quarta-feira, 28 de março de 2012

Jango: as múltiplas faces



Ângela de Castro Gomes, Jorge Ferreira. Jango: as múltiplas faces

Antonio Torres Montenegro
Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) – Pesquisador do CNPq. Rua Acadêmico Hélio Ramos s/n – Cidade Universitária. 50670-901 Recife – PE – Brasil. antoniomontenegr@hotmail.com

Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2007. 280p.

O livro Jango: as múltiplas faces, de autoria dos professores Ângela de Castro Gomes e Jorge Ferreira, vem de forma muito própria ampliar o debate em torno da trajetória pública de um político que teve participação fundamental na história do Brasil, particularmente na segunda metade do século XX.

Em que pese essa participação ampla e ativa nos acontecimentos, sobretudo políticos, econômicos e sociais, produziu-se em torno do ex-presidente João Goulart uma história carregada de significados negativos. E essa produção (como assinalam os autores) foi instituída tanto por setores adversários (partidos e grupos políticos dos mais diferentes matizes ideológicos e segmentos da sociedade civil) como pelos partidos e grupos políticos que o apoiavam. Em razão desse cenário, desconstruir essa história que hoje opera como uma memória não é algo instantâneo nem uma operação que ofereça facilidade aos historiadores.

É nessa trincheira de uma história a contrapelo que este livro irá se posicionar. E o primeiro movimento para quebrar o quadro monolítico das adjetivações de Jango indeciso, Jango sem controle da situação política do País, Jango dominado pelos comunistas, Jango de quem todos desconfiavam, é trazer à tona uma série de atores constituidores desses discursos e confrontá-los com outros atores e outros discursos que apontam em sentido diametralmente oposto. O segundo movimento é romper com um relato e uma imagem que comumente reduz a trajetória de Jango ao seu período como presidente. Assim, os autores ao reconstruírem a trajetória de Jango, desde seus primeiros encontros com Vargas em São Borja em 1945, depois deputado estadual pelo PTB no Rio Grande do Sul, deputado federal, secretário do Interior e Justiça do governo de Ernesto Dornelles no Rio Grande do Sul, presidente do PTB, ministro do trabalho de Getúlio em 1953-1954 e depois vice-presidente de Juscelino entre 1956 e 1960, instituem a história de um político que acumulou uma larga experiência ao longo da vida.

Entretanto, para todos que acompanham os artigos e livros dos professores Ângela de Castro e Jorge Ferreira, não é difícil perceber que tanto esse período da história do Brasil, como a atuação de João Goulart, constantemente atravessam as trilhas de seus escritos, mesmo quando o foco de suas narrativas históricas é outro. Este registro é importante, pois sem um amplo conhecimento do período e de uma documentação bastante diversificada, não seria possível construir uma contra-história que rompesse a rede de significações estabelecidas. Afinal, constitui-se um grande desafio aos historiadores que se dedicam a pesquisar esse período, não subsumir a sua produção a uma lógica dualista e teleológica que, de maneira 'apriorística', institui uma visão histórica positiva ou negativa acerca de João Goulart.

Em razão do exposto, qual engenharia escriturística montaram estes historiadores? Poderiam ter escrito uma biografia política tradicional. No entanto, optaram por um caminho muito mais sinuoso. Poder-se-ia dizer uma meta-história. Mas não reduzida à perspectiva lingüística, em que o sentido ou os significados se estabelecem a partir das figuras da linguagem, e sim, fundamentalmente por meio de um caleidoscópio documental. Neste, a história de vida e, sobretudo política de Jango, apesar de se apresentar narrada em sete capítulos ou períodos referenciais, adquire formas as mais diversas à medida que lemos o conjunto documental em que se apóia cada capítulo. Dessa maneira, desafia o leitor a realizar uma leitura difícil, articulando, detalhando a trama que obriga à reflexão a todo instante, pois os distintos documentos e imagens emitem signos de diferentes matizes. E, possivelmente, as pessoas que buscam uma resposta pronta, uma representação sem paradoxo, sem conflitos, sem dúvidas, não terão neste livro uma leitura fácil.

Ao percorrer atentamente as linhas labirínticas que instituem essa história, descobre-se como mãos extremamente habilidosas operaram no limiar ou na fronteira da unidade e da pluralidade de sentidos e significados. Os autores, ao afirmarem "que se buscou não foi a homogeneidade e a convergência de pontos de vista, 'fechando' a biografia, mas justamente o inverso: o confronto, o debate de opiniões, 'abrindo' a trajetória de Jango a leituras variadas", possibilitaram ao leitor conhecer relatos de aliados e de adversários de Jango, produzindo as mais diferentes análises, avaliações e pontos de vista. Entretanto, essa pluralidade/diversidade caleidoscópica está montada para nos causar a sensação ou o efeito literário de que o acaso, a incerteza e a dúvida não são apenas atributos da história cotidiana, mas, também da reconstrução historiográfica.

A seleção de alguns pequenos trechos de relatos presentes no livro possibilita ao leitor antever como essa diversificada e paradoxal documentação sugere a potencialidade de distintas histórias, ou talvez a impossibilidade de uma história conclusiva. Observa Raul Ryff, secretário de imprensa da presidência de Jango, o qual abre a sessão de documentos do capítulo VI, "Jango e o golpe de 1964":

Ele incentivou a sindicalização rural, mexeu numa área perigosa, uma área de coronéis, no sentido de chefia política. Lutou pela reforma agrária; estabeleceu a Lei da Remessa de Lucros controlando, colocando normas para essa remessa e diminuindo a taxa de retorno do capital estrangeiro; desapropriou as refinarias particulares entregando-as à Petrobras. Enfim, tomou várias medidas importantes. Foi um governo notadamente nacionalista, popular e democrático.

Ainda numa perspectiva muito próxima a esse depoimento de Ryff, poder-se-ia apontar nesse mesmo capítulo o depoimento de Hércules Correia, membro do PCB que no dia do golpe acompanhou o diálogo ao telefone entre Jango e um dos militares golpistas:

Aí o Kruel ligou e Jango pediu que um de nós fosse para o telefone na extensão. O Oswaldo Pacheco pediu: "Vai você". Aí eu fui para a extensão e ouvi a conversa. O Kruel disse que a única forma de evitar um golpe era dissolver oficialmente a CGT e prender todo mundo. Naquela época, seria prisão de mais ou menos 500 dirigentes sindicais aqui do Rio e dos estados; as principais cabeças. E o Jango não aceitou. Respondeu na hora, disse que não, que não ia prender, não ia fazer aquilo. A partir daí não tinha mais condições de ficar na presidência. Então foi para Brasília e, de Brasília, pegou outro avião e foi para o Uruguai.

Esses fragmentos positivam a atuação e o comportamento do presidente João Goulart. No entanto, há nos autores uma clara opção por uma trilha marcada por paradoxos que recolocam a dúvida e a incerteza, desconstruindo a possibilidade de instituir uma história conclusiva. E nesse sentido é revelador o relato de Hugo Faria, que conhece Jango ainda no período em que este assumiu o Ministério do Trabalho de Getúlio, vindo posteriormente a se tornar seu amigo e conselheiro:

E chegou um ponto em que ele me disse: "Hugo, você sabe por que tirei você da Casa Civil?". Eu respondi: "Saber eu não sei, mas desconfio. O senhor não tem condições de aceitar críticas, e como eu sou por natureza um crítico, o senhor se encheu. Como é meu amigo, me deu uma outra posição. Na verdade, o senhor não aceita crítica". Ele concordou: "É, você me enchia... Todo o dia era notícia ruim, notícia ruim...". Não era. Eu estava mostrando a evolução, ele não queria acreditar. Não fui eu só, não! Juscelino foi três vezes ao palácio alertar Jango de que a revolução ia estourar. E na última vez Jango disse: "Eu boto esse pessoal nas ordens em meia hora, uma hora. O Assis Brasil tem um esquema montado". Ele preferia acreditar nas bazófias do general Assis Brasil...

Este pode ser visto como um fragmento de um relato crítico de um amigo, que foi preterido como voz aconselhadora quando tentou (da mesma forma que outros também o fizeram) alertar Jango acerca do perigo de uma conspiração golpista que se avizinhava. Ou seja, o presidente não era receptivo a críticas e às boas avaliações na visão do amigo de longa data, Hugo Faria.

Um relato do campo adversário, também instituindo uma perspectiva negativa da imagem de Jango, encontra-se no relato do general Geisel. Este irá apontar para uma grande resistência a Jango, apenas contornada provisoriamente enquanto se manteve o regime parlamentarista: "A conspiração começou a tomar vulto quando o Jango derrubou o parlamentarismo, foi para o presidencialismo e passou a ser dominado pelo Dante Pellacani e uma série de outros líderes sindicais que mandavam e desmandavam".

Revela o general que, no momento em que o presidente obteve por meio de um plebiscito amplamente favorável os poderes constitucionais de presidente, o movimento conspiratório foi colocado em marcha.

Estes fragmentos oferecem ao leitor uma pequena visão da riqueza e diversidade documental dessa narrativa que elege a figura emblemática de Jango para estudo e que faz recordar Foucault com sua crítica ferrenha às biografias, que instituem representações fechadas, acabadas e na maioria das vezes heróicas dos seus personagens. Ou ainda, por que não lembrar Pirandello e seu maravilhoso Moscarda em Um, nenhum, cem mil?

Ao mesmo tempo, confirma-se o compromisso político da prática historiográfica dos autores, aliando o fazer intelectual a uma busca incessante de novas compreensões de uma realidade em que passado e presente são ressignificados em uma nova forma de fazer política, permanentemente desafiando nosso agir social. É possivelmente com esse espírito que os autores finalizam esta biografia com um pequeno texto manuscrito de Jango, datado de 18 de julho de 1975, portanto um ano antes de sua morte: "Os últimos acontecimentos não podem e não devem ser julgados apressadamente. Não podemos viver placidamente quando milhões de Brasileiros estão sofrendo inúmeros sacrifícios. Peço fé e confiança. Estarei sempre ao lado dos que sofrem em defesa de seus direitos e de nossos ideais".
Revista Brasileira de História

A história do diabo no Brasil



Alfredo dos Santos Oliva. A história do diabo no Brasil

Antonio Paulo Benatte
Depto. de História da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) – Bolsista da Fapesp. Rua Adriático, 151, bl. 14, ap. 52, Jd. do Estádio. 09172-180 Santo André – SP – Brasil. apbenatti@ibest.com.br

São Paulo: Fonte Editorial, 2007. 285p.

Em suas célebres teses Sobre o conceito de História, Walter Benjamin referiu-se à teologia como "reconhecidamente pequena e feia", um saber que "não ousa mostrar-se". A julgar por trabalhos recentes como A história do diabo no Brasil, do historiador e teólogo Alfredo dos Santos Oliva, esse complexo de inferioridade parece ser coisa do passado, pois é justamente o 'mostrar-se' da teologia que faz a diferença na análise historiográfica aqui levada a efeito.

