segunda-feira, 10 de novembro de 2014

A política pública como campo multidisciplinar

A política pública como campo multidisciplinar
Eduardo Marques e Carlos Aurélio Pimenta de Faria (orgs.), Ed. Editora Fiocruz e Editora Unesp


As políticas públicas são cada vez mais complexas, envolvendo diversidade temática, grande número de atores estatais e não estatais e públicos variados. Especialmente no contexto brasileiro, federativo, multipartidário, heterogêneo e desigual, entender o processo de produção das políticas e suas consequências não é uma tarefa trivial. As análises devem compreender as dinâmicas do Estado, mas ir além, considerando as múltiplas dinâmicas societais e as motivações para os comportamentos, ao longo de processos históricos.

Como compreender as políticas públicas senão a partir de múltiplos olhares disciplinares? A coletânea reforça essa perspectiva, trazendo um excelente panorama da contribuição de diferentes campos do saber. Ao longo do livro, formado por textos inéditos de especialistas, percorremos abordagens de distintas disciplinas sobre as políticas públicas, tanto aquelas envolvidas diretamente em sua análise (Ciência Política, Administração Pública e mesmo Sociologia e Relações Internacionais) como as que contribuem com modelos e categorias analíticas, explicações para o comportamento de indivíduos e grupos (Sociologia, Antropologia e Psicologia), ou fornecem subsídios para sua produção (Direito e Demografia). Há ainda o caso da História, que tem parte de seu arcabouço conceitual apropriado por outras disciplinas para o entendimento da área.

Os organizadores nos alertam que o “estado da arte” do campo é ainda mais “multidisciplinar” – com contribuições de diversas áreas sem profunda interligação das disciplinas – do que um diálogo interdisciplinar, quanto mais “transdisciplinar”, no sentido da criação de uma macrodisciplina de análise de políticas públicas. Por isso, essa coletânea torna-se um ponto de partida ideal para a transição dos “monólogos disciplinares” em direção a uma maior “competência conversacional” entre os diversos campos do saber que analisam nossas políticas públicas.

Renata BichirProfessora do curso de Gestão de Políticas Públicas da EACH-USP.
Le Monde Diplomatique Brasil

A aventura de contar-se: Feminismos, escrita de si e invenções da subjetividade

A aventura de contar-se: Feminismos, escrita de si e invenções da subjetividade
Margareth Rago, Ed. Editora da Unicamp


A mais recente obra de Margareth Rago aborda a história de algumas vidas singulares e extraordinárias: sete feministas narram suas descobertas, experimentações, desejos e o que precisaram deixar para trás em nome de uma liberação feminina urgente para sua geração. Nascidas na década de 1940 e muito diferentes entre si, elas são unidas por suas marcantes experiências éticas e por uma vinculação à esquerda, ainda que tenham rompido com a militância político-partidária e criado novas práticas subjetivas e políticas.

Rago destaca as histórias das irmãs Amélia Teles e Criméia Schmidt, fundadoras da União de Mulheres de São Paulo, ativistas e membros da Comissão dos Familiares dos Mortos e Desaparecidos Políticos da ditadura militar brasileira. Também contempla as biografias de Gabriela Leite, líder da Davida, organização pioneira em promover a cidadania das prostitutas, que tece críticas às práticas misóginas do cotidiano, e de Ivone Gebara, teóloga que reinventa a relação com a religião católica, criticando dogmas patriarcais.

Relê ainda as trajetórias de Maria Lygia Quartim de Moraes, socióloga que investiga os feminismos brasileiros indicando espaços de sensibilidade e de ruptura com o instituído, e de Tânia Swain, intelectual que frisa a importância da transformação de nossas práticas epistemológicas e teóricas para ressaltar outras dimensões do humano. Por fim, relata a vida de Norma Telles, antropóloga e pesquisadora das artes e da literatura de mulheres, que evidencia o potencial libertário dos atos de criação.

Ousadas, subversivas e corajosas, essas mulheres nos convidam às aventuras cotidianas, muitas vezes sutis, nas quais subjaz o contínuo trabalho de constituição de si e de criação de novos modos de existência. Pela trama intensa e acurada de Rago nos aproximamos da história do feminismo no Brasil, compreendendo seus fortes aspectos de liberdade e ética. 

