TILLY, Charles. 1998. Durable Inequality. California: University of California Press. 299 pp.
Jorge Pantaleón
Mestrando, PPGAS-MN-UFRJ
A publicação desse livro poderia ser encarada, em parte, como mais um capítulo da polêmica atualmente em curso sobre políticas públicas e sociais nos Estados Unidos. O cerceamento de fundos para assistência social, somado a uma seleção mais rigorosa dos seus beneficiários, à precarização do emprego e a uma persistente racialização das relações sociais, vêm se desenvolvendo em um contexto de acirradas discussões, propiciando o posicionamento público de atores importantes da academia norte-americana. A atualização de argumentos que tentam fundamentar as diferenças entre os seres humanos tendo em vista suas capacidades cognitivas - cuja formulação mais cristalina se encontra no livro, de 1994, The Bell Curve: Inteligence and Class Structure in American Life, de Richard J. Hernstein e Charles Murray - desencadeou inúmeras respostas, dentre as quais o próprio livro do historiador Charles Tilly.
O autor é extremamente original ao tratar da gênese e da permanência das desigualdades humanas - mesmo que essa constatação seja quase óbvia nas ciências sociais, que têm demonstrado que tais desigualdades se estendem no tempo e no espaço. Sua originalidade consiste na discussão e na utilização de teorias e perspectivas atuais, produzidas no âmbito de diversas disciplinas, tratando em conjunto temáticas que tendem a ser analisadas de maneira isolada. O autor propõe, assim, desenvolver - com todo o peso que essa expressão pode carregar - "explicações gerais".
Para Tilly, o motivo pelo qual as desigualdades sociais perduram está relacionado ao fato de que pares de categorias assimétricas estão sempre disponíveis, fazendo parte do cotidiano e oferecendo, mesmo para os hierarquicamente inferiores, a possibilidade de algum benefício, ou, o que é o mesmo, a ilusão de tê-lo. O tom de provocação de seu argumento deriva da revelação dessa face "positiva" dos mecanismos geradores e perpetuadores das desigualdades. Em outro plano, o autor examina as relações entre categorizações assimétricas e sistemas de governo. Do seu ponto de vista, as democracias reforçam os mecanismos de inclusão e exclusão com muito mais energia que as autocracias, ainda que, ao mesmo tempo, essas democracias possam oferecer às suas populações canais de inclusão mais eficazes do que em qualquer outro sistema político. Se toda inclusão implica algum tipo de exclusão, todo processo de incorporação de novas categorias sociais nos assuntos públicos reforçará e criará desigualdades, e mesmo nas políticas supostamente mais redistributivas, como as do welfare state, pode-se comprovar a reprodução dos mecanismos de criação de desigualdades sociais.
Compartilhando uma mesma abordagem processual e histórica com outros autores (como Skocpol, Wilson, Sen, Castel, Ewald e Rosanvallon, dentre outros), Tilly, nesse livro, concentra-se na explicitação de esquemas e mecanismos gerais, segundo ele, "sempre presentes" na construção e na perduração da desigualdade. É essa singularidade que, em contrapartida, confere ao texto um certo tom por vezes excessivamente esquemático e terminológico.
Coerente com sua intenção programática, o texto define o que seriam os princípios gerais da constituição das relações assimétricas (principalmente nos dois primeiros capítulos), observando como esses princípios funcionam em situações históricas específicas (capítulo 3), através de vínculos sociais singulares, como no caso da geração de categorias raciais, de gênero, cidadania, classe ou profissão (capítulos 4, 5 e 6). Nos capítulos finais (7 e 8), Tilly trata da "política e do futuro das desigualdades", desenvolvendo posicionamentos relativos a questões acadêmicas e políticas do mundo contemporâneo.
A hipótese central é que as desigualdades duradouras entre os seres humanos têm de ser compreendidas em relação à gênese e reprodução das diferenças entre categorias (como negro e branco, homem e mulher, cidadão e estrangeiro), mais do que a partir de distinções simples no plano das capacidades, gostos ou, ainda, desempenhos individuais (:7). O livro descreve quatro mecanismos básicos por intermédio dos quais as desigualdades duradouras seriam geradas, e onde agentes sociais incorporariam pares de categorias assimétricas. O primeiro desses mecanismos, "exploração", baseia-se na extração, por parte dos indivíduos que controlam conjuntos de recursos específicos, de benefícios gerados por outros. O segundo mecanismo, "acumulação de oportunidades", desenvolve-se quando integrantes de uma rede têm acesso a recursos que podem ser por eles monopolizados a partir do próprio modus operandi da rede - a criação de categorias excludentes em unidades militares seria um exemplo disso. Os outros dois mecanismos, "emulação" e "adaptação", reforçam a efetividade das distinções categoriais: o primeiro, mostrando como uma organização se reproduz imitando modelos de desigualdade que já obtiveram sucesso (a emulação das formas de organizar as burocracias em outras nações, na formação de novos Estados, por exemplo); o segundo, observando como se cria e se rotiniza um "conhecimento local" constituído a partir desses modelos (os trabalhadores do mundo da burocracia que, no seu dia-a-dia, assumem e reproduzem as hierarquias existentes através da "elaboração de práticas evasivas, brincadeiras, epítetos, alianças e intrigas").