Já na introdução, o autor deixa ver o lugar existencial e epistemológico de onde fala, no que concerne tanto à sua identidade religiosa — pentecostal — quanto às suas opções teóricas e metodológicas, ancoradas na tradição francesa da historiografia de Bloch e Febvre a Michel Foucault. Oliva não esconde sua pertença religiosa nem faz dela uma bandeira, mas busca objetivála o máximo possível. A confessionalidade confessada não impede a objetivação; antes, é a sua condição necessária. Da tensão entre racionalismo e crença o autor não faz um dilema; sua posição é decididamente laica: "O historiador da religião deve estar preocupado em produzir conhecimento academicamente rigoroso e não subsídios para uma apologia, seja ela secular ou religiosa" (p.21). Apesar disso, não cai no racionalismo míope, tão comum nesse tipo de pesquisa; pelo contrário, adota uma perspectiva de 'razão sensível' que poderíamos chamar pós-moderna, não fosse o rótulo ter-se desgastado a ponto de nada mais dizer. Ao discutir a obra seminal de Michel de Certeau, afirma Oliva que "a historiografia é uma forma de conhecimento e escrita que se situa entre a ficção e a realidade e em algum ponto entre a subjetividade e a objetividade" (p.18). Esse difícil equilíbrio, mantido ao longo de todo o texto, faz que o livro seja uma contribuição não apenas conteudística como também metodológica para a historiografia da religião no Brasil contemporâneo. O último capítulo, estritamente metodológico, reafirma essa relevância.

O tema do livro é bem delimitado no tempo e no espaço: as práticas discursivas sobre o diabo na Igreja Universal do Reino de Deus (IURD), de 1977 (ano de fundação da igreja do bispo Macedo) até 2005, ano de defesa da tese de que resultou o livro. Trata-se, pois, das práticas e representações em torno do mal na principal denominação do assim chamado neopentecostalismo brasileiro; mas, por tratar-se do diabo, "esse personagem já bastante idoso", o autor, para fundamentar suas análises em terreno seguro, sente-se obrigado a traçar, em linhas gerais, uma história do diabo na longa duração, do judaísmo antigo e do cristianismo primitivo aos dias atuais. Essa excursão poderia ser considerada um desvio de rota, mas, além de mostrar as continuidades e descontinuidades nas representações do "Inimigo de Deus e de nossas almas", ela fundamenta a análise mais circunscrita que se segue; pois, obviamente, as práticas e crenças da IURD sobre o vil tentador não partem de um vácuo nem são uma construção ex nihil, e sim retomam criativamente representações historicamente construídas desde os tempos bíblicos. Ou seja, as fontes primeiras das práticas e das representações contemporâneas em torno do Adversário são os textos bíblicos canônicos do Novo e do Antigo Testamento; daí as visões vetero e neotestamentárias do mal — ou melhor, de sua personificação no diabo e em seus demônios — serem um ponto de partida (ou de chegada) necessário. As pesquisas sobre a história do diabo na cultura ocidental permitem mostrar, por exemplo, como as práticas acerca desse personagem na IURD (o discurso demonizante, os rituais de exorcismo) não se separam do amplo processo de demonização da alteridade, e em especial da alteridade religiosa, que atravessa a história do cristianismo desde a Igreja primitiva.

A seguir, o historiador-teólogo aborda a implantação e a difusão do pentecostalismo no Brasil desde o começo do século XX. A partir de suas raízes no metodismo, no avivalismo e nos movimentos de santidade, contextualiza o pentecostalismo como uma religião atrelada às camadas populares urbanas, mostrando como "dentro desta categoria social [ele] viria a ser uma importante alternativa de reconstrução de um mundo que se dissolvia rapidamente" (p.123). Atento às diversas continuidades e rupturas na constituição do campo, o autor percebe uma série de diferenciações aparentemente insignificantes que atravessam e constituem o(s) pentecostalismo(s). Aqui, Oliva, mesmo endossando teses consagradas sobre esse movimento sócio-religioso no Brasil, distancia-se criticamente das tipologias ou classificações prévias construídas pelas ciências sociais, inclusive a história; para isso, adota uma perspectiva mais compreensiva (hermenêutica) e menos explicativa do fenômeno religioso.

Para efeitos comparativos, o autor analisa a seguir a visão do mal, do pecado e do diabo em várias perspectivas: no protestantismo tradicional, na teologia da libertação e no pentecostalismo clássico, até desembocar no neopentecostalismo da IURD como expressão de uma religiosidade integrada à lógica sistêmica do capitalismo tardio. Dificilmente esse empreendimento poderia ser realizado sem erudição e desenvoltura teológicas. Assim, para a nova história religiosa, parece claro que, especialmente no caso das grandes "religiões do livro", a abordagem multidisciplinar do fenômeno religioso não possa mais excluir a teologia: o conhecimento teológico mostra-se insubstituível como chave para códigos religiosos que de outro modo passariam imperceptíveis por não se deixarem reduzir ao logos de qualquer ciência.

Mas a principal virtude do livro está em que, sem abdicar de uma postura crítica, o autor adota uma atitude empática do fenômeno religioso, muito distante das posturas científicas que, do alto do tribunal do santo ofício do saber, arvoram-se no direito de julgar e condenar, sem apelação, visões de mundo distantes de suas verdades pretensamente iluminadas e supostamente libertárias. A essa postura judicativa o historiador-teólogo contrapõe uma perspectiva 'relativista', como quando se opõe à interpretação, inspirada em Lévy-Bruhl, do diabólico na IURD como manifestação de uma 'mentalidade primitiva' ou 'pré-lógica'.

No Brasil, os estudos da religião — tradicionais nas ciências sociais desde Nina Rodrigues, passando por Roger Bastide e Duglas Teixeira Monteiro, entre muitos outros — têm crescido quantitativa e qualitativamente nas últimas décadas; e não é diferente com a história: o chamado cultural turn, ou o diálogo com a antropologia, tem favorecido a renovação da história religiosa. O livro de Oliva, em diálogo com a produção de ponta nessa área, insere-se num conjunto de estudos em que a religiosidade aparece intimamente articulada à cultura, no sentido antropológico do termo. Com efeito, os complexos liames entre religião e cultura perpassam toda a obra. O exorcismo, por exemplo, é analisado como um rito de passagem que, demonizando o outro, "constrói o sentido de pertença à igreja" (p.145).

Em alguns momentos, dada a amplitude do tema — a longa história do diabo —, parece haver um abuso de material bibliográfico; mas, na maior parte do tempo — e especialmente no terceiro capítulo, onde investiga como a IURD compreende e fundamenta teologicamente sua demonologia —, prevalece o tratamento empírico do objeto mais circunscrito, quando então a abordagem qualitativa, propiciada pela observação participante, é complementada pela análise de fontes primárias: o material impresso pela IURD, de teor teológico e devocional.

Em suma, trata-se de uma contribuição importante para as linhas de pesquisa preocupadas em compreender as múltiplas dimensões da religiosidade popular brasileira, especialmente quanto aos crentes chamados pentecostais e neopentecostais. Mas o trabalho permite também reflexões mais gerais. Situando-se na confluência da história religiosa e da história cultural, o livro permite ver que, assim como as tentativas de "matar Deus", as tentativas de "assassinar o Diabo" também fracassaram: a persistência da crença na existência do Inimigo sobreviveu à secularização, à racionalização e ao desencantamento do mundo que, segundo as clássicas teses weberianas, caracterizariam a modernidade ocidental. Não é difícil observar que a crença religiosa, muito mais que a racionalidade strictu sensu, continua a ser a dinamis da maioria das práticas culturais. Permanece a certeza de que, sem compreendermos os fenômenos religiosos não compreenderemos as grandes mutações sociais e culturais de nosso tempo. A renitente permanência das crenças religiosas num corpo social crescentemente secularizado exigirá, queiramos ou não, um diálogo entre os adeptos das visões científicas e os das visões religiosas de mundo.

Nesse sentido, a autor, firmando-se em teorias de Jüergen Habermas, conclui seu livro afirmando a necessidade de um diálogo entre ciência e religião. Se, como dizia Kierkegaard, a fé começa onde termina a razão, pode-se imaginar a dificuldade inerente a essas conversações; dificuldade exacerbada, de um lado, pelos fundamentalismos, e, de outro, pelos virulentos ataques do cientificismo ateu, ou "ateísmo científico". Com efeito, reduzir a religião à satisfação de interesses materiais ou mesmo psíquicos — como ainda faz a ciência de corte iluminista e positivista — é pouco entender de religião. A teologia, é claro, não deixa de ser uma ciência (um logos); mas, de qualquer modo, é um discurso menos reducionista e mais aberto à compreensão das necessidades espirituais da humanidade. Por isso, e cada vez mais, o saber teológico é chamado a ocupar uma função mediadora nesse importante diálogo.
Revista Brasileira de História

O valor da saúde: história da Organização Pan-Americana da Saúde

Eduardo Silveira Netto Nunes
Bolsista Fapesp. Doutorando em História Social — FFLCH/Universidade de São Paulo (USP) — Largo Padre Péricles, 74, ap.61 — Barra Funda. 01156-040 São Paulo — SP — Brasil. edunettonunes@yahoo.com.br

Marcos Cueto. O valor da saúde: história da Organização Pan-Americana da Saúde
Rio de Janeiro: Ed. Fiocruz, 2007. 241p.

Na história das políticas de saúde pública no continente americano a presença da Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS) é destacável, e na busca de delinear os caminhos da OPAS ao longo do século XX, Marcos Cueto desenvolveu seu estudo O valor da saúde.

Cueto é especialista em história da saúde pública no continente e, especialmente, no Peru, tendo desenvolvido importantes pesquisas e publicações enfocando essa temática e também a história da ciência naquele país. Sua circulação no Brasil é um tanto restrita, e este livro supre, em parte, tal lacuna.

Com pesquisa exaustiva em instituições de saúde, bibliotecas e arquivos, nacionais e de organismos internacionais — Organização dos Estados Americanos (OEA), OPAS, Organização Mundial da Saúde (OMS) —, e em periódicos da América Latina e dos Estados Unidos, o livro oferece justa visibilidade à trajetória histórica da instituição de saúde internacional mais antiga, e ainda ativa, a OPAS, criada em 1902.

A estratégia do autor foi a de acompanhar o desenvolvimento da instituição, numa linha fundamentada na sucessão das diferentes atuações e coordenações conduzidas por seus diretores gerais, cujos mandatos chegavam, em alguns casos, a dez anos.

O texto divide-se em seis capítulos: As origens da saúde internacional nas Américas; O nascimento de uma nova organização; A consolidação de uma identidade; Por um continente livre de doenças; Saúde, desenvolvimento e participação comunitária; Vigência e renovação.

As conjunturas e o desenvolvimento da saúde pública na região perpassam a periodização realizada pelo autor, interligados de modo muito interessante com as seguintes variáveis: o protagonismo de personagens importantes na saúde publica da região; as questões envolvendo os interesses particulares dos países-membros da OPAS (circulação de mercadorias e pessoas, prevenção de epidemias nos portos); os temas candentes da geopolítica de cada época (fim das duas guerras mundiais, guerra fria) conectados a emergência de sentimentos e estratégias de solidariedade continental latino-americana, num primeiro momento, e pan-americanismo da doutrina Monroe, num segundo período, expressando o interesse dos Estados Unidos nas ações da OPAS; o desenvolvimento do conhecimento sanitário, médico e higiênico, como também da engenharia, e as extensas fronteiras de ação social que as descobertas científicas como a microbiologia, a produção de novos fármacos, novas vacinas, a compreensão das dinâmicas das epidemias seus vetores, transmissores, e as técnicas de combate e prevenção, trouxeram; a criação de condições para o crescimento populacional, a urbanização (década de 1920) e a explosão urbana e demográfica (décadas de 1950 e 1960), as políticas de acomodação social, a reconfiguração das relações no campo e entre este e a cidade.

A forma habilidosa como o autor transita por diferentes fatores envolvidos na trajetória da OPAS deixa evidenciada a complexidade histórica dentro da qual a construção dessa instituição foi sendo forjada, bem como a maneira tortuosa, não linear, pela qual a saúde pública foi ganhando relevância dentro das políticas de cada um dos países, no plano interno-nacional e no internacional.

