sexta-feira, 25 de junho de 2010

O Mistério do Samba


Christopher Dunn
Prof. da Tulane University


VIANNA, Hermano. 1995. O Mistério do Samba. Rio de Janeiro: Jorge Zahar/Ed. UFRJ. 196 pp.

Tanto a literatura acadêmica como o próprio imaginário popular tendem a conceber a história do samba como uma descida heróica e quase espontânea, no final da década de 20, do "morro" para a "avenida" – da favela ao espaço privilegiado das camadas médias e da burguesia. No livro O Mistério do Samba, Hermano Vianna narra uma história mais gradual, mediada e, às vezes, contraditória, na qual as elites cultural e política do Brasil, sobretudo do Rio de Janeiro, elevaram o samba ao estatuto de expressão cultural "original e autêntica", mesmo quando as autoridades continuavam a controlar e reprimir os músicos. Segundo Vianna, "a transformação do samba em música nacional não foi um acontecimento repentino, indo da repressão à louvação em menos de uma década, mas o coroamento de uma tradição secular de contatos entre vários grupos sociais na tentativa de inventar a identidade e a cultura popular brasileiras" (:34). Nesse excelente estudo, entendemos melhor o papel dos formuladores de opinião nessa transformação.

A consagração do samba como ritmo nacional acompanha, segundo Vianna, a transformação no modo de pensar a mestiçagem – entendida aqui como fenômeno racial e cultural – durante as primeiras décadas do século XX. Sílvio Romero, por exemplo, valorizava a mestiçagem como garantia de uma identidade cultural original, enquanto a maioria de seus contemporâneos a considerava um impedimento sério ao desenvolvimento nacional. Na década de 20, vários grupos de intelectuais, inclusive os modernistas de São Paulo, celebravam a mestiçagem e as expressões de cultura popular como emblemas de "autenticidade". Mas foi Gilberto Freyre, então um jovem intelectual de Pernambuco, quem mais afirmou a centralidade do negro na formação da cultura brasileira. Com Casa-Grande & Senzala, Freyre substituiu a velha ansiedade sobre os supostos efeitos degenerativos da miscigenação por uma visão celebratória da mestiçagem. As idéias de Freyre, à primeira vista muito avançadas, serviam para minimizar, ou mesmo apagar, qualquer identidade politizada na base da raça ou etnia. Freyre temia "a constituição de um 'Nós' dentro do 'Nós' nacional" (:88). É claro que esta visão também serviu aos interesses do Estado Novo, que promovia oficialmente, no final dos anos 30, uma cultura unificada.

Segundo Vianna, as elites cariocas e paulistas manifestaram, já no começo dos anos 20, um certo fascínio pelas "coisas brasileiras", havendo, portanto, um clima cultural que propiciava a aceitação da mestiçagem como fator definidor da cultura brasileira. Vianna ressalta a história de Pixinguinha e sua banda, Os Oito Batutas, a orquestra mais importante durante a primeira fase do samba moderno. Quando estreou em 1919, o grupo foi recebido inicialmente com desdém por críticos racistas, que ficaram escandalizados ao ver no centro da cidade uma orquestra de negros. Mas, um ano depois, o grupo foi convidado oficialmente a se apresentar para os reis da Bélgica que visitavam o país e, em 1922, a participar das comemorações do centenário da independência. Para Vianna, tais oportunidades para os sambistas sugerem que "a 'sociedade brasileira' já estava preparada para aceitar aquela música mestiça, inclusive para representá-la em cerimônias oficiais" (:116).

Vianna se detém nos laços e afinidades pessoais que ligavam os sambistas cariocas, que estavam desenvolvendo o samba moderno e orquestrado, e membros da elite intelectual brasileira em busca de manifestações culturais consideradas "originais". Um encontro especialmente notável, em 1926, juntou Pixinguinha, Donga e Patrício Teixeira – três sambistas do grupo Os Oito Batutas – com Gilberto Freyre, Prudente de Morais Neto, Sérgio Buarque de Hollanda e Heitor Villa-Lobos, para uma grande "noitada de violão". Para Vianna, este encontro entre intelectuais e artistas eruditos de famílias brancas e ricas e músicos negros ou mestiços pobres "pode servir como alegoria, no sentido carnavalesco da palavra, da 'invenção da tradição', aquela do Brasil Mestiço, onde a música samba ocupa lugar de destaque como elemento definidor da nacionalidade" (:20). Logo depois, Freyre escreveu um artigo para o Diário de Pernambuco, notando que já havia no Rio "um movimento de valorização do negro". Referiu-se, então, à noitada de samba como sinal de um Brasil real emergente que havia sido encoberto "pelo Brasil oficial e postiço" (:27).

Outros fatores, além da convergência entre intelectuais e músicos, contribuíram para o sucesso nacional do samba. Vianna examina, por exemplo, a importância da implantação e expansão dos meios de comunicação de massa no final dos anos 20. Esse processo, que teve avanços significativos durante os anos 30, consolidou a posição destacada do Rio de Janeiro como a capital cultural do Rio. Por vezes, Vianna exagera a hegemonia cultural do Rio, como, por exemplo, quando afirma que "o carnaval do Rio, exportado para o resto do Brasil (existem escolas de samba em Manaus e em Porto Alegre) serviu de padrão de homogeneização para o carnaval de todo o país" (:124). Ora, existem escolas de samba em Salvador também, mas nem por isso podemos dizer que o carnaval baiano tenha adotado um padrão carioca. É verdade que o Rio serviu de palco para a nacionalização do samba, mas tanto Salvador como Recife tiveram ritmos e danças distintos (ijexá e maracatu), e estes sempre mantiveram posições de destaque nessas cidades.