Luana TvardovskasDoutora em História pela Unicamp
Le Monde Diplomatique Brasil 

Religião e política: Uma análise da atuação de parlamentares evangélicos sobre direitos das mulheres e LGBTs no Brasil



Religião e política: Uma análise da atuação de parlamentares evangélicos sobre direitos das mulheres e LGBTs no Brasil

Christina Vital e Paulo Victor Leite Lopes , Ed. Fundação Heinrich Böll e Instituto de Estudos da Religião (Iser)


O crescimento político dos grupos evangélicos no espaço público brasileiro é um fenômeno que vem sendo percebido e enfrentado numa intensidade crescente nos últimos dez anos pelos movimentos sociais de direitos humanos, em especial os feministas e LGBT, cujas lutas históricas se tornaram alvos prioritários dos ataques conservadores nessa disputa.

Leitura fundamental para a compreensão e problematização desse cenário, o livro resulta de extensa pesquisa sobre a atuação da Frente Parlamentar Evangélica no Congresso Nacional. Com base no estudo dos casos do debate sobre o aborto na campanha presidencial de 2010 e do cancelamento do programa Escola Sem Homofobia, do Ministério da Educação (2011), a pesquisa nos dá a dimensão e a profundidade da relação cada vez mais forte, explícita e comprometedora entre alguns grupos religiosos e a política partidária no país.

O sentido em disputa da laicidade do Estado, a aproximação política entre católicos e evangélicos e as estratégias de fortalecimento e ocupação de espaços políticos que vêm sendo adotadas por esses grupos são debatidos e exemplificados no livro. Trata-se, segundo os autores, de táticas para a condução de um projeto político evangélico que se sustenta “na forma de relação estabelecida pelos atores religiosos com o Estado e com traços da nossa cultura” (p.169).

Histórico preciso e mapa consistente da atuação evangélica na política, o livro possibilita reflexões que merecem a atenção dos movimentos sociais: primeiro, a envergadura desse projeto político – seus significados e desdobramentos. Segundo, a ideia de uma “cosmologia cristã dominante” no Brasil, que criaria um terreno fértil para o fortalecimento desses grupos políticos junto à sociedade, em torno de alguns temas cuidadosamente selecionados (aborto e direitos da população LGBT, especificamente). São elementos inescapáveis para a avaliação do cenário político que se avizinha com as eleições presidenciais de 2014.

Nina Madsen
Integrante do colegiado de gestão do Centro Feminista de Estudos e Assessoria (Cfemea)
Le Monde Diplomatique Brasil

Imobilismo em movimento


Imobilismo em movimento
Marcos Nobre, Ed. Companhia das Letras

A principal virtude do livro é a construção da categoria histórica do pemedebismo para explicar a estruturação e blindagem do sistema político brasileiro na transição democrática de 1979 até hoje. O pemedebismo, como define o autor, não é um fenômeno relativo exclusivamente ao PMDB, ainda que a legenda tenha sido protagonista de sua gestação. Corresponderia à lógica essencialmente conservadora das disputas partidárias no Brasil.

A partir de 1979, a abertura ao pluripartidarismo produziu o temor, entre lideranças do então MDB, da perda do monopólio da oposição. Para evitar fragmentações, o PMDB se constituiu em torno de um princípio essencial e uma forma organizativa. O princípio essencial, identificado por Nobre como uma “cultura política de baixo teor democrático”, era o controle vertical de uma transição conservadora, que bloqueasse toda participação popular direta. Para isso, sua forma organizativa abrigou grupos diferentes sob a mesma legenda, partícipes de um sistema de vetos recíprocos.

Criado internamente ao PMDB, tal sistema de vetos se externalizou durante a atuação do Centrão na Constituinte de 1988 e se converteu na lógica do sistema político nacional. O autortraça, assim, a história da redemocratização do país tendo como fio condutor as chantagens tipicamente pemedebistas que marcam a relação do Legislativo com o Executivo, enfocando os sucessivos ciclos de subordinação do PSDB e do PT à sua lógica. Um ponto frágil do livro é o déficit conceitual no que diz respeito à noção de “desenvolvimento”.

O autor emprega os termos “nacional-desenvolvimentismo” e “social-desenvolvimentismo” com notável imprecisão, comprometendo uma parcela de sua proposta. Ainda assim, nos ajuda a enxergar as revoltas de junho de 2013 em perspectiva: uma eclosão antipemedebista, quando a sociedade rechaçou todo um sistema político blindado à sua participação.