Resumidamente, a OPAS derivou da Repartição Sanitária Internacional, que fora fundada em 1902. Em 1923 sofreu alteração no nome para Repartição Sanitária Pan-Americana (RSP ou Oficina Sanitária Panamericana). A mudança de seu nome para OPAS aconteceu em 1943, como resolução da XII Conferência Sanitária Pan-Americana (Caracas, Venezuela). Apesar da nova nomenclatura, a entidade manteve o seu órgão executivo nomeado como RSP e a antiga estrutura decisória — colegiado com um membro de cada país.

A RSP interagiu através de acordos e convênios firmados em 1923 com a União Pan-americana (de 1890), assumindo a condução das Reuniões Interamericanas dos Ministros da Saúde. Em 1924 foi acolhida pelo Código Sanitário Pan-Americano do mesmo ano e reconhecida como "agência sanitária coordenadora central das várias repúblicas-membros da União Pan-Americana" e "responsável por promover a organização e a administração da saúde pública e divulgar informações sobre progressos da medicina preventiva".

Com a fundação da OEA, em 1948, o papel da OPAS foi revisto. A OPAS era uma entidade 'autônoma' dentro das relações intergovernamentais e não estava submetida à nova estrutura da OEA. A relação entre ambas era diplomática. Foram necessários acordos entre a OPAS e a OMS, para que uma possível integração, garantindo certa autonomia à OPAS em matéria de saúde pública, fosse concretizada em 1950, quando esta passou a ser uma "Organização Especializada Interamericana" dentro da OEA, seu status atual.

A OPAS também foi reconhecida pela OMS (criada em 1948) como organismo regional dotado de autonomia diante dos organismos da Organização das Nações Unidas, dos quais a OMS fazia parte, através de um acordo de 1949, pelo qual passava a ser o escritório regional para as Américas da OMS.

A consolidação da OPAS foi paulatina, com dificuldades e prioridades diferentes ao longo do tempo. Suas ações também sofreram mutações. A adesão dos países como membros aconteceu plenamente entre 1940 e 1950, quando a organização passou a englobar as Américas e o Caribe.

A capacidade de financiamento limitava as ambições da instituição. Com o tempo ampliou-se a capacidade financeira. Os orçamentos eram estes: entre 1910 e 1930, 50 mil dólares; nos anos 40, 115 mil a 280 mil dólares por ano; em 1947, 1,3 milhão de dólares; no fim dos anos 50, 2,5 milhões; entre 1961 e 1964, 16 milhões de dólares por ano.

Constituiu-se assim uma 'burocracia' e uma área técnica vinculada à instituição, como um corpo permanente e estável, chegando ao auge de 750 funcionários em 1959.

A ampliação da presença da OPAS nos países se deu com a divisão das Américas em seis zonas, com um escritório regional em cada. Posteriormente, cada país passou a comportar um escritório local.

As finanças provinham de fontes regulares (pela contribuição dos membros); de projetos financiados e bolsas de estudos da Fundação Rockefeller (1920-1950), Fundação Kellogg (após os anos 40), OMS, Unicef (Fundo da ONU para as Crianças), ONU e FAO (organização da ONU para Alimentação e Agricultura); de convênios e acordos técnicos com países da região e, especialmente, com os Estados Unidos, em auxílio intensificado na guerra fria (1941-1951, atingindo cerca de 30 milhões de dólares).

As atividades e deliberações durante um largo período estiveram circunscritas a estas instâncias: Conferências Sanitárias Pan-Americanas, Conselho Diretor e Comitê Executivo. Como órgão executivo, a Repartição Sanitária Pan-Americana.

A ação da OPAS deu-se, inicialmente, por publicações como o Boletin de la Oficina Sanitária Panamericana, e pela participação nas Conferências Sanitárias, fomentando debates sobre saúde pública. O combate às epidemias provenientes de portos propiciou uma 'guerra às epidemias' com a estratégia de combater vetores e promover vacinação/imunização e educação.

A redução da mortalidade infantil e materna era preocupação constante. Também recebeu atenção a necessária indução à formação de escolas de enfermeiras e de pessoas capacitadas para o trabalho na área da saúde, higiene e sanitarismo.

A promoção de estruturas de fomento à saúde pública nos países (Ministérios ou Secretarias de Saúde, Centros de Higiene) atravessou o percurso da OPAS, que procurou induzir gestores públicos a adotarem medidas de saúde coletiva como forma de a sociedade auferir benefícios como mais trabalhadores saudáveis e produtivos, e crianças menos enfermas.

A emergência da noção de saúde como um valor vinculou-se à noção de bem-estar social, pela qual a prevenção, a extensão de serviços públicos e a implementação da atenção primária à saúde englobariam o paradoxo que redunda na gênese da concepção de saúde como um direito individual e coletivo dos cidadãos. Ao mesmo tempo, a visão estratégica dos governos, no período da guerra fria, busca promover o bem-estar com a finalidade de limitar a possibilidade do surgimento de tensões e conflitos sociais entre capital e trabalho.

A OPAS exerceu uma função estratégica na região após a criação da Aliança para o Progresso, em 1961, pela OEA, para a qual o bem-estar social era critério para a 'paz' na região. Essa diplomacia sanitária foi perpassada pelos interesses dos governos, em especial dos Estados Unidos. Entretanto, a OPAS não foi uma agência submetida a um único governo. Um exemplo: à época da expulsão de Cuba da OEA, a OPAS não anuiu com a orientação dessa organização e sustentou aquele país como Estado-membro de sua estrutura.

A presença e a consolidação da OPAS no continente americano e sua participação direta e indireta na promoção e constituição da saúde pública dos países da região fazem deste livro uma importante referência. A OPAS desenvolveu esforços para se formar um ambiente regional de cooperação, de planejamento, e de ações dirigidas a políticas e intervenções de saúde, daí a importância em se tentar compreender as especificidades americanas nessa área, cuja historicidade e temporalidade são peculiares.

Antes de encerrar seu potencial de reflexões sobre a história da OPAS, o livro O valor da saúde aponta um horizonte de novos estudos relacionados a organismos internacionais, políticas de saúde pública, dinâmicas e tensões que atravessam as entidades inter-governamentais, redes intelectuais, profissionais e científicas. Aponta, também, a ascensão às esferas de poder de áreas do conhecimento como a medicina e a engenharia.
Revista Brasileira de História

The edge of evolution: the search for the limits of darwinism



Gabriel da Costa Ávila
Mestrando em Ensino, Filosofia e História das Ciências — Universidade Estadual de Feira de Santana; FFCH — Depto. de História, Universidade Federal da Bahia (UFBA) — Estrada de São Lázaro, 197 — Federação. 40210-730 Salvador — BA — Brasil. gabriel_avila_00@hotmail.com

Michael Behe. The edge of evolution: the search for the limits of darwinism
New York: Free Press, 2007. 331p.

A teoria da evolução a partir de um ancestral comum, através da seleção natural e da mutação aleatória, exposta por Charles Darwin n'A origem das espécies em 1859,1 formou um dos conjuntos de idéias mais influentes na história recente da ciência. O darwinismo atravessou as barreiras da academia e difundiu-se, bastante matizado, pela sociedade. Durante quase um século, o darwinismo dominou a explicação científica da origem da vida.

Com as novas descobertas ocorridas a partir de meados do século passado, especialmente do DNA, o nível de complexidade por trás dos processos celulares se mostrou maior do que o esperado pelos evolucionistas. Pôr o darwinismo à prova, à luz dessas descobertas, abre um enorme espaço para a refutação das idéias do naturalista inglês. Atualmente, o questionamento mais vigoroso a respeito da validade dos fundamentos teóricos do darwinismo parte das críticas de Michael Behe.

Michael J. Behe é um autor conhecido entre os estudiosos do darwinismo. Bioquímico e professor na Leigh University, na Pensilvânia, Estados Unidos, popularizou-se por defender o criacionismo — bastante camuflado — de forma bastante competente. Em 1996, com o lançamento de A caixa preta de Darwin,2 o autor tentava provar que algumas estruturas bioquímicas presentes em certas células são tão complexas que não podem ser explicadas pelo argumento da mutação aleatória, contrariando um dos pilares do darwinismo. A análise de Michael Behe fez o autor figurar entre os principais cientistas a advogarem em prol da teoria do design inteligente. Essa teoria defende que o darwinismo, mesmo sendo bastante coerente e verossímil, é insuficiente para a compreensão da vida e da evolução: a vida na Terra não alcançaria o estágio que alcançou baseada apenas em processos aleatórios. É necessário que haja um caminho a seguir, um projeto, um design funcional a ser alcançado.

Um dos suportes teóricos fundamentais para o design inteligente é o conceito de complexidade irredutível, introduzido por Behe em A caixa preta de Darwin. Segundo o autor, os avanços da ciência nos permitiram questionar a proposta evolutiva de Charles Darwin, principalmente quando se dispõe de dados e informações a que o naturalista jamais teve acesso, notadamente no que diz respeito à genética e à bioquímica. Analisando algumas estruturas celulares especialmente 'elegantes', o autor afirma que estas possuem uma configuração tão sofisticada que se torna impossível concebê-las em estágios anteriores na evolução, isto é, essas estruturas não poderiam ter evoluído de nada mais simples sem ter suas funções irremediavelmente comprometidas. Isso as faz irredutivelmente complexas. O livro gerou polêmica não apenas por seu conteúdo, mas também pela forma convincente da exposição.

Um longo debate teve início. Os darwinistas atacavam acusando os adeptos do design inteligente de criacionistas e anticientificistas, uma vez que, posta a questão do projeto que guia a evolução, é fácil questionar também a respeito do projetista. Quem é o designer? E a pergunta transcende o reino da razão, no qual se estabeleceu a ciência moderna, e passa para o campo metafísico da crença e da religião. Mesmo que se prove a inconsistência do darwinismo para explicar o desenvolvimento bioquímico de alguns organismos, o que é bastante saudável no meio acadêmico — embora o darwinismo possua acólitos fervorosos —, a hipótese de uma inteligência por detrás das estruturas da natureza lembra demais o criacionismo e outras idéias que não se sustentam se postas à prova pelos métodos desenvolvidos pela ciência para testar o conhecimento que ela produz.

Os defensores do design inteligente, por sua vez, acusavam os evolucionistas darwinistas de dogmatismo e de censura ao desenvolvimento científico, sentiam-se perseguidos por cientistas que se recusavam a aceitar a possibilidade de uma nova teoria para a evolução, julgavam estar enfrentando a "Nomenklatura científica".3

Fica claro no debate a tentativa, de ambas as 'facções', de desqualificar os argumentos dos 'adversários' empurrando-os para o terreno da não-ciência, ou, ao menos, da 'má ciência'.

Mais de dez anos depois de publicado o livro que reacendeu a tensão entre darwinistas e adeptos do design inteligente, Michael Behe volta à carga com The edge of evolution: a search for the limits of darwinism, estudo, lançado em 2007 e ainda sem tradução em português, que aprofunda as conclusões obtidas em A caixa preta de Darwin.

Enquanto o livro de estréia do autor partia de uma investigação mais específica, a respeito da 'complexidade irredutível' de algumas estruturas bioquímicas sofisticadas, The edge of evolution é muito mais ambicioso. A idéia central do livro é desenhar linhas gerais que demarquem o terreno a partir do qual o darwinismo deixa de ser útil na explicação não apenas de alguns processos bioquímicos localizados, mas também de aspectos gerais da origem das espécies. Com isso, o velho criacionismo ganha um status de saber científico na figura do design inteligente e, assim, pode disputar com o darwinismo o papel de detentor do conhecimento acerca da origem das espécies e da vida. Não é, agora, uma questão de 'ciência contra religião', mas sim de teorias científicas concorrentes.

