quarta-feira, 25 de agosto de 2010

LETRAS, OFÍCIOS E BONS COSTUMES: CIVILIDADE, ORDEM E SOCIABILIDADE NA AMÉRICA PORTUGUESA


LETRAS, OFÍCIOS E BONS COSTUMES: CIVILIDADE, ORDEM E SOCIABILIDADE NA AMÉRICA PORTUGUESA.Thaís Nivia de Lima e Fonseca Belo Horizonte: Autêntica, 2009, 176 p.

Thaís Nivia de Lima e Fonseca é graduada em História e mestre em Educação pela Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG - e doutora em História Social pela Universidade de São Paulo. Fez estudos de pós-doutoramento na Universidade Federal Fluminense e na Universidade de Lisboa. É professora adjunta da Faculdade de Educação da UFMG, onde atua na linha de pesquisa História da Educação. Coordena projeto de pesquisa sobre os processos e as práticas educativas na capitania de Minas Gerais no Grupo de Estudos e Pesquisas em História da Educação - Gephe - da Faculdade de Educação - FAE - da UFMG. É também autora de História & ensino de história, e organizadora de Inaugurando a história e Construindo a nação: discursos e imagens no ensino de história e História e historiografia da educação no Brasil.

O livro em apreço traz uma análise de estratégias e práticas educativas que fizeram e fazem ainda parte da formação cultural brasileira, fruto de pesquisa focalizada na educação no período colonial do Brasil, que considera a diversidade e peculiaridade da sociedade de então. Resultado do exame da documentação disponível no Brasil e em Portugal abordada sob o ponto de vista de uma concepção mais ampla da educação, trata tanto das ações de natureza escolar quanto das práticas educativas não escolares, construídas no cotidiano do período colonial, ainda pouco explorado pelos historiadores da educação.

Na introdução, "A população 'deseducada' da América portuguesa", Fonseca faz um balanço da produção referente à historiografia da educação que trata especificamente do Brasil colonial, apontando a escassez de trabalhos e de obras inteiras dedicadas à educação no período. Entre as existentes, destaca sua concentração no exame da atuação educacional da Companhia de Jesus e das reformas promovidas pela administração do Marquês de Pombal, na segunda metade do século XVIII. A maioria, centrada nas ações do Estado e da Igreja, deixa em segundo plano outras dimensões dos processos educativos na América portuguesa, as quais serão apontadas ao longo do livro. A autora faz ainda uma breve revisão da literatura e do debate historiográfico sobre o tema e discute desde as visões mais tradicionais até os estudos recentes realizados no Brasil e em Portugal, apontando possíveis falhas, méritos e avanços dessa produção, e levantando questões relevantes para o avanço do conhecimento. São explicitados os processos de pesquisa, as fontes e as perspectivas teóricas adotadas, que trabalham com a ideia de práticas educativas, tributária do conceito de práticas culturais, desenvolvido por historiadores e sociólogos, como Michel de Certeau, Pierre Bourdieu e Roger Chartier, e utilizam também outros conceitos e ideias desses e outros autores.

Questões referentes a diversas capitanias aparecem nos dois primeiros capítulos, por meio da documentação utilizada para tratar seja dos discursos, seja das práticas em relação à civilização e à educação dos povos. Em decorrência do foco da pesquisa na Capitania de Minas Gerais, há ênfase na análise das manifestações das diversas formas de educação nessa região. É o que caracteriza as duas últimas partes do capítulo 2 e todo o capítulo 3.

No capítulo 1, "Civilização e educação nos setecentos", na seção "A civilidade moderna e a formação do 'novo' súdito", são analisados o pensamento da intelectualidade da idade moderna e sua produção nos séculos XVII e XVIII, bem como a perspectiva universalista que adquirem, ampliada com o iluminismo. Segundo a autora, duas dimensões da educação - promover a união dos indivíduos em sociedade e disseminar valores e normas de comportamento - integravam as funções atribuídas à ação civilizadora apregoada por esse pensamento. Na perspectiva de uma educação civilizadora, destaque é dado à formação moral, entendida em suas dimensões civil e religiosa, não necessariamente separadas uma da outra. É feita uma revisão do pensamento dos principais intelectuais da época, pensamento esse que influenciou o modelo de formação para a civilidade imposto pelo império português. É também registrado o processo de laicização em curso na idade moderna e acentuado no século XVIII, bem como o papel cada vez mais central da educação nas preocupações quanto à organização da vida social, evidente, por exemplo, nas reformas pombalinas marcadas, entre outros atos, pela expulsão dos jesuítas da América portuguesa.

Na seção seguinte do capítulo 1, "Discurso civilizador e práticas educativas na América portuguesa", a autora faz uso da análise do discurso presente na farta documentação produzida pelos europeus durante o período colonial, principalmente nos textos produzidos por diversas autoridades portuguesas, em que se evidencia a preocupação com o estado de "descontrole" e de "falta de civilidade" dos domínios americanos, especialmente da região das minas. Assinala que o sentido atribuído à ideia da educação para a população não era evidentemente próximo do que entendemos hoje como um sistema de educação pública, que apenas principiava sua trajetória, nos últimos anos do século XVIII, na Europa. Nesses documentos, a educação, fosse qual fosse sua natureza, surgia como solução possível. É também apontada a constante presença, no discurso das autoridades, da relação entre a barbárie da população, o estado de constante ameaça à ordem e a necessidade de se educar e civilizar os povos, para que se tornassem súditos obedientes às reais ordens. São apresentados, ainda, os modos pelos quais eram tratadas - em termos de educação - as classes mais baixas, os escravos e libertos, os órfãos e as demais crianças, sempre considerando o gênero e a posição social. É examinada ainda a educação pela ocupação e pelo exemplo, e a educação para o trabalho nas minas gerais, ligada diretamente aos problemas da produção, mineral e agrícola; são considerados ainda os ofícios que surgiam em uma sociedade com grande urbanização: alfaiates, artesãos, músicos etc.

No capítulo 2, "Civilizar e educar os súditos na América portuguesa: reformas, impactos, cotidiano", na seção "Historiografia das reformas pombalinas da educação", Fonseca aponta a possibilidade de várias abordagens dessas reformas, em vista dos diferentes desdobramentos que tiveram. No tocante à educação, a autora apresenta a visão de conjunto que as coloca no movimento de oposição do Estado à Companhia de Jesus, não deixando dúvidas quanto ao impacto provocado por elas nas regiões em que a educação era monopólio da ordem religiosa. Todavia levanta diversas questões acerca da análise do impacto das reformas, como a necessidade de estudá-lo em regiões nas quais os jesuítas não atuavam ou não havia nenhuma instituição educacional ligada à ordem religiosa, como era o caso da Capitania de Minas Gerais, entre outras. Uma apreciação do debate historiográfico acerca dos impactos das reformas pombalinas, desde o final século XIX e início do XX, passa pelas perspectivas de Fernando de Azevedo, apontando a polarização do debate entre os autores portugueses que viam o Marquês de Pombal como um expoente do pensamento progressista português e os que consideravam seu governo despótico e destruidor das tradições. São evidenciados avanços na recente historiografia portuguesa que trata da educação e a minoritária produção da historiografia da educação brasileira sobre o período colonial, com exemplos de abordagens verticalizadas sobre alguns casos específicos de capitanias que sofreram significativo impacto das reformas. Certo consenso entre os trabalhos sobre educação no Brasil colonial no âmbito das reformas pombalinas é demonstrado no que diz respeito às formas de arrecadação do subsídio literário e aos desvios e fraudes na contabilidade. Também é apontado como situação comum a diferentes regiões do Império português, o maior ou menor jogo de influências quando havia a presença de bispados.