Joana Salém VasconcelosFormada em História na USP e mestra em Desenvolvimento Econômico pela Unicamp
Le Monde Diplomatique Brasil

Cidades Rebeldes: Passe livre e as manifestações de rua do Brasil

Cidades Rebeldes: Passe livre e as manifestações de rua do Brasil
Ermínia Maricato et alii, Ed. Boitempo Editorial

O livro sobre as ondas de protesto de junho que varreram as principais capitais do Brasil é leitura obrigatória para todos aqueles que buscam as razões da inquietude da juventude brasileira.

Duas características de imediato saltam aos olhos na leitura da obra. A primeira é seu caráter interdisciplinar. Com catorze artigos, ela reúne perspectivas notáveis de historiadores como Mike Davis e Lincoln Secco, urbanistas como Ermínia Maricato e Raquel Rolnik e cientistas sociais como Ruy Braga, entre outros autores. A segunda característica é a combinação entre abordagens acadêmicas e perspectivas “de dentro”. Autores de peso como Slavoj Žižek e David Harvey oferecem um ponto de vista contemporâneo internacional e dividem espaço com textos produzidos pelos próprios atores do movimento, como o MovimentoPasse Livre.

Por essa razão, as abordagens são bastante distintas. Tratam de megatendências os textos de Harvey, Davis e Žižek, que descrevem a lógica dos movimentos internacionais na organização da cidade, no transporte urbano e nas características dos protestos de diversos países. O texto de Harvey é o mais didático, o de Davis o mais irônico e o de Žižek, que fecha a coletânea, o único a desnudar o essencial: “o fato de que nenhum deles pode ser reduzido a uma única questão”. Os textos dos autores nacionais buscam vincular os movimentos de junho no Brasil às tendências globais, como o de Ermínia e o de Secco, que os analisam detidamente. São artigos que têm o mérito de apresentar o caráter híbrido das pautas e mobilizações − “as lutas pelo transporte no Brasil foram um todo muito maior que o MPL”, como diz o coletivo.

Espera-se, no entanto, uma continuação. Novas perguntas emergiram nos movimentos de julho, como o significado da participação dos Black Blocs, a articulação com os movimentos sociais tradicionais e partidos políticos e o papel do Fora do Eixo. As cidades continuam rebeldes. Urge investigar.

Jorge Barcellos
Doutor em Educação pela UFRGS
Le Monde Diplomatique Brasil

Trabalho produtivo em Karl Marx


Trabalho produtivo em Karl Marx
Vera Cotrim, Ed. Alameda

O livro objetiva analisar a categoria do trabalho produtivo – e suas categorias correlatas: trabalho improdutivo, material e imaterial – na chamada literatura marxiana, aquela produzida por Karl Marx. A autora, logo na apresentação, alerta que não pretende estudar a teoria de Marx com o fim em si mesmo, mas juntar elementos que ajudem a entender as novas formas concretas de trabalho originadas do desenvolvimento produtivo. Vera reconhece que há um longo debate em torno dessas categorias de trabalho, mas opta por não se concentrar nele – nem atualizá-lo, e sim voltar “novamente ao texto de Marx, buscando encontrar ali o modo como responde aos problemas”. Essa escolha faz lembrar a ideia, comum aos marxistas críticos do antigo regime soviético, de que as insuficiências da teoria marxista não estariam em Marx, mas na interpretação distorcida feita por seus intérpretes. Assim, caberia procurar exaustivamente em Marx – em seus escritos – a verdade não revelada.

Marx, como outros clássicos do pensamento econômico, construiu bases teóricas acerca do funcionamento do capitalismo, e parece que não pretendia ignorar a história dando solução a todo e qualquer problema futuro. Aos marxistas caberia a missão de aceitar o desafio de gerar um novo conhecimento por meio da confrontação dos desdobramentos da história com as bases teóricas erguidas por Marx. Enfrentar esse desafio ajudaria a autora a fugir da análise por si mesma e entender melhor as novas formas concretas de trabalho. É possível que ajudasse também na aceitação da ideia de que a grande contradição do capitalismo não reside em sua “senilidade” – limite à elevação da produtividade que ele imporia a si mesmo −, mas na apropriação privada da riqueza originada de sua ainda singular capacidade de elevar a produtividade. De qualquer forma, vale ressaltar o talento da autora em realizar um livro de temática relevante, conteúdo aprofundado e portador da boa e recomendável clareza da escrita direta e desafetada.

