quarta-feira, 16 de novembro de 2016

Paraíso


Livro de Tatiana Salem Levy traz temas previsíveis

É possível encontrar em 'Paraíso' certas qualidades, mas no geral o romance é bastante problemático

Moacir Amâncio ,

Especial para O Estado de S. Paulo

Tatiana Salem Levy estreou na literatura com o romance A Chave da Casa (2007). O livro indicava o surgimento de uma escritora talentosa, com senso da dinâmica do romance. Uma promessa animadora. Sete anos e um segundo livro, Dois Rios (2011) depois, a autora publica Paraíso (2014). Um romance bastante problemático. É possível reencontrar nele certas qualidades, a frase segura e sugestiva – como na passagem do banho turco, que garantia o crédito à autora na obra de estreia. Isso quase ocorre em Paraíso, no qual, entretanto, há excesso de lugares-comuns, na história de uma escritora pretensamente isolada no sítio de uma amiga onde começa a escrever seu romance longe do mundo, após uma noite de sexo ocasional e a suspeita de ter contraído o HIV. O lugar-comum aí é o romance sobre uma romancista que escreve um romance.

Lá, ela, coincidência previsível, encontra um artista plástico que também buscara o isolamento a fim de lidar com alguns enigmas da própria vida – no fundo, cara-metade da escritora Ana. Evidente, o mundo cruel, se parece longe, está na memória de cada um e os fantasmas surgem, insistem, etc. São reminiscências do horror particular e da história: escravidão, suplício e assassinato promovidos pela sinhá enciumada, de uma princesa negra por ter concebido um filho do patrão, depois vem a mãe da protagonista no Rio contemporâneo, vítima de estupro, o pai refugiado político, o padrasto que paquera a enteada, etc. A narradora torna-se o receptáculo do problema da opressão à mulher, enquanto o artista plástico fica perplexo ao descobrir no avô um judeu italiano que escondera a identidade primitiva em seu novo país. A violência presente explode quando a caseira surge esfaqueada, provavelmente pelo ex-marido, mas isso não está claro.
Foto: Agualusa/DIvulgação

Tatiana Salem Levy

A opção é deixar em aberto, mas para que o recurso funcionasse seria preciso uma arquitetura rigorosa em sua dialética. Para que funcionem em conjunto as personagens teriam de ser desenvolvidas com a articulação bem orquestrada, ponto e contraponto. Quem sabe isso esteja ali em potencial, possivelmente nos segredos às vezes ridículos, que cada figura insiste em conservar como uma idolatrada relíquia do trauma e, sabe-se, pode levar a tragédias inexplicáveis quando vistas na superficialidade. Seria o grande tema, fator de unidade no diverso, que não se efetiva. Às vezes, o romance parece uma sequência de anotações unidas apenas pelo discurso arbitrário e inconvincente da narradora, dona de uma fala banal e cansativa, mais para o senso comum (mortal) com expressões desgastadas – não vale a pena citar aqui. Se o leitor duvida, claro, pode e deve conferir com a própria leitura, mas vai uma dica: o sítio Paraíso, obviamente, revela-se o inferno. Talvez um bom trabalho de editing contribuísse para reparar certos problemas, talvez, porque há conflito entre a narrativa linear e o fragmento, formando um nó cujo desenlace poderia redundar na desmontagem do projeto.

No final, realiza-se o amor porque o artista plástico faz o que o parceiro ocasional anterior não fez, ou seja, tira uma camisinha esperta do bolso. Lembra marketing social de novela das 8 ou 10 – nada contra, desde que no horário e veículo adequados. Então o amor e a esperança se insinuam, além do sexo. Mas assuntos relevantes não conferem, digamos, peso de literatura a um livro. Temas graves como aqueles pinçados acima supõem tratamento eficiente em termos de linguagem, carpintaria, fabulação; o mesmo vale para motivos fúteis que se tornam reveladores em tantas ficções. O tom pode ser leve, neutro, pouco importa. Sem contar que boas intenções, quando não desmontadas em sua ideologia, apenas corroem a expressão – e este é um traço que já se insinuava no primeiro romance.

MOACIR AMÂNCIO É PROFESSOR DE LITERATURA HEBRAICA NA USP E AUTOR DE ATA (REUNIÃO DE POEMAS, RECORD), E YONA E O ANDRÓGINO – NOTAS DE POESIA E CABALA (NANKIN/EDUSP)

PARAÍSO
Autora: Tatiana Salem Levy Editora: Foz - 176 págs
Jornal O Estado de S. Paulo

Pedagogia da Autonomia


Entre 1995 e 1996, como diretora pedagógica do Colégio Poço do Visconde, em São Paulo, tive o privilégio de travar discussões sobre o planejamento, a avaliação e o processo de formação do professor democrático com meu pai, o educador Paulo Freire (1921-1997). Ao longo dos nossos encontros, discutimos o quanto seria importante ele escrever um livro que fosse diretamente voltado à formação do professor. Por isso, ouso dizer que a ideia da obra Pedagogia da Autonomia - Saberes Necessários à Prática Educativa (148 págs., Ed. Paz e Terra, tel. 11/ 3337-8399) esteve atrelada, em certa medida, a esses encontros. O fio condutor dos três capítulos é o processo de formação do educador democrático, cujo objetivo, afinal, é a conquista de sua independência, como também a do aluno.

A obra, a última de Paulo Freire em vida, é um convite apaixonado e intenso a todo profissional que aspira ser um educador crítico e autor do seu processo de formação. Ele deixa claro que os saberes necessários à prática docente, problematizados ao longo do livro, estão todos ancorados na sua forte convicção de que a Educação é um processo humanizante, político, ético, estético, histórico, social e cultural. Por outro lado, esses saberes denunciam a necessidade de o professor assumir-se um ser pensante. Curioso, que duvida e faz da sua fala um aprendizado de escuta. Humilde, que, embora se reconheça condicionado por circunstâncias sociais, econômicas e culturais, não é um ser incapaz de gestar transformações. Competente, que estuda, se prepara e tem o domínio do conteúdo que ensina. Por fim, generoso consigo próprio para que o possa ser com o aluno. Em razão do meu envolvimento nas discussões que levaram à produção da obra, recebi de meu pai um convite para escrever o prefácio do livro. Infelizmente naquele momento, não fui capaz de aceitar, pois não me sentia suficientemente preparada. Lembro-me ainda hoje da forma generosa com a qual ele acolheu a minha incapacidade de dar conta do desafio.

Anos se passaram e fui convidada a resenhar a obra para NOVA ESCOLA, o que me permite escrever hoje o que não consegui escrever ontem, tendo a chance, portanto, de ressignificar a experiência.

