terça-feira, 5 de março de 2019

Guyanese migration and remittances to Guyana: a case study of their potentials and challenges for Guyana’s Economy



Guiana: impactos da migração e remessas monetárias e não monetárias1

Suely Aparecida de LimaI
Felician Medino AbrahamII
I, IICentro de Ciências Humanas, Universidade Federal de Roraima, Boa Vista / Roraima, Brasil.

CORBIN, H. P.. Guyanese migration and remittances to Guyana: a case study of their potentials and challenges for Guyana’s Economy. Belém, 2012. 209pp. Tese (Doutorado em Desenvolvimento Sustentável do Trópico Úmido), Núcleo de Altos Estudos Amazônicos, Universidade Federal do Pará, Belém, 2012,

Hmisakhana Pahoona Corbin2 possui formação técnica em General Agriculture (1998) pela Guyana School of Agriculture, graduação em Estudos Ambientais (2004) pela University of Guyana, mestrado em Planejamento do Desenvolvimento (2007) pelo Núcleo de Altos Estudos Amazônicos (NAEA) da Universidade Federal do Pará (UFPA) e em 2012 concluiu seu doutoramento em Ciência em Desenvolvimento Socioambiental também pelo NAEA. Trabalhou como associado sênior em Environmental Safeguards no Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), Washington, Estados Unidos, e desde julho de 2014 é professor da disciplina População e Desenvolvimento do NAEA. Corbin também participa de treinamentos acadêmico e profissional em, Belize, Brasil, Canadá, Chile, Guyana e Estados Unidos.3

Corbin possui publicações sobre migrações com enfoque sobre remessas monetárias e não monetárias, seus impactos ambientais e no desenvolvimento da América Latina e Caribe. Dentre suas publicações, duas integram coletâneas do NAEA - Migração internacional e desenvolvimento: o caso da Guiana (Aragon, 2009, p.163-84) e The social and environmental impacts of Brazilian migration to Guayana (Aragon, 2007, p.179-97) - e uma compõe o capítulo "Migration Research in Developing Countries: Redirecting the Focus in the Pan Amazônia and the Caribbean" da coletânea Fronteiras e espaços interculturais: transnacionalidade, etnicidade e identidade em regiões de fronteira.4

A tese Guyanese Migration and Remittances to Guyana: a case study of their potentials and challenges for Guyana's Economy5 defendida por Corbin é um estudo de caso conduzido pelo foco nas potencialidades e desafios da migração e das remessas monetárias e não monetárias para a economia da Guyana. Tal investigação tem as migrações e remessas como categorias de análise e o problema social da pesquisa diz respeito à migração guianense que corresponde a 56% do total da população, sendo Estados Unidos, Canadá e Reino Unido os principais destinos. Esse índice migratório torna a população local dependente das remessas para atender suas necessidades básicas. O autor argumenta que apesar deste brain-drain configurar-se como um obstáculo para o desenvolvimento da Guyana, o país não possui políticas migratórias e de remessas em vistas a superar tal obstáculo. Assim, a solução apontada pela pesquisa é a elaboração de instrumentos políticos apropriados e integrados às políticas de desenvolvimento da Guyana permitindo que a migração e as remessas gerem impactos positivos na economia do país.

A pesquisa parte do exame teórico e proposições sobre migração, remessa da diáspora e desenvolvimento e passa pela coleta de dados que poderá refutar ou validar as proposições teóricas no contexto guianense e, finalmente, examina os dados coletados, realiza a revisão das proposições teóricas para depois reexaminar os dados sob nova perspectiva. O resultado desse processo analítico é o teste da hipótese que, no caso desta pesquisa, foi confirmada.

A tese está estruturada em oito capítulos e cada capítulo conta com uma introdução e uma conclusão. No primeiro capítulo o autor contextualiza a pesquisa e estabelece o problema pesquisado, bem como a proposta da pesquisa que tem como problema a interação entre migração e remessas e suas dimensões no desenvolvimento. Dentre os apontamentos do autor, destacamos: i) no geral, as remessas têm sido estudadas a partir de determinantes macroeconômicos sem considerar diferentes arranjos institucionais e sem inclusão de fatores econômico, social, cultural, político e até ambiental; ii) os fluxos de remessas em espécies permanecem significativamente desconhecidos, pois a maior parte dos estudos concentra-se na dimensão monetária das remessas; iii) no caso guianense, as remessas monetárias superam a entrada do Investimento Externo Direto (IED) e da Overseas Development Assistance (ODA) desde a virada do milênio. Nesse contexto, o estudo se propôs a preencher tais lacunas através da análise das potencialidades e dos desafios da migração e das remessas para a economia da Guyana. A hipótese levantada pelo autor é se as remessas da diáspora guianense fossem incorporadas pelas políticas de desenvolvimento econômico, se esses fluxos, seus usos e impactos poderiam ser maximizados em melhor benefício da economia guianense (p.16-20).

O segundo capítulo tece sobre a metodologia da pesquisa em questão, a qual se baseou no método misto6(quantitativo7 e qualitativo8), consubstanciado por questionários, entrevistas, discussão de grupo focal, documentos oficiais, observação direta e participante. A pesquisa contou com um estudo piloto que possibilitou o teste das perguntas que contribuiu para o aperfeiçoamento da coleta de dados, por exemplo, na definição das Regiões Administrativas (RA) de Essequibo Island - West Demerara (Três), Demerara - Mahaica (Quatro), Mahaica - Berbice (Cinco) e East Berbice - Corentyne (Seis), principais regiões de origem da diáspora guianense, as quais representam 80% dos destinos das remessas e 78,2% da população da Guyana, ou seja, 589.504 pessoas. Por intermédio das 144 famílias que participaram da pesquisa, o autor constatou que a maior parte das pessoas beneficiadas pelos recursos da diáspora é de mulheres, mesmo não sendo, necessariamente, a "chefe" de família. No entanto, para evitar inclinações, homens também participaram do estudo (p.21-35).

O terceiro capítulo conta com um panorama dos fluxos, usos e impactos das remessas monetárias e não monetárias nos países em desenvolvimento. A polêmica do debate sobre remessas vai desde o que deveria ser considerado remessa até seu impacto no crescimento econômico e no desenvolvimento; contudo, o autor foca na complexidade da genesis da migração. O argumento de Corbin gira em torno da possibilidade de que os fatores que influenciam no envio de remessas pelo/pela migrante estejam além do plano individual e familiar, podendo ser influenciados por fatores estrutural, econômico, social e ambiental, e pode também refletir peculiaridades de um dado país ou região. O fato é que as diferenças epistemológicas e particularidades dos países e regiões não permitem um modelo geral aplicável tanto em países desenvolvidos como em desenvolvimento. Os países em desenvolvimento continuam a receber a maior parte das remessas mundiais e a América Latina e Caribe9 é um dos principais destinos em relação ao Produto Interno Bruto (PIB), e essas remessas aumentarem de US$ 25 bilhões em 2005 para US$ 60 bilhões em 2010. No caso de países de baixa renda, como Guyana, Honduras e Jamaica, o volume das remessas são baixos quando comparados com países como México ou Brasil; contudo, em relação ao PIB essas três econômicas dependem pesadamente das remessas. Em 2007 essa relação com o PIB era 25,8%, 21,5% e 18,8%, respectivamente. Estimativas apontam que 45% da migração mundial se dá entre países em desenvolvimento, ou seja, remessas sul-sul são relevantes para o desenvolvimento, pois o estudo em questão confirma impactos positivos das remessas no consumo e na renda, e negativos em termos de investimentos (p.36-53).