Na seção "As reformas e seus impactos: aulas régias e professores na América portuguesa", Fonseca mostra as dificuldades da administração dos estudos na colônia, algumas comuns às diversas capitanias, outras mais específicas conforme as condições locais, desde a primeira etapa das reformas, como decorrência da expulsão dos jesuítas, bem como a sequência de instrumentos legais impostos a partir de 1759. Deixando claras as desconfianças em relação à docência dos religiosos, mesmo dos não jesuítas, principalmente nas capitanias em que as ordens possuíam conventos e colégios, a autora associa essas atitudes ao "espírito" formulador das reformas, que visava colocar sob o controle do Estado várias atividades importantes da sociedade portuguesa da época, entre elas a educação, responsável pela formação dos melhores súditos. Com o início da segunda fase das reformas, mediante as leis de novembro de 1772 que reformaram os estudos menores e criaram o subsídio literário, intensificou-se o processo de escolarização pela criação de maior número de aulas régias, realização dos exames para provimento de cadeiras, pelo estabelecimento mais nítido dos valores dos ordenados dos professores, e de algumas normas gerais de administração e controle do trabalho docente. É defendida a tese de que as reformas pombalinas da educação propiciaram relativa expansão da escolarização, se considerada sua concentração institucional anterior, nas mãos da Companhia de Jesus e de algumas outras ordens religiosas, assim como se advoga que a criação das aulas régias e de todo o aparato relacionado ajudou a iniciar o processo de formalização do ensino e da profissão docente na América portuguesa.

Na seção "Professores régios e os modelos de bons costumes", a autora lança luz sobre esses professores na Capitania de Minas Gerais, sua participação na vida social e cultural, suas diferentes origens e trajetórias pessoais, reconstituindo algumas delas a fim de esclarecer questões sobre o funcionamento da estrutura do ensino régio na América portuguesa. Para tanto, faz uso de uma perspectiva micro-histórica. Trata de temas diversos do universo dos professores régios mencionando alguns como exemplos, aponta as perspectivas de civilização oriundas do iluminismo português, as qualidades esperadas dos mestres, que incluíam aspectos físicos e médicos, além de morais (como ser casado), e os exames de admissão a que eram submetidos. Refere-se ao tipo de educação destinado às elites - cuja essência eram a moral, o direito natural e o direito civil; a cuidados com os costumes dos alunos, incluindo a prática da religião, a fim de formar, além de um bom cidadão, um bom cristão, e menciona casos de denúncias contra professores feitas pelos pais às autoridades civis e religiosas da inquisição no Tribunal do Santo Ofício.

No capítulo 3, "Pobres ou abastados, os súditos se instruem e se educam na Capitania de Minas Gerais", Fonseca demonstra, na seção "Civilizar e educar os órfãos e os pobres", como ocorre a educação das camadas mais baixas da população mineira, associada à difusão da doutrina cristã e à formação profissional como meios de controle e realizada predominantemente em instituições de natureza caritativa, ligadas a ordens religiosas ou particulares. Desse modo, o ensino das primeiras letras visava fundamentalmente facilitar o aprendizado da doutrina, sem implicar a criação de possibilidades de ascensão social pela educação. De acordo com a autora, se em muitas capitanias foram abertos estabelecimentos que podiam abrigar órfãos e expostos pobres, dar-lhes sustento e educação, nas Minas Gerais sua existência foi tardia e menos vinculada diretamente à Igreja. Isso porque a presença das ordens religiosas foi proibida ali no início do século XVIII, e a assistência associada à instrução limitou-se à dimensão leiga. O espaço religioso foi ocupado pelas associações leigas - irmandades e ordens terceiras - que proporcionavam certa inserção social e proteção, principalmente aos seguimentos menos favorecidos da população, sendo que suas ações possuem mais um caráter assistencial do que educacional propriamente dito. Fonseca aponta ainda outras instituições voltadas para o atendimento às necessidades sociais e religiosas da Capitania de Minas Gerais, como dois recolhimentos femininos, importantes para a educação das mulheres abastadas ou pobres, e o Seminário de Mariana, interferência mais direta da Igreja na educação, criado em 1750 pelo bispado local. A autora lembra que, para os pobres, a educação voltava-se prioritariamente para o aprendizado de ofícios mecânicos, embora eventualmente eles também fossem levados a aprender a ler, escrever e contar. Foi relevante ainda a atuação de professores particulares, principalmente de primeiras letras, mesmo depois da instituição das aulas régias, bem como dos mestres de ofícios mecânicos.

Na seção "Letras, ofícios e bons costumes longe da educação estatal", Fonseca concentra a análise na Comarca do Rio das Velhas, mais particularmente na Vila de Sabará e seu termo, sobre a qual vem sendo realizada a pesquisa mais verticalizada acerca da educação fora do âmbito do Estado. Aqui é defendida a tese de que, muito antes das reformas pombalinas da educação e da criação das aulas régias, a população da Capitania de Minas Gerais já construía importantes relações com as práticas educativas que poderiam quer resultar no aprendizado da leitura e da escrita ou gramática, quer no de ofícios mecânicos, todos associados, de alguma forma, à doutrina cristã, por meio dos mestres particulares. São destacados aspectos da educação de meninos e meninas e as funções pedagógicas das irmandades e ordens terceiras.

A obra fornece subsídios importantes ao campo da História da Educação brasileira. Oferece contribuição no tocante à educação em diversas regiões da América portuguesa, antes e depois das reformas pombalinas e, principalmente, na Capitania de Minas Gerais, caso muito particular, haja vista leis específicas impostas à região para o maior controle do destino de suas riquezas minerais. Entre outras ações, essas leis proibiam a instalação nessa capitania de ordens religiosas responsáveis pela educação, como o caso emblemático da Companhia de Jesus.