Fátima Freire Dowbor, autora desta resenha, é pedagoga formada pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e consultora pedagógica.
Revista Nova Escola

Saúde Brasil 2014: uma análise da situação de saúde e das causas externas


Resenha do livro Saúde Brasil 2014: uma análise da situação de saúde e das causas externas

Antônio Carlos Figueiredo Nardi1; Deborah Carvalho Malta1; Maria de Fátima Marinho de Souza1; Elisete Duarte1; Helena Luna Ferreira1; Elisabeth Carmen Duarte2; Juan José Cortez Escalante3; Leila Posenato Garcia4


1Ministério da Saúde, Secretaria de Vigilância em Saúde, Brasília-DF, Brasil
2Universidade de Brasília, Faculdade de Medicina, Brasília-DF, Brasil
3Organização Pan-Americana da Saúde (Opas), Unidade Técnica de Doenças Transmissíveis e Análise de Situação em Saúde, Brasília-DF, Brasil
4 Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, Assessoria Técnica da Presidência, Brasília-DF, Brasil


A série Saúde Brasil tornou-se uma referência indispensável no campo da Gestão e Políticas de Saúde e da Saúde Coletiva no Brasil. Coordenada pela Secretaria de Vigilância em Saúde do Ministério da Saúde (SVS/MS), é um produto de construção coletiva, envolvendo universidades, centros de pesquisa, consultores, gestores e outros profissionais de saúde. Tem como principal público-alvo os profissionais do Sistema Único de Saúde (SUS) nas três esferas de governo.

Um dos seus objetivos é valorizar as informações disponíveis nos Sistemas Nacionais de Informação em Saúde coordenados pelo Ministério da Saúde, fortalecendo assim essas bases de dados.

O livro Saúde Brasil 2014 está organizado em três partes. Na primeira parte é apresentada, de forma geral, a situação atualizada de saúde da população brasileira (capítulos 1 a 8). São discutidas as tendências das taxas de natalidade e fecundidade no país, incluindo análises do baixo peso ao nascer e da prematuridade, da assistência pré-natal e das proporções de nascimentos por cesárea (capítulo 1). É abordada a estruturação da Vigilância do Óbito, em especial quanto aos óbitos materno e infantil, salientando-se o êxito alcançado na melhoria da qualidade da informação, na integração das equipes de vigilância dos níveis federal, estadual e municipal e na expressiva adesão à atividade (capítulo 2). A magnitude e distribuição da taxa de mortalidade infantil (TMI) e das taxas padronizadas das principais causas de morte são apresentadas em detalhe nesta publicação, segundo Unidades da Federação (capítulos 3 e 4). Além disso, destaca-se a análise de doenças transmissíveis selecionadas segundo sua relevância no cenário nacional, merecendo especial debate a emergência de arboviroses, como a do vírus chikungunya e a do vírus zika em 2015 (capítulo 5). Nesse contexto, é ainda discutido o perfil epidemiológico do HIV/aids, da sífilis e das hepatites virais, quanto a suas tendências, distribuição e importantes diferenças regionais (capítulo 6). Outro componente significativo desta parte da publicação é o debate da prevalência e distribuição, segundo sexo e idade, de importantes doenças crônicas não transmissíveis, em 2013, a partir da análise da Pesquisa Nacional de Saúde (PNS) (capítulo 7). Um debate relevante é o aumento da população de idosos e da carga de doenças nas próximas décadas, com a ampliação crescente da demanda pelos serviços de saúde. Finalmente, com respeito à saúde ambiental e à saúde do trabalhador, é também debatida a exposição aos agrotóxicos, à luz das ações de vigilância em saúde (capítulo 8).

A parte 2 (capítulos 9 a 16) da publicação versa sobre as "causas externas" de morbidade e de mortalidade, com ênfase nas violências e acidentes, tema este persistente no cenário epidemiológico nacional. Estima-se que as causas externas foram responsáveis por 151.683 óbitos em 2013 (capítulo 9), que houve crescimento da mortalidade proporcional atribuível ao álcool no período de 2000 a 2013 (capítulo 10), e que a taxa de homicídios entre homens foi 15 vezes maior que a das mulheres, na faixa etária de 20 a 24 anos (capítulo 11). É analisada, ainda, a violência doméstica, com foco naquela que ocorre entre os membros da família e parceiros íntimos, frequentemente, mas não exclusivamente, no domicílio (capitulo 12), e o discreto, mas consistente, crescimento dos suicídios consumados e tentativas de suicídios notificadas no período de 2000 a 2013 (capítulo 13). Além disso, o perfil e a evolução da morbidade e da mortalidade por acidentes de transporte terrestre entre 2004 e 2013 são objeto de debate minucioso (capítulo 14), sendo enfatizado, no capítulo seguinte, o importante incremento dos acidentes de transporte envolvendo motociclistas. Em contraponto, a publicação discute o impacto de intervenções para redução da morbimortalidade no trânsito, com destaque às intervenções mais recentes, tais como a Lei seca (Lei n° 11.705/2008 e Lei n° 12.760/2012), a Lei da cadeirinha (Resolução n° 277/ 2008, do Conselho Nacional de Trânsito - Contran), o Projeto Vida no Trânsito (PVT) e a operação Rodovida (capítulo 16).

Na parte final, o penúltimo capítulo examina a qualidade das informações sobre causas externas notificadas ao Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM) e ao Sistema de Informações Hospitalares (SIH)/SUS, e das violências notificadas no Sistema de Informação de Agravos de Notificação/Sistema de Vigilância de Violências e Acidentes (Sinan/Viva), bem como levanta a necessidade de aprimoramento nos registros hospitalares sobre essas causas. O último capítulo trata das ações educativas no campo da vigilância em saúde materno-infantil e discorre sobre evidências de impacto de um projeto piloto realizado em São Luis/MA.

As análises contidas no Saúde Brasil 2014 são de extrema utilidade para a gestão em saúde e para o controle social, com enorme potencial para nortear os processos de decisão no âmbito do SUS em todos os níveis de gestão. Ademais de produzir conhecimento, é um processo interno valioso para instigar reflexão e aprimoramento institucional, fortalecer a capacidade analítica dos profissionais envolvidos, retroalimentar os sistemas de informação em saúde, e nutrir um espaço de debate que aproxima o pensamento acadêmico das necessidades e modos de operar dos serviços de saúde.

Referência

1. Ministério da Saúde (BR). Secretaria de Vigilância em Saúde. Departamento de Vigilância de Doenças e Agravos Não Transmissíveis e Promoção da Saúde. Saúde Brasil 2014: Uma análise da situação de saúde e das causas externas. Brasília: Ministério da Saúde; 2015.

Epidemiologia




Ligia Regina Sansigolo Kerr-Pontes
Departamento de Saúde Comunitária, Faculdade de Medicina, Universidade Federal do Ceará, ligia@ufc.br


