domingo, 13 de junho de 2010

Braços da Resistência. Uma história oral da imigração espanhola


Maria Cristina Martinez Soto
Mestre pela Universidade Autônoma de Madri, Doutora pela USP


GATTAZ, André Castanheira. Braços da Resistência. Uma história oral da imigração espanhola. São Paulo, Xamã Editora, 1996.

"Don Nicolás se marchó de España el año de 39, porque
decían si era masón, y no se volvió a saber nada más de él"1

O fruto de mais um membro da "nova geração de oralistas brasileiros"2 fez sua aparição no mercado editorial. De forma transparente e direta, o autor de Braços da Resistência, André Gattaz, propõe ao leitor acompanhá-lo pelas 275 páginas de sua obra através de três seguros eixos: teoria, análise e documentação.

Consciente da novidade do método histórico que pratica e de sua carga polêmica também este oralista escolheu incluir em seu trabalho, não só algumas explicações sobre a história oral, mas também uma exposição dos percalços teóricos e práticos de seu próprio processo de pesquisa. E reside precisamente nesta apresentação um dos méritos do trabalho. Numa linguagem clara o autor consegue sintetizar os pontos principais que caracterizam o ofício do oralista e oferecê-los de forma didática de modo a agradar ao mais leigo dos leitores. Depois de traçar as linhas gerais da evolução da história oral e resumir as obras dos principais oralistas, contrapondo conclusões de uns e outros e entremeando observações próprias, o autor aborda temas como a criação e tratamento do documento oral, o papel do indivíduo na história, a relação memória coletiva e memória individual, a vocação militante deste método histórico, a relação entrevistador/entrevistado, a representatividade da fonte, entre outros. Deixando entrever a complexidade dos pressupostos teóricos e práticos da história oral, induz a uma reflexão frutífera e estimulante também para o historiador que trabalha com fontes não orais. Porque, embora apontando para a especificidade do registro oral por oposição à documentação escrita, o desenrolar dos argumentos indica preocupações comuns a todos os pesquisadores da história, como a escolha e o recorte de um tema, o problema da veracidade, interpretação e contextualização das fontes, a utilidade social do trabalho do historiador ou a definição de seus destinatários. O debate travado entre oralistas de diversas posições também sugere alternativas inovadoras para os historiadores em geral, obrigando a repensar pressupostos aparentemente imovéis. É o caso da polêmica em torno da relação entre a subjetividade das fontes e o mito do realismo histórico, entre fato/narrativa/memória, do papel do autor na caracterização de sua obra ou do fetichismo da palavra escrita na cultura ocidental.

Com um rápido e em algumas ocasiões impreciso olhar, o autor percorre vários séculos de história da Espanha para desembocar - um tanto apoteosicamente -no período da guerra civil (18/julho/19361/abril/1939) e nos anos do franquismo. Desta forma nos introduz no tema que constitui o cerne de sua análise interpretativa: a saída de imigrantes espanhóis, expulsos por circunstâncias político/econômicas da década de 50 e a posterior fundação do Centro Democrático Espanhol por um pequeno grupo radicado em São Paulo. Sem ruptura nesta sucessão histórica, o autor se desloca espacialmente e, mudando o tom, aborda o tema da migração e da luta antifranquista no Brasil. A ênfase de Gattaz na tese da motivação política para a partida de seu grupo de imigrantes, não sempre referendada com a mesma convicção pelos depoimentos, desemboca, linear e naturalmente, na atuação política desenvolvida no Centro Democrático. A descrição das atividades deste grupo adquire um colorido e uma vivacidade que se nutrem em boa medida das narrações dos protagonistas. Em contrapartida, as vozes e versões destes colaboradores, projetando suas vivências e apreciações sobre a guerra e pós-guerra, permeiam de forma determinante o caráter e o rumo da narração histórica delineada pelo autor.

O que André Gattaz modestamente denomina "documentação" constitui, na verdade, um comovedor e convincente relato tecido com 8 depoimentos (5 homens e 3 mulheres). Em comum, os colaboradores tem o dramático abandono de sua terra e seu "labor" no Centro Democrático. Surgido na década de 50 da fusão de um grupo de militantes antifranquistas e uma associação de caráter regional e mutualista (o Centro Gallego) a associação chegou a reunir mais de 1.000 membros que, concentrando esforços, em um espírito combativo mas também lúdico e, principalmente, solidário, teve uma participação significativa na divulgação no Brasil dos crimes do franquismo e na luta contra este regime (incluindo ajuda aos presos políticos) nas décadas de 50 e 60. Com evidente agrado, embora, como observa o autor, de diferente intensidade em função de sexo, grau de envolvimento político anterior ao exílio/ migração ou nível de integração no novo país, todos se detêm para ilustrar esta marcante passagem de sua história pessoal. A morte de Franco (20/11/1975) e a transição espanhola determinam o fim do Centro, agora sem sentido, esvaziado de sua carga ideológica/militante, e até de muitos de seus membros que refazem o caminho de volta para a Espanha. Mas, como destaca André Gattaz, não desapareceu nem da memória de seus protagonistas, e nem das páginas da história.

Em volta do tema principal se entrecruzam numerosos outros temas igualmente instigantes: a dialética ruptura e integração que preside a vivência de todo imigrante - e que, no caso, está sabiamente ilustrada pelos portunholismos intercalados no texto que o autor decidiu conservar - os diferentes graus de adaptação por sexo e idade, as oportunidades e mesmo a generosidade encontradas no novo lar, as dúvidas entre o "ir" e o "estar", a particular leitura dos últimos 40 anos da história brasileira ou a colaboração com movimentos políticos locais. Destaque merece a descrição, concisa mas sentida, dos sofrimentos causados pela repressão franquista em crianças órfãs, nas viúvas, nos pais com filhos assassinados ou encarcerados, e as seqüelas da "hambre" rastejadas na difícil luta pela sobrevivência pós-guerra de todos os espanhóis em geral, e dos familiares dos "rojos" em particular. E resulta duplamente pertinente esta vivida descrição pela notável escassez de bibliografia brasileira sobre este tema e porque, como reconhecem muitos espanhóis, a guerra civil "no está de moda".

Trata-se, em síntese, de um livro escrito com sentimento e consciência, sendo este o último de seus méritos. Porque determinados assuntos dificilmente podem ser abordados com aquela falsa objetividade que a ninguém engana. Ou em outras palavras, porque a narração da perseguição da utopia de uma sociedade mais igualitária merece o grau de comprometimento que o autor demonstrou possuir ao realizar seu sonho particular, a preservação destas memórias de vida.

1 CELA, C.J. La colmena. Madri, 1951.
2 Em palavras de José Carlos Sebe Bom Meihy no prefácio, p. 13

Revista de História - USP

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