Aporte relevante é dado à esfera da educação desvinculada do Estado e da Igreja, com apontamentos sobre as práticas informais, de iniciativa privada, de indivíduos ou grupos organizados, como as irmandades e ordens terceiras leigas. Igualmente importante é o trato dado à educação não escolar, não necessariamente visando ao aprendizado de leitura, escrita e cálculos, mas voltada ao trabalho, à formação moral e religiosa, à civilização e controle social, muitas vezes de caráter assistencialista, baseados em princípios como a caridade, próprios do bom súdito cristão.

Uma observação deve porém ser feita, sobre a falta de apontamentos relativos à população indígena na obra, principalmente quando trata do caso de Minas Gerais. Essa omissão, diga-se de passagem, é comum à maioria dos trabalhos sobre o período e a região. Não obstante a participação dos indígenas na sociedade mineira era, desde o início da chegada de europeus e africanos à região, relevante a ponto de, mesmo em períodos posteriores à independência do Brasil, surgirem projetos de cunho estatal para a civilização e educação desses povos nas Minas Gerais, o que mereceria maior atenção por parte dos pesquisadores.

Finalmente, há de se considerar a obra uma referência valiosa, tanto pelas qualidades metodológicas do trabalho, quanto pelas contribuições ao conhecimento de um período histórico ainda carente de estudos concernentes à educação.

Ageu Quintino Mazilão Filho
Graduado em História (licenciatura e bacharelado) e mestrando
em Educação pela Universidade Federal de
São João del-Rei-MG
ageumazilao@yahoo.com.br

Fundação Carlos Chagas

USP PARA TODOS? ESTUDANTES COM DESVANTAGENS SOCIOECONÔMICAS E EDUCACIONAIS E FRUIÇÃO DA UNIVERSIDADE PÚBLICA


USP PARA TODOS? ESTUDANTES COM DESVANTAGENS SOCIOECONÔMICAS E EDUCACIONAIS E FRUIÇÃO DA UNIVERSIDADE PÚBLICA. Wilson Mesquita de Almeida São Paulo: Musa; Fapesp, 2009, 208p.

O estudo se propõe uma pesquisa sobre o uso do amplo potencial formativo disponível na Universidade de São Paulo - USP -, por estudantes com desvantagens socioeconômicas e educacionais. Interroga a fruição das oportunidades educacionais no nível superior por meio de três eixos investigativos: socialização em ambiente familiar; trajetória de ingresso; socialização universitária.

O enfoque atual do debate sobre a questão é maior quanto ao acesso ao ensino superior (ainda bem diminuto: 8% a 9% dos jovens na faixa de 18 a 24 anos de idade) do que quanto à permanência nele. Isso parece acontecer em razão do crescente interesse das camadas desprivilegiadas de ingressar nesse nível de ensino. Por sua vez, o avanço das universidades particulares sobre a classe C é agressivo, como se pode constatar em recentes matérias jornalísticas1 como assunto de capa. O trabalho pretende, na contramão da tendência de incorporação dos jovens de baixa renda pelo setor privado, discutir a permanência efetiva de alunos com as características mencionadas na universidade pública. O passo a frente da pesquisa consiste em abordar, creio eu, o problema maior no ensino superior público: permanecer, usufruir e concluir o curso com boa formação.

Para tanto, a pesquisa estuda um grupo de alunos da USP, o que, ao mesmo tempo, torna o foco da investigação original e interessante: não se está falando de estudantes que terão o pior ensino entre os universitários, mas de um dos "biscoitos mais finos" que esse nível de ensino pode oferecer no país. É evidente que esse "biscoito fino" não está isento de problemas; no entanto, não é lá, certamente, que se imaginaria encontrar o estudante pobre, ou com "desvantagens socioeconômicas e educacionais", como as denomina Almeida.

O fato de ser a USP a universidade de origem do autor não empobrece seu ponto de vista: ao contrário, o enriquece porque, para construir a problemática, ele se vale da vivência do curso de graduação em uma das faculdades tidas como "irmãs pobres"2 na universidade.

Para selecionar a amostra, o pesquisador recorreu ao questionário socioeconômico aplicado aos candidatos ao vestibular da USP de 2003, utilizando quesitos que considerou ter forte relação com o sucesso escolar. Foram levados em conta: a renda familiar dos alunos, a realização de estudos no período noturno, a frequência à escola pública, o fato de terem pai e mãe com baixa escolaridade. Com base nesses critérios, o perfil dos sujeitos da amostra pode ser resumido da seguinte forma: escolarização fundamental e média realizada exclusivamente ou na maior parte em escola pública, ou em curso supletivo ou de madureza. Os que estudaram em escolas técnicas federais, sabidamente com qualidade comparável às melhores escolas particulares, foram excluídos. Além disso, o respondente deveria ter realizado a maior parte ou a totalidade dos estudos em período noturno; possuir pai e mãe com até o ensino médio incompleto e que não fossem empresários de qualquer porte ou profissionais liberais3; a renda familiar não deveria exceder a R$ 3 mil. Um outro aspecto fundamental: os respondentes deviam também exercer alguma atividade remunerada no momento do ingresso e se sustentar durante o período do curso superior com sua própria remuneração, sem a colaboração dos pais.

Tais critérios são certamente rigorosos, porém, causa espanto que deles resulte, em todo o universo de ingressantes da USP em 2003, um subconjunto de apenas 39 indivíduos, dos quais 17 aceitaram participar da pesquisa4. Como procedimentos foram realizados dois grupos focais e entrevistas semiestruturadas. A discussão metodológica do autor, franca e madura, não hesitou em assinalar erros porventura cometidos e manifestou preocupação constante com a validade dos achados.

Dois reparos podem ser feitos. Um, que foge, na verdade, à competência do autor, é a predominância dos estudantes de ciências humanas na amostra. Esse aspecto, evidentemente, diz respeito ao menor prestígio e menor caráter competitivo dos cursos dessa área, aos quais os alunos de baixa renda "obrigatoriamente" recorrem, como se pode verificar na análise do seu processo de escolha. No entanto, é fato que, ao se aprofundar no cotidiano desses estudantes, a análise fica muito marcada pela experiência particular dos cursos de humanas da FFLCH. As diferenças são mostradas, é verdade, pelas experiências dos outros estudantes, ainda que em menor número.

O outro reparo diz respeito à pouca importância dada aos condicionantes de gênero na questão do tempo. É conhecida a problemática do uso do tempo para as mulheres que, em razão de suas atribuições tradicionais em relação ao doméstico, incorrem em dupla jornada e, no caso das que estudam, em tripla. Na amostra, elas são minoria (seis mulheres e 11 homens), todas solteiras e sem filhos. Entre os homens, apenas um tem filho, entretanto a média de idade das mulheres (só uma tem menos de 27 anos) é bem mais alta que a da parcela masculina (mais da metade do grupo, oito indivíduos, tem até 27 anos). Questões como essas poderiam ser problematizadas na perspectiva de gênero, assim como a composição sexual do grupo de desistentes.