Sobre a perspectiva teórica da migração, revisada no quarto capítulo, Corbin destaca que a migração é inevitável na era da globalização; todavia, há grande restrição em relação ao movimento de capital humano. No caso particular da Comunidade do Caribe (Caricom), há um compromisso com a livre movimentação de profissionais de diversas categorias, ainda assim, a Caricom necessita de estudos que planejam formulações políticas em nível regional e, no caso da América Latina e Caribe, os estudos precisam considerar a migração de retorno e circular, o tráfico de pessoas, as remessas, e o movimento temporário de migrantes. O autor também aponta que, num esforço para superar as limitações metodológicas e teóricas, os pesquisadores de migração precisam destacar um modelo que funcione para regiões desenvolvidas e em desenvolvimento; dados válidos e confiáveis para a condução de testes empíricos de teorias e hipóteses em regiões desenvolvidas e em desenvolvimento, pois os desafios são diferentes e múltiplos fatores podem influenciar na migração; novas abordagens para a era da globalização, considerando a rápida circulação de informação; e um modelo que considere o plano individual, estrutural, econômico, ambiental e as redes para explorar a migração e o processo de adaptação, e as consequências recíprocas da migração interna e internacional (p.54-81).

O quinto capítulo da tese desvenda toda a "indústria de migração" instalada na Guyana. Como parte do resultado da pesquisa, o autor classifica as remessas para a Guyana em: i) monetária; ii) itens domésticos e outros bens não monetários; iii) transferência de conhecimento para a formação de capital humano. Os fluxos dessas remessas consistem em: i) indivíduo → indivíduo; ii) família → família; iii) indivíduo → família; iv) organização → organização; v) indivíduo → organização (p.82-114).

O sexto capítulo apresenta o estudo de caso das famílias pesquisadas. Esses dados estão agrupados por regiões (Três, Quatro, Cinco e Seis) e acompanhados pelas seguintes variáveis: i) composição étnica; ii) distribuição de gênero; iii) idade; iv) tipos de família; v) composição familiar; vi) educação; vii) renda; viii) emprego; ix) instalação doméstica; x) bens domésticos. Esses dados contribuem para a construção do perfil demográfico e socioeconômico dos/das receptores/as das remessas e para os apontamentos acerca das potencialidades e dos desafios do aproveitamento das remessas para o desenvolvimento da comunidade (p.115-64).

O sétimo capítulo tece sobre as potencialidades e desafios da migração e remessas no contexto socioeconômico da Guyana e responde as quatro questões elencadas no início da pesquisa, sendo elas: i) como e por que os guianenses migram?; ii) como, por que e de que forma os/as migrantes guianenses enviam suas remessas monetárias e não monetárias para a Guyana?; iii) em que medida a migração e as remessas são incorporadas pelas políticas de desenvolvimento da economia guianense?; iv) quais são as potencialidades e os desafios da migração e remessas para a economia guianense? Assim, o autor conclui que a migração e as remessas poderiam beneficiar todos os setores da economia da Guyana; todavia, esses benefícios precisam ser viabilizados por uma política de desenvolvimento nacional (p.165-77).

As conclusões, recomendações e implicações para pesquisas futuras estão esboçadas no capítulo final (p.178-83). Em suma, o estudo contribui para as partes interessadas, para formulações de políticas para o desenvolvimento que relacionem migração e remessas, para o avanço na construção teórica, e para melhor conhecermos o contexto guianense, que é tão pouco explorado pelo mainstream acadêmico.


NOTAS


1Pesquisa realizada com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (Capes).


2Sobre a contribuição de sua formação pessoal e profissional para a pesquisa, Corbin registra que sua experiência com pesquisas quantitativas e qualitativas, assim como o fato de ser migrante, remetente e destinatário de remessas monetárias e não monetárias de ter integrantes na família que migraram para Canadá, Estados Unidos e Reino Unido e para países caribenhos de língua inglesa contribuíram muito no desenvolvimento da tese resenhada (p.33-4).


3Informações consultadas no Curriculum Lattes do autor. Disponível em: <http://lattes.cnpq.br>. Acesso em: 5 maio 2015.


4Cf. Baines e Rocha (2008, p.59-77). Disponível em: <http://lattes.cnpq.br>. Acesso em: 5 maio 2015.


5"Migração Guianense e Remessas para a Guyana: um estudo de caso de suas potencialidades e desafios para a economia guianense", de acordo com nossa tradução para o idioma português.


6O método misto foi utilizado num esforço para superar as fraquezas inerentes a ambos os métodos, ou seja, para complementar um ao outro.


7O método quantitativo operou na coleta de dados e análise estatística.


8O método qualitativo operou no exame de resultados quantitativos em maior detalhe através da sondagem; sensível à necessidade local; guia para a transcrição, observação e descrição de detalhes multifacetados da complexa inter-relação entre migração e remessas da diáspora sobre o desenvolvimento socioeconômico.


9No ano 2010, dentre as remessas destinadas aos países em desenvolvimento, 66% tiveram a Ásia como destino e 20%, a América Latina e Caribe, seguidos pela África (p.39-40).


REFERÊNCIAS

ARAGON, L. (Org.) População e meio ambiente na Pan-Amazônia. Belém: NAEA/UFPA, 2007. p.179-97. [ Links ]

_______. (Org.) Migração Internacional na Pan-Amazônia. Belém: NAEA/UFPA, 2009. p.163-84. [ Links ]

BAINES, S. G.; ROCHA, L. M. (Org.) Fronteiras e espaços interculturais: transnacionalidade, etnicidade e identidade em regiões de fronteira. Goiânia: Editora da UCG, 2008. p.59-77. [ Links ]

CORBIN, H. P. Guyanese migration and remittances to Guyana: a case study of their potentials and challenges for Guyana's Economy. Belém, 2012. 209p. Tese (Doutorado em Desenvolvimento Sustentável do Trópico Úmido) - Núcleo de Altos Estudos Amazônicos, Universidade Federal do Pará. Belém, 2012. [ Links ]

Suely Aparecida de Lima é bacharel em Relações Internacionais; mestranda em Sociedade e Fronteiras pelo Centro de Ciências Humanas da Universidade Federal de Roraima (UFRR).


Felician Medino Abraham é mestrando em Sociedade e Fronteiras pelo Centro de Ciências Humanas da Universidade Federal de Roraima (UFRR).

Império, mito e miopia: Moçambique como invenção literária


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Rosana Morais Weg
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo / São Paulo, Brasil.

NOA, F.. Império, mito e miopia: Moçambique como invenção literária. São Paulo: Kapulana, 2015. 374p. Série Ciências e Artes,

Francisco noa, moçambicano, é doutor em Literaturas Africanas de Língua Portuguesa pela Universidade Nova de Lisboa, de Portugal. Ensaísta e professor de Literatura Moçambicana na Universidade Eduardo Mondlane (Maputo, Moçambique), é atualmente reitor da Universidade Lúrio (UniLúrio), também em Moçambique. Estuda colonialidade, nacionalidade e transnacionalidade literária, a literatura como conhecimento e o diálogo intercultural no Oceano Índico, a partir da literatura. É autor de artigos e livros de análise e crítica literária. Dentre eles, Império, mito e miopia: Moçambique como invenção literária, livro que ora destacamos.