João Batista Pamplona
Professor de Economia da PUC-SP
Le Monde Diplomatique Brasil

O capital e suas metamorfoses


O capital e suas metamorfoses
Luiz Gonzaga Belluzzo, Ed. Unesp

Nessa coletânea, Belluzzo faz uma interessante revisão de Marx a partir das questões do capitalismo atual. Não se trata de visão historicista, mas sim da análise do capitalismo atual em tempos de exasperação do capital fictício, como evidenciado pelo altíssimo grau de alavancagem e intenso endividamento entre instituições FINANCEIRAS. A abissal desigualdade de renda, a extrema pobreza no mundo e a crise ambiental e de recursos coadunam num mundo sem governo, no qual o capital assume vida própria e “a economia trata de se libertar dos grilhões da sociedade”.

Belluzzo tece uma relação dialética entre os diferentes discursos da economia política, mostrando como grupos detentores do capital se apoderaram de certos fragmentos da racionalidade econômica em prol de seus próprios interesses e em detrimento do direito à autodeterminação dos indivíduos, do direito a uma vida mais digna e cheia de sentido, na qual o ser humano possa de fato desfrutar o progresso tecnológico e social – tema central em Marx.

A instrumentalização do discurso econômico foi paulatinamente “criminalizando” o welfare statee abrindo as portas para o neoliberalismo, apenas para voltar a defender a “socialização das perdas” dos intermediários financeiros nos períodos de crise. O descolamento entre teoria e prática econômica se dá de modo descarado nos círculos mais altos de decisão, seguindo as oscilações de interesse dos detentores do capital. Essa lógica alimentou o “surto de criatividade agressiva” que nos levou à catástrofe.

Nesses ensaios, o autor tece uma narrativa fluida, costurando conceitos clássicos das Ciências Sociais com fatos e dados do capitalismo recente, abordando inclusive a constituição da crise de 2008. Essa trama invoca reflexões profundas acerca da emancipação da sociedade com base na construção conjunta de instituições, que, moldadas pela ação humana, carreguem as sementes de uma sociedade integrada, mais justa e participativa, na qual o indivíduo comum possa de fato usufruir as benesses da civilização tecnológica industrial.

Marcelo Sette Mosaner
Aluno do programa de pós-graduação em Economia Política da PUC-SP
Le Monde Diplomatique Brasil

Bola de sebo e outras narrativas



Bola de sebo e outras narrativas
Guy de Maupassant, Ed. Expressão Popular

A obra reúne quatro das histórias que celebrizaram Guy de Maupassant 

(1850-1893) como um dos mestres do conto. A coletânea privilegia episódios aparentemente prosaicos da vida de personagens triviais, mas extraordinários, situando-os no contexto histórico e político do autor. Com ironia aguda e humor fino, as histórias representam a crueldade ordinária do ser humano e a hipocrisia com que nega seus valores morais.

Material de criação da letra de “Geni e o Zepelim”, de Chico Buarque, o notável conto que abre o livro relata um curto momento da vida da gentil prostituta, Bola de Sebo. Criador de narradores irônicos que se distanciam criticamente de seus personagens, a posição política de Maupassant brota da lírica simpatia com que pinta os marginalizados e os excluídos dos bens da vida. Enquanto estes são descritos por meio de uma tensão trágica, tendo em vista alegrias curtas e miséria extrema, os membros da alta sociedade francesa, em contrapartida, tornam-se cômicos, presos à inumanidade e à estupidez onipresentes.

O conto “Rosalie Prudent” leva às últimas consequências a máxima de Flaubert de que o feio ou o banal devem ser vazados em linguagem prosaica, mas poética. Radicalizando a norma, a representação das carências agudas da doméstica Rosalie realiza-se de modo sublime e ganha dignidade trágica.

Como os grandes realistas de seu tempo, Machado de Assis entre eles, Maupassant apega-se à narração de um acontecimento insignificante, mas do qual extrai a verdade oculta de um meio social ou de uma personalidade. Retirando de uma história mínima o máximo de significação, alcança, por exemplo, representar uma ideia fixa que se defronta inesperadamente com seu contradito. Maupassant decompõe a obsessão de seus heróis, submetendo suas convicções a um choque de realidade, quando o abismo insondável da vida e da natureza se abre a seus pés e abala o dogmatismo. 