O cerne do argumento de Vianna é que "a invenção do samba como música nacional foi um processo que envolveu muitos grupos sociais diferentes" (:151). Assim, podemos entender o samba dentro de um campo de produção cultural que depende, em parte, dos críticos, defensores e outros agentes culturais para gerar os valores e significados dessa música. Vianna poderia ter reforçado seu argumento com uma discussão mais abrangente desse campo. Onde localizar, por exemplo, a posição dos compositores e músicos do samba? Além da discussão sobre a trajetória dos Oito Batutas e alguns comentários sobre o bloco Deixa Falar (que se transformou, em 1928, na primeira escola de samba, a Estácio), o autor praticamente ignora alguns dos mais importantes sambistas da época, como Paulo da Portela, Cartola, Carlos Cachaça e Armando Marçal.

Seguindo as linhas de Néstor Garcia Canclini, Vianna pretende mostrar o caráter "híbrido" da cultura popular, levando em conta sua interação com a cultura erudita, mas não nos mostra como os sambistas negociavam essa relação. Como deixar de mencionar, por exemplo, o primeiro samba-enredo, Homenagem (composto por Carlos Cachaça para o carnaval de 1934), que procura justamente lançar uma ponte entre os "imortais que glorificaram nossa poesia" (Olavo Bilac, Castro Alves e Gonçalves Dias) e "os pequenos poetas que vivem cantando na verde colina"? Aliás, a ausência quase completa de letras de sambas populares da época, que muitas vezes revelam como os compositores pensaram a transformação do samba, é uma lacuna do livro.

Paulo da Portela destacava-se como um sambista especialmente hábil em lidar com as autoridades e em promover sua própria imagem de "mediador transcultural" (para usar um termo caro a Vianna) entre os subúrbios pobres, a sociedade burguesa, a imprensa carioca e as autoridades municipais. Em 1937, depois de meses de uma "campanha" informal, Paulo foi eleito "Cidadão- Samba" pelo jornal A Rua. Falta em O Mistério do Samba uma análise mais detalhada da atuação tática dos compositores e músicos e não só da de seus defensores na elite intelectual. Para usar os termos de Bourdieu, quais eram as "tomadas-de-posição" dos próprios sambistas dentro desse "campo de luta" para a hegemonia cultural? Como contribuíram para mudar o eixo do debate sobre a "brasilidade"?

Outro aspecto que mereceria mais atenção é a história institucional do samba. A partir de 1934, a União de Escolas de Samba promovia os interesses dos sambistas e defendia seus direitos autorais. No mesmo ano, o governo municipal começou a patrocinar as escolas de samba através do Departamento de Turismo. Além disso, os jornais davam cada vez mais cobertura para as escolas de samba, organizavam concursos, entregavam prêmios etc. Ao escrever que "as relações de diversos grupos nunca se institucionalizaram" (:151), Vianna subestima a rede de relações que ligava a União, as diversas escolas, a imprensa e o governo, o que permitiria traçar alguns distinções dentro do campo do samba, gênero que nunca foi homogêneo. Mesmo que o samba tivesse sido consagrado como música nacional nos anos 20 e 30, só o estilizado e orquestrado samba-canção foi amplamente gravado e divulgado no rádio. Cartola e Carlos Cachaça, da Mangueira, compuseram muitos sucessos de rádio, gravados por Francisco Alves, Mário Reis, Carmen Miranda, Araci de Almeida e outros. No entanto, esses compositores não tiveram oportunidade, na época, de gravar suas próprias músicas. Isto só veio a acontecer muito mais tarde. O samba encarnava o "Brasil Mestiço" de Freyre, mas foram geralmente os intérpretes brancos de classe média quem mais se beneficiaram da sua consagração como música nacional. Isto não significa dizer que existiria um samba primordial e "autêntico" dos negros, apropriado e deturpado por brancos e pela indústria cultural. Vianna está certo quando escreve que "o 'autêntico' nasce do 'impuro'" e que compositores e intérpretes brancos, como Noel Rosa, participaram na definição do samba tido como "autêntico". Assinalo, porém, que o "mistério do samba" – sua migração gradual da periferia para o centro da cultura nacional – envolveu um processo mais abrangente de privilégio e seleção, que teve, mesmo quando sutil, significados raciais.

Voltemos a Gilberto Freyre e o ideal do "Brasil Mestiço". Vianna conclui: "o discurso da homogeneidade mestiça criado no Brasil através de um longo processo de negociação, que atinge seu clímax nos anos trinta, tornou 'atos decisivos' possíveis e aceitos [...], inventando uma nova maneira de lidar com os problemas da heterogeneidade étnica e do confronto erudito/popular" (:154). Reconhece que esse "estilo" de "imaginar" a nação talvez já tenha se tornado anacrônico em um mundo capitalista fragmentário e multicultural. Por vezes, Vianna parece olhar para esse mundo com ansiedade ("existe ainda a possibilidade de um 'nós' brasileiro"?) ou mesmo com nostalgia do passado ("um dia nós descobrimos, com Gilberto Freyre, o orgulho de viver num país moreno, onde tudo é misturado") (:157). O estudo conclui, contudo, reconhecendo as "perigosas pretensões universalistas" e o "efeito paradoxal/ perverso" do projeto freyreano. Estas meditações finais talvez tivessem servido melhor como ponto de partida.

Revista MANA

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