FLEURANT, Gèrdes. 1996. Dancing Spirits Rhythms and Rituals of the Haitian Vodun, the Rada Rite. Westport, Connecticut: Greenwood Press. 209 pp.
Ana Paula Ratto de Lima
Mestranda, PPGAS-MN-UFRJ
Assim como no Candomblé no Brasil e na Santería em Cuba, a música e a dança são elementos fundamentais do Vodu haitiano, canais privilegiados de comunicação entre os Lwa (seres espirituais) e os humanos. É através de sua prática que se induz um dos momentos mais importantes dos ritos do Vodu, a possessão. Além disso, por serem considerados genuinamente africanos, os ritmos que induzem ou aplacam essa possessão - ou seja, que a controlam - têm potencial necessário para atuar como veículos de comunicação dos fiéis do Vodu com os Lwa, já que ambos são também oriundos da África.
O livro de Fleurant, escrito a partir de uma pesquisa de campo em Bòpo, no Haiti, aborda a prática musical em seus aspectos formais e performáticos, procurando integrá-la no contexto mais geral da cerimônia Rada, que "é um dos principais rituais do complexo religioso conhecido no Haiti como Vodu" (:2). Para tanto, o autor (ele mesmo um iniciado no Vodu) centra sua análise na música instrumental, no papel dos músicos e instrumentos, e na música vocal - neste caso, a partir das melodias e textos de canções, por um lado, e das relações destas com cada Lwa cultuado na cerimônia, por outro.
A cerimônia Rada, que pode durar desde algumas horas até dias ou meses, é realizada por diferentes motivos; os principais são: kanzo/boulezen (respectivamente, ordenação de fogo e queima de potes de cerâmica, momentos cruciais no rito de iniciação), pwomès (promessa, engajamento solene, prelúdio para um serviço mais elaborado), maryaj (casamento místico, quando alguém se casa com um Lwa do sexo oposto), ou uma ação de graças. Quaisquer que sejam as circunstâncias, entretanto, a estrutura do rito parece ser a mesma, começando com priyè dyò, em que Deus (ou Bondye) é inicialmente invocado, para depois ser sucedido por todos os santos católicos e pelos Lwa, primeiro os masculinos, depois os femininos. A ordem de invocação dos Lwa pode ser alterada em função da execução de práticas - homenagem, saudação ou pedido específico - dirigidas a algum Lwa em particular.
Há, na verdade, uma espécie de combinação das diversas fases do rito, que vão sendo executadas mais ou menos segundo as contingências (obviamente com algumas limitações). Essa possibilidade de rearrumação verificada no culto está presente também na estrutura musical, ou seja, nas formas de improviso dos ritmos e melodias, a fim de que não percam suas características mais gerais.
Existem, na cerimônia Rada, oito tipos de ritmos musicais: yanvalou, twarigòl, mayi, zèpol, kongo rada, dyouba/matinik, nago, mazoun. Estes ritmos são executados por instrumentos de percussão, cantores e dançarinos, associados de diferentes maneiras de acordo com o Lwa a quem se dirigem (:32). No entanto, os ritmos mais freqüentes são yanvalou, mayi e zèpol. O primeiro significa literalmente "venha para mim" e é, ao mesmo tempo, uma invocação e uma música/dança de súplica, primeira a ser executada em todas as cerimônias Rada, e cada vez que um Lwa é invocado. A dança consiste no movimento alternado do abaixar e levantar os joelhos dobrados, e é através da performance dessa música/dança que os fiéis estabelecem contato com os ancestrais em Lafrik Ginen através da possessão. O Lwa deve responder aos apelos insistentes dos tambores, da dança e da música, e "montar" um dos membros do grupo. Mayi e zèpol (também conhecido como "dança dos ombros") são complementos rituais do yanvalou, cuja função primordial é mandar embora um Lwa de forma positiva e feliz. Aqui, Fleurant observa que, uma vez que estas são danças de andamento mais rápido, executadas em pé, seus movimentos funcionariam como mecanismos de alívio de tensões.