Cilaine Alves Cunha
Professora de Literatura Brasileira na Universidade de São Paulo

Le Monde Diplomatique Brasil

INTERNET


INTERNET
Andre Deak, Ed. Grandes reportagens, formatos inovadores




A forma de apresentar grandes histórias tem se modificado nos últimos anos, especialmente no ambiente digital, incluindo aí a web. Abaixo, uma seleção de grandes reportagens, se é que podem ser classificadas assim, para conhecer on-line.

Adeus, camaradas

Uma das maiores iniciativas mundiais para recontar a história do apogeu e queda da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, juntando dezenas de canais de TV de todos os países que fizeram parte da URSS. O resultado da investigação, que entrevista inclusive os responsáveis em cada país pelo fim do regime soviético, virou uma coleção de livros, uma exposição multimídia (com os cartões-postais que os comunistas trocavam entre si), um site e uma série de documentários, exibidos no Brasil pelo canal a cabo Curta!. Dá para ver no YouTube, com legenda. Site: www.farewellcomrades.com

50 anos do golpe

Diversos veículos brasileiros produziram reportagens especiais sobre o aniversário de cinquenta anos do golpe militar que subjugou o Brasil até 1985. Depoimentos, vídeos, reportagens interativas, áudios e fotografias, todos são um registro importante e formam um panorama interessante de resgate de como chegamos àquilo. Lembrar é resistir; conhecer a história é elemento importante para que não se repitam os mesmos erros. Em época de eleições, com certos candidatos que praticamente pedem a volta dos militares, é bom conhecer como foi o período em que eles estiveram no poder. Site: http://vladimirherzog.org/50-anos-do-golpe-sites-recomendados/.

NFB do Canadá

A National Film Board do Canadá é hoje talvez o lugar onde mais sejam criadas novidades e experiências narrativas inovadoras. É um órgão de comunicação público, que tem produzido reportagens interativas premiadas diversas vezes. Alguns exemplos: Bear 51, sobre a estressante vida de um urso, feita toda com base em dados como batimentos cardíacos do animal; Highrise, uma investigação sem fim sobre morar em apartamentos (com um trecho sobre uma ocupação no Brasil); ou ainda Fort McMoney, o primeiro game-documentário de que se tem registro no mundo. Site: www.nfb.ca/interactive/

Andre Deak é Professor de Novas Narrativas no Jornalismo na pós-graduação da FAAP, de Comunicação Digital na graduação da ESPM e diretor da agência de comunicação Liquid Media Laab

Le Monde Diplomatique Brasil

VINHOS

Didú Russo, Ed. Naturebas

Os vinhos que se importam com a ecologia, sejam eles orgânicos, biodinâmicos ou naturais, fazem parte de um segmento em crescimento e até de modismo. Para entender o que são esses vinhos, precisamos retroceder um pouco na história.

A Primeira Guerra Mundial, que acaba de completar cem anos, era para ter durado mais, nas previsões de seus participantes. Sobrou muita munição.

A indústria então, com base nas descobertas dos químicos Justus von Liebig (que descobriu que plantas precisavam de nitrogênio e fósforo para crescer) e Sir John Lawes (descobridor do superfosfato), criou os fertilizantes químicos.

Fertilizante é basicamente sal. Sal estressa a planta, que luta pela água e assim se desenvolve mais. Numa época em que se pensava em quantidade muito mais que em qualidade, fertilizantes fizeram sucesso nas videiras.

Com o tempo, porém, percebeu-se que esses fertilizantes químicos queimavam a superfície da terra e matavam milhares de componentes naturais, vitais para o equilíbrio do ecossistema.

Um hectare de terra virgem tem cerca de 10 milhões de vidas – bactérias, fungos, cogumelos, insetos, ratos etc. – em perfeito equilíbrio ecológico. Ninguém está ali ao acaso, todos têm alguma função. Com a aplicação de químicos, uma enorme parte desses seres vivos morre e esse equilíbrio se desmonta. Surgem as anomalias.