A obra no espaço e no tempo

Sua tese de doutoramento Literatura colonial. Representação e legitimação - Moçambique como invenção literária, defendida em 2001, deu origem à edição portuguesa de Império, mito e miopia: Moçambique como invenção literária (2002). Em 2015, a editora Kapulana publicou a primeira edição brasileira. A grafia foi adaptada para a versão brasileira da língua portuguesa em conformidade com o acordo ortográfico em vigor, com exceção das citações, que tiveram sua grafia original preservada.


O todo e as partes

Na Introdução, o leitor é apresentado ao foco da análise que encontrará pela frente. O autor destaca o caráter multifacetado e problemático do tema que escolheu tratar: a literatura colonial em Moçambique. No capítulo I, "Literatura colonial: enquadramento teórico e periodológico", o escritor expõe os conceitos que norteiam sua pesquisa, o contexto em que ela se insere e o objeto de seu trabalho. Nos capítulos seguintes, o grande tema Representação é analisado a partir dos romances elencados, segundo aspectos como a verossimilhança, a representação do espaço, a representação do tempo, figuras, papéis e vozes, culminando com a legitimação do texto frente à crítica.

O corpus do trabalho é constituído por dezoito romances escritos por portugueses, no período estabelecido por Francisco Noa: entre 1926/1930 e 1974/1975.1 O ano de 1926 é o da revolução/golpe de Estado em Portugal, e 1930, o ano em que se consolida em Portugal o Estado Novo, regime ditatorial. Esse marco histórico inicial terá repercussão nas colônias e, consequentemente, em suas formas de representação literária das décadas seguintes. Os anos 1974/1975 marcam o final do domínio português nas colônias africanas, e irão também marcar a transição para outras formas de representação, reveladoras de outro sujeito, não mais o colonizador, e sim o sujeito libertado.

Francisco Noa nos oferece uma gama de fundamentos teóricos que vão desde os estudos clássicos mais conhecidos de pesquisadores ocidentais até os de estudiosos menos divulgados entre nós, atentos à mescla de vozes do período colonial.


Rigor e ousadia?

Império, mito e miopia: Moçambique como invenção literária, cuja origem remonta a 2001, continua como obra de referência para estudiosos de cultura africana, em especial da produção literária do período colonial em Moçambique. O que lhe confere atualidade e a distingue de outras obras sobre o mesmo assunto é a conjugação do rigor metodológico com a ousadia do tratamento temático. Noa apresenta-nos a literatura não só como reveladora de vozes sociais, mas como parte integrante de um período de conturbação identitária.


Ecos reveladores

Clarificada a distinção entre o processo histórico "colonização" e o sistema "colonialismo", e as relações daí decorrentes, o sistema de representação denominado "literatura colonial" é apresentado pelo autor. Na descrição do corpus da pesquisa, surge a revelação do Outro, do negro colonizado. São identificadas três fases dessa criação literária: a exótica, a doutrinária e a cosmopolita. Além de se conformarem como parte de um procedimento de orientação metodológica, os romances de cada uma das fases são reveladores das mutações por que passa a visão de mundo do colonizador, representada pelo escritor de romances português. De uma literatura de estranhamento provocadora de estupefação, passando pela justificativa da necessidade civilizatória para com o Outro, até a representação, em sua maior parte subliminar, da transição ou mescla das vozes, colonizador e colonizado passam a ser ouvidos em um mesmo texto.


Da provocação à reflexão

O leitor é instado a participar de um percurso espaçotemporal conturbado, em que a sequência de passos não é a tradicional cronológica. Consequentemente, o método adotado para tratar os elementos pertinentes ao processo da produção literária não é o modo convencional, pelo qual cada elemento/romance seria identificado e analisado separadamente um do outro. A proposta do autor é, a partir de um conjunto representativo da literatura colonial em língua portuguesa, trazer à luz o que ficou encoberto por décadas: a cultura do Outro, do que teve sua voz abafada, suas terras tomadas, sua cultura ignorada.

De forma perturbadora, a literatura colonial de autoria de portugueses é revelada com rigor científico por um moçambicano. É como se a literatura colonial fosse um corpo encoberto, durante décadas, por um véu pouco translúcido, encimado por uma fina camada de pó. Revelar essa literatura gera inicialmente reações de incômodo e rejeição. Prudência - ou ignorância consciente - desponta pela proximidade da história tratada. Finalmente, a "demissão da memória" - termo emprestado do autor - é atitude perversa porque encobre a realidade e impede o amadurecimento de um povo.


Verdade histórica ou criação literária?

A verossimilhança e o caráter literário em confronto com a verdade histórica registrada em forma de documento é questão investigada com apuro. A literatura colonial é revisitada como um ato de (re)criação de realidade. O ficcionista português só poderia representar uma realidade ignorada, desconhecida, a africana, sob a forma da invenção e não da representação exata. Além disso, lembra-nos Noa, há o pacto preestabelecido entre o escritor e o leitor sobre a realidade revelada na forma do discurso literário. Assim, o conceito de verossimilhança é alargado nas obras produzidas no período colonial.

Ao refletir sobre a verossimilhança no romance colonial considerando o "verossímil artificial", Noa conduz com maestria o leitor pelo labirinto que é o processo de legitimação da literatura colonial.


O romance como transgressão: romance de espaço

O gênero prevalente da literatura colonial em Moçambique é o romance, gênero transgressor que, em princípio, não poderia conviver com o caráter hegemônico e hierarquizador dessa literatura. No entanto, há uma quebra do cânone literário europeu quando o espaço em foco é o de Moçambique, África. Após essa constatação, Noa identifica e analisa os romances da literatura colonial de Moçambique como sendo "romances de espaço". A literatura colonial aparece como "pária" tanto para a metrópole como para a colônia. Para a primeira, é uma literatura "fora do lugar", deslocada do espaço convencional europeu para o espaço invadido, tomado do Outro. Para a colônia, trata-se da representação de uma visão do mundo invadido, tomado por aquele que tem o domínio da voz e o poder da letra.

O espaço africano é o "lugar performativo" nos romances, escritos em fases diferentes, com variadas representações: o perdido e o recuperado (conquistador/ conquistado); o da movimentação de chegada e partida (cidade/mato, ilha/floresta); e o sensorial (sensações visuais, olfativas, auditivas etc.). O espaço socioeconômico (rural e urbano) é revelador do universo do campo (agricultura, caça, extração), em que desponta a relação entre colonos e trabalhadores negros; e o universo das cidades (casa do colono, ruas, cabarés, escritórios) com o comércio de bens de consumo. Noa identifica no romance colonial o espaço como lugar sociocultural, como nação e como dimensão utópica.


A complexidade temporal: o Eu e o Outro

Os tempos de Balzac e de Proust, segundo Noa, são referenciais para a análise da relação entre narratividade e temporalidade nos romances representativos das três fases identificadas nos romances coloniais de Moçambique. Apesar de o exotismo sugerir surpresa e ruptura de expectativas, o romance de cunho orientalista acaba por atender à linearidade esperada. O leitor da literatura exótica espera o inusitado, que se confirma. A narrativa épica da fase doutrinária também é confirmadora de um conjunto de ideias já conhecidas, quando digressões descritivas apenas emolduram eventos conhecidos. São tempos, os das fases da literatura exótica e da doutrinária, lentos, repletos de catálises, cujas sequências narrativas podem ser mapeadas por um modelo estrutural do romance colonial proposto por Noa. Em um salto diferencial, o tempo na fase cosmopolita é proustiano, ao repercutir um quadro de inquietações e transformações sociais que despontam em um discurso de conotação fragmentária. Perturbações sociais e políticas do quadro colonial moribundo deixam marcas nos elementos constitutivos da ficção colonial moçambicana.