O conjunto dos 17 estudantes compõese basicamente de filhos de migrantes nordestinos (pelo menos a metade deles), de população proveniente de cidades do interior do estado e da Grande São Paulo, ou ainda de alunos migrantes, eles mesmos (um vindo do Paraná e outro de Minas Gerais). São também trabalhadores-estudantes.

Outro aspecto de destaque é o papel das mães no incentivo à leitura. O estudo mostra que seus interlocutores são "pobres diferenciados", ou seja, entre aqueles que se encontram em situação socioeconômica e educacional desvantajosa, eles possuem algum tipo de vantagem, o que os coloca, de alguma maneira, em condições de enfrentar o exame vestibular da Fuvest. Essas vantagens podem ser encontradas na trajetória social e familiar dos informantes, em diferentes combinações: incentivo aos estudos por parte dos pais, esses mesmos pouco escolarizados, ou de irmãos que conseguiram trilhar um caminho de relativo sucesso escolar e fornecem o necessário exemplo de possibilidade; escolas excepcionalmente boas, no sentido de que nem sempre são instituições de excelência, mas conseguem desenvolver capacidades mínimas entre os alunos.

Alguns dos sujeitos que compõem o estudo afirmam ter optado pela USP mais premidos pela necessidade do que pelo prestígio que o nome da universidade pudesse deixar em seus currículos. Nenhum deles ignorava, porém, a força e importância desse nome, revelando uma imagem quase "mítica" da universidade. Esse caráter mítico não impediu, no entanto, o pequeno grupo de entrar na universidade, mas certamente desviou alguns por um tempo, retardando, por exemplo, o momento de prestarem a prova vestibular. Isso leva a supor que milhares de alunos de escolas públicas são barrados, não na prova escrita, mas pelos obstáculos decorrentes da violência simbólica de que são alvo: a ideia recorrente de que a USP, ou qualquer universidade pública, ou, ainda, que o ensino universitário de qualidade, não é o lugar em que deveriam estar. É doloroso ler o relato de uma estudante sobre o que ouvia dos próprios professores: "alunos de escola pública, vocês, por exemplo, não vão entrar na USP". Outro estudante, levado em uma excursão da sua escola a conhecer a universidade, ouve de um dos monitores o comentário: "vocês de escola pública, é bastante difícil entrar aqui". O comentário, seguido da correção de outra monitora, que afirma que é "difícil, mas não impossível", aponta para o subliminar "aqui não é o seu lugar".

Uma vez tomada a decisão de prestar o vestibular, é o momento de escolher o curso. O autor passa ao exame do processo de escolha. Essa "escolha" com aspas significa que, em muitos casos, se trata de uma "não-escolha", ou de uma escolha restringida pelas condições materiais. Ao ultrapassarem as barreiras simbólicas que faziam da USP um "mito inatingível", os estudantes começam a apreender o "sentido do jogo"; mas, se a eles faltavam capital econômico e cultural, uma boa formação escolar e estímulos, a condição de desvantagem lhes proporcionava, enviesadamente, o desenvolvimento de estratégias do possível e lhes permitia encarar uma rotina extenuante de trabalho e estudo.

A tarefa de ser bem-sucedido no seletivo vestibular da USP, ainda que em carreiras menos concorridas, é lida através das lentes do "trabalhador-estudante". Aquele que estuda é, antes de tudo, um trabalhador, e por esse motivo carrega consigo os valores do trabalho, do esforço, da superação e da recompensa pelo mérito. Essa categoria explicativa que, à falta de melhor denominação, é chamada de "esforço descomunal" é que cria um "ethos do esforço e da responsabilidade". A discussão sobre cotas que emerge dos debates públicos apenas corrobora o perfil delineado pelo autor: majoritariamente contrários a elas, os participantes da pesquisa preferem apostar na "melhoria" da escola pública como forma de manutenção do critério meritório que reputam justo, sem, no entanto, ignorar a desigualdade de bases socioeconômicas inerente à disputa. Parecem, a um só tempo, incorporar os critérios puramente meritocráticos e, por meio da sua defesa, valorizar suas próprias trajetórias de conquista da vaga.

Uma vez conquistada a vaga, o cotidiano de estudo se afigura. As desigualdades entre os cursos no interior da universidade e, entre os alunos no interior de cada curso, são exploradas. Dimensões como a infraestrutura oferecida em termos de biblioteca e laboratórios; a sociabilidade: contato com colegas, ida a festas e outros eventos; a vivência em um ambiente diferenciado e privilegiado do ponto de vista intelectual; a dificuldade no manejo de línguas (seja o português, seja as demais línguas necessárias em determinados cursos, como inglês, francês e espanhol), apontam para outros e novos obstáculos a serem superados. Sublinhe-se o déficit quase incontornável em relação ao que os sujeitos chamam de "base", isto é, os conhecimentos fundamentais que deveriam ter adquirido nas etapas escolares anteriores e que agora fazem falta. O maior obstáculo é, contudo, a falta de tempo, até porque, se ela não impede, dificulta sobremaneira o acompanhamento do curso. O tempo, que para muitos é dinheiro, é escasso; faltam aos estudantes tanto um quanto outro.

As estratégias de acompanhamento do curso são inúmeras e frequentemente impróprias: avançar no tempo de sono, estendendo a jornada insone (alunos do período noturno que chegam em casa e continuam estudando ou que realizam os trabalhos das disciplinas nesse horário); deixar de ter "vida social", avançando no tempo de lazer, já exíguo, ou burlando o horário de trabalho para estudar, ter lazer, ou mesmo para tirar xerox dos textos de leitura às escondidas do chefe ou patrão. Esse malabarismo faz dos estudantes mestres em encontrar "brechas" no trabalho, no tempo, na vida, para prosseguir no curso universitário, o qual demonstram, muitas vezes, amar intensamente. São apaixonados - digo sem medo de parecer exagerada - pelo trabalho intelectual, e resistem às adversidades em razão disso. É por esse motivo que, de maneira tão adequada, Heloisa Martins afirma em orelha do livro: "É dessa elite que a universidade pública precisa: a que valoriza o conhecimento de qualidade e se esforça para alcançá-lo".

Para alguns estudantes, a aproximação com a "mítica" da USP os leva a enfrentarem a dura realidade de parcas instalações e recursos, conhecida entre os que frequentam os cursos mais "pobres" da universidade. Ainda distantes, mas em processo de preocupante aproximação, esses problemas fazem lembrá-los daquilo que gostariam de deixar no seu passado educacional: banheiros sujos, instalações e equipamentos precários das escolas públicas que frequentaram, a exemplo do documentário Pro dia nascer feliz, de João Jardim. Não se deve, a meu ver, descartar os efeitos desses aspectos no estímulo e na autoestima do estudante de qualquer nível. O contraste com unidades mais ricas, como a Faculdade de Economia e Administração e o Instituto de Física, constitui mais um indicador da desigualdade do interior da universidade.