Tilly afasta-se de uma simples condenação, ética ou teórica, da desigualdade, apoiando-se em uma constatação: as desigualdades teriam surgido para resolver, a "baixo custo", desajustes organizacionais, simultaneamente juntando e separando agentes e grupos sociais, e definindo as relações entre eles (:62). Uma das formas típicas de permanência das desigualdades consiste, segundo o autor, na capacidade de cruzar oposições e de sobrepor algumas categorias a outras. Segundo Tilly, as categorias assimétricas geram, indiretamente, acumulação diferencial de capacidades e, diretamente, recompensas desiguais. A substancialização produz-se quando as diferenças se transformam socialmente em qualidades que são atribuídas aos indivíduos - surgindo aí as razões e a linguagem da raça, do gênero, da aptidão cognitiva, da idade, da nacionalidade etc.
O autor realiza uma escolha nada ingênua ao operacionalizar, na análise histórica concreta, o modelo construído na primeira parte do trabalho. Assim, a introdução do capitalismo na África do Sul e a constituição do apartheid será o caso paradigmático para a ilustração dos mecanismos de exploração. A análise mostra as relações entre os esforços coordenados dos indivíduos que se convertem em dominadores (funcionários de Estado e capitalistas brancos), o monopólio dos recursos disponíveis (no começo, jazidas de minérios e, depois, a indústria e o comércio) e o retorno diferenciado dos benefícios a partir dos processos de exclusão categorial (como no caso dos mecanismos de controle do trabalho, que incluem fronteiras definidas segundo princípios étnicos no interior das empresas capitalistas).
Estudando as formas de discriminação das mulheres no mundo das empresas norte-americanas, Tilly observa a combinação dos mecanismos de exploração e acumulação de oportunidades, dos quais, por sua vez, derivam modalidades de aquisição de capacidades e de treinamento diferenciais, que resultam em "aptidões diferentes". Dessa forma, polemiza também com as explicações das diferenças sociais baseadas na noção de "capital humano", proveniente da economia empresarial. Os movimentos migratórios ilustram de forma privilegiada o mecanismo de acumulação de oportunidades. O exemplo do processo de estabelecimento e reprodução dos imigrantes italianos em um subúrbio de Nova York serve para ilustrar a criação de nichos ocupacionais baseados em redes de relações sociais, ao lado da exclusão sistemática daqueles que não fazem parte da rede.
Os "nacionalismos" não estão fora dos fenômenos tratados como parte do mecanismo geral da exploração; servem, também, como ilustração do funcionamento dos mecanismos de emulação e de adaptação. Tilly identifica alguns dos princípios constitutivos das nacionalidades, tais como a criação de performances públicas de auto-reconhecimento, a luta entre grupos que disputam a representatividade oficial da nação, e a criação de crenças e práticas nacionalistas em territórios sociais até então altamente diversificados.
As páginas finais do livro revelam a preocupação do autor com as formas mais efetivas de intervenção contra as desigualdades sociais. De acordo com Tilly, se as desigualdades não podem ser explicadas a partir de teorias genéticas, ou ancoradas em performances individuais, tampouco poderão ser esperadas mudanças significativas a partir das formas individualistas de intervenção, como as que se baseiam no "ensino de atitudes novas mais tolerantes". Ao contrário, Tilly sugere que a única possibilidade de mudança é a que visa romper com as superposições de pares de categorias assimétricas, amplamente aceitas e generalizadas na vida social (:244).
Construído de uma perspectiva não substancialista, o livro nos lembra uma evidência freqüentemente esquecida: toda diferença é sempre sustentada por uma relação. Tilly expõe também o fato de que, por razões que remetem menos ao acaso e mais à existência dos próprios mecanismos da dominação, a explicação da gênese das desigualdades costuma ser substituída por reificações e pela substancialização das qualidades e das capacidades de indivíduos que, na verdade, são criadas no interior das relações sociais. Enfim, uma das virtudes do texto consiste, de forma algo paradoxal, em seu caráter mnemônico, isto é, no fato de apresentar uma demonstração atualizada daquilo que, tornando-se óbvio, corre também o risco de tornar-se banal.