A presença dos seres e das vozes híbridas

O modo pelo qual os seres se fazem presentes nos romances analisados é detectado pela análise do dito explícito e do não dito ou dito indiretamente. Negros, mulatos, assimilados, indianos e mulheres são revelados por vozes híbridas, do autor invasivo, do narrador intocável e das personagens cujas linguagens passam pela mudez ou pela ausência de ação, pela voz corporal ou pelo sofrimento incontido. O protagonismo do colono branco, por sua vez, é legitimado não só pela voz preponderante como pela ação explicitada pela representação do poder.


A revelação da imagem

Império, mito e miopia: Moçambique como invenção literária lembra-nos o processo de revelação de fotografias, quando mergulhávamos um filme em líquido e com olhares atentos observávamos a emersão da imagem que havíamos registrado em algum instante do passado.


REFERÊNCIA

NOA, F. Império, mito e miopia: Moçambique como invenção literária. São Paulo: Kapulana, 2015. 374p. (Série Ciências e Artes) 

Rosana Morais Weg é doutora em Letras, Literatura Brasileira, pela Universidade de São Paulo, com pesquisa sobre o escritor brasileiro Aníbal Machado. Foi docente em Maputo, Moçambique, nos anos de 1980, na área de Formação de Professores. @ - roweg@kapulana.com.br
Revista Estudos Avançados

Erico Verissimo, escritor do mundo: circulação literária, cosmopolitismo e relações interamericanas

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Ieda Lebensztayn
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo / São Paulo, Brasil.

MINCHILLO, C. C.. Erico Verissimo, escritor do mundo: circulação literária, cosmopolitismo e relações interamericanas. São Paulo: Edusp, 2015.

Falta uma tristeza de menino bom

caminhando entre adultos

na esperança da justiça

que tarda - como tarda!

a clarear o mundo.

(Carlos Drummond de Andrade, "A falta de Erico Verissimo", Discurso de primavera e algumas sombras (1977))

Onde carros são incapazes de atropelar, cobras não mordem, crianças anãs, sardentas, aprendem a conviver com as diferenças, todas carecas, um olho preto e o outro azul? Idealizado por Graciliano Ramos em 1937 ao sair da prisão, com o inferno nos olhos e a cabeça raspada, tal mundo foi o céu, mesmo efêmero, de Raimundo Pelado, que sofria caçoadas por ser diferente. E quem deu a público em livro A Terra dos Meninos Pelados (Ramos, 1939), pela editora Globo, foi Erico Verissimo, que, além de romancista, atuou como editor, também tradutor, professor, palestrante e burocrata da diplomacia (diretor do Departamento Cultural da União Pan-Americana).

Tal fato - divulgar em livro um ideal humanista, carregado do respeito entre as pessoas e da consciência dos limites da realidade - é evocado aqui como síntese da trajetória de Erico Verissimo (1905-1975), cujos humanismo e angústias Carlos Minchillo acompanha, num estudo realizado com paixão e seriedade.

O título do livro, Erico Verissimo, escritor do mundo: circulação literária, cosmopolitismo e relações interamericanas, concentra os elementos da ambiguidade experienciada pelo romancista entre as faces ética e imperialista presentes no cosmopolitismo. E o crítico apreende momentos de inflexão em que tal ambiguidade se adensa em conflitos, apresentando-os aos leitores com precisão e clareza, ancoradas em seu vasto conhecimento da obra e do acervo do escritor, que consta do Instituto Moreira Salles (IMS) no Rio de Janeiro.

Veja-se que, em "escritor do mundo", o mundo é o objeto da escrita: observador, Erico buscou conhecê-lo, compreendê-lo e nele projetou seus anseios, dando forma a sua perspectiva ao criar seu mundo ficcional; ao mesmo tempo, o mundo é o lugar vasto, o plano para além do nacional, a que o artista se empenhou por pertencer. Aqui já se está na órbita do cosmopolitismo, e a própria palavra carrega duplicidade. Cosmopolita é etimologicamente o cidadão do mundo, aludindo, por um lado, a um teor de ética, de relações respeitosas em qualquer lugar; por outro, o cosmopolitismo pode significar a perda de uma identidade original, em nome de um artificialismo e de interesses consumistas de grandes centros, e daqui decorrem os sentidos negativos do imperialismo. Entender essas contradições do cosmopolitismo na trajetória de Erico Verissimo e a configuração delas em sua obra move a pesquisa e a reflexão exemplares de Minchillo.

Junto com o título do livro, a epígrafe escolhida dá a dimensão do humanismo que marca o cosmopolitismo de Verissimo, afinal o "escritor do mundo" se define como um contador de histórias, afeito a compreender figuras humanas, situadas num espaço e momento histórico, marcadas por memórias, por inquietações do presente e por possibilidades de diálogo com o outro e de transformações: "Ninguém pode falar de ninguém sem contar uma história. Nenhuma figura humana pode ser estudada em termos literários num vácuo, pois ela pertence a um tempo e a um espaço, tem um passado, vive um presente. É também um contínuo devir, um processo transitivo e não um produto acabado".1

Contar histórias é a forma por meio da qual Erico Verissimo se lança a representar a realidade, expressando suas angústias ante os conflitos humanos e abrindo-se à comunicação com o outro. Essa formulação, que se pode projetar da epígrafe para o conjunto do estudo de Carlos Minchillo, tem como pressuposto crítico, aprendido de ensaios teóricos e analítico-interpretativos de Alfredo Bosi (1991, 2006, 2009), as quatro vertentes da obra de arte, cuja leitura, antidogmática, perfaz o círculo hermenêutico: a vertente de construção formal, a de representação histórico-social, a de expressão subjetiva e a da recepção crítica, de transitividade com o leitor.

A originalidade da abordagem de Carlos Minchillo advém de centrar-se em obras cujos enredos se situam para além das fronteiras do Brasil: Saga (1940), O senhor embaixador (1965) e O prisioneiro (1967). Compostas num intervalo de 27 anos, acompanham continuidades e mudanças do olhar e dos sentimentos de Erico Verissimo em relação aos contextos históricos e espaciais representados, suas esperanças e decepções. Nesse sentido, cumpre assinalar que, resultado do talento e empenho de Minchillo como pesquisador de arquivos e intérprete de textos literários e de seus contextos históricos, quer de sociabilidade intelectual, quer de conflitos políticos nacionais e internacionais, o livro Erico Verissimo, escritor do mundo combina organicamente vários aspectos analíticos, voltados para o eixo cosmopolitismo/humanismo, que decerto atrairão o interesse do público: uma depurada leitura dos romances mencionados de Verissimo, com incursões também por anteriores, como Clarissa (1933), Caminhos cruzados (1935), Música ao longe (1936) e Um lugar ao sol (1936), e pelas obras México (1957), relato de viagem, e Brazilian Literature: an Outline (1945), compêndio de literatura; uma pesquisa atenta de sua correspondência ativa e passiva, presente no acervo do IMS; o evocar de passagens dos volumes de memórias Solo de clarineta (1973, 1976) e da biografia Um certo Henrique Bertaso (1972); uma comparação entre os dois livros de viagem aos Estados Unidos, Gato preto em campo de neve (1941) e A volta do gato preto (1943); diálogos com a fortuna crítica do escritor; reflexões, com embasamento nos romances e em estudos historiográficos, sobre os anos da Guerra Civil Espanhola, da Segunda Guerra Mundial, da guerra fria, as tensões sociais e políticas dos países latino-americanos, a questão racial dos negros norte-americanos; uma discussão a respeito do mercado editorial e da recepção crítica da literatura brasileira.