Os conjuntos Rada possuem seis instrumentos musicais: ogan (sino), ason (chocalho ritual), bas (grande tamborim, raramente utilizado no Rada), boula (pequeno tambor), segon (médio tambor) e manman (grande tambor, conhecido também na África como tambor-mãe). Os três tambores são os instrumentos mais utilizados e importantes na cerimônia; devem ser batizados, e sua feitura exige cuidados rituais especiais. Segundo Rigaud, "os poderes dos tambores devem ser reatualizados de tempos em tempos" (apud:38), não bastando que sejam consagrados por ocasião do ritual de batismo. Para tanto, devem viajar simbolicamente para Ifa, na África Ocidental, a fim de recuperarem seus poderes.
Do ponto de vista do Vodu, os tambores possuem poderes cruciais para os rituais; são eles que induzem a possessão, o elemento vital de toda cerimônia Vodu, estabelecendo a comunicação entre os Lwa e os fiéis. Não é casual que o próprio termo Vodu signifique, ao mesmo tempo, tambor e espírito no idioma dos Fon do Benin. É o som dos tambores, regulado pelos tocadores, que induz, determina a freqüência e interrompe a possessão. Nesse sentido, é fundamental que os músicos tenham controle absoluto do que tocam. E embora todos os músicos possuam uma certa margem de improvisação, induzindo diálogos e mudanças nos demais padrões tocados pelas outras partes, é o ountò quem controla, em geral, o fluxo rítmico executado pelos instrumentos, comandando direta ou indiretamente esses diálogos. Ele é o mestre dos instrumentistas e toca o tambor-mãe (manman), o mais grave e que requer mais virtuosismo. Para se chegar a ountò, deve-se passar antes pela prática de tocar boula e segon, pois a habilidade exigida cresce na proporção dos tambores.
O ountò forma com o oungenikon (mestre do coro) e o oungan (líder ou pai espiritual) "uma estreita unidade músico-performática" (:47), sendo que o ountò não precisa ser um iniciado, ao contrário do oungenikon e, evidentemente, do oungan. No entanto, é interessante notar que caso ele o seja, pode eventualmente continuar tocando perfeitamente, mesmo sob o efeito de uma possessão. Caso contrário, ele utiliza os ritmos necessários para aplacar a possessão, já que a cerimônia não pode prosseguir sem sua atividade.
Durante a cerimônia, os instrumentistas e cantores executam peças que se relacionam com os Lwa ou com outros elementos do ritual, como os vèvè (desenhos rituais dos Lwa), com objetos sagrados, como o ason, a bandeira, ou com os membros do grupo cujo papel é essencial para a execução da cerimônia. Cada uma das canções possui um texto específico, parte em langaj ("linguagem africana antiga"), parte em creole, referente ao elemento sobre o qual se voltam as atenções no momento - cada elemento possui várias canções que exaltam suas qualidades. É através das canções que as pessoas aprendem mais sobre os Lwa. Quando um Lwa, por intermédio da pessoa por ele possuída, propõe uma nova canção, ele o faz mediante ritmos já conhecidos por todos, propondo um novo arranjo de texto.
Os ritmos em geral seguem o padrão básico africano da contraposição 2:3, criando uma densa polirritmia, que vai tecendo teias de ritmos entrelaçados, altamente desencontrados, contrapontados. Essa polirritmia se articula a partir de um outro princípio recorrente na música africana, que é o de chamado/resposta. São os diálogos que se empreendem entre os tambores e entre os cantores, bem como a mistura desses dois níveis de diálogo, que dão especificidade à textura da música do Vodu. É interessante notar que a execução desse tipo de música requer muita atenção dos músicos, já que embora o princípio rítmico básico seja o mesmo (2:3), os instrumentos o executam em um tempo diferente do dos cantores, o que faz com que se possa sempre retirar novos "tempos" dessas combinações. A partir da análise das linhas melódicas dos instrumentos, podemos perceber essa reversibilidade dos ritmos, criada através de acentuações diferentes para cada um dos instrumentos, fazendo com que se constituam "subtempos" dentro da métrica mais geral, ora enfraquecendo-a, ora reforçando-a.
