domingo, 13 de junho de 2010

Uma cidade na transição. Santos: 1870-1913


Andréa Slemian
Pós-graduanda do Depto. de História FFLCH/USP



LANNA, Ana Lúcia Duarte - Uma cidade na transição. Santos: 1870-1913. São Paulo/ Santos, Hucitec, 1996. (Col. Estudos Históricos)
Resultado da pesquisa de doutoramento apresentada em 1994 junto ao Departamento de História da USP, o livro de Lanna é um estudo de caso inserido na problemática das mudanças urbanas que ocorreram no Brasil no final do século XIX e início do XX. Essas transformações se encontram estruturalmente vinculadas à derrocada do regime imperial e da escravidão, à ascensão do capitalismo e crescimento dos mercados nacionais, além de outros aspectos multifacetados já demarcados e revisitados pela historiografia. No desvendamento das relações entre este quadro geral brasileiro e as especificidades presentes no desenvolvimento urbano de Santos se situa seu objeto de estudo, que apresenta como um dos seus principais méritos a articulação desses dois níveis, o particular e o geral, ao contemplar a cidade.

A análise aponta a relevância das transformações urbanas no período para a compreensão do processo, entre outros, de surgimento de uma nova mentalidade política, com uma variável estética associada a um discurso de "progresso" das novas elites que se formavam. Assim, com o crescimento vertiginoso de algumas cidades ligado aos incentivos do mercado externo, e no caso de Santos devido sua característica portuária, cresciam também sua produção e seus problemas em relação às condições de vida dos que nela trabalhavam e habitavam. Percorrendo todo esse processo o livro destaca o surgimento ostensivo de novos referenciais burgueses, vinculados aos valores urbanos europeus e revestidos de uma fachada de "modernidade", que promoveram novos hábitos e gostos entre os habitantes das cidades brasileiras em crescimento, em contraposição ao passado colonial.

A periodização adotada marca o início das preocupações higiênicas na cidade, articuladas a um novo conceito de urbanismo nascente no contexto brasileiro, presentes em 1890 com as reformas do porto, que aceleraram o processo de consolidação de uma cidade "moderna". Já em 1913 essas transformações apareciam de forma clara, com o controle das epidemias, separação das classes mais abastadas dos bairros habitados por trabalhadores, e com o espaço da cidade reformado. O estudo da grande reforma sanitarista promovida por Saturnino de Brito (a qual incluía demolições, controle das áreas tidas como "infectadas", reformas dos cortiços, etc) permite perceber esse novo modo de pensar a cidade, que elegera a engenharia como portadora de soluções que transformariam a aparência urbana em algo belo e higiênico. Desta forma, os executores dessas reformas urbanas pouco preocupados com os problemas sociais iminentes - crescimento dos cortiços, das condições insalubres de vida e trabalho da população mais pobre - mais se esforçaram na marginalização às for-mas de sobrevivência dos trabalhadores, tanto imigrantes como nacionais e ex-escravos.

O principal propósito do livro, porém, é destacar a articulação da formação da vida urbana santista e sua dinâmica na relação de transição do trabalho escravo para o trabalho livre, destacando nesse con-junto as vinculações entre o desenvolvimento do comércio, a expansão do porto e da ferrovia. Assim, para Lanna, o crescimento e a diversificação das relações na cidade se deram concomitantemente às mudanças nas relações de trabalho, criando tensões sociais expressas na definição dos novos espaços de convívio.

Logo na introdução a autora discute o contexto geral das transformações das cidades brasileiras, fazendo um breve histórico, e salientando a importância de se pensar o século XIX vinculado ao estabelecimento de uma "nova ordem social", consolidada pelo mundo capitalista que elegia a cidade como um espaço privilegiado e ideal da vida burguesa. A seguir a análise está dividida em três partes ou capítulos: primeiramente, o estudo da formação da cidade de Santos desde a colônia até o período proposto; em segundo lugar, a análise dos movimentos de transformação dos espaços da cidade, através das reformas e demolições, bem como das mudanças nos hábitos dos seus moradores; e por último, o estudo da relação dos trabalhadores com as mudanças urbanas e suas formas cotidianas de sobrevivência.

Ao estudar as transformações ocorridas na cidade de Santos no final do século XIX, objeto do 1º capítulo, são discutidos os impactos causados pelo seu rápido desenvolvimento, que dera origem a uma série de incrementos tecnológicos e ao mesmo tempo à propagação de epidemias e cortiços. É salientado que o crescimento da cidade sempre estivera articulado, economicamente - principalmente pelas atividades do porto - e politicamente, ao desenvolvimento do planalto paulista, fato que gerava constantes tensões nas relações entre a elite local santista e o governo estadual. Daí advinham conflitos onde a municipalidade era reiteradamente acusada pelos órgãos estaduais de ineficiente na solução de seus problemas.