Para os estudiosos da ciência, o surgimento de teorias que usem os pressupostos do racionalismo científico a partir de um pano de fundo religioso é, no mínimo, intrigante, pois aponta para questões novas que exigem uma revisão acerca das tradicionais idéias de ciência e razão. O desencantamento do mundo e a substituição dos elementos mágicos por elementos racionais — que, para Max Weber, consistia numa das principais características da modernidade4 — parece subvertido de forma bastante sofisticada. A razão científica é invocada por Michael Behe para dar validade a uma concepção mágica do mundo.

O estudo de Behe tem o mérito de investigar, como indica o título, os limites do darwinismo. Contudo, embora suas pesquisas demonstrem os pontos frágeis do darwinismo, não apresentam nenhuma evidência relevante a favor do design inteligente. Cabe a nós, historiadores e estudiosos da ciência, perguntarmo-nos que motivos o levaram a extrapolar de forma tão radical as fronteiras do método científico na defesa de sua teoria, quando, ao mesmo tempo, defende esse método tão veementemente ao atacar o darwinismo. De resto, é necessário atentarmos para a possível emergência de uma nova relação entre ciência e religião.

Uma história do darwinismo que tenha a pretensão de compreender o território conflituoso da afirmação de uma teoria científica em sua dimensão social não pode perder de vista as condições socioculturais que envolvem a produção dos discursos científicos. Ou seja, deve-se refletir sobre o tipo de ciência que pode ser feita por um católico apostólico romano que, como Michael Behe, direciona seu discurso a partir de convicções filosóficas e religiosas.

Não se trata de considerar, no entanto, a ciência como uma atividade neutra, objetiva, que pode ser corrompida pela subjetividade de criacionistas com interesses espúrios; trata-se de perceber a ciência como uma atividade humana que se inscreve no âmbito da cultura e que, por isso, está sujeita a variações e condicionantes sociais, culturais e históricos. A ciência está imersa em seu tempo. E o caso de Behe aponta para isso.

O design inteligente, como formulado por esse autor, dá aos criacionistas uma excelente oportunidade de desafiar o darwinismo na interpretação da origem da vida em igualdade de condições, especialmente em relação ao ensino dessas teorias nas escolas públicas dos Estados Unidos. Lá, a disputa pelo ensino do criacionismo em substituição, ou em paralelo, ao evolucionismo remonta ao início do século passado, e a matéria acabou na justiça em 1987, quando se decidiu suprimir o ensino do criacionismo, com base na noção de Estado laico. Com o advento do design inteligente, porém, a situação se altera.

Graças ao esforço cientificista de Michael Behe e outros cientistas ligados a essa corrente, outra vez a peleja entre darwinistas e criacionistas, agora escudados pelo design inteligente, vem à baila. Em 2004, a tentativa, no Liceu de Dover, de introduzir o design inteligente como explicação alternativa à origem da vida resultou em novo processo judicial, no qual a instituição foi acusada de privilegiar interpretações religiosas, contrariando assim o laicismo que rege a educação nos Estados Unidos. Pode-se perceber um jogo político no qual a ciência é um cavalo de batalha. E a reconfiguração do alcance do darwinismo, seja nas suas lacunas bioquímicas, seja nas cartilhas escolares, não significa um avanço das trevas sobre os territórios das luzes e da razão, mas uma demonstração da dinâmica da ciência tal qual se faz.

NOTAS
1 DARWIN, Charles. On the origin of species. Cambridge: Harvard University Press, 1975. 512p.
2 Cf. BEHE, Michael. A caixa preta de Darwin: o desafio da bioquímica à teoria da evolução. Trad. Ruy Jungmann. 1.ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997. 300p.
3 A Nomenklatura era a classe dirigente soviética, composta pelo alto escalão do partido comunista e do Estado. Segundo alguns críticos do regime de Moscou era o próprio Estado e usava essa condição para se beneficiar. É usada por alguns autores que defendem o design inteligente, quando se referem aos darwinistas, que dispõem de prestígio nas instituições científicas e constituiriam uma classe privilegiada.

4 WEBER, Max. A ética protestante e o espírito do capitalismo. Trad. José Marcos Mariani Macedo. 1.ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. 336p.
Revista Brasileira de História

La ville au Brésil (XVIIIe — XXe siècles): naissances, renaissances



Júnia Ferreira Furtado
Pesquisadora do CNPq — Depto. de História, Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) — Av. Antônio Carlos, 6627. 30310-770 Belo Horizonte — MG — Brasil. juniaf@fafich.ufmg.br

Laurent Vidal (Org.) La ville au Brésil (XVIIIe — XXe siècles): naissances, renaissances
Paris: Rivages des Xantons, 2008. 402p.

Entre 16 e 18 de 2005 realizou-se na França, em La Rochelle e Brouage, um colóquio intitulado "La ville au Brésil: naissances, renaissances". Agora, três anos depois, publica-se um livro que aborda as principais questões e os temas desenvolvidos por ocasião do colóquio. Organizado por Laurent Vidal, historiador da Universidade de La Rochelle, o livro apresenta 25 artigos, um dos quais a título de conclusão, mesclando principalmente autores franceses e brasileiros, mas não só, que versam sobre o processo urbano em nosso país.

O Brasil tem se apresentado como um espaço preferencial para o estudo da formação, desenvolvimento e decadência das cidades, "um verdadeiro laboratório, um vasto terreno de experiências". Como nos alerta Alain Musset, no texto que serve de conclusão ao livro, "das cinzas de uma cidade brasileira pode-se observar sua mudança de forma, de estatuto e de função". As cidades, por serem tema de caráter transdisciplinar, têm interessado a especialistas de diferentes áreas, mas notadamente aos historiadores. Essa diversidade se reflete na escolha dos articulistas do livro, o que só enriquece e estimula o debate. São várias as questões que norteiam os diferentes artigos: Como se funda uma vila? Como um arraial se transforma em vila ou cidade? Quais os significados do espaço urbano e de que maneiras ele é apropriado? Como se opera o processo de transição entre a formação, o auge e a decadência dos espaços urbanos? Como se desenrola o tempo urbano? Enfim, como as urbes nascem e se transformam ao longo do tempo?

Desde o primeiro capítulo, que versa sobre a fundação do Rio de Janeiro, no século XVI, os autores lançam olhares críticos e se debruçam sobre vários mitos que há muito têm perdurado na historiografia. Nesse artigo, escrito por Maurício Abreu, como também no que versa sobre Vila Boa de Goiás, por Renata Malcher Araújo, e em quase todos os demais que se referem ao nascimento de urbes coloniais, questiona-se a idéia, semeada por Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda, da falta de planejamento das cidades brasileiras criadas pela metrópole portuguesa. Outro paradigma posto em questão é o da decadência urbana enfrentada por algumas cidades como é o caso de Ouro Preto, no artigo de Cláudia Damasceno Fonseca e Renato Pinto Venâncio, ou Salvador, no capítulo escrito por Pedro de Almeida Vasconcelos. Até mesmo a idéia arraigada de que a cidade contemporânea tem se tornado espaço pouco democrático é desmistificada por alguns deles, como o de Paulo Costa Gomes, que apresenta o espaço das praias cariocas como locus de convivência democrática de vários grupos heterogêneos de moradores da cidade do Rio de Janeiro, ou ainda o de James Houlston, que revela o caráter reivindicatório de regras e direitos democráticos no discurso das gangs urbanas, bem como o artigo de Dominique Vidal que questiona diretamente o tema.

O livro se divide em duas grandes seções, uma que aborda o processo fundacional, os "Nascimentos" de várias urbes, mas que também toca e questiona o momento de decadência e morte de algumas delas, e a segunda, chamada de "Renascimentos", que discute as transformações, as intervenções e as experiências vividas nos e pelos espaços urbanos. O espectro geográfico é amplo: Rio de Janeiro, Salvador, Goiás Velho, Brasília, São Paulo, Niterói, Porto Velho, Anápolis, Vila Bela, Niterói e Marabá são alguns dos inúmeros estudos de caso apresentados. Há estudos comparativos, como o de Rubenilson Teixeira e Ângela Lúcia Ferreira, que compara o processo de formação e desenvolvimento urbano de Natal e Assu, no Ceará, ou o de Maria Encarnação Sposito, que discute a formação sócio-espacial da rede urbana em São Paulo no boom cafeeiro. Mas há alguns artigos, como o de Fania Friedman, sobre as vilas do café no Rio de Janeiro, ou o de Hervé Théry, sobre as capitais brasileiras fundadas no século XX, que não se limitam a uma ou duas cidades específicas, mas tratam de toda uma rede de cidades. Algumas são próximas uma das outras, como o tecido urbano em torno de Marabá, estudado por Leandro Rocha, outras tantas são distanciadas geograficamente, como as capitais brasileiras fundadas no século XX, analisadas por Hervé Théry.

O marco cronológico é o da longa duração. Há artigos que versam sobre a fundação de cidades, desde o período colonial, como o Rio de Janeiro no século XVI (e não XVIII como o subtítulo do livro parece enquadrar); passando pelo início do século XX, como é o caso de Marabá, analisado por Leandro Mendes Rocha, e de Porto Velho, estudado por Martine Droulers e Laurent Vidal; até as décadas mais recentes, como é o caso de Brasília, estudado por Heliana Angotti-Salgueiro, através das imagens fotográficas de Marcel Gautherot. Há também casos em que uma mesma cidade é examinada pelo autor ao longo de um período bastante amplo, como é o caso de Ouro Preto, cujo processo de transformação da urbe é visto entre os séculos XVIII e XX, ou o de Niterói, descrito entre 1819 e 1930, por Marlice Azevedo e Fernanda Teixeira.

Se "desenho e engenho" foram a base sobre a qual nasceram várias urbes brasileiras, como nos casos clássicos de Vila Bela, Belo Horizonte ou Brasília, as mutações perpétuas por que passam as cidades brasileiras são resultado de uma relação dinâmica vivenciada entre os seus espaços e seus moradores. Sobre essas mudanças nos falam vários artigos, como o de Sylvie Miaux, sobre os condomínios do bairro da Tijuca, ou o de Rodrigo Valverde, sobre o Largo da Carioca, ambos no Rio de Janeiro, ou o de Sylvia Macet, sobre as festas em Goiás Velho, ou ainda o de Alain Musset, sobre o que diz a linguagem dos graffiti nos muros das cidades brasileiras. A questão do planejamento urbano é outro tema que surge do processo de transformação pelo qual as urbes passam ao longo do tempo. Tal é o caso de São Paulo, examinado por Maria Stella Bresciani, ou do Rio de Janeiro, examinado por Vera Rezende e Fernanda Furtado.

O livro não apenas aborda a cidade na sua concretude, mas também fala de imagens e símbolos construídos sobre elas. O artigo de Tânia Regina de Luca discute, por exemplo, as imagens de decadência das cidades do Vale do Paraíba construídas por Monteiro Lobato, mostrando tratar-se não de cidades reais, mas de metáforas do Brasil da época. Rémy Lucas apresenta as diversas imagens construídas sobre o arraial de Belo Monte, desde a linguagem jornalística concomitante à Guerra de Canudos até a obra literária que versa sobre o episódio.

Enfim, há toda uma amplitude de temáticas, questões e abordagens que uma pequena resenha não dá conta de abarcar. No entanto, é essa mesma diversidade que justifica e serve de convite ao leitor para que se aventure por esse mundo urbano brasileiro em mutação perpétua, descrito de forma instigante e criativa por esses autores.
Revista Brasileira de História

Black mass



Edgar Salvadori de Decca
Pesquisador do CNPq — Depto. de História, Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Caixa Postal 6110. 13081-970 Campinas — São Paulo — Brasil. edecca@terra.com.br

John Gray. Black mass
New York: Penguin Books, 2008. 352p.