Em especial, o movimento comparativo entre os dois livros de viagem aos Estados Unidos dá a medida das referidas mudanças de matizes pelas quais passou Erico Verissimo. É perspicaz o título da seção referente a esse cotejo: "De volta à América ou impressões de um gato escaldado". Minchillo detecta, entre Gato preto em campo de neve (1941) e A volta do gato preto (1943), o tom menos deslumbrado do escritor, e faz conjecturas quanto às motivações que o tornaram gato escaldado: sugere desgostos de Verissimo com a situação política e intelectual brasileira durante o Estado Novo, sua percepção de aspectos problemáticos dos Estados Unidos, o envolvimento emocional com a brutalidade da guerra, a decepção com as promessas da política de boa vizinhança.

Esse ponto de inflexão a partir dos dois relatos de viagens aos Estados Unidos define o terceiro capítulo do livro de Minchillo, "Um camelô do pan-americanismo": depreendendo as hesitações de Verissimo quanto a tal função de camelô, de promotor da boa vizinhança, o crítico observa que o senso de esperança, marca do escritor, passava a ser ambíguo. Retomar aqui esse ponto de inflexão possibilita lançar luz ao todo do livro. Ele se organiza em quatro capítulos, que justamente apresentam e adensam faces dessa ambiguidade de Erico Verissimo entre adesão e distanciamento em sua experiência fora do Brasil.

Significativamente intitulado "O escritor com um pé lá fora", o primeiro capítulo, situando a posição excêntrica de Erico nas letras brasileiras dos anos 1930 e 1940, nem modernista nem regionalista, sublinha a sua sensibilidade cosmopolita: como escritor, tradutor, editor e intelectual itinerante, atuou na interface do local e do internacional. Tanto em seus textos como em suas atividades no exterior, contribuiu para a abertura do romance brasileiro ao cenário mundial. Minchillo nos informa que, dos seis romances brasileiros traduzidos e publicados nos Estados Unidos durante a década de 1940, três eram de Verissimo: Caminhos cruzados, O resto é silêncio e Olhai os lírios do campo. E sugere um paralelo, depois retomado, com Monteiro Lobato, que merece destaque: ambos os escritores foram best-sellers, dedicaram-se ao trabalho de editores, conscientes do valor mercadológico dos livros e de seu valor artístico, necessários para a formação cultural brasileira, e voltaram o olhar para a importância dos Estados Unidos no cenário mundial.

Retomando aqui o pressuposto hermenêutico das quatro dimensões da arte, é preciso salientar algumas imagens analisadas por Minchillo, que incitam a buscar os livros de Verissimo: os círculos de giz, o iceberg, o playground, o prédio-fóssil. Elas constituem eixos de construção formal dos romances, em que se amalgamam a expressão de conflitos subjetivos e a representação de relações sócio-históricas.

No segundo capítulo, "A modernidade sitiada: trajetórias e deambulações nos primeiros romances de Erico Verissimo", Minchillo se detém em Clarissa, Um lugar ao sol e Saga, acompanhando, especialmente a partir das imagens do aquário, do círculo de giz e da engrenagem capitalista, as oscilações das personagens entre imobilismo e abertura para o outro, para os homens em guerra. A leitura dessas obras, que constituem um "romance-rio", lhe permite identificar como o escritor caminhava para uma "percepção mais complexa dos liames sociais e históricos em jogo nas atitudes humanas".

E, depois da referida análise das mudanças de Erico ao longo dos dois relatos de viagem aos Estados Unidos, o quarto capítulo, "O império, a guerrilha e o humanismo destroçado", desvela a intensificação de seu viés crítico contra o imperialismo e o neocolonialismo. Forte, a expressão "humanismo destroçado" traduz a descrença que Minchillo reconhece no escritor depois da terceira estada em solo norte-americano, entre 1953 e 1956, como diretor do Departamento Cultural da União Pan-Americana. Tem então lugar o estudo de México, O Senhor Embaixador e O prisioneiro, em que se destacam vários momentos analítico-interpretativos.

Do segundo desses livros sobressai a imagem do iceberg, que garante a Minchillo observar como se afinou a percepção da realidade de Erico, de idealista a desconfiada. Imagem "poderosa", o iceberg é uma forma que representa sua consciência de existirem, sob os fatos visíveis, motivações sociais e subjetivas submersas, um "torvo oceano de interesses políticos e econômicos, egoísmos e apetites nacionais e individuais", nas palavras do personagem William B. Godkin, jornalista especializado em assuntos latino-americanos. Também a imagem do subsolo do playground indica que o jardim ocidental é ilusório, fermenta cemitérios. Em O Senhor Embaixador, a comunhão diplomática não passa de superficialidade, ponta de um iceberg a sinalizar a consciência trágica de que a política de boa vizinhança e o colorido cosmopolita escondem interesses financeiros, tensão racial, violência, barbárie.

Igualmente a análise de imagens e figuras de O prisioneiro prende a atenção do leitor: Minchillo surpreende, na descrição de um prédio cor de osso onde ficavam oficiais do exército norte-americano solteiros, a figuração de um fóssil de silenciada hecatombe - representação crítica e expressão angustiosa da guerra do Vietnã. O crítico salienta ser a doença a marca das personagens desse romance (a professora francesa, a prostituta K, o tenente), forma a conjugar a esfera privada e a situação (neo)colonial: os dramas psicológicos estão entrelaçados à questão política, bélica. Com atualidade assustadora, as questões de terrorismo, intolerância, preconceito racial e violência culminam numa imagem do sem saída: o que parecia um livro era na verdade combustível de um suicida.

Nas "Considerações finais", Minchillo retoma a reflexão quanto à quarta vertente das obras de arte, da transitividade com o leitor. Se as três vertentes hermenêuticas foram apreendidas de maneira fecunda por Alfredo Bosi a partir da fortuna crítica machadiana, também seu olhar para a quarta vertente encontra inspiração em estudo sobre Machado de Assis: Os leitores de Machado de Assis: o romance machadiano e o público de literatura no século 19, de Hélio de Seixas Guimarães (2012), o orientador da tese de doutorado que originou o livro de Minchillo. Enriquecido agora da pesquisa e das análises a respeito da trajetória de Erico Verissimo, repõe-se o problema crítico de compreender os fatores das oscilações da recepção da literatura do romancista entre momentos de grande alcance nacional e internacional e outros de esquecimento; além dos critérios relativos à forma literária, tanto o vínculo com os Estados Unidos como o socialismo apartidário podem ter despertado resistência ou atração. Minchillo partilha com o leitor incertezas e caminhos para pensar sobre as motivações que interferem na comunicação da arte com o público - as questões de gosto, a construção da universalidade, o valor literário, condições históricas, linguísticas, culturais, posições ideológicas, interesses editoriais, relações de sociabilidade, a atuação do escritor, da crítica e da imprensa.