Jorge Pantaleón
Mestrando, PPGAS-MN-UFRJ
A publicação desse livro poderia ser encarada, em parte, como mais um capítulo da polêmica atualmente em curso sobre políticas públicas e sociais nos Estados Unidos. O cerceamento de fundos para assistência social, somado a uma seleção mais rigorosa dos seus beneficiários, à precarização do emprego e a uma persistente racialização das relações sociais, vêm se desenvolvendo em um contexto de acirradas discussões, propiciando o posicionamento público de atores importantes da academia norte-americana. A atualização de argumentos que tentam fundamentar as diferenças entre os seres humanos tendo em vista suas capacidades cognitivas - cuja formulação mais cristalina se encontra no livro, de 1994, The Bell Curve: Inteligence and Class Structure in American Life, de Richard J. Hernstein e Charles Murray - desencadeou inúmeras respostas, dentre as quais o próprio livro do historiador Charles Tilly.
O autor é extremamente original ao tratar da gênese e da permanência das desigualdades humanas - mesmo que essa constatação seja quase óbvia nas ciências sociais, que têm demonstrado que tais desigualdades se estendem no tempo e no espaço. Sua originalidade consiste na discussão e na utilização de teorias e perspectivas atuais, produzidas no âmbito de diversas disciplinas, tratando em conjunto temáticas que tendem a ser analisadas de maneira isolada. O autor propõe, assim, desenvolver - com todo o peso que essa expressão pode carregar - "explicações gerais".
Para Tilly, o motivo pelo qual as desigualdades sociais perduram está relacionado ao fato de que pares de categorias assimétricas estão sempre disponíveis, fazendo parte do cotidiano e oferecendo, mesmo para os hierarquicamente inferiores, a possibilidade de algum benefício, ou, o que é o mesmo, a ilusão de tê-lo. O tom de provocação de seu argumento deriva da revelação dessa face "positiva" dos mecanismos geradores e perpetuadores das desigualdades. Em outro plano, o autor examina as relações entre categorizações assimétricas e sistemas de governo. Do seu ponto de vista, as democracias reforçam os mecanismos de inclusão e exclusão com muito mais energia que as autocracias, ainda que, ao mesmo tempo, essas democracias possam oferecer às suas populações canais de inclusão mais eficazes do que em qualquer outro sistema político. Se toda inclusão implica algum tipo de exclusão, todo processo de incorporação de novas categorias sociais nos assuntos públicos reforçará e criará desigualdades, e mesmo nas políticas supostamente mais redistributivas, como as do welfare state, pode-se comprovar a reprodução dos mecanismos de criação de desigualdades sociais.
Compartilhando uma mesma abordagem processual e histórica com outros autores (como Skocpol, Wilson, Sen, Castel, Ewald e Rosanvallon, dentre outros), Tilly, nesse livro, concentra-se na explicitação de esquemas e mecanismos gerais, segundo ele, "sempre presentes" na construção e na perduração da desigualdade. É essa singularidade que, em contrapartida, confere ao texto um certo tom por vezes excessivamente esquemático e terminológico.
Coerente com sua intenção programática, o texto define o que seriam os princípios gerais da constituição das relações assimétricas (principalmente nos dois primeiros capítulos), observando como esses princípios funcionam em situações históricas específicas (capítulo 3), através de vínculos sociais singulares, como no caso da geração de categorias raciais, de gênero, cidadania, classe ou profissão (capítulos 4, 5 e 6). Nos capítulos finais (7 e 8), Tilly trata da "política e do futuro das desigualdades", desenvolvendo posicionamentos relativos a questões acadêmicas e políticas do mundo contemporâneo.
A hipótese central é que as desigualdades duradouras entre os seres humanos têm de ser compreendidas em relação à gênese e reprodução das diferenças entre categorias (como negro e branco, homem e mulher, cidadão e estrangeiro), mais do que a partir de distinções simples no plano das capacidades, gostos ou, ainda, desempenhos individuais (:7). O livro descreve quatro mecanismos básicos por intermédio dos quais as desigualdades duradouras seriam geradas, e onde agentes sociais incorporariam pares de categorias assimétricas. O primeiro desses mecanismos, "exploração", baseia-se na extração, por parte dos indivíduos que controlam conjuntos de recursos específicos, de benefícios gerados por outros. O segundo mecanismo, "acumulação de oportunidades", desenvolve-se quando integrantes de uma rede têm acesso a recursos que podem ser por eles monopolizados a partir do próprio modus operandi da rede - a criação de categorias excludentes em unidades militares seria um exemplo disso. Os outros dois mecanismos, "emulação" e "adaptação", reforçam a efetividade das distinções categoriais: o primeiro, mostrando como uma organização se reproduz imitando modelos de desigualdade que já obtiveram sucesso (a emulação das formas de organizar as burocracias em outras nações, na formação de novos Estados, por exemplo); o segundo, observando como se cria e se rotiniza um "conhecimento local" constituído a partir desses modelos (os trabalhadores do mundo da burocracia que, no seu dia-a-dia, assumem e reproduzem as hierarquias existentes através da "elaboração de práticas evasivas, brincadeiras, epítetos, alianças e intrigas").