Ele não é muito lido nas universidades brasileiras. Acho até que cometo um exagero. Ele não é sequer conhecido nos nossos meios universitários. Refiro-me a John Gray, filósofo da Universidade de Oxford e professor da London School of Economics, figura de destaque no mundo intelectual europeu e americano, considerado uma das inteligências mais brilhantes deste novo século XXI. Apesar de desconhecido entre nós universitários, há algum consolo diante de uma feliz constatação: a maioria dos livros de John Gray foi traduzida no Brasil e teve boa recepção. Para mencionar alguns livros importantes, quem aprecia sínteses filosóficas não deve deixar de ler o ensaio sobre Voltaire, da Editora da Unesp (1999), mas também o ensaio sobre Isaiah Berlin, publicado pela Difel (2000), onde esboça as suas críticas às utopias sociais, antecipando os contundentes ataques ao Cristianismo e ao Iluminismo presentes em seu mais novo livro, ainda inédito no Brasil, Black Mass. No ensaio sobre Voltaire mesclam-se as críticas contundentes à religião do Iluminismo e a sinceridade em valorizar a obra desse filósofo. As considerações de Gray sobre Voltaire são polêmicas, a ponto de concluir que: "a filosofia de Voltaire pouco tem a nos ensinar. O maior legado de Voltaire talvez seja o seu desdém pelas consolações da teodicéia — inclusive a do Iluminismo, que o guiou por toda a vida. A ambição voltairiana de ajudar a humanidade a ser um pouco menos miserável pode bem constituir a mais valiosa herança do Iluminismo" (Voltaire, p.54). Podemos reconhecer em Gray os traços característicos de Voltaire, porque apesar de ser também um herdeiro do Iluminismo, seus escritos têm um profundo desdém por uma filosofia que se consola ao reconhecer que apesar de todos os males, vivemos no melhor dos mundos possíveis.

Antes do seu mais recente ensaio filosófico, Gray já nos tinha brindado com obras de profundo conteúdo crítico, derrubando as ilusões de um mundo comandado por um mercado auto-regulado e baseado nos valores da democracia liberal. Há ainda o provocante livro Falso amanhecer (Ed. Record, Rio de Janeiro, 1999), resposta a Fukuyama e à sua utopia do fim da história. No entanto, se essa ilusão utópica do Ocidente mereceu contundente crítica de John Gray, ainda não podíamos imaginar o que estava por vir, depois dos ataques às Torres Gêmeas de 11 de setembro. Num ensaio brilhante e ao mesmo tempo desconcertante, John Gray afasta do 11 de setembro as possíveis conotações tradicionais do islamismo e encara o terrorismo da Al Qaeda, como o produto mais recente da modernidade ocidental. Em um ensaio de forte impacto, John Gray esmiúça as tramas desse novo terrorismo sem fronteiras nacionais e anunciado já no título do livro, Al Qaeda e o que significa ser moderno, também publicado pela Record (2004). Suas conclusões não são nada animadoras, se considerarmos que o terrorismo da Al Qaeda, como o nazismo e o comunismo, pretende criar um novo mundo utópico através do terror. Trata-se, portanto, de uma nova capacidade de potencializar a violência em níveis jamais imaginados por outras épocas históricas anteriores à modernidade. Gray nos alerta, "Nenhuma época anterior acalentou projetos semelhantes. As câmaras de gás e os gulags são modernos. Há muitas maneiras de ser moderno, algumas delas monstruosas" (p.16).

Mas, antes de concluir esse preâmbulo e passar a expor alguns pontos inquietantes do novo livro, Black Mass (Missa Negra), não poderíamos deixar de mencionar a obra que o tornou conhecido em todo o mundo, inclusive no Brasil. Trata-se do ensaio filosófico intitulado Cachorros de palha (Ed. Record, 2005), onde o autor desfere um ataque verdadeiramente contundente contra a nossa ilusão antropocêntrica. Buscando a inspiração em poema de Lao Tsé que diz que o céu e a terra tratam miríades de criaturas como cachorros de palha, John Gray acredita que a terra irá também descartar o ser humano e que estamos em contagem regressiva desse processo. Para ele, qualquer crença no progresso humano é ilusória, e, ainda que possa haver progresso no conhecimento científico e tecnológico, pouco se pode esperar de qualquer tipo de progresso no plano da ética e da política, dado que uma hora ou outra todos esses avanços poderão tornar-se meios de destruição. O livro Cachorros de palha descarta as nossas ilusões sobre o livre-arbítrio e também, na esteira de Darwin, nos equipara a todos os outros animais, com a nossa incapacidade e impossibilidade de sermos donos de nosso próprio destino. Das crenças cristãs até o Iluminismo, ainda somos prisioneiros do livre-arbítrio e das doutrinas da salvação. A prova é que, já no início do século XXI, "o mundo está apinhado de grandiosas ruínas de utopias fracassadas. Com a esquerda moribunda, a direita tornou-se o abrigo da imaginação utópica. O comunismo global foi seguido pelo capitalismo global. As duas imagens do futuro têm muito em comum. Ambas são horrendas e, felizmente, quiméricas" (Cachorros de palha, p.3).

Esta visão pouco condescendente com o antropocentrismo, das origens no Cristianismo até sua principal herança filosófica, o Iluminismo, será a linha mestra do mais novo desafio de John Gray ao campo do pensamento filosófico e político da atualidade. Em Black Mass, há algo de muito mais inquietante e que já se anunciava de modo sutil nas obras anteriores do autor. Afinal, a "Missa Negra" é a versão satânica da missa cristã, e, com essa metáfora poderosa, Gray nos faz mergulhar no universo da utopia, tal como ela se anunciou desde o livro da Revelação, até as mais modernas visões apocalípticas da política. Ao contrário do que imaginamos, as utopias políticas modernas, segundo Gray, nada mais são do que modelos de idealização quiméricos da sociedade, que tiveram seu ponto de partida no Cristianismo. Na companhia de Gray, o leitor estará sempre se defrontando com a suas convicções e suas crenças, mesmo porque, aventurar-se na leitura de Black Mass é enfrentar o dilema de que a política moderna nada mais é do que uma variante da história da religião.

A leitura de Black Mass, além de desafiadora é também instigante e entremeada de nuances históricas, ao abordar a utopia desde as suas dimensões religiosas, como nas revelações bíblicas, passando pelo milenarismo medieval e chegando até as utopias políticas modernas, cuja matriz é a revolução francesa. No entanto, há um foco no livro de Gray que nos deixa em situação incômoda, a começar pelo seu primeiro capítulo, sobre a morte da utopia. Não há como não se incomodar com a constatação de que ao pensamento crítico não cabe mais se deixar levar por qualquer tipo de modelo de idealização da sociedade, porque, todas essas variantes da utopia nada mais são do que a revelação da enorme falácia humanística de que o homem é capaz de moldar o seu próprio destino e ter o controle do sentido da história. Essa crença utópica torna-se ainda mais perigosa, segundo Gray, quando constatamos que a maioria dos movimentos revolucionários modernos compartilha a crença de que a violência é uma força purificadora da história. Em outras palavras, tanto pela esquerda, como pela direita do espectro político moderno, a violência e o terror se apresentam como elementos capazes de liberar a história de suas opressões. Os anarquistas do século XIX, os bolcheviques como Lênin e Trotsky, os pensadores anticolonialistas como Frantz Fanon, os regimes de Mao e Pol-Pot, os grupos terroristas como Baaden Meinhof, os movimentos radicais islâmicos e os movimentos neoconservadores, todos eles se encantaram com as fantasias do poder libertador da violência realizado pela ação revolucionária na história. Assim também se comportaram os regimes totalitários, como o nazismo e o fascismo de Hitler, Franco ou Mussolini, que acreditaram na violência como força libertadora da história. No entanto, se todas essas utopias nascidas na esteira do Iluminismo pareciam estar sucumbidas no final do século XX, mais aterrorizante é imaginar que a busca pela utopia tornou-se o objetivo principal e exclusivo de um capitalismo moderno de estilo americano. Essa nova utopia, comandada pelos Estados Unidos, tem o aval de muitos governos do Ocidente com a promessa de que no final dos dias o mundo estará dominado pela democracia de estilo americano, nem que para isso seja necessário destruir as bases de uma sociedade e de uma cultura, como está sendo realizado pelo exército americano no Iraque. As correntes conservadoras da direita política do mundo atual estão possuídas por fantasias e utopias de remodelação de sociedade, tanto como estiveram as correntes políticas de esquerdas no século XX. Apesar dos seus sucessos aparentes, essas utopias neoconservadoras, forjadas na violência e no terror, estão se transformando em pó, mais rapidamente do que os sonhos do comunismo e do nazismo do século XX.

Os desafios ao pensamento colocados pelo livro Black Mass não cabem nos limites de uma resenha. Mereceriam um amplo ensaio capaz de acompanhar todas implicações filosóficas e políticas contidas no conjunto de sua obra. Por ora, podemos nos contentar em ter diante de nós uma obra tão inspiradora e, ao mesmo tempo, tão polêmica. Dividido em cinco capítulos, Black Mass começa tratando da morte da utopia, deixando um sinal de alerta para a sua dimensão religiosa e apocalíptica, capaz de renascer onde nós acreditássemos que estivesse liquidada. O segundo capítulo é talvez o mais provocativo. Nele Gray investiga as dimensões religiosas da utopia laica do Iluminismo e extrapola o seu pensamento para as forças do terror e da violência na história. Dessa matriz de filosofia da história, Gray deriva tanto as utopias de esquerda como as de direita, não condescendendo com o comunismo nem com o nazismo e o fascismo, todos eles baseados no terror totalitário. No entanto, a novidade da obra está reservada para os três últimos capítulos, onde o autor se dedica à análise da nova utopia neoconservadora e à americanização do apocalipse, principalmente depois dos acontecimentos do 11 de setembro, culminando com a invasão do Afeganistão e do Iraque.

No entanto, se vivemos esse dilema do fim da utopia, sem com isso dizer que estamos no fim da história, que lições nos deixa, afinal de contas, esse livro tão perturbador? Sua lição não é muito construtiva, mesmo porque, Gray não é adepto da filosofia do progresso. Muito pelo contrário, a rejeita, porque não acredita que possa haver qualquer progresso humano na moral e na ética, mesmo com os enormes avanços científicos e tecnológicos hoje disponíveis. Aliás, esse progresso científico e tecnológico não nos trouxe nenhuma garantia, porque os homens poderão utilizá-lo para fins de destruição. Apenas uma certeza fica subjacente ao final da leitura de um livro tão provocativo: se a utopia é apenas um capítulo da história da religião, não devemos menosprezar essa primeira necessidade humana. Afinal, desses embates de crenças religiosas é que nasceram tanto as vertentes místicas como as vertentes seculares da utopia.

Assim, chegamos ao fim desta resenha, com um indisfarçável ceticismo no que se refere à natureza humana. Afinal, segundo Gray, somos tão donos de nosso destino, como qualquer outro animal que habita este mundo. Para enfrentar esse impasse, Gray nos propõe um retorno ao realismo na política, depois de dois séculos de fracassos da religião secular do progresso. Mas de um realismo político sem posturas conservadoras. O mito de um final feliz cristão e o mito secular, herdado do Iluminismo, de se construir uma sociedade conciliada consigo mesma, já causaram enormes prejuízos e ainda podem causar danos muito maiores. Isso nos leva à conclusão de que a política não é um veículo para projetos universais, mas uma peculiar "arte de responder ao fluxo das circunstâncias". Segundo Gray, essa percepção não requer uma visão muito abrangente do avanço da humanidade, requer apenas a coragem de saber lidar com os males do mundo. Afinal, esse opaco estado de guerra no qual a humanidade se meteu é apenas um desses males. Ao fecharmos o livro Black Mass, resta-nos ainda uma indagação e um desconforto: será possível vivermos neste mundo, sem o elixir das utopias?
Revista Brasileira de História

História da escravidão e da liberdade no Brasil Meridional



Sílvia Regina Ferraz Petersen
Pesquisadora do CNPq — Depto. de História, Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) — Av. Bento Gonçalves, 9500. 91509-900 Porto Alegre — RS — Brasil. spetersen@orion.ufrgs.br

Regina Célia Lima Xavier (Org.) História da escravidão e da liberdade no Brasil Meridional. Guia bibliográfico
Porto Alegre: Ed. UFRGS, 2007. 392p.