Conforme Kátia Gerab Baggio observa no esclarecedor prefácio do livro, Carlos Minchillo fez uma aposta arriscada, porém exitosa, ao deixar de lado a trilogia O tempo e o vento e se debruçar sobre a experiência cosmopolita do escritor. Essa aposta num viés original resultou num estudo consistente e com força de atualidade, voz contra as violências do mundo. Isso porque pautado pela tradição crítica, pela própria obra de Verissimo e pelo seu desejo de internacionalização da literatura brasileira - conjunto de fatores que, numa síntese significativa, permitem a Minchillo justificar a assinatura sem acentos do nome do escritor.

Assim, além de contribuir para a fortuna de Erico Verissimo e para os estudos das relações interamericanas sobretudo a partir dos anos 1940, o livro de Carlos Minchillo, ao tomar como problema os impasses vividos e configurados em arte por um escritor brasileiro no exterior, entre o ímpeto cosmopolita e a consciência anti-imperialista, indaga eticamente pelo papel da literatura em meio aos interesses econômicos dos homens e aos conflitos políticos das nações. Instiga a tarefa hermenêutica: a conhecer e compreender melhor as criações de um escritor, a (re)ver a história, a encontrar imagens que falem contra os preconceitos e a barbárie. Instiga a desentranhar, de uma imagem, de uma palavra, de um escritor aparentemente gastos, significados renovados (Silva, 1996, p.53-66), mesmo que devido à repetição trágica da história. Como a lâmpada acesa por Erico Verissimo (2005, p.65): "Desde que, adulto, comecei a escrever romances, tem-me animado até hoje a ideia de que o menos que um escritor pode fazer, numa época de atrocidades e injustiças como a nossa, é acender a sua lâmpada, fazer luz sobre a realidade de seu mundo, evitando que sobre ele caia a escuridão, propícia aos ladrões, aos assassinos e aos tiranos. Sim, segurar a lâmpada, a despeito da náusea e do horror" (apud p.247).

NOTA

1Erico Verissimo em entrevista a João Alves das Neves, "Erico Verissimo, o Solo da Liberdade", Banas, São Paulo, n.1069, p.41-7, 7 out. 1974, apud Minchillo (2015, p.19).


REFERÊNCIAS

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_______. Brás Cubas em três versões. São Paulo: Cia. das Letras, 2006. [ Links ]

_______. Machado de Assis na encruzilhada dos caminhos da crítica. Machado de Assis em Linha, ano 2, n.4, dez. 2009. Disponível em: <http://machadodeassis.fflch.usp.br/node/12>. Acesso em: 22 nov. 2015. [ Links ]

GUIMARÃES, H. de S. Os leitores de Machado de Assis: o romance machadiano e o público de literatura no século 19. 2.ed. São Paulo: Nankin; Edusp, 2012. [ Links ]

MINCHILLO, C. C. Erico Verissimo, escritor do mundo: circulação literária, cosmopolitismo e relações interamericanas. São Paulo: Edusp, 2015. [ Links ]

RAMOS, G. A Terra dos Meninos Pelados. Ilustrações de Nelson Boeira Faedrich. Porto Alegre: Globo, 1939. [ Links ]

SILVA, F. L. e. A dimensão ética da palavra. Tempo Social: Revista de Sociologia da USP, São Paulo, v.8, p.53-66, 1996. [ Links ]

VERISSIMO, E. Solo de clarineta. São Paulo: Cia. das Letras, 2005. v.1, p. 65. [ Links ]


Ieda Lebensztayn é pesquisadora de pós-doutorado na Biblioteca Brasiliana Mindlin (BBM-USP), Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP (Processo CNPq 166032/2015-8).

Revista Estudos Avançados

A demanda do Santo Graal: o manuscrito de Heidelberg

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A demanda do Santo Graal: o manuscrito de Heidelberg


Ana Paula Tavares Magalhães
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo / São Paulo, Brasil.


BACCEGA, M., A demanda do Santo Graal: o manuscrito de Heidelberg. São Paulo: Hedra, 2015.


Uma das características mais emblemáticas da literatura medieval é aquilo que Paul Zumthor (1978) denomina "ausência de convenção de ficcionalidade". As relações entre as narrativas e o mundo concreto se operam pela mediação do elemento moral, o qual confere lógica ao discurso e garante sua viabilidade perante o público receptor. Por essa razão, o elemento que rompe com a lógica da natureza não destoa no conjunto da narrativa, devendo, antes, reforçá-lo. Quando os cavaleiros de Artur deparam com uma coluna de mármore que flutua, tendo presa a si uma espada, ocorre uma automática naturalização do "maravilhoso". Esse atua no sentido de reforçar uma narrativa que tem como objetivo antes a prova da honra (honor) do que o critério da verossimilhança.1 Trata-se de um conjunto complexo de conteúdos oriundos de tradições diversas, catalisados em um éthos cristão, que busca - e negocia, mediante um processo de acomodações - sua hegemonia nas sociedades da Idade Média Central.

Ao longo de cerca de um século, muitos estudiosos dedicaram-se à chamada "matéria da Bretanha" - conjunto de conteúdos oriundo de tradições ancestrais, radicadas nas ilhas da Grã-Bretanha, e apropriadas pela matriz cristã. Estudos em disciplinas de Antropologia, Filologia, Psicologia, História, entre outros, levaram a uma grande produção bibliográfica, na qual, em meados dos anos 1980, o leitor diletante não conseguiria discernir a pesquisa de bases científicas da pura especulação. Nos últimos anos, o tratamento do tema passou por algumas mudanças - dentre elas, uma maior ênfase no corpus documental enquanto fonte histórica, além de pesquisas privilegiando a produção do discurso em si - com sua técnica, seus recursos de linguagem, sua intencionalidade, sua recepção social. Importantes traduções, de diversos manuscritos, foram elaboradas, com ênfase para A demanda do Santo Graal. Sua narrativa é preponderante porque se fundamenta na tradição cristã e crística - que coloca o cálice da consagração como prêmio atribuído ao cristão perfeito. O cálice é a representação da própria paixão de Cristo, evento central e fundador do cristianismo. Mas sua conquista, ainda que levada a cabo por um homem só, deve superar o plano individual e acarretar na salvação de toda a comunidade cristã. Os manuscritos proliferaram em diversas línguas, a partir da circulação da matéria em ambientes laicos e clericais. Uma importante publicação, de Heitor Megale (2008), traz uma edição, comentada de forma muitíssimo competente, da tradução portuguesa d'A demanda do Santo Graal, considerada o texto mais completo da segunda prosificação dos romances arturianos (meados do século XIII), e que se encontra no códice português da Biblioteca Nacional de Viena. Ciente do significado do escrito, Megale ressalta a persistência do mito arturiano em Portugal no plano de uma longa duração - mediante apropriações e ressignificações.2

A edição que agora se apresenta é fruto de grande erudição e exercício de crítica documental. A demanda do Santo Graal: o manuscrito de Heidelberg, publicado em 2015, pela Hedra (São Paulo), tem tradução e texto crítico de Marcus Baccega, pesquisador nos campos de História da Cultura e da Religião, e com ampla formação em Humanidades. O manuscrito d'A demanda do Santo Graal alemã (Die Suche nach dem Gral) compõe, juntamente com o manuscrito d'A morte do rei Artur (Der Todd es Königs Artus), a terceira parte do Códice 147 da Biblioteca Palatina Germânica de Heidelberg. Trata-se de um conjunto que se baseia nos manuscritos franceses da chamada primeira prosificação, diferentemente do manuscrito português de que se ocupou Megale. A esse ciclo dá-se o nome de Vulgata. O autor alude, inclusive, à complexidade da documentação, uma vez que o códice em questão, embora contenha, majoritariamente, manuscritos produzidos na segunda metade do século XIII, só se consolidou no século XV, tendo, ainda, sofrido interpolações ao longo do século XVI.