Medronho R; Carvalho DM; Bloch KV; Luiz RR; Werneck GL (eds.); Epidemiologia. Atheneu, São Paulo, 2002, 493 pp.
Observando-se diferentes fontes de informação científica, como o Diretório dos Grupos de Pesquisa do CNPq, o aumento do número de doutores e a produção científica brasileira, percebe-se que a área de epidemiologia, no Brasil, vem crescendo de forma surpreendente, nas últimas décadas. Paralelamente a este fato, a disponibilidade de livros textos de epidemiologia vem se tornando mais visível, ocupando um novo espaço nesta área científica. Mesmo que ainda não venha a esgotar o conhecimento acumulado mundialmente, o livro de Medronho e colaboradores vem enriquecer, sem dúvida, a sistematização do conhecimento da epidemiologia no Brasil e ocupar algumas lacunas ainda não preenchidas por outras publicações similares.
Este livro de epidemiologia, no contexto da construção de uma área no país, é o resultado de profissionais, de reconhecida competência técnica, que conseguiram abordar, de forma mais aprofundada, conceitos epidemiológicos gerais e específicos importantes na formação de um profissional da saúde e de alunos da graduação e da pós-graduação, não deixando de abordar, também, outros temas do extenso campo interdisciplinar que compõem a epidemiologia.
O livro é composto de quatro partes, subdividas em diferentes números de capítulos que somam trinta e dois, ao todo.
Na primeira parte do livro são abordados conceitos básicos em epidemiologia. Inicia-se por uma visão da história, contextualizando alguns aspectos da mesma em nível mundial, para foca-la, em especial, no contexto nacional, seguindo-se, ainda, dos fundamentos da epidemiologia, levantando questões e lacunas do conhecimento na atualidade. Seguem-se a estes temas, um capítulo sobre as medidas de freqüência das doenças utilizadas na prática epidemiológica e uma abordagem dos principais indicadores de saúde, quanto a suas definições, construções e limitações, utilizando exemplos nacionais dos mesmos. São abordados, nos capítulos que se seguem, conceitos sobre a distribuição das doenças no espaço e no tempo, explorando, ineditamente, o emprego de técnicas de análise espacial. A Vigilância Epidemiológica também compõe um capítulo, onde um histórico desta área e os principais conceitos são abordados, são levantadas as diferentes etapas da vigilância, mostrando a composição do Sistema Nacional de Vigilância Epidemiológica, introduzindo questões relacionadas ao processo de avaliação destas atividades. A transição Demográfica e Epidemiológica é abordada de forma a permitir uma análise crítica do leitor frente às dinâmicas populacionais em países desenvolvidos do mundo e suas características no Brasil, discutindo a sua repercussão na saúde da população brasileira.
A segunda parte do livro é dedicada à Pesquisa Epidemiológica. Nesta parte são abordados os fundamentos científicos da pesquisa epidemiológica, os conceitos de causalidade, levando-se em conta a teoria das probabilidades e de técnicas estatísticas, o método científico e uma breve noção dos desenhos de estudos mais empregados na epidemiologia atual. No capítulo de Medidas de Efeito e Medidas de Associação são abordadas as medidas de associação do tipo razão, como o Risco Relativo, a Razão de Chances ou Odds Ratio, e as medidas de associação do tipo diferença, como o Risco Atribuível e o Risco Atribuível Proporcional. A seguir vêm cinco capítulos dedicados aos estudos mais utilizados em epidemiologia, como os estudos seccionais, de intervenção, de coorte, caso-controle e os estudos ecológicos. Todas as diferentes fases dos estudos são abordadas, desde a elaboração dos mesmos até sua análise. O fechamento desta segunda parte ocorre com um capítulo sobre validade em estudos epidemiológicos, onde são discutidas as possíveis distorções nestes estudos, ocorridas por diferentes formas de vieses, e outro capítulo sobre inferência causal, onde uma discussão sobre causalidade e epidemiologia sob o ponto de vista de diferentes modelos é realizada.
A parte quatro do livro trata da estatística em epidemiologia, fornecendo uma base sobre a análise exploratória dos dados, discutindo desde a coleta e organização dos mesmos e os conceitos fundamentais, incluindo as principais medidas de posição ou tendência central, apresentação gráfica e análise bivariada. A seguir são discutidas noções de probabilidade e distribuição de probabilidade, como a distribuição normal, binomial e de Poisson. O próximo capítulo trata dos testes diagnósticos, com suas propriedades e outras formas de se avaliar testes diagnósticos, como a razão de verossimilhança, assim como o emprego de testes múltiplos. O próximo capítulo se refere à Inferência Estatística. Neste são tratados problemas de estimação, testes de significância, inferências para proporções e médias. Uma tabela resumo com alguns problemas sobre inferência é oferecida ao leitor. Fecham esta parte do livro dois capítulos sobre amostragem, onde os diferentes tipos de amostras são apresentados e os elementos que influenciam a determinação do tamanho amostral são discutidos. Uma tabela resumo sobre tamanho amostral para alguns estudos epidemiológicos também é exibida. Segue a estes capítulos e finaliza esta parte do livro, uma discussão sobre associação estatística em epidemiologia, onde vários testes estatísticos são abordados para as diferentes situações e tipos de variáveis.
A quarta e última parte do livro trata-se de uma coletânea de tópicos especiais que abordam assuntos atuais e que se envolvem diretamente com a epidemiologia ou, ainda, que se referem a técnicas metodológicas que podem ser empregadas na análise de alguns estudos epidemiológicos. Fazem parte do primeiro grupo, um capítulo sobre os Sistemas de Informação em Saúde, Epidemiologia e serviços de Saúde, Epidemiologia e Ambiente, Epidemiologia e Saúde do Trabalhador, Dinâmica de Transmissão de Doenças, Paleoparasitologia e Paleoepidemiologia e a Regulamentação Brasileira em Ética em Pesquisa envolvendo Seres Humanos. Formam o segundo grupo os capítulos sobre Análise de Sobrevida, Técnicas de Análise Espacial em Saúde e Meta-análise. Vários destes temas são inéditos em livros de epidemiologia no Brasil.
O livro é acompanhado de um caderno de exercícios que se referem a vários tópicos abordados nos diferentes capítulos. Fazem parte de uma coletânea de exercícios aplicados a alunos e profissionais da saúde durante a vida acadêmica dos participantes do livro. O gabarito dos exercícios é apresentado juntamente com o caderno.
Este livro, como dito anteriormente, veio para aumentar a diversidade de livros para a área de epidemiologia no Brasil e aprofunda vários tópicos, especialmente referentes aos aspectos metodológicos, onde existia uma lacuna na literatura brasileira. Trata-se, sem dúvida, de uma importante referência a ser indicada para profissionais da saúde e para estudantes da graduação e pós-graduação.

Artigos Científicos: como redigir, publicar e avaliar




Cassia Maria Buchalla
Departamento de Epidemiologia da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP)


O livro Artigos Científicos: como redigir, publicar e avaliar, de autoria do Prof. Mauricio Gomes Pereira, foi lançado recentemente pela Editora Guanabara Koogan.

Com o objetivo de orientar os potenciais autores sobre como vencer as muitas barreiras na elaboração e publicação de artigos científicos, o livro aborda cada uma das etapas desse processo em 24 capítulos.

Os três primeiros capítulos tratam dos aspectos da preparação do trabalho. O primeiro capítulo, Pesquisa e Comunicação Cientifica, versa sobre a necessidade de divulgação dos resultados das pesquisas como forma de finalização da mesma. Aborda, de modo geral, a evolução da comunicação cientifica nas ciências da saúde, menciona os periódicos de acesso livre e a situação atual de elevada competição para publicar .

No segundo capítulo, Canais de Comunicação Cientifica, o autor descreve os tipos de periódicos, os tipos de artigos, as formas de publicação e as normas que as regem.

Do terceiro ao décimo quinto capítulo é apresentada cada parte da estrutura de um trabalho cientifico, começando pelo planejamento, abordando a estrutura, redação e revisão do texto, a introdução, o método, os resultados, a discussão, as referências bibliográficas, o título, a autoria, o resumo, as palavras-chave, a escolha do periódico e um capítulo com temas para a complementação do artigo (capítulo 15).

Somam-se a esse conjunto de capítulos, que orientam a elaboração de cada seção do artigo cientifico, outros três capítulos que exploram a Estatística (capítulo 18), a Preparação de Tabelas (capítulo 19) e a Preparação de Figuras (capítulo 20).

O leitor irá encontrar também capítulos sobre a Submissão do Artigo para a Publicação, sobre a Avaliação de artigo Cientifico e sobre Ética (capítulo 21).