O guia bibliográfico História da escravidão e da liberdade no Brasil Meridional, organizado por Regina Célia Lima Xavier e que resultou de um projeto premiado pelo concurso "Memória do Trabalho no Brasil" (Petrobrás/MinC, CPDoc da FGV e Ministério do Trabalho e Emprego), é uma obra ímpar na historiografia brasileira. Pertence àquela linhagem de trabalhos absolutamente indispensáveis para promover e renovar a produção do conhecimento histórico em um determinado 'território' e que, pelos serviços que prestam aos pesquisadores, merecem todo destaque e divulgação.

Neste caso, trata-se de um levantamento exaustivo de fontes bibliográficas (com os respectivos resumos) sobre a temática, precedido por uma sólida abordagem analítica de referências teóricas, problemáticas, temas e debates que orientaram e vêm orientando os estudos sobre a escravidão no Brasil Meridional. Dentro desse cenário de análise historiográfica, examina as principais tendências da produção dos historiadores sul-riograndenses que trabalharam esses temas e questões. Oferece assim ao leitor uma oportuna contribuição sobre o 'estado da arte' em um tema que vem agregando cada vez maior número de pesquisadores no Brasil e no sul do Brasil em particular.

Ainda que a autora classifique esta análise historiográfica como "breve e introdutória", seu texto é bem mais que uma introdução, não só pelo rigor com que é apresentado, mas também pelo fato de que não existia até agora um trabalho mais específico, que abordasse de forma sistemática e desde a perspectiva historiográfica, o tema da escravidão e da liberdade no Rio Grande do Sul.

Certamente a qualidade deste trabalho presta tributo à trajetória intelectual da autora, que vem de longa data se dedicando ao estudo da escravidão e da liberdade no Brasil, especialmente desde sua dissertação de mestrado desenvolvida na Unicamp.1

Quanto ao repertório bibliográfico que é objeto da obra, ele inclui livros, dissertações, teses, artigos e resumos de trabalhos apresentados em congressos acadêmicos, totalizando 851 títulos que abrangem o período compreendido entre meados do século XIX e o ano de 2006.

Esses trabalhos estão agrupados em blocos ou itens classificatórios, cujos títulos já oferecem ao leitor um sugestivo elenco temático que ultrapassa amplamente os enfoques tradicionais sobre a história da escravidão e da liberdade no Brasil meridional: "Dados populacionais, étnicos e questões raciais"; "Participação dos escravos em conflitos militares"; "Trajetórias de vida e experiências cotidianas"; "Trabalho escravo; movimentos sociais: fugas, quilombos, insurreições e crimes"; "Cultura; Afro-descendentes no pós-abolição"; "Família escrava"; "Aspectos jurídicos"; "Abolições e processo de emancipação"; "Economia"; "Tráfico" e "Reflexões historiográficas". Um último bloco reúne os resumos de apresentações em eventos.

O livro também expõe com muita clareza os critérios que presidiram a seleção da bibliografia (as razões, por exemplo, de não haver incluído obras literárias ou artigos de jornais e revistas de grande circulação), a elaboração dos resumos, os blocos em que as obras foram agrupadas etc. Um índice dos autores e uma lista de siglas completam esta preocupação de orientar o leitor na consulta da obra.

A partir destas observações, é fácil concluir que o Guia atenderá aos objetivos a que se propõe:

Primeiro, deve estimular pesquisas inovadoras sobre o tema da escravidão, uma vez que evidencia as temáticas que foram mais desenvolvidas e aquelas mais carentes de estudos; proporciona uma percepção sobre o uso de fontes e formas de abordagem; assinala as regiões geográficas mais favorecidas nas pesquisas; abre a possibilidade de se pensar as semelhanças entre os Estados do Sul e suas experiências escravistas; por fim, o guia pode ainda explicitar as lacunas existentes e incentivar a renovação e o aprofundamento das pesquisas. Em segundo lugar, deve instigar estudos de cunho historiográfico. (p.11-12)

Trabalhos como o de Regina Xavier nos levam à constatação de que certas afirmações repetidas sem muita crítica ao longo dos anos são apressadas e não resistem às evidências demonstradas por um livro este. Neste caso estão a situação quase residual da escravidão no Rio Grande do Sul, a democracia racial dos pampas, a concentração do trabalho escravo em regiões específicas e o caráter antieconômico da escravidão.

Através dos agradecimentos que a autora faz na Introdução aos numerosos alunos — bolsistas ou voluntários — e aos professores que proporcionaram informações sobre obras de difícil localização, o leitor vislumbra o cuidado em realizar um levantamento exaustivo, que levou a equipe a se embrenhar por três anos nas mais diversas bibliotecas, em arquivos e acervos de todo tipo e depois produzir resumos muito apropriados sobre o conteúdo dos textos, trabalho este que implica extraordinária economia de tempo e esforço para os que consultarem o livro. Uma obra de referência desta envergadura é verdadeiramente uma preciosidade para os pesquisadores.

No entanto, é preciso insistir, o livro de Regina Xavier não é apenas um guia bibliográfico, o que já justificaria plenamente sua publicação. Mais do que isto, como antecipei, a autora realiza também uma pioneira análise historiográfica da produção sul-riograndense sobre a presença do escravo africano e de seus descendentes.

O espaço de uma resenha não permite que eu refaça aqui o caminho que ela percorreu em sua análise, na qual comenta as características da abordagem desses autores, a começar pelas Memórias ecônomo-políticas de Gonçalves Chaves, escritas entre 1817 e 1823, um dos primeiros textos antiescravistas que se conhece no sul do Brasil. Também coloca historiadores rio-grandenses como Emílio de Souza Docca e Dante de Laytano em diálogo com as conjunturas históricas das décadas de 1930 a 1950, em que suas obras foram produzidas, e com os vários debates que se desenvolveram no centro do país — onde a referência obrigatória é Gilberto Freyre — e na Europa sobre o racismo e o conceito de raça, sua definição biológica ou cultural, sobre o papel das diferentes raças na construção da nacionalidade. Na década de 1960, esses debates têm por referência as transformações estruturais da sociedade brasileira, a passagem da sociedade tradicional escravista para a sociedade moderna capitalista, e um dos expoentes dessa perspectiva analítica foi Fernando Henrique Cardoso, com cujo trabalho dialogou no Rio Grande do Sul, entre outros, Mario Maestri Filho. A obra de Cardoso suscitou, no entanto, numerosos debates e experimentou muitas refutações através das pesquisas de Paulo Zarth e Helen Osório, para citar os mais conhecidos, que têm revisado, desde vários ângulos, a importância e o significado do trabalho escravo no Rio Grande do Sul.

A autora comenta, também, os trabalhos muito diversificados que se voltaram, nas décadas recentes, para valorizar a experiência dos escravos, seu cotidiano e sua religiosidade, e neste alargamento temático, proporcionado em boa medida pela pesquisa vinculada ao crescimento dos cursos de pós-graduação, também se incluem investigações sobre o tema do trabalho escravo na pecuária e na cidade. Paulo Zarth, Helen Osório e Paulo Moreira são timoneiros dessa nova historiografia no Rio Grande do Sul.

Na conclusão deste panorama analítico referente ao conhecimento produzido sobre a presença do escravo africano e de seus descendentes no Rio Grande do Sul, a autora também faz um diagnóstico que aponta rumos para as futuras pesquisas:

muito resta por ser aprofundado: na análise das próprias obras citadas nesta Introdução ou o contexto de suas formulações; na relação dessas obras com seus interlocutores, entre outros aspectos. Certamente é preciso tecer considerações mais abrangentes sobre toda esta produção arrolada, privilegiando a perspectiva comparativa. Neste caso, aguardam-se estudos mais sistemáticos que relacionem, por exemplo, a experiência do Rio Grande do Sul com aquela de Santa Catarina e do Paraná. Enfim, longe de esgotar o tema, o panorama citado acima tem o intuito de demonstrar a potencialidade e a importância dos estudos historiográficos. (p.40)

Concluindo, quero reafirmar que a impecável análise historiográfica introdutória, o rigor da pesquisa realizada e o alentado número de obras que integram este livro de Regina Xavier fazem dele um excelente exemplo da qualidade que os historiadores e historiadoras brasileiros da recente geração vêm imprimindo aos seus trabalhos, atestando a vitalidade do conhecimento histórico em nosso país.

NOTAS
1 Sua dissertação de mestrado foi publicada pela Editora da Unicamp em 1997, com o título A conquista da liberdade; a tese de doutorado foi publicada em 2008 pela Editora da Universidade/UFRGS e pelo IFCH, com o título Religiosidade e escravidão, século XIX: mestre Tito.
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A guerra civil espanhola



Rodrigo Patto Sá Motta
Pesquisador do CNPq — Depto. de História, Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) — Av. Antônio Carlos, 6627. 30310-770 Belo Horizonte — MG — Brasil. rodrigosamotta@yahoo.com.br

Francisco J. Romero Salvadó. A guerra civil espanhola
Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008. 356p.

O livro de Francisco J. Romero Salvadó vem se juntar à escassa bibliografia em português sobre a guerra civil espanhola e deverá ocupar lugar de destaque em razão da qualidade do trabalho. A proposta é fazer uma síntese desse grande evento do século XX, verdadeiro símbolo de uma época, com base nas pesquisas e publicações produzidas nos últimos anos. E algumas delas foram beneficiadas pelo acesso a documentos abertos ao público em período recente, notadamente os arquivos soviéticos.

Os trágicos acontecimentos da Espanha da década de 1930 tiveram impacto internacional e inscreveram-se de maneira marcante na memória coletiva, em parte por força das representações construídas no cinema, literatura e artes plásticas. Naturalmente, seus ecos fizeram-se ouvir também no Brasil. Quando as forças de direita deslancharam o golpe contra a República espanhola, em julho de 1936, dando início à guerra civil que duraria três anos, o Brasil vivia clima político igualmente tenso, sob a onda de repressão que se seguiu à frustrada insurreição de novembro de 1935. Os projetos e valores políticos em disputa no Brasil assemelhavam-se aos das forças conflagradas na Espanha, e por aqui muitos torceram contra ou a favor da República, tendo um pequeno grupo de ativistas da esquerda, na maioria militares implicados no levante de 1935, se alistado nas tropas das brigadas internacionais. A direita nacional, por seu turno, entusiasmou-se pela luta de seus congêneres espanhóis, aumentando-lhe a convicção de que o seu mundo, ordenado com base nos valores cristãos e no caráter sagrado da propriedade privada, estava sob ataque cerrado do comunismo internacional. A conflagração espanhola, junto com outros eventos do contexto internacional à época, contribuiu para fortalecer o ânimo punitivo e autoritário das forças conservadoras brasileiras.