A indústria respondeu às anomalias, criadas por ela mesma, com mais produtos: herbicidas, fungicidas, pesticidas... Hoje a agricultura é refém da indústria química, que produz cerca de 30 mil produtos para ela!

Os vinhos “naturebas” são os que não usam produtos químicos e não manipulam sua fermentação. Eles se dividem em orgânicos, biodinâmicos e naturais, e tratarei de cada um deles nas próximas colunas.

Por enquanto, vou lhe sugerir dois bons vinhos que não machucam o bolso e são extremos. Um absolutamente convencional e outro natureba.

O primeiro é o biodinâmico Le Loup dans la Bergerie 2013, do Languedoc, com as uvas 60% Merlot, 20% Grenache e 20% Syrah. Fresco e frutado, harmoniza superbem com terrine, carnes curadas, steak tartare, ratatouille. Você encontra na www.delacroixvinhos.com.br e custa R$ 49,00.

O segundo é o convencional Aparados Cabernet Sauvignon 2008, da Villa Francioni de Santa Catarina. Vinho bem-feito, com bom corpo que acompanha bem carnes assadas, churrasco e queijos tipo parmesão. Custa R$ 41,00 na www.ravin.com.br.

Perceba a diferença entre eles. O primeiro, se fosse uma mulher, seria uma moça sem maquiagem que saiu do banho, vestiu-se rapidamente, é natural, desinibida, tem sotaque, não se envergonha de sua cultura.

O segundo seria uma moça estudada, com a roupa da moda, politicamente correta e que não quer se comprometer, mas é agradável.

Espero na próxima edição te encontrar com uma taça na mão degustando a leitura do Diplô. Saúde!

Didú Russo
Ex-publicitário entediado com o setor, larguei tudo na década de 1990 para viver de vinho. Degustar, escrever e falar de vinhos virou minha maneira de viver do que antes era apenas um hobby. Ganha-se pouco, degusta-se muito, do bom e do ruim

Le Monde Diplomatique Brasil

mínimoIMENSO


mínimoIMENSO
Hamilton Faria, Ed. Instituto Cultural Casa dos Omaguás


ARTE da condensação, a poesia coloca o Imenso no mínimo, difícil tarefa de concentrar a expressão poética, mas também um modo de reorganizar a vida, de reestruturar o mundo por meio da arquitetura da criação literária.

Nessas micronarrativas poéticas, há um desdobramento da subjetividade que lembra Pessoa. “Tarda e a hora me encanta/ Tudo vale a pena/ A Imensa vida e a pequena.”

E na diversidade de assuntos, todos relevantes e “revelantes”, os textos vivem transformações: “Mudar o mundo?/ Muda o mundo em ti/ E ti será o mundo”. A palavra vira mundo e o mundo, palavra: “Antes que tarde/ A metáfora transformar-se/ Em árvore”. O verso “Mutação da pedra em água” não só muda os elementos naturais, mas também os elementos culturais do senso comum.

A ARTE na cidade aparece na indagação poética, transferindo-se para o espaço público os enigmas da vida urbana: “O mistério do ovo:/ Quem nasceu antes/ O muro ou o grafite?”. A observação literária do mundo traz surpresas e delicadezas do tipo: “Apanhar a flor no jardim”, mas o texto aguçado percebe a planta em sua autonomia. O poeta chega ao seu agora-futuro, medita sobre o tempo: “A mais bela hora/ Ontem nem amanhã/ O hoje agora”. E propõe o exercício da política da generosidade contra o nada existencial pós-moderno, cada um oferecendo seu bem maior e por inteiro. Poesia é acúmulo de saber, de conhecimento, de palavras, mas não feita para guardar, estocar, é feita para distribuir. E isso faz parte de uma política de dádiva não guardada, mas disseminada.

Nessa política do “escambo” cultural, o simbólico também entra como elemento de troca, na lei de incentivo à vida. Essa poesia se junta às manifestações pela vida livre, pela palavra livre. Texto dialético, que se dá ao mundo para flanar e circular, andarilhar, como poesia nômade, que conversa com os outros, potlatch que se distribui no futuro do presente. A proposta é clara: não adaptar-se para viver, mas “encantar-se para não morrer”, palavras que refundam a vida.