Os três últimos capítulos do livro versam sobre temas auxiliares, enfocando a motivação para divulgar os resultados de uma pesquisa e os recursos para publicá-los. O capítulo 22 , Vale a pena publicar Artigo Científico?, lista os motivos pelos quais esta prática é cada vez mais importante e competitiva assim como os auxílios disponíveis para uma escrita de qualidade. O capitulo seguinte, Como ter Artigo aprovado para Publicação, aponta as particularidades dos textos recusados, como falta de relevância do tema, pouca originalidade, os erros mais comuns de redação, entre outros aspectos que devem ser evitados para que um trabalho seja aprovado para publicação.

O livro termina com Síntese das Sugestões sobre Redação Científica, onde são agregadas as informações que resumem os demais capítulos do livro.

Os capítulos são estruturados em itens, apresentados com texto curto e com um ou mais exemplos, quando pertinente. A estrutura do texto obedece a lógica de apresentação de cada tópico, do geral ao especifico, havendo dois itens comuns a todos os capítulos, o item Sugestões e outro com Comentário final.

Os temas são apresentados com uma linguagem clara e direta. Além disso, vários recursos utilizados pelo autor facilitam a leitura, como a inclusão de exemplos e o resumo do conteúdo de cada capítulo, apresentado em tabela, fazendo referência à seção onde cada tema aparece.

O leitor pode esperar instruções sobre cada etapa do processo de elaboração de um texto científico para publicação, com a exposição de cada detalhe envolvido e dicas sobre o que deve ser considerado para se obter um resultado apropriado.

Além disso, aspectos importantes relacionados ao encaminhamento e à publicação do artigo são abordados na obra. Entre esses, como preparar uma carta ao editor, como lidar com o processo de revisão, e como proceder para avaliar um artigo cientifico.

A inclusão de um capítulo sobre estatística, assim como sobre a preparação de tabelas e figuras reflete a abrangência da obra. Nota-se, em toda a obra, uma abordagem além do que seria esperado para os temas propostos.

O autor não se limita a identificar o conteúdo básico de cada item de um artigo cientifico e a explorar formas de preparar cada parte do trabalho, oferecendo ao leitor a chance de rever cada tópico da preparação do estudo. Por exemplo, o capítulo de Método aborda detalhes de cada um dos seus itens como tipos de estudo, características da amostra, classificação das variáveis, erros a serem evitados, entre outros. No capítulo Resultados, somado à seqüência de apresentação dos dados, o autor também descreve as formas estatísticas para apresentar o efeito encontrado no estudo.

No capítulo sobre Complementação do Artigo o leitor encontrará instruções sobre as revisões para o aprimoramento do artigo, os erros e os vícios de linguagem a serem evitados, normas para o uso de siglas e de citação de números no texto, tempos verbais a serem usados em cada parte do artigo, entre outros aspectos necessários a uma redação correta.

A abrangência do conteúdo torna inevitável algumas repetições, até porque alguns temas apresentados se sobrepõem.

Ainda que o foco seja a redação de artigo cientifico, é evidente a quantidade de informação teórica sobre pesquisa epidemiológica disponibilizada. O livro não se limita a propor normas de redação, como uma receita do que deve conter a introdução, a parte de métodos ou as demais partes do artigo, mas inclui um conteúdo teórico sobre temas relacionados a cada tópico. Desta forma, o livro pode ser útil para aqueles que querem um roteiro ou orientação para aprimorar seus manuscritos científicos e que têm dúvidas específicas, mas também para os iniciantes, que se beneficiarão ao ler um texto mais extenso, com um teor maior de informação sobre cada aspecto envolvido na produção cientifica.

O autor, Dr. Mauricio Gomes Pereira, é médico com especialização em pediatria e em saúde pública e professor titular da Universidade de Brasília. Tem vários livros publicados, entre eles Epidemiologia: teoria e prática, e vasta experiência na área de metodologia científica e de epidemiologia. O livro Artigos Científicos: como redigir, publicar e avaliar torna maior sua contribuição para o ensino e a pesquisa no Brasil.

Pensamento crítico em enfermagem: um enfoque prático




Silvia Helena De Bortoli CassianiI; Maria Auxiliadora da Cruz LimaII
IProfessora do Departamento de Enfermagem Geral e Especializada da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto da Universidad e de São Paulo
IIAluna de Pós-Graduação, nível mestrado, da Área Enfermagem Fundamental da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto. Docente da Escola de Enfermagem de Manaus - AM



ALFARO-LEFEVRE, ROSALINDA. Pensamento crítico em enfermagem: um enfoque prático. Trad. de Maria Virgínia Godoy da Silva e Cristiane Maria Amorim Costa. Porto Alegre: Artes Médicas, 199
6.

O livro que apresentamos é a tradução do original Critical Thinking in Nursing: a practical approach, publicado pela W.B. Saunders Company, em 1995, com 190 p. Alfaro-Lefevre atua na Pennsylvania, oferecendo consultoria e seminários sobre o pensamento crítico, a mensuração de resultados,o desenvolvimento profissional e estudantil, a prática clínica e o processo de enfermagem. Daí, entende-se a maneira didática do livro e a preocupação com o enfoque prático.

No prefácio, há uma chamada sobre o que há de prático neste enfoque e entusiasma o leitor através da apresentação dos capítulos.Traz uma linguagem clara e fácil de ser lida. Ainda oferece o endereço da editora e solicita opiniões e comentários dos leitores sobre a obra, o que não é muito comum em livros científicos e técnicos.

A obra está apresentada em cinco capítulos e o formato que introduz cada capítulo é particularmente interessante, apresentando o contéudo do mesmo, os objetivos, a finalidade e um resumo do capítulo.

O primeiro capítulo é denominado Visão geral: o que é pensamento crítico e por que ele é importante? A autora afirma que o pensamento crítico é a chave para resolver problemas, uma vez que as enfermeiras têm que tomar decisões complexas, adaptar-se às situações novas e continuamente atualizar seus conhecimentos e habilidades. As enfermeiras que não pensam criticamente, segundo ela, tornam-se parte do problema. Ressalta-se entretanto, que é apenas no capítulo três que se trabalha especificamente o pensamento crítico na enfermagem.

Pensamento crítico é, então, definido como o alvo direto do pensamento que aponta para realizar julgamentos baseados nas evidências (fatos), ao contrário da suposição (trabalho por conjectura). Está baseado nos princípios da ciência e no método científico e requer estratégias que maximizem o potencial humano e compensem os problemas causados pela natureza humana ( p. 27).

Ainda neste capítulo, apresenta a relação dos princípios do pensamento crítico com os da ciência e do método científico através das seguintes etapas: observação, a classificação de dados, conclusões que obedecem à lógica, condução de experiências e o teste de hipóteses.

Já o capítulo 2 ou Como pensar criticamente contém informações sobre os fatores que influenciam a habilidade de pensar criticamente de forma a acentuá-lo ou impedí-lo e as estratégias e habilidades do pensamento crítico. Divide os fatores em pessoais e situacionais.