Para o bem e para o mal, o ambiente político dos anos 30 está a anos-luz da realidade deste início do século XXI, em que não se vêem mais disputas acirradas por questões de natureza ideológica, embora as guerras religiosas pareçam estar voltando. Em meio à radical polarização política da época, os lados contendores no conflito espanhol foram denominados com diferentes adjetivos, reveladores das visões de mundo em choque. Para a esquerda, tratava-se de uma luta em defesa da República, contra as forças do fascismo e da reação. O outro lado não se identificava como fascista, embora parte dele efetivamente fosse (os falangistas), mas sim como nacionalistas em luta pela pátria espanhola, agredida pelo comunismo ateu.

É precisamente na análise do quadro internacional que reside o ponto alto do livro de Romero. As melhores páginas do trabalho são dedicadas a explicar como o drama espanhol se inseriu nos conflitos internacionais do período; sobretudo, como as ações das grandes potências influenciaram os acontecimentos. O autor mostra os interesses em jogo, tanto materiais quanto político-ideológicos, e as estratégias dos países decisivos: França, Inglaterra, Alemanha, Itália e União Soviética. A Alemanha nazista e a Itália fascista foram os principais protagonistas entre as potências que interferiram na Espanha. Solidarizaram-se com as forças contrárias à República por afinidade de idéias, afinal, do lado nacionalista alinhava-se coalizão de direita semelhante à que permitira a Hitler e Mussolini ascender ao poder, e contra os mesmos inimigos: comunistas, socialistas, anarquistas, democratas e liberais. Mas também havia razões mais concretas para o apoio: a Itália desejava estabelecer hegemonia na bacia do Mediterrâneo, e a Alemanha cobiçava os recursos naturais da Espanha para alimentar sua máquina de guerra.

Com seu ânimo agressivo e a convicção de que os países liberal-democráticos eram fracos e decadentes, os dois Estados fascistas mobilizaram tropas e recursos numa escala que nenhuma outra potência ousou atingir: cerca de 80 mil italianos e 20 mil alemães combateram na Espanha, sob o pouco convincente disfarce de tropas voluntárias, ao lado de 10 mil portugueses enviados por outro regime simpatizante, o de Salazar. Do lado republicano, os combatentes das lendárias brigadas internacionais, recrutados por organizações ligadas à Internacional Comunista em mais de quarenta países, montaram a cerca de 35 mil, enquanto a União Soviética enviou 2 mil assessores militares, que, com poucas exceções, não se engajaram em combates. O balanço da ajuda material em armas leves, artilharia, tanques e aviões é semelhante: os aliados fascistas enviaram para as tropas de Franco quantidade muito superior ao que os republicanos receberam (compraram) dos soviéticos. E uma das razões para explicar tal disparidade foi a atitude dos governos franceses e ingleses, que criaram empecilhos à chegada dos suprimentos soviéticos, enquanto faziam vistas grossas à crescente intervenção ítalo-alemã. A diplomacia inglesa, principalmente, que nesse caso arrastou consigo a França, temia mais a vitória dos republicanos que a dos franquistas, preferindo uma eventual hegemonia fascista na Espanha a correr o risco de ver a Península Ibérica cair na órbita soviética.

Na opinião do autor, que é convincente, o desfecho da guerra deveu-se em grande medida à maior ajuda externa recebida pelos nacionalistas, pois em outros aspectos os dois lados tinham recursos semelhantes. Grande responsabilidade teve o governo inglês, que, com sua infeliz e ineficaz política de apaziguar Hitler, combinada ao medo de ver o comunismo instalar-se na Europa ocidental, favoreceu, na prática, a vitória de Franco. Ao contrário de outros autores, que buscam atribuir a culpa pela derrota da República aos comunistas, Romero tende a relativizar a responsabilidade do PCE (Partido Comunista Espanhol) e dos soviéticos. A seu ver, o aumento da influência comunista no campo republicano durante a guerra civil deveu-se menos a maquinações soviéticas e mais à atração exercida por um grupo que mostrou dedicação total à causa. A disciplina dos comunistas e o prestígio alcançado pela União Soviética, único país que apoiou de fato a República (embora seus motivos não fossem altruístas, claro), atraiu para seu lado milhares de republicanos, muitos dos quais tinham escassa convicção marxista.

Naturalmente, Romero menciona os expurgos comandados pelos comunistas, que vitimaram sobretudo militantes do POUM (Partido Obrero de Unificación Marxista) e seu líder, Andreu (Andres) Nin, odiado por sua inclinação trotskista. Mas o autor relativiza esses eventos ao situá-los no meio de outras disputas pelo poder no campo republicano, em que todos os grupos recorreram ao assassinato de concorrentes. Argumento polêmico, decerto, e longe de encerrar o debate, mas Romero parece ter razão ao tentar mostrar que os expurgos stalinistas não foram a causa da derrota republicana. A obsessão antitrotskista dos stalinistas contribuiu para as divisões, desconfianças e traições no campo republicano, mas eles não foram os únicos a cometer atos condenáveis. Afinal, a derrota da República foi abreviada quando forças moderadas (março de 1939) tentaram aproximar-se de Franco negociando à base do isolamento dos comunistas. Fracionado o bloco que a sustentava, a República desmoronou quando ainda ocupava um terço do território espanhol. Desfecho melancólico para uma causa que despertou tanta paixão e sacrifícios.

O livro, portanto, é leitura instigante e provocativa, e nos estimula a continuar refletindo sobre esse acontecimento fundamental à compreensão do século XX. Na conta dos aspectos negativos mencione-se que, em certas passagens, o autor exagera nos detalhes, citando nomes e eventos que o leitor comum teria dificuldade em localizar, muitos deles desnecessários em trabalho cuja ambição é a síntese. A tradução do original em inglês é competente, mas cometeu alguns deslizes: por alguma razão, e recorrentemente, milhares viraram milhões, gerando a situação absurda das tropas africanas de Franco montarem a 'milhões' de soldados; e o nome do marec
hal italiano Italo Balbo tornou-se Marshall Italo Balbo.
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terça-feira, 27 de março de 2012

O alufá Rufino: tráfico, escravidão e liberdade no Atlântico negro (1822-1853)



Reis, João José; Gomes, Flávio dos Santos; Carvalho, Marcus Joaquim de. O alufá Rufino: tráfico, escravidão e liberdade no Atlântico negro (1822-1853)

Diogo da Silva Roiz
Doutorando em História (UFPR), bolsista do CNPq. Departamento de História da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS) - Campus Amambai. Cidade Universitária de Dourados. Caixa Postal 351. 79804-970 Dourados - MS - Brasil. diogosr@yahoo.com.br

São Paulo: Companhia das Letras, 2010. 481p.

A história de Rufino ... não foi de maneira alguma típica. O interesse em narrá-la decorre de que a história não é somente feita do que é norma, e esta pode amiúde ser mais bem assimilada em combinação e em contraste com o que é pouco comum. Foi, aliás, o que buscamos aqui fazer: nosso personagem nos serviu de guia para uma história bem maior do que caberia na sua experiência pessoal. Ele foge com enorme regularidade de nosso campo de visão para dar lugar ao drama colossal da escravidão no mundo atlântico no qual desempenhou seu pequeno mas interessante, às vezes nefasto, papel. (p.360)

Ao estudarem a trajetória de Rufino José Maria, João José Reis, Flávio dos Santos Gomes e Marcus de Carvalho nos oferecem um extraordinário painel, no espaço micro e macrossocial, do que foi o tráfico transatlântico de cativos africanos para o império do Brasil no século XIX. Por certo o tema não é novo, mas a maneira como foi abordado, sem dúvida é muito inovador. Se houve, realmente, um considerável aumento no número de pesquisas sobre o assunto desde o final da década de 1980, que culminou com o primeiro centenário da Lei Áurea, além de se terem firmado novos marcos para a análise do sistema escravista e das políticas inclusivas no país, o tema do tráfico de escravos também recebeu revisão significativa, como indicam trabalhos como Em costas negras, de Manolo Florentino.

Nos Estados Unidos, assim como no Brasil e no Caribe, o tema do tráfico de escravos e do sistema escravista tem sido repensado, como indica Gerald Horne em O sul mais distante. Destoando dos estudos indicados, os autores deste O alufá Rufino deixam os dados quantitativos apenas como complemento, para abordarem a trajetória de um desses africanos que se tornou cativo nas Américas, onde alcançaria a alforria. Rufino tornou-se também traficante e dono de escravos, e nesse percurso transatlântico aprendeu a ler e escrever e cultivou a religião segundos as regras do Alcorão, praticando-a no Império do Brasil, motivo pelo qual foi preso. É bem presumível que a escolha do objeto deva-se não apenas à sua riqueza documental e exemplaridade, mas também às evidências que João José Reis trouxe com Domingos Sodré, um sacerdote africano. Contudo, diferentemente desse livro, em O alufá Rufino os autores aproveitam-se mais do que o personagem oferece para, a partir dele, reconstituírem certos nexos entre atores sociais que povoaram o mundo do tráfico de escravos. Circunstanciam os grandes comerciantes do período, descrevem suas principais embarcações e expõem como burlavam o bloqueio inglês nas costas do continente africano, como agiam quando eram capturados e que tipo de mercadorias levavam das Américas, para tornarem o negócio ainda mais lucrativo. Nesse ponto, habilmente os autores demonstram que quase toda a tripulação das embarcações fazia parte desse comércio, com caixas e rubricas próprias, como foi o caso de Rufino - embora até onde o acompanharam não tenham encontrado suas iniciais entre as mercadorias. Como cozinheiro, Rufino aproveitava o ensejo para comerciar doces - e até, provavelmente, comprar escravos - na África. Outra diferença entre os dois livros é que neste as afirmações seriam mais pautadas em suposições do que em comprovação documental.

Como mostram os autores, a "história dos africanos no Brasil do tempo da escravidão", assim como a de Rufino, "em grande parte, é escrita a partir de documentos policiais" (p.9), que têm sido vasculhados de modo mais sistemático nas últimas décadas pelos pesquisadores brasileiros. Assim, com a história de Rufino os autores nos apresentam o perfil de alguns dos compradores de escravos no Império do Brasil, como João Gomes da Silva, homem pardo que exercia o ofício de boticário. Provavelmente, Rufino foi seu aprendiz por certo período, antes de seguir para Porto Alegre e lá ser vendido, porque é "possível que suas habilidades na cozinha viessem a ter alguma valia na preparação de remédios de origem animal e mineral" (p.31). No início da década de 1830, Rufino desce para o Rio Grande do Sul em companhia de seu senhor-moço, Francisco Gomes, que algum tempo depois o venderá para José Pereira Jardim, comerciante em Porto Alegre, onde "Rufino encontrou ... alguma gente de sua terra escravizada ou já alforriada" (p.52). Em 1835, alguns meses após o levante dos malês na Bahia, ironicamente, Rufino alcançaria sua alforria pagando a quantia de 600 mil-réis.

Com a liberdade, Rufino passaria a figurar de volta na documentação, meses depois seguindo para o Rio Grande, "onde funcionava o governo legal antifarroupilha, talvez na companhia de seu ex-senhor, o desembargador José Maria Peçanha", e lá "ficou ... envolvendo-se com a comunidade muçulmana local até que, no final de 1838, teve lugar a ação policial em Porto Alegre contra aquela escola muçulmana" (p.69). Com isso, como sugerem os parcos documentos sobre ele, provavelmente seguiu para o Rio de Janeiro, entre o final de 1838 e o início de 1839, "e não três anos antes, como deixou transparecer no Recife em 1853, quando tinha boas razões para omitir a verdadeira história de sua saída do Rio Grande do Sul: preso por suspeita de conspiração, ele não podia revelar que suspeita semelhante já havia pairado sobre ele quinze anos antes" (p.70).