Almeida faz por fim a sua discussão sobre a noção de "elite". Na verdade, aponta o uso impróprio do termo, no caso dos alunos da Universidade de São Paulo, chamada pela mídia e por alguns trabalhos acadêmicos pejorativamente de "elitista", no sentido de abrigar, primordialmente, as elites econômicas. O autor desmonta esses argumentos trazendo evidências de que a universidade pública, como espelho da sociedade, não é ocupada nem exclusivamente pela elite [econômica], nem pelos muito pobres, e sim, basicamente, pelos segmentos médios.

É verdade que há aqueles privilegiados,uma classe média "alta"5, com condições de proporcionar melhores colégios ao filhos no período da educação básica. Entretanto, a instituição dá também lugar a uma classe média "remediada", que se priva de certos bens para dar educação aos filhos, e até a uma classe menos privilegiada, na figura dos seus membros, senão mais brilhantes, certamente, os mais persistentes. O pano de fundo dessa crítica, ainda que não explicite o autor, aponta para aqueles que se utilizam desses discursos para pleitear a privatização de universidades públicas, pois elas fariam o papel de um "Robin Hood às avessas", uma vez que tiram recursos dos impostos pagos por uma sociedade "pobre" para custear o ensino da camada "rica".

O autor mostra que esses alunos, sem incentivo, conseguem chegar à universidade e se manter a duras penas. Mas adverte que eles podem usufruir da universidade de maneira muito mais positiva quando recebem apoio na forma de algumas políticas, como, no caso da USP, o oferecimento de moradia estudantil, bolsa-alimentação ou refeições a preços sub-sidiados6 etc. Certa vez, ouvi de um professor da Faculdade de Educação7 a seguinte aposta: "Tenho certeza que o índice de ingresso de alunos de escolas públicas na USP, assim como na Unesp e Unicamp, aumentaria com uma política simples: isenção de taxas de inscrição no vestibular a todas as escolas públicas do Estado de São Paulo". Compartilho da opinião e me parece que o trabalho de Almeida leva a pensar o modo pelo qual os alunos de escolas públicas - mais pobres - são afastados do projeto de concorrer a uma universidade de excelência como a USP e outras públicas, uma vez que se autoexcluem pelas representações sobre as universidades como instituições elitistas, barrados não pelo vestibular, mas antes até dele. O livro leva a olhar, sobretudo, para um segmento importante dos alunos, que poderia usufruir mais das políticas universitárias de permanência se tivesse a orientação adequada por parte da própria universidade, criando condições de formar uma nova e saudável "elite".



Arlene Martinez Ricoldi
Doutoranda em Sociologia pela Universidade
de São Paulo
aricoldi@uol.com.br





1. TODESCHINI, M.; SALOMÃO, A. Um mergulho na nova classe média. Revista Época Negócios, n.33, capa/Economia, 5 nov. 2009; STANISCI, C., OLIVEIRA, E.; SALDANHA, P. A. Classe C com diploma. O Estado de S. Paulo, Cadernos Estadão Edu, p.10-12, 24 nov. 2009.
2. Estamos nos referindo em especial aos cursos da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas - FFLCH -, a algumas licenciaturas (Física, Matemática, Ciências Exatas) e a outros cursos menos concorridos, como o de Contabilidade. Esse "desprestígio" não quer dizer, necessariamente, que os cursos não sejam bons ou não tenham boa infraestrutura. Alguns participantes da pesquisa elogiam, por exemplo, a estrutura impecável oferecida pela Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade - FEA - e pelo Instituto de Física - IF. O mesmo não ocorre com outros cursos da FFLCH, no dizer dos entrevistados.
3. O questionário não é muito satisfatório em alternativas nesse sentido, mas a escolha do autor permitiu que fossem selecionados sujeitos com pais que se poderiam chamar "trabalhadores", aqueles que dependem da renda do trabalho para a sobrevivência.
4. Em 2003, foram convocados para matrícula em primeira chamada 9.910 candidatos, conforme o Questionário de avaliação socioeconômica, da Fuvest, 2003 (disponível em: http://www.fuvest.br/scr/qase.asp?anofuv=2003&fase=3&carr=TOT&quest=01&tipo=3&grupo=1. Acesso em: 29 nov. 2009).
5. A discussão do autor sobre elites também tangencia uma discussão sobre "classe", apontando para a inadequação de alguns critérios classificatórios de natureza socioeconômica, como o "Critério de classificação econômica Brasil". Segundo essa classificação, em números de 2006, a classe mais alta, a "A1", se caracterizaria a partir da renda média mensal de R$ 7.793,00.
6. Atualmente, uma refeição no restaurante universitário custa, ao estudante, R$1,90. O preço mantém-se há dez anos.
7. Trata-se do prof. Amaury Cesar de Moraes.

Fundação Carlos Chagas

PROFESSORES DO BRASIL: IMPASSES E DESAFIOS


PROFESSORES DO BRASIL: IMPASSES E DESAFIOS. Bernardete A. Gatti (coord.) e Elba Siqueira de Sá Barretto Brasília: Unesco, 2009, 294 p.

Um estudo abrangente e alentado sobre a formação de professores e o exercício da docência na educação básica é apresentado neste livro, lançado há poucos meses pela Unesco. O trabalho oferece um panorama da inserção profissional dos professores no cenário socioeconômico e cultural do país, bem como examina aspectos centrais da sua formação. As autoras recuperam pontos-chave da legislação que rege os modelos de formação docente e analisam os gargalos das licenciaturas presenciais, os desequilíbrios presentes nas grades curriculares dos cursos superiores, agora encarregados de preparar os professores de todas as etapas da educação, e também discutem as características e as divergências relativas às licenciaturas a distância. Informações relevantes acerca do perfil dos universitários que procuram a docência, dos cursos de formação continuada e da carreira docente completam a análise da atual condição dos professores no Brasil.

O primeiro capítulo reúne, com muita propriedade, dados extraídos principalmente da Relação Anual de Informações Sociais - Rais -, realizada pelo Ministério do Trabalho, e da Pesquisa Nacional de Amostra por Domicílio - Pnad -, efetuada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE -, aliando essas informações às do Censo Escolar da Educação Básica, feito pelo Ministério da Educação, para apresentar o cenário da profissão docente. Os professores correspondem ao terceiro maior grupo profissional no total de empregos formais no país, sendo que mais de 80% deles ocupam postos públicos de trabalho. Ou seja, além do seu importante papel cultural, mobilizam uma enorme carga orçamentária do Estado, ângulo de análise que merece ser mais bem explorado pelos estudos da área. O texto traça um perfil socioeconômico dos docentes e levanta algumas características do seu trabalho. Ao final reitera a preocupação com a quantidade de professores ainda não formados no ensino superior ou na sua área de atuação e considera a distribuição desigual de oferta pública e privada de vagas nos cursos superiores.