Assim se promoviam formas de marginalização deste poder local, como no caso das disputas na área do porto, ponto de convergência de interesses diversos. Porém o centro da análise não está em esmiuçar as relações entre poder local e poder estadual, mas sim em analisar como tensões sociais se articulam na constituição e transformação dos espaços urbanos.

Um dos eixos da análise se coloca na percepção da politização da questão sanitária, onde a dimensão estética subordinava a imperiosidade da técnica e da sanitarização dos espaços em prol de um discurso da elite dominante. Assim os agentes destas reformas promoveram a destruição e o afastamento dos bairros mais pobres, frente ao crescimento de acomodações para as classes mais abastadas, que descobriam o prazer à beira-mar. Para os novos valores burgueses que emergiam nesta sociedade, a aparência das coisas ganhava uma importância nova, e traduzia-se na preocupação com as edificações, bem como com os costumes (vestuário e hábitos), ou seja, a crença na dimensão estética como tradutora da essência de todas as coisas.

Mas o processo de formação da cidade santista não é analisado apenas na problemática das reformas urbanas, mas também na mudança fundamental e paulatina da concepção de público e de privado, e na incorporação de valores europeizantes aos costumes nacionais, que passaram a ser negados pela nova elite burguesa em crescimento, tanto no discurso como na sua prática social. Os espaços privados ganhavam uma dimensão diferente, pois se tornavam privilegiados para os acontecimentos sociais, configurando-se no espaço de formação do indivíduo em oposição ao mundo público. Diferente da cidade colonial, onde os grandes acontecimentos se davam nas praças e nas ruas à luz do dia, a "nova" cidade apresentava um outro papel para os espaços públicos, que cada vez mais se reduziam a locais de passagem.. Seguindo este raciocínio a autora analisa as mudanças nos modos de vida, focalizados no 2º capítulo, e de que forma elas expressaram-se na ocupação dos espaços da rua, nas habitações, nos lazeres.

As condições de trabalho na cidade são analisadas em seguida, destacando-se as estratégias de sobrevivência possíveis dos trabalhadores (imigrantes, nacionais e, dentre estes, os ex-escravos) e sua adaptação aos novos valores burgueses, estabelecendo os nexos entre a transição para o trabalho livre, sempre tendo em vista a constituição dos espaços urbanos em sua dinâmica social. Lanna se vale do estudo do cotidiano para mostrar como as condições de existência desta camada baseavam-se em outras formas de sociabilidade que apareceram nos cortiços, estabelecimentos comerciais e morros, áreas tidas pelas classes mais abastadas como "infectadas", vigiadas pela polícia e pelos órgãos ligados à saúde. Não só os espaços eram discriminados, mas também os trabalhadores, principalmente os ex-cativos, os quais partilhavam de uma liberdade que dificilmente lhes possibilitaria uma ascensão social através do trabalho.

Destacava-se a relação estabelecida entre o trabalho livre e a significação do ideário de negação à escravidão neste contexto específico, pois era Santos um pólo aglutinador de escravos em fuga na procura de liberdade e da integração no mundo assalariado. Nesse ponto Lanna recompõe o quadro geral da formação das idéias abolicionistas vinculadas principalmente à estratégia republicana, e não com as condições de vida e de sobrevivência dos escravos, preocupações que inexistiram neste processo.

As tensas condições de vida destes trabalhadores, processo e fruto também das reformas urbanas e sociais, desdobram-se ainda nos conflitos pela propriedade e pela exploração das terras. Neste ponto ressalta-se como as nacionalidades representaram para os imigrantes um fator de coesão e identidade no momento em que estes conflitos se desencadeavam entre os próprios trabalhadores, devido às condições precárias em que viviam.

Assim, a autora adota o conceito de desclassificação desenvolvido por Laura de Mello e Souza, em Os desclassificados do ouro (como ela mesma cita), para a camada mais desvalida da população que vivia em condições de perene mobilidade, precariedade e instabilidade no trabalho, muitas vezes excluída da participação de muitos dos bens da cidade. Salienta que os trabalhadores, da forma como viviam, se constituíram na negação do projeto modernizador e, como tal, deveriam ser transformados ou dispersos para outras áreas urbanas menos aparentes. Essa camada mais pobre também mudaria seus hábitos e costumes, porém esse processo se daria com outro caráter, revestido pela roupagem da higienização.

Todos os pontos discutidos no livro conduzem a uma maior compreensão das graves conseqüências sociais que teve este processo na constituição da cidade de Santos, visíveis até os nossos dias, além de salientar a formação das características de cidade "moderna" no processo santista ao longo de sua história. Traz, em anexo, indicações das fontes manuscritas utilizadas no Arquivo Geral da Comarca de Santos e no Arquivo do Estado de São Paulo, bem como de fontes impressas e do Inventário dos bens de Quintino de Lacerda. Apresenta, ao longo do texto, a reprodução de dois mapas: um da cidade de Santos em 1878, e outro dos cortiços; tabelas de população e edificações, fotos da cidade e de algumas personalidades, além de um índice remissivo sumário no final do volume.


Revista de História - USP

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