Valmir de Souza é Professor, pesquisador e ensaísta.
Le Monde Diplomatique Brasil

Intrérpretes do Brasil: Clássicos, rebeldes e renegados



Intrérpretes do Brasil: Clássicos, rebeldes e renegados
Luiz Bernardo Pericás e Lincoln Secco (orgs.), Ed. Boitempo Editorial

Interpretar o Brasil é uma tarefa política. O livro nos convida a pensar o país em um tempo de questionamentos à sociedade em que nos transformamos. Os textos revisitam a vida e a obra de intérpretes consagrados, ao mesmo tempo que abrem as portas para autores que pouco frequentaram a academia.

Ao lado dos clássicos Gilberto Freyre, Caio Prado Jr., Sérgio Buarque de Holanda, Florestan Fernandes, Celso Furtado e Darcy Ribeiro, encontramos dezenove renegados e rebeldes. Octávio Brandão, Astrogildo Pereira, Leôncio Basbawm, Rui Facó e Jacob Gorender mostram a força do pensamento crítico nascido no seio da classe trabalhadora, formado no PCB e retirado do mapa intelectual brasileiro pelos dominantes. Everardo Dias, Nelson Werneck Sodré, Ignácio Rangel, Edgar Carone, Mauricio Tragtenberg e Ruy Mauro Marini representam os intérpretes que, marcados pelo marxismo, são largamente referenciados, mas pouco reconhecidos. Paulo Freire e Milton Santos, tantas vezes pasteurizados, recebem o tratamento revolucionário que merecem. Na fronteira entre a história e a literatura, Antonio Candido, Câmara Cascudo e Mario Pedrosa garantem o espaço da arte como interpretadora social para pensar a transformação. Os organizadores ainda incluíram Rômulo de Almeida, José Honório Rodrigues e Heitor Ferreira Lima, que, embora mais aceitos nos círculos políticos e intelectuais, tiveram suas intervenções nacional-desenvolvimentistas progressivamente desconhecidas.

O livro nos revela a missão intelectual de um intérprete do Brasil: colocar a formação da nação em perspectiva histórica, analisar a conjuntura e apresentar um programa político para o futuro. Esses traços analíticos, combinados com a história e a política que constroem o pano de fundo da formulação de cada autor, nos oferecem um trabalho de alta qualidade para voltar a apresentar aos brasileiros a reflexão sobre a formação e a transformação do país.

Maria Mello de Malta é Professora do Instituto de Economia da UFRJ e coordenadora do Laboratório de Estudos Marxistas (Lema).
Le Monde Diplomatique Brasil

Entre a solidariedade e o risco: Sindicatos e fundos de pensão em tempos de governo Lula




Entre a solidariedade e o risco: Sindicatos e fundos de pensão em tempos de governo Lula
Maria Chaves Jardim, Ed. Annablume

A obra aponta as centralidades e as fronteiras entre determinados setores do sindicalismo brasileiro, mercado financeiro, fundos de pensão e movimento sindical, mas não recebeu a atenção devida da crítica, que provavelmente ficou horrorizada com as demonstrações da autora: existe uma elite sindical gestora de fundos de pensão no Brasil contemporâneo, e o movimento sindical não está tão em crise como querem os marxistas ortodoxos, ou seja, a autora afirma que, assim como o capitalismo, o movimento sindical se reinventa e os fundos de pensão constituem uma forte bandeira no processo. Ademais, Maria Chaves Jardim nos estimula a pensar o papel dos fundos de pensão nos projetos do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), identificando parcerias público-privadas e a interação de motivações, símbolos e culturas no mercado financeiro, variáveis ignoradas pela teoria econômicamainstream.

Referência para pensar a sociologia das finanças no Brasil, o livro é uma das poucas obras acadêmicas brasileiras que consegue mostrar, de um ponto de vista sociológico, com bastante sofisticação analítica e sem julgamento moral, a chegada de sindicalistas a postos-chave do mercado financeiro, sobretudo na direção de fundos de pensão, os quais movimentam o equivalente a 19% do PIB; da mesma forma, a obra demonstra que tais fundos passam a investir em grandes projetos, como o PAC, produzindo benefícios indiretos para o trabalhador, como a geração de emprego e renda e infraestrutura para o país.

Portanto, sem negar as inúmeras ambiguidades do processo, a autora revela um interessante fenômeno sociológico, a saber, a chegada de novos personagens ao mercado financeiro, como sindicalistas, o que torna esse livro indispensável para a compreensão da singularidade do capitalismo financeiro contemporâneo no Brasil.