O pendor do historiador condiciona, naturalmente, uma edição/tradução que busca preservar as características do documento, procurando manter proximidade das estruturas originais de escrita. Ressaltamos esse aspecto a fim de sublinhar os objetivos do trabalho, bem como a linha teórico-metodológica que orienta sua produção. Se a obra de Megale preencheu as lacunas de um texto por vezes truncado e lhe conferiu fluidez - trabalho literário de primeira grandeza, único, excelente na elaboração de sua proposta -, a obra de Baccega procurou manter - na medida em que a tradução do alemão o permitia - os conflitos textuais, preenchendo apenas parcialmente as lacunas identificadas. O texto parece, muitas vezes, carecer da lógica que a leitura contemporânea demanda; prevalece, contudo, o lógos de uma determinada visão - do mundo e do homem - que se expressa por uma forma diferente da nossa: a um conteúdo destituído de convenção ficcional corresponde uma forma que expressa necessidades igualmente específicas. Por essa razão, acreditamos que a obra de Baccega é complementar à de Megale, na medida em que se serve de um manuscrito diferente, baseado em matriz diversa, sob outra cultura/língua, e, por fim, sob uma nova perspectiva de análise e tratamento. A compreensão do leitor não é, de maneira nenhuma, comprometida por esse recurso, embora o estranhamento inicial seja inevitável. A experiência da leitura revela, por fim, uma civilização em sua totalidade - seus modos de agir e reagir; seus medos e destemores; aquilo que diz e aquilo que escolhe calar; aquilo que valoriza e aquilo que condena.

A Demanda de Baccega reúne, portanto, aspectos de princípio e de fim. Trata-se de um trabalho de enorme erudição no qual foi empenhado louvável esforço para a reconstituição de partes de um universo, que se nos apresenta como vivo, pulsante; nesse sentido, podemos afirmar que a obra é fim, conclusão, superação crítica de um diálogo do historiador com a fonte. Por outro lado, a obra é, ainda, a própria fonte - traduzida, disponibilizada ao leitor em língua portuguesa -, e carrega os dilemas de personagens e situações - que são também os impasses de uma sociedade; por essa razão, a obra é princípio, ou seja, documento do qual outros historiadores poderão se apropriar, sob sua própria perspectiva de análise, para a produção de novas historiografias. O livro divide-se em duas grandes seções, sendo a primeira a tradução da Demanda do manuscrito de Heidelberg, e a segunda, um apêndice intitulado "O Santo Graal, o 'Ciclo de Artur' e o mundo moderno". Esse último consiste em um texto de caráter analítico e explicativo, no qual o autor elabora uma crítica ao documento, procurando traçar suas origens, trajetória, interferências, produção, reprodução e recepção. Além disso, busca-se estabelecer o lugar do texto no contexto de sua produção, o que resulta em importantes considerações sobre a Idade Média e suas autorrepresentações. A tradução apresenta-se em oito capítulos, nos quais é possível observar um significativo trânsito de personagens célebres em várias narrativas dos ciclos arturianos. Trata-se de uma matriz, amplamente conhecida e partilhada entre escritores e leitores/ouvintes, e que permitia que aspectos considerados "familiares" retornassem às narrativas e fossem acolhidos como "naturais" daquele texto. A dinâmica da produção e circulação desse conjunto denominado, com propriedade, "ciclo" implicava a leitura/oitiva de textos prévios pelas gerações posteriores, o que resultava na recepção de uma literatura específica, cujas regras eram previamente conhecidas e acordadas. Por isso, voltamos a encontrar, aqui, tipos como Percival - ou Parsifal -, o homem puro, mas que deve percorrer um longo caminho; Galvão - ou Gawin - o homem de corte, nobre por excelência; e o próprio Lancelot, o cavaleiro destinado ao Graal, mas dele afastado pela mácula do pecado.

Trata-se de um conjunto de heróis em processo de sacralização, o que corresponde à progressiva cristianização pela qual passaram as matérias das narrativas - a chamada "matéria da Bretanha". Virtudes consideradas cristãs - a humildade, a justiça, a coragem, entre outras - e incorporadas à mentalidade social ao longo de muitas gerações passaram a caracterizar, por excelência, os heróis arturianos. Os modelos sociais valorizados foram transmitidos pelo discurso clerical e reforçados pela narrativa laica - caso dos ciclos arturianos. O herói a cavalo reúne as características relacionadas por São Bernardo de Claraval, no século XII, ao compor o Elogio da Nova Milícia. Esse foi composto com o fim de louvar os monges-cavaleiros da Ordem dos Templários, mas acabou por legar um modelo literário em que as duas figuras - o monge e o cavaleiro - se aproximaram e associaram. A narrativa dos feitos heroicos passou, paulatinamente, a integrar um cânone discursivo cristão, e a figura do herói a cavalo - o cavaleiro - começou a flertar abertamente com a santidade. Mas a santidade implícita na missão do Graal é também a santidade recalcitrante e conflituosa de muitas vidas de santos da Idade Média: ela tende a valorizar um vir-a-ser, e serve-se da noção de que o perfeito cavaleiro só pode ser construído no percurso de sua busca. Assim é para o peregrino, representação da condição humana na terra, cujo fim se encontra nos meios, a saber, o trajeto - a peregrinação.

O Lancelot-peregrino que salta do texto de Baccega é um homem contrito. Cavaleiro que, tendo caído pelo pecado, manteve a honra (honor); fora o melhor - doravante, é penitente e peregrino. Sua ação orienta-o ao fim, mas ele se sabe não merecedor da recompensa - deve propiciá-la a outro(s). A recompensa - a (re)conquista do Graal - é uma obra em comum. Sua consecução, em que pesem os atributos do indivíduo que deve executá-la ("é uma aventura maravilhosa, que não deve ser levada ao fim, a não ser que o faça aquele que lá deve superar, com bem e com cavalaria, todos os companheiros da Távola Redonda"; p.339), supõe uma finalidade social, um bem comum. Por essa razão, o reino e a sociedade do Graal possuem finalidade salvífica: a conquista do objeto material implica a afluência do bem imaterial, a salvação das almas. Nesse sentido, Artur é o bom rei cristão, que, ao comandar a Demanda, atua em proveito da salus populi. E Lancelot, o melhor cavaleiro da Távola do Rei - mas que perdeu a capacidade de tocar o Graal - é um elemento que atua em prol do conciliarismo: o corpo de conselheiros do rei assume papel fundamental - prevalente sobre o próprio monarca - na obra salvífica do Graal. Baccega conhece a necessidade de diminuir Lancelot a fim de lhe proporcionar a possibilidade da penitência, única saída para o personagem. Por essa razão, se, por um lado, o grande cavaleiro se encontra diminuído sob a perspectiva hierárquica da corte de Artur, por outro, sua ação permanece fundamental do ponto de vista da narrativa - é ela que viabiliza a saga, desde o primeiro momento, quando ele se põe em marcha, ao chamado da donzela que cavalga. O Lancelot da Demanda é, também, figura apoteótica de um processo de subjetivação que teve lugar entre os séculos XII e XIII, e que, do ponto de vista da relação do fiel com o sagrado, resultaria na elaboração da prática do "exame de consciência". A relação adúltera entre Lancelot e a rainha Ginevra - com a subsequente contrição de Lancelot - retoma, com efeito, uma trajetória de esforços no sentido de normatizar e regular o comportamento de uma aristocracia guerreira na Idade Média,3 e que deveria conduzir ao seu enquadramento na ordem social. O Lancelot penitente representa a (re)conciliação da cavalaria com os valores de corte, o que deveria resultar em um enquadramento social dos milites.

