela direita como pela esquerda durante o século 20 e sua reciclagem nas obras de ficção mais recentes --entre as quais a minissérie da Globo "A Casa das Sete Mulheres" (2003).

AUTOR Gianni Carta
EDITORA Boitempo
TRADUÇÃO Flávio Aguiar e Magda Lopes
QUANTO R$ 57 (304 págs.)
Folha de S. Paulo

Pensadores Que Inventaram o Brasil


CRÍTICA: a identidade do País por um fluente professor
Capítulos mais saborosos são aqueles que misturam interpretação analítica com testemunhos e evocações pessoais
Elias Thomé Saliba

"Clássico é um livro que as gerações dos homens, urgidos por razões diversas, leem com prévio fervor e com uma misteriosa lealdade." Esta notável definição de Jorge Luis Borges poderia servir de epígrafe para as leituras e releituras dos clássicos brasileiros que Fernando Henrique Cardoso realiza em Pensadores Que Inventaram o Brasil. Escritos por razões diversas e cobrindo um extenso período, que vai de 1978 a 2013, são 18 ensaios que revelam não apenas as obras daqueles pensadores que inventaram o Brasil, mas também muito da trajetória intelectual do próprio autor. Pertencente à geração imediatamente posterior aos clássicos da ciência social brasileira, Fernando Henrique publicou suas primeiras obras naqueles anos de questionamento das grandes interpretações do Brasil, nos quais as "visões gerais" começavam a ceder espaço àquelas investigações mais pontuais e, ao mesmo tempo, mais especializadas e mais inovadoras, como foram, aliás, os próprios livros do sociólogo Fernando Henrique. 

Embora irregulares, alguns dos capítulos mais saborosos são aqueles que misturam interpretações analíticas com testemunhos e evocações pessoais, pois Fernando Henrique conheceu - e em alguns casos conviveu - com autores como Caio Prado Jr., Sérgio Buarque de Holanda, Florestan Fernandes, Antonio Candido e Celso Furtado. Recorda os bons tempos de quando entrou na Faculdade de Filosofia, em 1949 - localizada ainda no prédio da Praça da República e com classes que não tinham mais do que 12 alunos. Relembra, ainda, fazendo referência aos seus colegas, que todos queriam mesmo ser socialistas e não sociólogos. E que de repente se viram frente a um grupo de jovens professores que vestiam aquele obrigatório avental branco de cientistas de laboratório, como Florestam Fernandes e, mais discretamente, Antonio Candido - que lhes ensinaram a nunca transigir com o rigor da análise, com a solidez da pesquisa ou com qualquer coisa que prejudicasse a fluência dos argumentos. 

Além de ensaios menores sobre Euclides da Cunha, Paulo Prado, Caio Prado Jr. e Sérgio Buarque, e de uma primorosa resenha de Os Parceiros do Rio Bonito, de Antonio Candido, as análises mais detalhadas recaem sobre Joaquim Nabuco, Gilberto Freyre, Celso Furtado e Raymundo Faoro. O ensaio sobre Nabuco, de difusa inspiração freudiana, recupera os episódios da infância do grande abolicionista, incluindo a afetiva convivência com os escravos e as dramáticas perdas familiares. Já ao discorrer sobre a trajetória política de Nabuco, Fernando Henrique parece indiretamente falar um pouco de si - do intelectual que participa da política, se entrega inteiramente a ela em dados momentos, mas não quer se despersonalizar e nem perder seus mais caros valores existenciais.

Já os ensaios mais longos sobre Gilberto Freyre constituem uma espécie de desabafo de consciência culpada do autor, que pertenceu a uma geração que, durante os anos 1950 e 1960, tratou de rotular o autor de Casa Grande & Senzala como o reacionário criador e propugnador de uma (ilusória) democracia racial brasileira. Rótulos que nasceram menos de uma discutível "escola paulista de Sociologia" e mais da primeira leitura de um sociólogo militante, ansioso por cobrar dos outros uma posição de recusa da ordem estabelecida. Sem deixar de apontar os deslizes e os devaneios literários de Freyre, Fernando Henrique - desta feita escrevendo já em 2010 - ressalta a força mítica da obra do pernambucano: a sociedade patriarcal; as relações desiguais, mas próximas, entre as raças; o repúdio do racismo como guia heurístico (sem prejuízo dos deslizes racistas) e a afirmação de uma cultura singular, acabaram se tornando parte tácita e indistinguível da realidade brasileira. Mito é muito simplesmente a narrativa de uma história que não aconteceu, mas também daquela história que gostaríamos de acreditar que aconteceu - ou que ainda virá a acontecer, a qual fruímos, à maneira de Borges, com "prévio fervor e misteriosa lealdade". De qualquer forma, ao definir o estilo de Freyre como encantatório, cheio de reveladoras epifanias, Fernando Henrique não se esquece ainda de apontá-lo como um inesperado precursor daqueles estudiosos que criaram um método todo particular, no qual as sutilezas do estilo narrativo substituem os modelos teóricos e os conceitos abstratos.

Também se destacam as observações sobre Caio Prado Jr: um autor no qual "o método e os achados interpretativos caminham juntos, sem que ele esteja a cada instante batendo no peito para fazer o ato de contrição dos marxistas acadêmicos". 

Se apenas o epílogo do livro reproduz uma aula magna, ministrada pelo então ministro das Relações Exteriores aos alunos do Instituto Rio Branco, poderíamos dizer que o estilo de quase todos os ensaios é menos do político e mais aquele de um fluente professor - que também nos dá a deixa para uma outra definição de um clássico: "quando o livro é grande, os andaimes pesam menos e é preciso ver menos a maquinaria utilizada e mais a beleza da obra construída, mesmo que, às vezes, sem muito rigor". Nesta elegante e ponderada releitura da pedagogia da brasilidade, talvez seja mesmo possível reconhecer o que há ainda de atual e de inatual naqueles clássicos - todos eles um tantinho angustiados em pensar o futuro do País a partir de um retrato panorâmico de seu povo e de sua história. Se alguns daqueles retratos panorâmicos envelheceram, outros ainda fazem falta, sobretudo num país que vivencia - como, aliás, todo o mundo contemporâneo - uma crise de perspectivas de futuro.

* ELIAS THOMÉ SALIBA É HISTORIADOR, PROFESSOR DA USP E AUTOR DE RAÍZES DO RISO, ENTRE OUTROS.
Jornal O Estado de S. Paulo