Thais Joi Martins é Doutoranda em Ciência Política (UFSCar/Nesefi).

Le Monde Diplomatique Brasil

Tipos de pertubação


Tipos de pertubação
Lydia Davis, Ed. Companhia das Letras


O cotidiano esbarra com as coisas comuns. Uma escritora em desequilíbrio tácito com objetos, crianças e homens que sondam seu universo e lhe interrompem, vez ou outra. Nessa paragem é que se dá a ironia magistral de Lydia Davis. Como se o ato da escrita contasse com esses lapsos em que a norte-americana aplica seu olhar enviesado para criar e ferir. Em 2013, Lydia ganhou o Man Booker Prize International, prêmio que destaca escritores de ficção vivos.

Contabilizam-se em sua carreira Can’t and won’t(2014), Collected stories(2009), Varieties of disturbance(2007), Almost no memory(1997), o romance The end of the story(1995), Break it down(1986) – crônicas traduzidas pela editora portuguesa Ulisseia como Demolição–, Story and other stories(1983), The thirteenth woman(1976), entre outros livros.

Pouco a pouco, vê-se a dilaceração da estrutura cotidiana na vida de uma mulher. Se a promessa de relações difíceis na família transborda, apesar da tentativa de manutenção de fachadas, a escritora norte-americana transforma sua escrita em algo ainda sem nome.

No livro de contos Tipos de perturbação, Lydia expõe a influência de Franz Kafka em sua ficção ao mesmo tempo que cita Marcel Proust e Samuel Beckett em outros dois contos. Como tradutora e ficcionista, Lydia parece questionar sempre seu modo de contar histórias, num exercício de metalinguagem que transpassa todo o livro. O diálogo incessante com um possível método de escrita e suas influências literárias deixam, para o leitor, um mundo sem grandes certezas. E a ironia e o experimentalismo para transpor a linguagem.

Fernanda Fatureto é Jornalista e autora do livro de poemas Intimidade inconfessável(Editora Patuá, 2014).
Le Monde Diplomatique Brasil

Sobre periferias: Novos conflitos no Brasil contemporâneo



Sobre periferias: Novos conflitos no Brasil contemporâneo
Neiva Vieira da Cunha e Gabriel de Santis Feltran, Ed. Lamparina/Faperj


Os textos reunidos nessa coletânea deslocam o leitor para as “margens” – territórios que evocam de maneira conflitante algumas mudanças recentes na dinâmica social urbana. Os autores apostam de forma acertada na polissemia do termo periferia, buscando compreendê-lo como uma categoria que, por ser sempre valorativa, manifesta perspectivas de acusação, reivindicação, resistência e confrontação. Nesse campo temático, portanto, conjura-se uma série ampla de questões em torno dos conflitos urbanos contemporâneos, enfrentamentos políticos e suas formas de gerenciamento.

Os pesquisadores valorizam o dinamismo das fronteiras, apurando alguns domínios, já trabalhados durante décadas nas Ciências Sociais, de forma inovada, relacional, como chamam os organizadores. Como resultado, o que a mudança de foco permite ver são as conjunções entre o trabalho e a religião com o crime, a interconexão de programas sociais com mulheres, famílias e políticas estatais. Novos cenários de direito, expansão do consumo, mobilidade social e luta por reconhecimento são constatados.

Vistas em conjunto, as pesquisas anunciam a dimensão transversal do conflito que vem acompanhando as transformações em curso. Os processos atuais verificados em territórios periféricos apontam para um cenário híbrido: a experiência religiosa pentecostal, em lugar dateologia católica, não está completamente dissociada do universo moral do crime; os postos de trabalho fabril, antes pensados como os pilares do projeto de vida operário, foram substituídos por ocupações informais, ilegais e também ilícitas; e ainda, se antes se constatava a falta de políticas estatais nas periferias, hoje inúmeros programas sociais marcam a presença capilar e excessiva do Estado.

Os trabalhos de campo realizados em quebradas, ONGs, associações, albergues e favelas colocam à prova que uma apreensão sensível, tal como fizeram os autores, é capaz de lançar sobre as periferias novas perspectivas analíticas.

Mariana Medina Martinez é Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social (UFSCar).
Le Monde Diplomatique Brasil