Como fatores pessoais, que acentuam o pensamento, coloca: o desenvolvimento moral, idade, autoconfiança, conhecimento dos principíos da resolução de problemas, tomada de decisões e pesquisa, da comunicação eficiente e habilidades interpessoais, avaliação precoce habitual, experiências passadas, habilidade eficiente de escrever, de leitura e aprendizagem (p. 37). E como fatores situacionais, aponta os seguintes: conhecimento dos fatores afins, consciência dos recursos, consciência dos riscos, reforço positivo e presença de fatores motivadores. Obviamente a falta ou pouca habilidade nesses fatores impedem o pensamento crítico.

De maneira bastante interessante, a autora indica oito questões chaves, na pag. 43, que podem ajudar o leitor a determinar sua abordagem do pensamento crítico em situações diferentes, e que trazemos aqui a título de ilustração: Qual é o objetivo do meu pensamento?, Quais são as circunstâncias?, Que tipo de conhecimento é requerido?, Qual é a margem para erro?, De quanto tempo eu disponho?, Que recursos podem me auxiliar?, Que perspectivas devem ser consideradas? e O que está influenciando meu pensamento? Há de se considerar tais questionamentos diante de um problema e por aqueles que pretendem desenvolver o pensamento crítico nas várias situações.

No terceiro capítulo, ou Pensamento crítico em enfermagem: uma visão geral, a autora trabalha com a aplicação do pensamento crítico e do processo de enfermagem como um instrumento e examina como desenvolver o julgamento clínico.

Resume no quadro dos pontos-chave, neste capítulo, exemplos de quando o pensamento crítico é essencial na enfermagem, ou seja, ao tentarmos: ter uma maior compreensão de algo ou alguém; identificar problemas reais ou potenciais; tomar decisões sobre um plano de ação; reduzir riscos de obter resultados indesejáveis; aumentar a probabilidade de alcançar resultados benéficos e descobrir maneiras de melhor (mesmo quando não existam problemas).

No quinto capítulo, são examinadas as cinco categorias do pensamento crítico essenciais à prática da enfermagem: o raciocínio moral e ético, a pesquisa em enfermagem, ensinando a outras pessoas e a nós mesmos e a realização de testes. Em cada um destes aspectos, o livro traz etapas para ajudar o leitor a pensar criticamente e questões chaves. Por exemplo, no que refere à Pesquisa em Enfermagem, o livro traz no quadro 4-4, as seguintes questões, entre outras: Qual é o objetivo do meu pensamento?, que conhecimento é necessário?, qual é a margem para erro?, de quanto tempo e recursos eu disponho? e que perspectivas devem ser consideradas?

E finalmente no último capítulo ou,Habilidades práticas do pensamento crítico, o livro indica as dezesseis habilidades que aumentam o pensamento crítico em situações de enfermagem. As habilidades são várias, entre elas estão: identificando padrões, estabelecendo prioridades, determinando intervenções específicas, avaliando e corrigindo o nosso pensamento e desenvolvendo um plano abrangente.

De forma geral, a tradução do livro está de boa qualidade, é mais uma obra em português e um guia para aqueles que desejam conhecer mais sobre o pensamento crítico, principalmente sob um enfoque prático. Tem um formato adequado, que propicia a leitura-estudo, servindo inclusive para uma auto-aprendizagem, sem necessariamente auxílio de um instrutor ou professor. Sugerimos sua leitura para estudantes cursando o último ano do curso de graduação em enfermagem, enfermeiras assistenciais e interessados em compreender e aplicar praticamente o pensamento crítico nas situações de ensino e assistência.

Pesquisa em Enfermagem


MENDES, Isabel Amélia Costa. Pesquisa em Enfermagem. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1991. 160p. ISBN 85-314-0036-8

Silvia Helena de Bortoli Cassiani

Assistente do Departamento de Enfermagem Geral e Especializada da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo


Recém-editado pela Editora da Universidade de São Paulo, coleção CAMPI, Pesquisa em Enfermagem, é contribuição relevante ao conhecimento da Enfermagem e um dos poucos livros nacionais tratando especificamente da questão da pesquisa em enfermagem.

A autora, professora titular da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo, há vinte anos na docência e na pesquisa, é docente de cursos da graduação e pós-graduação e apresenta seu livro como sendo o momento de "uma vez na vida parar e por em ordem os próprios conhecimentos, para saber se vale a pena continuar o caminho, ou para uma mudança de rumos" (p. 12).

O livro está apresentado sob a forma de quatro capítulos: 1. Pesquisa e Universidade; 2. Enfermagem: a pesquisa em questão; 3. Autobiografia intelectual de uma enfermeira - pesquisadora, 4. utilização de resultados de pesquisa na prática de enfermagem.

O cerne da obra - a autobiografia intelectual da autora - apresentado no terceiro capítulo e iniciado de maneira bastante peculiar. "Que tem ele a ver como já dito antes?" (p.43), questiona a autora, antecipando uma pergunta que provavelmente o leitor faria. A resposta e encontrada posteriormente no decorrer da leitura quando afirma que ao analisar sua própria produção científica, a autora não teve o propósito de propor-se como modelo e sua trajetória como pesquisadora dependeu, como a qualquer um de nós depende, de sua formação acadêmica e da situação da pesquisa em enfermagem nas últimas décadas.

É, entretanto, no último capítulo, que desenvolve a tese de que toda pesquisa realizada pelo enfermeiro-docente tem aplicabilidade direta em sua prática profissional, desdobrando-se em efeitos indiretos ao nível da assistência no decorrer do tempo. Afirmação questionável uma vez que nem sempre os docentes na enfermagem ensinam o que pesquisam e vice-versa e, muito pouco conhecimento gerado e produzido na pós-graduação tem chegado até os alunos de graduação. Portanto, estamos buscando a sintonia entre teoria e prática, entendendo assim como a autora, prática como âmbito que contempla os aspectos da assistência, ensino e pesquisa.

Diminui a ansiedade dos que desejam ver um conhecimento produzido, utilizado logo imediatamente, ao salientar, ainda, no último capítulo que, mesmo em outras áreas, tem havido defasagem de tempo - tempo médio de 19 anos - entre a produção e utilização de conhecimentos.

Recomendamos sua leitura e análise a todos, considerando que o livro esta bem estruturado, a temática é desenvolvida de forma clara, explicativa e interessante de ser lido mesmo por aqueles que não são da profissão. E como diz Weber em "A ciência como Vocação" (1967): "Aprendamos a lição! É preciso agir e responder as exigências de cada dia - tanto no campo da vida comum como no campo da vocação. Esse trabalho será simples e fácil, se cada qual encontrar o demônio que tece as teias de sua vida" (p. 52). O livro nos mostra que sua autora encontrou e analisou as teias de sua vida de pesquisadora e que vale a pena continuar o caminho.

Esta obra pode ser pedida diretamente a Editora da Universidade de São Paulo, Av. Prof. Luciano Gualberto, Travessa J, n. 374 Cidade Universitária. São Paulo. 05508, Brasil.
Revista Latino-Americana de Enfermagem 

400 contra1: Uma História do Comando Vermelho


Assim nasceu o crime organizado

A história da gênese do Comando Vermelho nos anos 70 em um presídio no Rio mostra a força do coletivo carcerário

Caco Souza,

Minha incursão no tema do filme 400 contra 1 se deu há oito anos, quando li 400 contra1: Uma História do Comando Vermelho, de William da Silva Lima, livro em que ele discorre sobre sua trajetória no mundo do crime. Achei instigante acompanhar o relato de um detento que teve sua primeira prisão, por furto, aos 17 anos e, entre fugas e recapturas, passou mais de três décadas encarcerado por assalto a banco. Somado a isso William, o "Professor", integrava um grupo de detentos que conviveu com presos políticos no Instituto Penal Cândido Mendes (Ilha Grande - RJ) nos anos 70.