Ao referir-se, no capítulo 2, aos marcos legais dos cursos de formação de professores, o estudo traça o percurso da formação docente desde o curso normal, a habilitação magistério, os Centros Específicos de Formação e Aperfeiçoamento para o Magistério - Cefans -, os Institutos Superiores de Educação até a recente deliberação que atribui, à graduação em Pedagogia, a responsabilidade pela formação de professores para as séries iniciais do ensino fundamental e da educação infantil. As autoras alertam para a complexidade dessa tarefa, que se sobrepõe à formação de especialistas em educação, e para os riscos de simplificações na elaboração de matrizes curriculares que comprometem o preparo específico para a docência nesses cursos.

O terceiro capítulo focaliza a formação inicial para a docência em termos da distribuição da oferta e demanda de vagas no país e conclui que as condições de formação dos professores, de modo geral, ainda estão muito distantes de serem satisfatórias. Mostra que a preparação de docentes para o ensino básico está sendo feita sobretudo pelo setor público nas regiões com economia menos dinâmica. Entre as instituições públicas do país, destacamse as estaduais nessa tarefa.

As licenciaturas a distância são tratadas no capítulo 4, de forma a compor uma visão ampla e crítica sobre um tema emergente e complexo. O texto traz numerosas informações e referências que podem subsidiar outros estudos na área. Nas análises empreendidas, as autoras resgatam iniciativas de sucesso nessa modalidade e também apontam dificuldades, contradições e fragilidades observadas em sua expansão. Valorizam o potencial de democratização do ensino superior por essa via, ao mesmo tempo em que expressam o temor, fundamentando as suas apreensões, de que o ensino a distância possa resultar em formação ainda mais precária que a oferecida pelos cursos presenciais.

No capítulo 5, Gatti e Barretto se reportam a estudo que discute os currículos dos cursos que formam os docentes do ensino fundamental, englobando as licenciaturas em Pedagogia, Letras, Matemática e Ciências Biológicas. A análise destaca a desproporção entre a carga horária das disciplinas referentes à formação profissional específica e das outras disciplinas, em detrimento das primeiras. Registram a preocupação com a falta de articulação entre teoria e prática nos currículos examinados, bem como com a desvalorização das licenciaturas no modelo brasileiro de universidade.

A síntese a respeito de quem são os estudantes universitários das carreiras que conduzem à docência, apresentada no capítulo 6, sistematiza informações coletadas pelo Exame Nacional de Cursos - Enade - em 2005, referentes aos estudantes de Pedagogia e demais licenciaturas. De um modo geral eles conjugam trabalho e estudo, e muitos são oriundos de famílias de baixa renda. As informações sobre o sexo dos alunos corroboram outros dados sobre a feminização da carreira docente, notadamente nos cursos de Pedagogia. Chama a atenção o fato de a maior parte dos estudantes não demonstrar grande interesse pela docência; esta aparece como uma segunda opção de atividade profissional.

No capítulo 7, são mencionadas as principais iniciativas de modalidades especiais de formação de professores, voltadas para docentes das redes públicas sem titulação em nível superior. Trata-se de um bom conjunto de referências na área e as autoras destacam como contribuição de alguns desses programas o cuidado com o planejamento do currículo e dos conteúdos, os quais têm como foco as habilidades profissionais básicas para o trabalho na escola e em sala de aula.

O tema da formação continuada é abordado no capítulo 8, em que são citadas experiências bem-sucedidas. Aponta-se para uma reconceitualização da educação continuada, a qual passa a incluir o reconhecimento de uma experiência profissional preexistente que serve de base para o desenvolvimento de novos conceitos e concepções. Alerta-se também para o fato de que a formação continuada acaba, muitas vezes, por funcionar como uma educação compensatória em vista da necessidade de suprir lacunas geradas por dificuldades na formação inicial dos docentes.

As condições profissionais dos professores são contempladas no capítulo 10, no que tange à carreira e ao salário de docentes da educação básica. O rendimento médio dos professores é mais baixo se comparado a outras profissões que exigem nível superior, mesmo diante daquelas consideradas profissões femininas. Há indicações de que ainda são tímidas as iniciativas para a elaboração de planos de carreira docente que contemplem a possibilidade de progredir na carreira sem precisar abandonar a sala de aula. Salário e carreira são, portanto, dois aspectos muito ligados ao futuro do ensino no país e ao interesse manifesto pelas novas gerações para ingressar na docência.

Por fim, Gatti e Barretto, ao considerarem a complexidade dos temas educacionais e os muitos desafios para superar os problemas detectados, ressaltam a necessidade de ultrapassar interesses político-partidaristas e de adotar estratégias articuladas entre as diferentes instâncias formadoras de professores e as que os contratam como profissionais, com o fito de buscar soluções que tornem possível a melhoria da qualidade da educação oferecida no país.

Marina Muniz Rossa Nunes
Pesquisadora do Departamento de Pesquisas
Educacionais da Fundação Carlos Chagas
mnunes@fcc.org.br

Fundação Carlos Chagas

Amazônia. Desenvolvimento, meio ambiente e diversidade cultural


A Amazônia em múltiplas faces

Eliana Tavares dos Reis

FERRETTI, Sérgio; RAMALHO, José Ricardo (Org.). Amazônia. Desenvolvimento, meio ambiente e diversidade cultural. São Luís: EDUFMA, 2009. 224 p.

A obra Amazônia. Desenvolvimento, meio ambiente e diversidade cultural é constituída de um conjunto de dez capítulos produzidos por pesquisadores de diferentes áreas de conhecimento das Ciências Sociais, vinculados à Universidade Federal do Maranhão e à Universidade Federal do Rio de Janeiro. A interlocução entre eles se deu nos marcos do convênio PROCAD/CAPES, e seus estudos foram reunidos e organizados pelo antropólogo Sérgio Figueiredo Ferreti e pelo sociólogo José Ricardo Ramalho, professores, respectivamente, das instituições de ensino mencionadas.

Para além do valor temático, tem-se, nessa coletânea, uma riqueza de focos de investigação e de abordagens teóricas e metodológicas que retratam a multiplicidade de possibilidades interpretativas de processos, atores e lógicas sociais, políticas, econômicas e culturais. Os trabalhos contribuem decisivamente para o desvendamento do modo como dinâmicas específicas (basicamente nos estados do Pará e do Maranhão) são definidas e definem ações e relações que conformam cadeias de interdependências muito mais amplas. Conjuga-se a isso a oportunidade de atentar-se para a série de discursos, negociações, agentes e concorrências que compõem tais cadeias e que são responsáveis pela edificação da Amazônia como referência de síntese para problemáticas políticas e para posicionamentos socialmente relevantes que colaboram para a sua existência objetiva.