No Rio de Janeiro, "Rufino teria percebido que podia conseguir proteção e boa vida - além de dinheiro - alistando-se como trabalhador do tráfico" (p.81). Aqui, os autores demonstram como Rufino participará do comércio transatlântico de escravos, além de pormenorizarem o perfil de tripulantes dos navios negreiros e suas mercadorias (além das quantidades médias de escravos transportados na viagem de volta), e também circunstanciarem os principais organizadores desse mercado arriscado, em função da proibição inglesa, desde o início da década de 1830, mas, ainda assim, incomparavelmente lucrativo.

Nesse percurso, os autores nos apresentaram as histórias de vários personagens do tráfico da época, dos tripulantes aos chefes do comércio. Ao lado da Ermelinda, embarcação na qual Rufino trabalhou, eles indicam os destinos da escuna Paula, do patacho São José e da União (embarcação em que Rufino esteve antes de ir para a Ermelinda), quando estas foram confiscadas e julgadas pelos ingleses em Serra Leoa, juntamente com outras embarcações. Destaque-se ainda que havia muitas evidências, apesar da fiscalização inglesa, de que "traficantes e ingleses se irmanavam nos entrepostos do trato de gente", pois "os verdadeiros 'irmãos' dos ingleses no terreno eram outros brancos, mesmo se traficantes, e não os negros traficados, de quem se diziam 'irmãos' os abolicionistas na distante Inglaterra" (p.157).

Embora não tenha sido condenada, apesar das tentativas na reunião de indícios que a apontassem como embarcação de tráfico negreiro - o que de fato era -, os prejuízos foram evidentes para a Ermelinda, sua tripulação e seus donos. Ainda que extraordinariamente rica a exposição dos autores, não há como em tão poucas linhas circunstanciarmos todas as ramificações e detalhes desse empreendimento e suas consequências, ao serem capturadas as embarcações e levadas até Serra Leoa, onde foram julgadas.

De Serra Leoa para o Recife, Rufino, como toda a tripulação e os comerciantes do trato de gente, teve de computar os prejuízos do empreendimento, não levado a cabo em função da captura inglesa nas costas do continente africano. Em Recife, Rufino se fixaria na rua da Senzala Velha, nome representativo para um ex-cativo e traficante, como ele. Os autores fazem uma primorosa análise do perfil e das características das práticas religiosas na Recife do século XIX, onde Rufino não estaria sozinho, haja vista a pluralidade étnica, cultural e religiosa ali presente. Como alufá, Rufino conhecia os meandros de sua religião, e a sua prática o ajudou a ultrapassar aquele período conturbado. Quando foi detido em meados de 1853 pela prática de rituais religiosos, Rufino manteve uma atitude serena, apesar de a "preocupação das autoridades pernambucanas" ter sido "atiçada não só porque sabiam que na Bahia os rebeldes possuíam papéis escritos em árabe como aqueles encontrados com Rufino, mas também porque, segundo as notícias que circularam o país, muitos dos rebeldes malês eram africanos libertos e nagôs como ele" (p.331). Dito isso, vale destacar ainda que "Rufino certamente desenvolveu uma visão cosmopolita de um mundo dificilmente alcançada pela maioria dos africanos e, menos ainda, dos brasileiros seus contemporâneos" (p.355), o que torna mais representativa sua trajetória.

Portanto, os autores nos oferecem a interpretação de um personagem rico e complexo, inserido no próprio núcleo do movimento dinâmico do tráfico de cativos do século XIX. Desse modo, tracejando pela microanálise (com a trajetória de Rufino) e pela macroanálise (com o estudo pormenorizado do tráfico de escravos), o texto também sugere avanços e traz inovações sobre o uso desses instrumentais metodológicos de análise das fontes e apresentação dos dados.
Revista Brasileira de História

Memórias e narrativas (auto) biográficas



Gomes, Ângela M. de Castro; Schmidt, Benito Bisso (Org.). Memórias e narrativas (auto) biográficas

Weder Ferreira da Silva
Doutorando em História Social pelo Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ. Largo de São Francisco de Paula, nº 1, sala 205. Centro. 20051-070 Rio de Janeiro - RJ - Brasil. wedhistoria@yahoo.com.br

Rio de Janeiro: Ed. FGV; Porto Alegre: Ed. UFRGS, 2009. 278p.

O entusiasmo dos historiadores pela pesquisa no campo das narrativas biográficas e autobiográficas vem ganhando destaque nas publicações recentes no Brasil e no mundo. Um breve passar de olhos em catálogos de editoras e em estantes de livrarias atesta que o país experimenta grande aumento de publicações de caráter biográfico e autobiográfico - a título de exemplo citemos apenas O retorno de Martin Guerre, de Natalie Z. Davis (Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987) e D. Pedro II, de José Murilo de Carvalho (São Paulo: Companhia das Letras, 2007).

Esse entusiasmo dos pesquisadores do campo das ciências sociais se deve ao fato de que o contato com fontes primárias, documentos, papéis, cartas, bilhetes e fotografias é capaz de revelar parcelas desconhecidas ou até então invisíveis da história e do mundo social vivenciado tanto por homens e mulheres 'comuns' quanto por personagens de maior relevo na história. Essa sensação é fortalecida quando o material foge aos rigores institucionais da produção documental, às características seriais e ao formato burocrático, e tem uma origem privada, um caráter pessoal, conferindo a impressão de que se está tomando contato com aspectos muito íntimos da história de seus personagens. O acesso a tais fontes tem a força de simular o transporte no tempo, a imersão na experiência diretamente vivida, sem mediações.1 Paralelamente a esse movimento, é importante ressaltar que é cada vez maior o interesse do leitor por certo gênero de escritos - uma escrita de si - que inclui diários, cartas, biografias e autobiografias, independentemente de serem memórias ou entrevistas de trajetórias de vida, por exemplo.

Como apontou Giovanni Levi, nosso fascínio de arquivistas pelas descrições impossíveis de corroborar por falta de registros documentais alimenta não só a renovação da história narrativa, como também o interesse por novos tipos de fontes - nas quais se poderiam descobrir indícios esparsos dos atos e das palavras da vida cotidiana dos atores sociais.2 É nesse mesmo movimento historiográfico que se enquadra a publicação do livro Memórias e narrativas (auto)biográficas, organizado por Ângela de Castro Gomes e por Benito Bisso Schmidt.

O conjunto de textos apresentado no livro constitui significativo exemplo de como os chamados escritos de si ou autorreferenciais vêm ganhando terreno no campo da historiografia, ilustrando, assim, as várias possibilidades e os resultados de pesquisas que utilizam tais escritos como fonte de investigação histórica. Nesse sentido, o livro Memórias e narrativas (auto)biográficas apresenta ao leitor uma nova possibilidade heurística para os arquivos privados. De acordo com os organizadores do livro, "a atenção de muitos historiadores voltou-se para os arquivos privados, nos quais passaram a procurar não apenas rastros das ações e ideias de seus personagens, mas também a forma pela qual eles constituíram a si mesmos, à medida que selecionavam e guardavam seus documentos e, assim, propunham um sentido para suas vidas" (p.7).

Na esteira das transformações pelas quais a historiografia passou desde a década de 1980, a biografia, isto é, o indivíduo, emerge como tema relevante para a compreensão não apenas do social, mas também de questões ligadas à 'invenção' de si. Essas novas abordagens passam a ocupar espaço privilegiado no conhecimento histórico, suscitando, com isso, reflexões sobre o espaço privado e o público, sobre o individual e o coletivo e sobre as formas narrativas e analíticas da escrita da história. Daí a importância dos acervos pessoais como elementos para a compreensão da 'superfície social' em que age o indivíduo numa multiplicidade de campos, a cada momento. Nos textos que compõem o livro é possível observar que as narrativas autobiográficas evidenciam de forma clara como a trajetória de um indivíduo varia no tempo, o que atesta, mais uma vez, aquilo que Pierre Bourdieu chamou de ilusão biográfica - a ilusão de uma linearidade e coerência do indivíduo.3 Dito isto, cabe ainda ressaltar a proposição de Paul Ricoeur, para quem a história de vida de indivíduo não cessa de ser refigurada por todas as histórias verídicas ou fictícias que um sujeito conta de si mesmo. Essa refiguração faz da própria vida um tecido de histórias narradas.4

Os textos que integram o livro em questão estão dispostos em quatro partes. A primeira - "O historiador entre a história e a memória" - compõe-se de um artigo de Sabina Loriga em que a autora aborda 'as porosas fronteiras' entre história e memória. Com base na obra A memória, a história, o esquecimento, de Paul Ricoeur (Campinas: Ed. Unicamp, 2007), a historiadora tece considerações sobre as múltiplas relações estabelecidas entre a história e a memória. Nesse sentido, o texto de Loriga antecipa o contexto historiográfico em que se situam os artigos subsequentes da obra.

Na segunda parte do livro, Ângela de Castro Gomes, Haike Roselane Kleber da Silva, Yonissa Marmitt Wadi e Keila Rodrigues de Souza abordam facetas das trajetórias de indivíduos com base nas correspondências que trocaram. Ao leitor, ficará evidente que a documentação epistolar permite 'decompor' a vida de indivíduos aproximando-se da sua esfera privada de atuação. Ao investigarem a troca de correspondência entre figuras de relevo da política e da intelectualidade da Primeira República, as cartas de germanistas no Brasil e bilhetes de pessoas que cometeram autoviolência, os autores tecem reflexões sobre a construção do 'Eu', demonstrando que as escritas de si também se constituem em lugares de memória.

Na sequência, Joseli Maria Nunes Mendonça, Benito Bisso Schmidt e Gisele Venâncio ocupam-se em investigar como determinados atores sociais construíram suas imagens por meio de narrativas autobiográficas. Essas análises são reveladoras para pensar as estratégias utilizadas de forma consciente ou não - no processo de construção de si mesmo. Nesse espectro de análise é possível notar as disputas, os silêncios, as hipérboles, enfim, as oscilações das narrativas que pretendem 'forjar' uma imagem de si projetadas para a posteridade.

Por fim, os artigos de Márcia de Almeida Gonçalves, Bruno Barreto Gomide, Marcelo Timotheo da Costa e Maria Elena Bernardes têm como objeto de análise as produções biográficas e autobiográficas que pretenderam traçar um sentido social e existencial para as trajetórias de notáveis intelectuais e políticos brasileiros dos séculos XIX e XX. No capítulo que encerra o livro, Maria Elena Bernardes faz uma incursão à instigante trajetória de vida da escritora e militante comunista Laura Brandão. Nessa biografia, como que em um jogo de escalas, a autora articula aspectos da vida da militante com elementos mais amplos da história do Brasil e mundial, revelando, assim, as potencialidades que a biografia pode oferecer ao campo do ofício do historiador.

Não obstante a diversidade dos objetos e de enfoques, os artigos que compõem a obra Memórias e narrativas (auto)biográficas podem ser conectados um ao outro formando, assim, um 'hipertexto' que se constitui em importante contribuição para o campo da historiografia que se ocupa em investigar a multiplicidade de temas relacionados aos fenômenos da lembrança, do esquecimento e da produção do 'eu'.

NOTAS
1 HEYMANN, Luciana Quillet. Indivíduo, memória e resíduo histórico: uma reflexão sobre arquivos pessoais e o caso Filinto Muller. Estudos Históricos, Rio de Janeiro: CPDOC/FGV, v.19, p.41, 1997.
2 LEVI, Giovanni. Usos da biografia. In: FERREIRA, Marieta de Moraes; AMADO, Janaína. Usos e abusos da história oral. 8.ed. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2006. p.169.
3 BOURDIEU, Pierre. A ilusão biográfica. In: FERREIRA; AMADO, 2006, p.183-191.
4 RICOEUR, Paul. Tempo e narrativa. Campinas (SP): Papirus, 1997. t 3. p.425.
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