Foi nessa época que ele liderou o movimento que instaurou um sistema de organização dentro da prisão, na época conhecido como "Falange Vermelha". Segundo as palavras de William "era uma forma de comportamento" face a um brutal sistema carcerário e impunha certas regras de convivência entre os detentos: não aos assaltos, não aos estupros e uma busca incessante pela liberdade.

O tema era polêmico, assim como o que William afirmava no livro: a controversa convivência entre os presos políticos e os presos "proletários" durante a ditadura brasileira.

Meu primeiro contato com William foi no presídio Bangu III. Anos depois, fruto do aprofundamento de minha pesquisa sobre as origens do Comando Vermelho, realizei dois documentários: Senhora Liberdade (2004) e Resistir (2006). Minha intenção era dar "voz" à sua versão dos fatos. Foi instigante acompanhar uma perspectiva que ia na contracorrente daquilo comumente divulgado sobre o Comando Vermelho e de sua suposta origem como fruto do "aprendizado" das técnicas de guerrilha dos presos políticos.

A pesquisa para esses documentários (com a colaboração da historiadora Ana Carolina Maciel) englobou documentos em arquivos, reportagens e obras de autores como Carlos Amorim e Júlio Ludemir. Confrontei esse material com o depoimento de William, que se impunha como a visão de alguém atrás dos muros.

Inspirado pela perspectiva de abordar os primórdios do Comando Vermelho e tendo como mote o relato de William iniciei o projeto do longa ficcional 400 contra 1. Sem a pretensão de esgotar um tema tabu, concentrei a trama nos anos 70, quando a noção de um coletivo carcerário, tão difundida no discurso de William, tomou forma dentro das muralhas do presídio Cândido Mendes.

Minha intenção não foi "contar" de forma asséptica e linear a origem do Comando Vermelho. Meu filme é uma trama ficcional (baseada em fatos reais) sobre o surgimento do CV. Procurei retratar esse episódio sem heroísmos e maniqueísmos. Nos dias atuais, o crime organizado desencadeia os mais diversos sentimentos na sociedade. Não falar sobre esse assunto não significa que ele deixe de existir. Abordar não significa fazer sua apologia ou glamourização.

O grande tema que perpassa o filme é o de um grupo de criminosos que percebeu a força do coletivo carcerário, se organizou e semeou o que ficou conhecido como o crime organizado brasileiro. William da Silva Lima tinha uma história para contar e eu quis contar. Tanto a versão de William quanto a minha implicam escolhas. Meu filme é uma ficção e como tal não intenta trazer um relato isento, até porque não há isenção possível em nenhuma forma de manifestação artística. Numa batalha sem vencedores o meu protagonista é um anti-herói.

CACO SOUZA É CINEASTA. SEU DOCUMENTÁRIO RESISTIR GANHOU O PRÊMIO ESTÍMULO DA SECRETARIA DE ESTADO DE CULTURA DE SÃO PAULO. O LONGA 400 CONTRA 1, QUE ESTÁ EM CARTAZ, É SEU PROJETO MAIS AMBICIOSO

Jornal o Estado de S. Paulo

segunda-feira, 28 de março de 2016

As visitas que hoje estamos


Vozes do interior
Leia a resenha do livro "As visitas que hoje estamos"
Antônio Geraldo



Antônio Geraldo poderia ser chamado de um escritor de província. É de sua Mococa, no interior do estado de São Paulo, que o poeta e agora romancista acompanha a vida brasileira recente. E este é o tema de As Visitas que Agora Estamos, seu primeiro e espantoso romance. Há no livro um desejo de totalização que chega a impressionar.

Em suas mais de 400 páginas, Geraldo testemunha, mas sempre entregando a voz para os outros, seus protagonistas, a transformação por que vem passando o interior do Brasil, principalmente de São Paulo e Minas Gerais, nos últimos anos – os da Era Lula. Não é um livro simples: a própria denominação tradicional de “romance” se torna complicada, já que não há propriamente dito um fio narrativo único que reúne os diversos episódios encenados. São muitas as narrativas, quase que romances miniaturizados, em primeira pessoa.

Uma espécie de “A comédia caipira”, com a densidade trágica que encontramos em seu modelo, Balzac. A mescla também passa pela forma, que abarca tanto o conto, quanto a poesia, o ensaio e o teatro. Tudo entra na dança para resgatar o passado do interior, com seus costumes em vias de desaparição, e o momento presente, com o nosso incompleto mundo da tecnologia e misturebas religiosas. As Visitas que Hoje Estamos
Antônio Geraldo Figueiredo Ferreira
Editora Iluminuras
448 págs.
Revista CULT

O PROFESSOR DE CRISTOVÃO TEZZA


O CRIME QUE NÃO COMETEMOS – SOBRE O PROFESSOR DE CRISTOVÃO TEZZA
Olhar de Marcia Tiburi sobre o livro "O Professor", de Cristovão Tezza


“O Professor” é a história de Heliseu, um filólogo que tem uma homenagem a receber por ocasião de seus 70 anos e o fim de sua carreira acadêmica. Como professor, ele ensina uma matéria cujo grau de inutilidade se torna cada vez mais impressionante. A matéria, a filologia românica, é rejeitada por todo o corpo docente da universidade e também pelo corpo discente. Sabemos como a inutilidade das coisas define o desinteresse dos estudantes, que se convencem fácil de que a pressa é, de algum modo, a alma do negócio. Eles têm razão, é a alma do negócio ao qual servirão em vida (que vida?), mas não da formação que não é negócio algum. Quem é professor vive de mostrar que o que não importa, na verdade, importa mais ainda. Heliseu, talvez tenha tentado. Mas Heliseu, de algum modo, virou um fóssil.


Ele tem que se resolver com isso. O seu problema não é a luminosa questão do ensino e da formação. A parte sombria de sua vida – ou pelo menos aquela parte não declarada – é o que lhe vem à mente. Preocupa-se com o discurso da homenagem, com o que dizer. Como dizer o que deve ser dito diante dos colegas, eis a questão de Heliseu enunciada na clara exposição da superfície da vida. Do outro lado, aquilo que mesmo não devendo ser dito, acaba por ser lembrado, se torna o eixo de tudo o que virá. A força da rememoração, a sua crueza estranhamente parcimoniosa, eis o que devora o nosso amigo. Aquilo sobre o que todos falavam sem que, no entanto, pudessem saber do que realmente se tratava: a morte de sua mulher por suicídio, o caso com a aluna, o filho homossexual que vai embora. Ora, quem vai saber o que se passa na pele do outro quando confrontado com sua própria experiência? O encontro com Heliseu talvez nos permita dar conta disso, de que é preciso ter respeito com aquilo que não se conhece. A experiência alheia nos é evidentemente inacessível.

Cristovão Tezza escreveu algo que nos oferta justamente essa experiência. É a tarefa da literatura – talvez não possamos encontrar outra. Teremos que enfrentar Heliseu, o frio e solitário Heliseu. Um homem de seu tempo esperando pra sair dele, ou será um homem fora do tempo, que não se preocupa em entrar nele. O professor de filologia exposto em sua condição solitária, pois que a filologia não importa a quase ninguém, dedicou sua vida a ela e se pode dizer que apaixonadamente. Uma paixão fria como são as paixões relativas ao conhecimento. O que lhe importou foi a beleza do saber, da língua, da velha língua, da língua que já morreu e, todavia, sobrevive também – ou talvez apenas – por sua causa.