Formas de legitimação de políticas públicas, estratégias empresariais, resistências identitárias, configurações de perfis e manifestações culturais são algumas das dimensões tratadas e que podem ser localizadas num continuum entre ideias de desenvolvimento e de preservação. Projetadas do local ao global, do passado ao futuro e mediadas por noções de impacto, riscos e efeitos, esses enfoques se traduzem nas controvérsias em torno de definições de meio ambiente, desenvolvimento sustentável, diversidade cultural e até mesmo de esquemas analíticos mais ou menos eficientes para a compreensão dos fenômenos sociais.

Observando-se a atualização de relações dicotômicas clássicas (lidas do ponto de vista científico e normativo) como as de tradição versus modernidade e a de mudança versus continuidade, propõe-se aqui atribuir essa regularidade para pontuar as singularidades dos diferentes capítulos do livro em pauta. Ou seja, indaga-se como essas dicotomias emergem nas discussões de cada autor, no intuito de explicitar não somente a importância de propostas desse tipo como parte integrante da consagração de problemas sociais, como também de formulação de questões relevantes para as ciências sociais.

O processo de instauração do Programa Grande Carajás (PGC) na Amazônia Oriental, com vistas à exploração de ferro gusa e carvão vegetal, é um dos cenários em que se situam os primeiros estudos presentes na obra. No quadro de referência, são sublinhados aspectos tais como as "apostas" do governo federal no PGC e a atuação da, então estatal, Companhia Vale do Rio Doce, responsável pela construção da Estrada de Ferro Carajás (EFC), que une a serra dos Carajás (Pará) ao porto do Itaqui, em São Luís (MA). A intervenção nessa área teria como fim a industrialização e a modernização do país e como justificativa a potencialidade em termos de recursos naturais de um espaço considerado como um "vazio demográfico" e, portanto, também adequado à expansão territorial.

Rodrigo Salles Pereira dos Santos discute as modificações nos "modelos e papéis institucionais" do Estado Nacional brasileiro, para afirmar justamente a persistência de uma "estratégia desenvolvimentista" nas "ações e representações da modernização induzida nos últimos 40 anos". O autor observa que o Estado demiurgo, que outrora se apresentava como o artífice direto das intervenções econômicas ("modelo centralista-autoritário" dos anos sessenta), passaria a desempenhar dois papéis complementares (com o "modelo descentralizado-democrático"): a gestão e sustentação de "infraestruturas públicas, de subsídios à atividade econômica e da incorporação de parte dos custos privados"; e a promoção das condições necessárias para a existência de "novos grupos econômicos, priorizando, sobretudo, a internacionalização, a orientação exportadora voltada à formação de superávits comerciais e à competitividade no setor mínerometalúrgico" (p. 85).

Pode-se pensar em como as transações econômicas globalizadas e as regulações pelo mercado, que visam ao comércio em escala internacional, facilitam o surgimento de empresas multinacionais com diferentes estratégias de mercado. Do mesmo modo, pode-se perguntar sobre os efeitos das iniciativas econômicas priorizadas e dos mecanismos de legitimação utilizados por agentes estatais e empresariais, tal como a criação de condições propícias de contestação em níveis igualmente globais.

Nessa linha, Marcelo Sampaio Carneiro, ao analisar dois mecanismos de certificação da atuação das empresas na Amazônia Oriental, revela processos mais abrangentes de ajuste aos parâmetros de conduta econômica e social exigidos internacionalmente. Esses diferentes "dispositivos de julgamento [são] destinados a construir a legitimidade das empresas submetidas à contestação da crítica social" (p. 20), e, portanto, ocupam um lugar central na apreciação e no controle dos "impactos sociais e ambientais derivados da implantação da atividade carvoeira e siderúrgica" (p. 34). Composta por porta-vozes localizados nos mais diferentes domínios sociais (midiáticos, organizações não-governamentais, instâncias governamentais, etc.) e geográficos (regionais, nacionais e internacionais) e com as mais variadas causas (ambientais, econômicas, políticas e sociais), a definição dessa categoria é tributária das condições conjunturais e das "possibilidades de mobilização argumentativa" (p. 34). Tal perspectiva converge com a vinculação da certificação com "práticas modernas de exploração florestal e de relação capital-trabalho" (p. 21) e de "dignificação, formalização e modernização do trabalho na cadeia produtiva do setor siderúrgico" (p. 31), logo, como possibilidade de transposição de uma ordem anterior ou "tradicional".

É nesse mesmo complexo que as comunidades são impactadas por projetos como o PGC e por modalidades de atuação utilizadas pelas empresas segundo os diversificados interesses em jogo. Horácio Antunes de Sant'Ana Júnior e Maria José da Silva Aquino lembram que as transformações das representações sobre o "meio ambiente", a "causa ecológica" e sua institucionalização - processada desde o final da década de 1960 - ajudaram na percepção da Amazônia "como reserva de biodiversidade e laboratório de políticas ambientais", o que incidiu na "criação de órgãos ambientais e na implementação de políticas de proteção e conservação do meio ambiente pelo governo brasileiro" (p. 65). Esse é o caso das Unidades de Conservação (UCs) fixadas no Sudeste do Pará (Província Mineral Carajás), que refletem a convergência dos interesses da mineradora Vale e do Instituo Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade - integrante do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente (IBAMA) - na preservação da floresta de "canga" (condição para a exploração de ferro). O mesmo não teria ocorrido com a formalização da reserva extrativista (RESEX) do Taim, em São Luís (MA), na qual a empresa, sem proveitos relacionados aos mangues, obstaculiza o "controle do uso de um território" almejado pelos órgãos ambientais e pelas "populações tradicionais" (p. 67).

Da mesma maneira, as comunidades indígenas seriam afetadas pelas investidas de atores governamentais, não-governamentais, empresariais, missionários, entre outros. Nesse sentido, o estudo de Elizabeth Coelho, Gustavo Politis, Almudena Hernando e Alfredo Ruibal, sobre as transformações do modo de vida dos Awá-Guajá (autodenominação e classificação externa, respectivamente), é particularmente primoroso, pois mostra como as múltiplas dimensões da organização social e as formas de existência e de percepção dos nativos são abaladas. Destaca-se o papel da Fundação Nacional do Índio (FUNAI), numa espécie de "colonização" dos Awá, em consonância com a imposição do PGC. Outrora nômades, circulando por extensões de matas pertencentes aos estados do Pará e Maranhão, o "novo modus vivendi" é marcado pelo sedentarismo, pela prática da agricultura e pela educação escolar. Os riscos e dificuldades de circulação (muito por conta da EFC) conduzem a readaptações nas suas formas de relacionamento com as moradias, os matrimônios, a caça, etc. Novos recursos exógenos passam a ser valorizados, tais como o domínio do português, redes e roupas industrializadas e uso de materiais sintéticos para adornos.