O fluxo criado por esses entrelaçamentos deve ser bem conhecido a fim de que contrastem com o kase, ou quebra do ritmo, que é o que induz o transe e a possessão. O kase é efetuado pelo manman, e pode vir, por exemplo, na forma de uma figura quíntupla (cinco batidas no espaço de um tempo), quebrando um ritmo baseado na tercina (as várias formas em que essas mudanças podem ocorrer são analisadas no capítulo 5). Essa quebra de ritmo é sentida intensamente como uma mudança brusca no fluxo rítmico-sonoro imanente a determinadas fases do ritual, constituindo então uma "deixa" para os iniciados entrarem em transe, preparando-se para a possessão. Ela ganha densidade valorativa se comparada com o efeito que tais substituições de ritmos passam a ter na música ocidental a partir do início do Romantismo, quando são quase sempre lidas como uma espécie de floreio que serve à batida principal, sem produzir mudanças significativas.
Essas descrições apontam para a possibilidade de uma antropologia da música positiva, que integre tanto análises de estrutura e forma musicais com análises de estrutura e forma de outros domínios, como também, e principalmente, que integre esses conjuntos com a forma pela qual os agentes os articulam e recriam continuamente. No entanto, o autor não se detém nesse último aspecto, que remeteria a uma abordagem mais propriamente antropológica do Vodu, e são raras as alusões aos discursos de seus informantes. Assim, não ficamos sabendo muito sobre como os praticantes estão efetivamente pensando, representando ou vivenciando essas práticas rituais.
Quase todas as interpretações de Fleurant sobre o lugar ocupado pelo Vodu na sociedade haitiana podem ser resumidas na formulação "o Vodu como resposta às condições sociais haitianas" (:21). Do seu ponto de vista, esse culto seria um dos meios para contornar a opressão sociopolítica: "é uma filosofia e um modo de vida, que permite formular respostas apropriadas para uma situação historicamente opressiva e debilitada" (:23). O Lwa inspira o fiel, para que este possa empreender as ações apropriadas quando confrontado com as dificuldades. Nesse sentido, as canções do rito Rada seriam um testemunho eloqüente da habilidade do Vodu para apresentar soluções para as condições sociais haitianas. A primeira cerimônia Vodu no Haiti data de 14 de agosto de 1791, pouco antes da revolta geral dos escravos, e denota como ele "sempre foi uma religião de ação, no sentido de que os resultados poderiam ser vistos de maneira tangível e, freqüentemente, em um período relativamente curto" (:21).
Nesse sentido, toda a análise musical da "rítmica" Vodu parece descolada da "função" mais primordial e geral do ritual, que seria a de oferecer uma resposta às terríveis condições socioeconômicas do Haiti. Por que essa forma de resposta e não outra é uma questão que tem como única pista o fato de se tratar de uma religião de origem africana, e, como tal, de evocar um passado digno, aquele dos ancestrais ilustres, os Lwa. Fleurant é tributário dessa concepção: ao introduzir um novo tema ou elemento em sua análise, remete-os invariavelmente para suas supostas origens africanas, tentando localizá-los nessa ou naquela sociedade.
Se as chamadas religiões pan-africanas se explicam, exclusivamente, pela perpetuação das tradições, através de mecanismos de transmissão oral, adaptando elementos da realidade presente, como sugere o autor, é uma questão ainda em aberto. No entanto, saber como os envolvidos as estão vivenciando é, a meu ver, fundamental para uma articulação mais precisa entre esse "legado" africano e suas atualizações alhures.
Revista Mana
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