Do mesmo modo, Heliseu se apaixona por uma aluna, uma única pessoa que ainda quer fazer tese na área; paixão desse tipo que não é incomum na vida acadêmica que bem conhecemos. Mas que parece importar a ele mais pela “tese” da aluna, do que pela aluna em si mesma. Já a sua mulher, a sua mulher era um parâmetro de normalidade, algo que ficava na luz até que, apagadas as lâmpadas da idealização, mostrou-se puro breu.

Heliseu tem de fato o reconhecimento de seus colegas, ele escreveu uma tese importante e, por meio dela, encontrou um lugar nesse mundo meio miserável que é o acadêmico. Mas o que mais impressiona em Heliseu é que ele não é de modo algum um herói. Cristovão Tezza sabe que seus personagens não são heróis. Não quer que sejam, ele mesmo afirma. Heliseu é, assim, apenas uma pessoa que viveu sua vida como se ela fosse uma sucessão de acontecimentos, no caso, uma “cadeia de desconcertos” como ele percebe ao amanhecer, no ponto onde o livro começa. É claro que Heliseu, do ponto de vista onde tudo é contado, nos faz perguntar se a vida poderia ser outra coisa. E talvez o seu desafio seja colocar em cena que ninguém precisa mais responder a uma pergunta como essa em um mundo como o nosso.

A narrativa se desenvolve dentro da expectativa e a da preparação da homenagem. Heliseu faz a barba, toma seu banho, toma um café, veste sua roupa. Enquanto isso vamos descobrindo o que se passou na vida de Heliseu. Sua visão de si mesmo e do mundo se expõe a partir dos textos do português arcaico que são abundantemente citados no livro. Quem, ao ler, prestar atenção na questão da “queda das consoantes intervocálicas” perceberá que se trata de uma metáfora da passagem do tempo materializado no modo como falamos. Bonito quando ele conta que a palavra “lágrima” é a única que não mudou entre nós. Eu particularmente, adorei essas partes. Cristovão Tezza brinca com o anacronismo elevado a linguagem no tempo do pleno elogio ao “contemporâneo”. (No tempo dos moderninhos, um homem como Heliseu é adorável). Tezza nos oferece um encontro com a sombra do nosso tempo, o tempo de cada um, o tempo em que o passado simplesmente se repete enquanto escapa de nossas mãos.

***

Toda experiência é experiência da perda e da conquista de si mesmo. A consciência não é uma experiência à toa, é um jeito de permanecer inteiro, seja lá o que isso possa significar. Heliseu é um sujeito lançado na história econômica e política brasileira, mas que a viveu pela margem. A viveu como se não fosse com ele, como acontece com a maioria das pessoas, embora estivesse ligado nos fatos e sua vida possa ser compreendida em sincronia com momentos dessa história. Ele escuta os fatos – ele os escuta muito com os ouvidos de sua mulher, Mônica. Ele se lembra de ter ouvido sobre os acontecimentos. Isso faz pensar que o cidadão em um país como o nosso é sempre um coadjuvante. Coadjuvante de sua própria vida, de certo modo. E, como tal, é uma vítima de nossas escolhas estúpidas, suas e de outros. Ninguém sabe direito que escolha está fazendo por si mesmo ou pelos outros. Ninguém sabe, no extremo, o que está fazendo ao viver uma vida inteira.

Todo mundo que tenha adquirido algum grau real de consciência – ou tanta consciência que ela se torne contra-consciência – terá um inspetor Maigret na sua cola lhe fazendo saber que “não perdoamos os outros do crime que nós cometemos”. É disso que esse livro fala, que uma vida é um crime que não se comete.
Revista CULT

A experiência do horror: arte, pensamento e política

A experiência do horror
Resenha do livro A experiência do horror: arte, pensamento e política, de Rafael Araújo (Alameda Editorial, 2015)
Carlos Rogerio Duarte Barreiros



Em A experiência do horror: arte, pensamento e política, Rafael Araújo apresenta a arte como alternativa crítica aos alcances e aos limites do projeto do esclarecimento e do consequente desenvolvimento tecnológico e científico, especialmente no contexto específico da Revolução Industrial e do século XX. Trata-se da publicação da tese de doutorado defendida pelo autor na Pontifícia Universidade Católica (PUC) de São Paulo, que finalmente vem a público pela Alameda Casa Editorial.
Se um trabalho acadêmico pode ser julgado, incialmente, por seus objetos de estudo, então a pesquisa de Araújo já é digna de nota: a partir de Nietzsche, por exemplo, investiga-se, na primeira seção, a representação algo nebulosa da filosofia em quadro de Gustav Klimt, além das “formas indomáveis” de Jackson Pollock e dos autorretratos de Francis Bacon. Seguem-se-lhes, do ponto de vista teórico, Karl Marx, Michel Foucault, Hannah Arendt e Giorgio Agambem, entre outros; quantos aos artistas, desfilam aos olhos do leitor obras de Käthe Kollwitz, Cândido Portinari, Antonio Henrique Amaral, León Ferrari, Karin Lambrecht, Goya e Picasso – todos, autores e artistas, integrados no projeto do pesquisador de aferir o alcance de sua hipótese inicial: a de que o horror é experiência comum aos homens e que assume, desde a ascensão do capitalismo, especialmente do capitalismo industrial, expressões específicas que, além de circunscreverem a própria experiência humana, acabam por evidenciar-se em formas artísticas algo descontínuas, nas quais está manifesto esteticamente o abismo entre a vida ideológica – na qual a razão técnico-científica rumaria em linha reta e ascendente para a felicidade humana – e avida material – em que predomina a própria experiência do horror, que dá título à pesquisa.
Ao contrário do que pode supor o leitor, o tom da obra de Araújo não é soturno, mas marcado pelo rigor da pesquisa empreendida no corpo a corpo com os trabalhos que lhe servem de referência teórica e principalmente com as obras artísticas por meio de cujas formas se abre a senda crítica da pesquisa. O autor nos apresenta uma tipologia do horror – o horror à imprecisão; o horror de si; o horror à reificação; o horror ao diferente; o horror à moralidade; o horror à biopolítica; o horror à guerra; e o horror ao desemprego – e a seguir o conceito de homo horrens, aquele cuja experiência é determinada pelo horror. É esse o projeto geral da obra, na qual cada manifestação do horror será investigada à luz de uma referência teórica e exemplificada por meio de uma obra de arte.
Interessa verificar que as obras de arte escolhidas por Araújo para análise ao longo do texto guardam entre si – a despeito, por exemplo, da distância no tempo e no espaço – pelo menos uma semelhança: em todas elas vibra o que Theodor Adorno chamaria, na Teoria Estética, de “fricção dos momentos antagônicos que a obra de arte procura conciliar”, isto é, em todas elas observam-se formas que prescindem do naturalismo organizador, unificador e apaziguador da tradição clássica do Renascimento ou do Neoclassicismo, e investe-se no que Araújo chama de fissuras, isto é, formas artísticas descontínuas ou “indomáveis”, por cujas rugosidades que escapam à organização tradicional é possível entrever a experiência do horror que lhes serviu de matriz para a composição.
É por meio dessas obras e das fissuras formais que as caracterizam que as promessas das ideologias burguesas ficam não apenas relativizadas, mas é também por meio da arte que se pode criticá-las em termos que lhes revelam a contradição intrínseca: na mesma medida em que se consolida o capitalismo, aprofundam-se também as experiências de horror que ele carrega em seu próprio seio, inscritas ideologicamente, em palimpsesto, nas suas promessas de prosperidade e de liberdade. Significa, portanto, que as obras de arte nas quais se inscreve o horror registram esteticamente a matriz do que pode ser a crítica radical da sociedade como a conhecemos, daí se poder afirmar que o potencial emancipador da arte é a grande linha de força que guia a obra de Araújo.
Carlos Rogerio Duarte Barreiros
Doutor em Literatura Portuguesa pela USP, atualmente empreende pesquisa de pós-doutorado na PUC-SP sobre as relações entre arte e sociedade. É professor de Literatura Brasileira e Portuguesa no Ensino Superior e em cursos preparatórios para vestibulares e concursos públicos há mais de vinte anos.
Le Monde Diplomatique