Tilly afasta-se de uma simples condenação, ética ou teórica, da desigualdade, apoiando-se em uma constatação: as desigualdades teriam surgido para resolver, a "baixo custo", desajustes organizacionais, simultaneamente juntando e separando agentes e grupos sociais, e definindo as relações entre eles (:62). Uma das formas típicas de permanência das desigualdades consiste, segundo o autor, na capacidade de cruzar oposições e de sobrepor algumas categorias a outras. Segundo Tilly, as categorias assimétricas geram, indiretamente, acumulação diferencial de capacidades e, diretamente, recompensas desiguais. A substancialização produz-se quando as diferenças se transformam socialmente em qualidades que são atribuídas aos indivíduos - surgindo aí as razões e a linguagem da raça, do gênero, da aptidão cognitiva, da idade, da nacionalidade etc.
O autor realiza uma escolha nada ingênua ao operacionalizar, na análise histórica concreta, o modelo construído na primeira parte do trabalho. Assim, a introdução do capitalismo na África do Sul e a constituição do apartheid será o caso paradigmático para a ilustração dos mecanismos de exploração. A análise mostra as relações entre os esforços coordenados dos indivíduos que se convertem em dominadores (funcionários de Estado e capitalistas brancos), o monopólio dos recursos disponíveis (no começo, jazidas de minérios e, depois, a indústria e o comércio) e o retorno diferenciado dos benefícios a partir dos processos de exclusão categorial (como no caso dos mecanismos de controle do trabalho, que incluem fronteiras definidas segundo princípios étnicos no interior das empresas capitalistas).
Estudando as formas de discriminação das mulheres no mundo das empresas norte-americanas, Tilly observa a combinação dos mecanismos de exploração e acumulação de oportunidades, dos quais, por sua vez, derivam modalidades de aquisição de capacidades e de treinamento diferenciais, que resultam em "aptidões diferentes". Dessa forma, polemiza também com as explicações das diferenças sociais baseadas na noção de "capital humano", proveniente da economia empresarial. Os movimentos migratórios ilustram de forma privilegiada o mecanismo de acumulação de oportunidades. O exemplo do processo de estabelecimento e reprodução dos imigrantes italianos em um subúrbio de Nova York serve para ilustrar a criação de nichos ocupacionais baseados em redes de relações sociais, ao lado da exclusão sistemática daqueles que não fazem parte da rede.
Os "nacionalismos" não estão fora dos fenômenos tratados como parte do mecanismo geral da exploração; servem, também, como ilustração do funcionamento dos mecanismos de emulação e de adaptação. Tilly identifica alguns dos princípios constitutivos das nacionalidades, tais como a criação de performances públicas de auto-reconhecimento, a luta entre grupos que disputam a representatividade oficial da nação, e a criação de crenças e práticas nacionalistas em territórios sociais até então altamente diversificados.
As páginas finais do livro revelam a preocupação do autor com as formas mais efetivas de intervenção contra as desigualdades sociais. De acordo com Tilly, se as desigualdades não podem ser explicadas a partir de teorias genéticas, ou ancoradas em performances individuais, tampouco poderão ser esperadas mudanças significativas a partir das formas individualistas de intervenção, como as que se baseiam no "ensino de atitudes novas mais tolerantes". Ao contrário, Tilly sugere que a única possibilidade de mudança é a que visa romper com as superposições de pares de categorias assimétricas, amplamente aceitas e generalizadas na vida social (:244).
Construído de uma perspectiva não substancialista, o livro nos lembra uma evidência freqüentemente esquecida: toda diferença é sempre sustentada por uma relação. Tilly expõe também o fato de que, por razões que remetem menos ao acaso e mais à existência dos próprios mecanismos da dominação, a explicação da gênese das desigualdades costuma ser substituída por reificações e pela substancialização das qualidades e das capacidades de indivíduos que, na verdade, são criadas no interior das relações sociais. Enfim, uma das virtudes do texto consiste, de forma algo paradoxal, em seu caráter mnemônico, isto é, no fato de apresentar uma demonstração atualizada daquilo que, tornando-se óbvio, corre também o risco de tornar-se banal.
Revista Mana
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