O Percival de Baccega, por sua vez, é igualmente humano, em sua atitude humilde diante da grandeza da empreitada. Ele cultiva uma perspectiva reverente, quase real, que nos remete a um personagem atemporal - que poderia estar hoje entre nós. Seu destino e sua atribuição são grandiosos, e até sobrenaturais, mas sua atitude o vincula permanentemente àquilo que há de mais humano - frágil e resiliente, esse Percival é um intérprete da condição do homem. Somente o caminho que ele percorre é capaz de torná-lo apto àquilo que já lhe está predestinado. Baccega assume a responsabilidade por uma tradução por vezes aparentemente conflitante, na medida em que é do conflito que emerge a maturidade: seu Percival deve deixar de ser criança para tornar-se homem - o caminho o obriga, ao mesmo tempo que a conquista do Graal o pressupõe. Se Percival personifica o cavaleiro do conciliarismo, ao representar a comunidade, Galvão é o cavaleiro da corte, aquele que se encontra ao lado do rei, personifica o princípio hierárquico e apresenta uma distinção visível, palpável. Mas não há, ainda, oposição entre as duas figuras, uma vez que elas são apresentadas como complementares. Ao retratá-los, Baccega mantém as tintas sob seu controle, e nos dá ciência de que estamos diante de uma sociedade agrária, territorial, cristã. Não há liberdade fora da órbita de influência de um senhor, na mesma medida em que não há salvação fora da crença no Senhor. A ordem do romance arturiano emula a ordenação de um mundo feudal, o qual pretende, ainda, emular a própria ordem celeste.

A descoberta, no Ocidente medieval, da obra de Dionísio, o Areopagita, também conhecido como Pseudo-Dionísio, viria a exercer forte impacto sobre as teorias sobre a organização das sociedades. De raiz platônica, esse conjunto de escritos foi traduzido pela primeira vez no século IX por João Scott Eriúgena. As obras De coelestibus hierarchia e De ecclesiastica hierarchia viriam a reforçar um pensamento que primava pela hegemonia do mundo espiritual sobre o material, retomando a exegese da carta de Paulo (I Cor 13) segundo a qual haveria uma relação de espelhamento entre as ordens terrestre e celeste. Se as cortes na terra emulavam, de forma geral, a corte celestial, é certo que a corte arturiana, particularmente, teria sido concebida para replicar não somente a corte divina, como também a sociedade apostólica e seus principais eventos. No momento em que a tia de Percival fala ao sobrinho sobre o "Assento Maravilhoso", atribui-se à sociedade arturiana um papel de continuidade no interior do plano divino. Ela assim o diz: "Vós bem sabeis que Jesus Cristo foi entre os apóstolos senhor e mestre por mandato e a partir disto foi imaginada a távola do Santo Graal por José [de Arimateia] e a távola redonda por vontade dos cavaleiros" (p.105). Por essa razão, os eventos que presidem à chamada Távola Redonda se encontram em relação direta com os eventos da sociedade crística e da paixão de Cristo, na medida em que prolongam aquelas experiências ao mesmo tempo em que presentificam os fatos sagrados. Por essa razão, podemos afirmar que a sociedade arturiana possui um forte aspecto sacramental: na medida em que recorda e revive o sagrado, atua como elemento ritual, que se liga ao sagrado de forma direta, sem a necessidade de mediação, como na celebração eucarística ou na conferência das ordens eclesiásticas.

Em sua tese de doutorado, defendida em 2012, Baccega elaborou, a partir de uma argumentação consistente e um amplo espectro bibliográfico, as conexões entre a representação da sociedade arturiana e a questão do sacramento cristão. A dimensão sacramental do romance arturiano implica, para além de seus vínculos com a instituição e o ensinamento cristãos, uma tentativa de recuperar uma essência que subjaz à própria condição humana. Esse anseio se desdobra na busca pelo sagrado, cuja trajetória concreta, no espaço físico, apresenta um correspondente direto com o caminho interno, subjetivo, por meio do qual o homem espera encontrar e conhecer a si mesmo. Nesse sentido, vale, para a demanda tanto quanto para a ortodoxia cristã, a noção agostiniana de que o homem conhece a Deus na medida em que se conhece - o conhecimento é, para Agostinho, um recurso que faculta ao homem a capacidade de reconhecer e recuperar a similitudo perdida. A demanda fala ao coração dos homens, tanto quanto à sua sede de aventura, e à vocação cavaleiresca para submeter-se a provas. Se, por um lado, cabe ao cavaleiro realizá-la em virtude de seu pendor para a aventura, por outro, a demanda é obra humana, e visa religar o homem com o sagrado - e reconciliar-se com a essência sagrada dentro de si é o destino atribuído a toda a humanidade.


NOTAS

1Utiliza-se a expressão "verdade moral" para designar uma narrativa que não depende da História, mas da disposição correta e harmoniosa dos componentes textuais (cf. Amor, 2011, p.71-90).

2 Heitor Megale (2008) faz alusão, na introdução à sua edição, à retomada do mito arturiano no contexto do mito messiânico de Dom Sebastião.

3A esse respeito, cite-se Huizinga (2010).


REFERÊNCIAS

AMOR, L. La dimensión social del roman artúrico del siglo XII. In: RODRIGUEZ, G. (Dir.) Cuestiones de Historia Medieval, v.2. Buenos Aires: Selectus, 2011. p.71-90. [ Links ]

BACCEGA, M. A demanda do Santo Graal: o manuscrito de Heidelberg. São Paulo: Hedra, 2015. [ Links ]

HUIZINGA, J. O outono da Idade Média: estudo sobre as formas de vida e de pensamento dos séculos XIV e XV na França e nos Países Baixos. Trad. Francis Petra Janssen. São Paulo: Cosac Naify, 2010. [ Links ]

MEGALE, H. A demanda do Santo Graal. São Paulo: Cia. das Letras, 2008. [ Links ]

ZUMTHOR, P. Genèse et évolution du genre. In: Grundriss der Romanischen Literatur des Mittelalters: Le Roman jusq'à la fin du XIIIe. siècle. Heidelberg: Carl Winter, 1978. [ Links ]


Ana Paula Tavares Magalhães é professora do Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. @ - apmagalh@usp.br
Revista Estudos Avançados