Apenas um socialismo possível


O contínuo trabalho de conquista dos espíritos empreendido pelo liberalismo, que foi respaldado pelo poder político e fortificado à medida que o capitalismo ampliava sua empresa, conduziu à construção metódica de uma visão de homem cuja conduta se assenta sobre o interesse e a utilidade

François Chesnais

Para compreender as entranhas do liberalismo é preciso situá-lo na história e tomá-lo por inteiro. É isto que nos lembram dois livros publicados recentemente. A obra de Christian Laval tem o feitio e as qualidades de uma pesquisa [1]. A de Jean-Claude Michéa é um ensaio [2]. Juntos, os dois autores revivem a construção metódica de uma visão de homem cuja conduta assenta- se sobre o interesse e a utilidade. O contínuo trabalho de conquista dos espíritos empreendido pelo liberalismo, que foi respaldado pelo poder político e fortificado à medida que o capitalismo ampliava sua empresa, conduziu ao que Laval chama de uma "mutação antropológica". Isso "fez o Ocidente passar de um estado em que a caridade cristã e a generosidade eram normas ideais de relação com o outro" para uma nova ordem na qual "o universo social é regido pela preferência que cada um dá a si mesmo, pelo interesse que anima o ser humano a manter relações com o próximo e até pela utilidade que ele representa para todos". Dessa forma, não pode haver, de um lado, um "bom" liberalismo político e cultural, e, de outro, um "mau" liberalismo econômico. "O mundo sem alma do capitalismo contemporâneo", escreve Michéa, constitui "a única forma histórica sob a qual a doutrina liberal poderia realizar-se efetivamente". E esse seria "o liberalismo que existe de fato". Em vão e de forma desonesta afirma-se que há um "ultraliberalismo" que poderia ser corrigido de seus "excessos".

Combinando a história da emergência das idéias liberais na filosofia política e na filosofia moral com a história dos fatos econômicos, Laval traça a trajetória de uma construção ideológica longuíssima e dá continuidade à caminhada de Marx e Weber. O autor começa seu percurso nos primeiros textos que fundam uma ética capitalista isolada de qualquer consideração moral ou religiosa nas cidades mercantis italianas dos séculos 14 e 15 e chega até o utilitarismo plenamente acabado de Jeremy Bentham no século 19. A atenção está concentrada no papel de autores com nomes familiares: La Rochefoucauld, Hobbes, Locke, Hume, Montesquieu, Condillac e Adam Smith. Mas Laval cita, também, outros menos notados, como do jansenista Pierre Nicole, ou aqueles mais conhecidos, porém pouco lidos, como Mandeville, William Petty e Daniel Defoe.

Como pensar um "outro mundo possível" se ainda não foram estabelecidos os papéis fundadores do interesse e da utilidade na dominação ideológica neoliberal? Ou, pior ainda, como assumir uma nova sociedade se nós compartilhamos os pressupostos da atual, como demonstra nossa atitude complacente face ao individualismo contemporâneo? - questiona Laval. Michéa é taxativo em seu julgamento: "se o homem não é egoísta por natureza, a armação jurídica e mercantil da humanidade criou, dia após dia, o contexto cultural ideal que permitirá ao egoísmo tornar-se a forma habitual do comportamento humano".

Michéa remonta a um passado menos longínquo que o de Laval. Ele também empresta aos pensadores do liberalismo intenções iniciais louváveis, como a resposta dada às guerras de religião dos séculos 16 e 17. Aqui os marcos intelectuais são Emery de Lacroix e, é claro, Hobbes e Smith. Depois, destacaram-se, na França, Benjamin Constant e seus discípulos, como o economista Bastiat. Tanto entre os ingleses como entre os franceses, o objetivo era criar a paz civil, transferindo para o mercado [3] as soluções de salvação e felicidade dos indivíduos, que vinham então da religião ou do Estado.

Há um momento em que o liberalismo apresentou-se como "o império do mal menor", mas que durou apenas algum tempo. Uma vez que "o sistema capitalista historicamente constituído" pôde "se desenvolver sobre a base de suas próprias leis" ou pressupostos, o liberalismo sucumbiu, por sua vez, ao mal que os pensadores liberais haviam denunciado: querer "organizar cientificamente a humanidade".

Milton Friedman e a escola de Chicago são um exemplo típico da política liberal no que ela tem "de essencialmente deliberado e experimental". A volta completa se produziu com a teoria do "fim da história" formulada por Francis Fukuyama após a queda da URSS. Fukuyama anunciou, e deseja ardentemente, as "novas descobertas científicas que, por sua própria essência, abolirão a humanidade como tal. (?.) Então começará uma nova história para além do humano" [4].

Como fazer para que não cheguemos "até o fim do processo de desagregação social"? - questiona Laval. Michéa dirige-se aos "partidários da humanidade": o tempo está contado no que diz respeito à mutação antropológica do homem e à destruição da natureza. Citando Jean-Pierre Dupuy, o anúncio da catástrofe possível não pretende "dizer o que será o futuro, mas simplesmente o que ele poderá ser se não tomarmos cuidado" [

François Chesnais é economista, professor titular de Ciências Econômicas na Universidade Paris-XIII e co-autor de La finance capitaliste, Paris, PUF, 2006.


[1] Christian Laval, L?homme économique. Essaie sur les racines du néoliberalismo [O homem econômico. Ensaio sobre as raízes do neoliberalismo], Paris, Gallimard, 2007.

[2] Jean-Claude Michéa, L?empire du moindre mal. Essaie sur la civilisation libérale [O Império do Mal Menor. Ensaio sobre a Civilização Liberal], Paris, Flammarion, 2007.

[3] Esse é certamente o caso de Constant, mas não o de Hobbes. Ver a esse respeito C.B. Macpherson, La théorie politique de l?individualisme possessif: de Hobbes à Locke [A Teoria Política do Individualismo Possessivo: de Hobbes a Locke], Paris, Gallimard, 1971.

[4] Francis Fukuyama, "La fin de l?história dix ans après" [O Fim da História Dez Anos Depois], Le Monde, 17 de junho de 1999.

[5] Petite métaphysique des tsunamis [Pequena Metafísica dos Tsunamis], Jean-Pierre Dupuy, Paris, Seuil, 2005
Le Monde Diplomatique