Benedito Souza Filho também questiona o abalo de empreendimentos externos nas identificações étnicas e territorialmente definidas, porém realça o sentido de resistência e de reinvenção das lutas de uma "população". Seu capítulo é dedicado ao exame do confronto entre "remanescentes de quilombo de Alcântara, no Maranhão, e setores do Estado em decorrência da implantação de uma base espacial" (p. 119-120) na década de 1980. Uma das principais opções analíticas do autor é "estabelecer um paralelismo" entre conflitos anteriores e o conflito atual, tomando como eixo as noções de quilombo, quilombola e de guerra. Indicando as mudanças nas ações do Estado contra os quilombolas, Souza Filho reforça a continuidade de uma luta cuja legitimidade é redefinida. Auxilia na reconfiguração dos seus parâmetros e sentidos a entrada em cena de porta-vozes e especialistas (antropólogos, arqueólogos, operadores do direito e historiadores) engajados na objetivação dessas "populações", garantindo sua "visibilidade cultural" e seus direitos face à ação "expropriadora" do Estado. Para ele, o "reconhecimento de grupos em diferentes partes do país como remanescentes de quilombos confirmou a importância e o papel dos intelectuais nesse processo" (p. 132).

As discussões em torno das invariabilidades e das modificações sofridas por "povos", "identidades", "manifestações culturais" e "rituais" - resultantes das mudanças nas condições históricas, sociais, políticas e econômicas mais gerais - são notadamente tratadas nos trabalhos antropológicos. Com essa perspectiva, encontra-se, na coletânea, um dos estudos produzidos por Sérgio Figueiredo Ferretti sobre as "festas religiosas populares". O autor retoma análises clássicas e contemporâneas das ciências sociais sobre festas e religião para fundamentar a investigação das "festas nos terreiros de culto afro-maranhenses", singularizadas pela combinação de dimensões do sagrado e do profano, conjugadas na oposição e complementaridade entre a "brincadeira" e a "obrigação" que as definem. Centrando-se mais detidamente no universo do "tambor de mina", ao qual tem dedicado muitos anos de pesquisa, Ferretti sublinha que ele pode ser entendido "como um dos elementos importantes de preservação de festas e tradições folclóricas ou da cultura popular" (p. 194).

As condições para o desenvolvimento de pesquisas que retratam a persistência, transmissão e valorização de manifestações dessa espécie, no âmbito das ciências sociais, foram criadas por transformações significativas nos estudo de "folclore" e de "cultura popular". Quer dizer, como demonstrou Maria Laura Viveiros de Castro Cavalcanti, elas se inserem numa dinâmica que beneficia o estabelecimento da pertinência dessas temáticas para o conhecimento antropológico e sociológico, assim como o reconhecimento de seus porta-vozes: os intelectuais e os pesquisadores. No Maranhão, a atuação e as pesquisas de Sérgio Ferreti ocupam uma posição de destaque na consolidação de estudos desse tipo. A autora analisa as inserções de intelectuais e pesquisadores em instâncias governamentais, os vínculos regionais e nacionais que estabeleceram entre si, a produção de políticas públicas de cultura e a relação desses fatores com a institucionalização das ciências sociais no estado. Para tanto, lança mão da apresentação de trajetórias exemplares de agentes responsáveis pela afirmação de espaços, de concepções, de temáticas e de prioridades políticas que alicerçaram o lugar conquistado pelos estudos de folclore e sua legitimidade acadêmica e científica.

Tal recurso analítico é igualmente adotado por Igor Gastal Grill, que visa a investigar os processos de diversificação e especialização das elites políticas do Maranhão e do Rio Grande do Sul. O autor analisa especialmente os investimentos profissionais e as "estratégias de reconversão de bases sociais em bases políticas, bem como [os] mecanismos e [os] princípios acionados com vistas à legitimação de formas de fazer e de conceber a política" (p. 137), ativados por deputados federais provenientes de famílias de imigrantes, notadamente italianas, alemães, sírias e libanesas. O cotejamento das duas configurações regionais permitiu delinear os confrontos entre estabelecidos e outsiders da política nos dois estados. É mediante a consideração das "tensões, disputas, interdependências, osmoses e interpenetrações", pesquisadas numa "perspectiva diacrônica, processual e comparativa" (p. 138), que o autor encontrou o terreno de produção e afirmação de posições, arenas e papéis políticos desempenhados por agentes com perfis e trunfos originais na disputa por cargos eletivos. Quer dizer, evidenciou a redefinição dos critérios de entrada e dos princípios de hierarquização do exercício da atividade política "via estratégias de reconversão" (p.158).

Pesquisas sobre configurações de relações políticas foram consagradas no âmbito das ciências sociais brasileiras, como é caso daquelas desenvolvidas por Maria Isaura Pereira de Queiroz e Maria Sylvia de Carvalho Franco. Elevando as contribuições dessas autoras para o pensamento político e social brasileiro, André Botelho empenhou-se na sistematização de elementos que as aproximam e daqueles que as distanciam no que tange às opções analíticas assumidas. Merece relevo, na ótica do autor, a problematização teórica e empírica do tratamento diferenciado e próprio que ambas oferecem à articulação entre "ação" e "estrutura" para a discussão e caracterização da "dominação política" gerada na "formação rural da sociedade brasileira". Desse modo, nos termos colocados por Botelho, "elas conseguem divisar tanto aspectos persistentes na organização e reprodução social como a própria capacidade manifesta por indivíduos e grupos sociais de agirem e, desse modo, responderem criativamente ao contexto de estruturas em que se inserem" (p. 178).

Dentre os aspectos grifados por Botelho, dois podem ser desafiadores para a reflexão sobre o conjunto dos trabalhos presentes no livro ora resenhado. Em primeiro lugar, a relevância de se ponderar sobre a existência de relações de conflito e de violência no seio dos grupos sociais geralmente apresentados como unidades relativamente harmônicas, com objetivos e perspectivas relativamente comuns em relação aos "inimigos" apresentados com igual homogeneidade. E, em segundo lugar, a necessidade de se enfrentarem, com uma visão processual, as relações sempre conflituosas e contraditórias entre tradicional e moderno, continuidade e mudança, desenvolvimento e preservação.

Eliana Tavares dos Reis - Professora Adjunta da Universidade Federal do Maranhão. Doutora em Ciência Política pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, com estágios de doutoramento em Paris (École des Hautes Études en Sciences Sociales e Paris I - Panthéon de la Sorbonne). Autora de artigos em revistas como Revista Pós-Ciências Sociais (UFMA), Ciências Humanas em Revista (UFMA), Cadernos Ceru (USP), Tomo (UFS), História Social (Unicamp), Revista de História (UFES), Sociologias (UFRGS) e Cadernos de Ciência Política (UFRGS). Co-organizou a coletânea "Estudos de Grupos Dirigentes no RS: algumas contribuições recentes (2008). eliana1reis@terra.com.br

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