quarta-feira, 30 de junho de 2010

Dislocating Cultures: Identities, Traditions, and Third World Feminism


NARAYAN, Uma. 1997. Dislocating Cultures: Identities, Traditions, and Third World Feminism. New York/London: Routledge. 226 pp.


João Feres Jr.
Doutorando em Ciência Política, City University of New York

Dislocating Cultures é uma das contribuições mais provocantes e criativas que apareceram no cenário acadêmico americano dos últimos anos. A abordagem escolhida por Narayan abre um leque de possibilidades interdisciplinares, sacudindo as fronteiras que separam os círculos acadêmicos. O espaço epistêmico ocupado pela obra tem importantes interseções com teoria feminista, estudos de gênero, antropologia, estudos da cultura, ciência política, história, epistemologia das ciências sociais e estudos do colonialismo. O livro é um estudo cuidadoso da construção do papel da mulher em uma sociedade pós-colonial, a Índia. Sua principal virtude é o desvendamento das múltiplas conexões que ligam a cultura à política através do período histórico que vai do colonialismo inglês do século XIX à Índia contemporânea.

O livro é composto por cinco capítulos/ensaios sobre temas relacionados. O primeiro capítulo introduz o problema do feminismo em países do Terceiro Mundo. Narayan define-se como uma feminista do Terceiro Mundo, mas imediatamente faz questão de esclarecer que assume essa "identidade" com a única finalidade de explicitar sua "localização", e não de assumir um conjunto fixo de valores e saberes da "cultura" à qual pertence. Ao se localizar, a autora define o campo de forças daquilo que é o problema principal do capítulo: a viabilidade de um pensamento e uma ação feministas em um contexto terceiromundista. Dois pólos de resistência à implantação desse projeto imediatamente se revelam: por um lado, feministas dos países do Primeiro Mundo que têm, muitas vezes, uma atitude de suspeição em relação às suas colegas de outros países; por outro, grupos locais que têm interesse na conservação de práticas discriminatórias identificadas com a "tradição cultural".

As feministas dos países desenvolvidos não raro aceitam acriticamente as distorções do olhar primeiromundista sobre o outro. Essas distorções levam ocidentais, inclusive muitas feministas, a verem outras culturas como totalidades estáticas e organicamente coerentes. A conseqüência mais comum dessa postura é a de culpar o todo da cultura por práticas consideradas indesejáveis. Segundo a analogia organicista, o mau funcionamento de uma parte só pode ser causa, ou consequência, de um corpo doente. Outra variante desse raciocínio enxerga a postura crítica e mudancista do feminismo do Terceiro Mundo como uma forma de traição à integridade da "cultura". Em uma versão mais esquerdista dessa crítica, as atividades de protesto feminista naqueles contextos são vistas como uma forma de aburguesamento ocidentalizante. Relembrando Edward Said, Narayan mostra que por trás dessas críticas está a noção imperialista de que o Ocidente é dinâmico e plural, enquanto sociedades do "resto" do mundo estão aprisionadas por culturas tradicionais imorredouras. De acordo com esse preconceito, o feminismo, por lutar pela mudança dos hábitos e valores, só cabe no Ocidente. Seguindo este raciocínio, em contextos terceiromundistas o feminismo só pode ser visto como um produto importado do Ocidente, exótico e mal adaptado, uma forma de desestabilizar os valores da "tradição" local. A resposta de Narayan desenvolve-se através dos capítulos do livro, mostrando que, ao contrário do preconceito ocidental, a sociedade indiana é repleta de valores e interesses conflitantes, e em constante transformação histórica.

Narayan começa o Capítulo 2 usando o livro Gyn/Ecology de Mary Daly (1978) como exemplo dos preconceitos contidos na atitude feminista primeiromundista. Nessa obra, Daly discute o Sati – imolação ritual da viúva no funeral do marido. Narayan argumenta que a descrição apresentada por Daly é de fato uma descaracterização do Sati, que retira essa prática de seu contexto social e histórico para conferir a ela um lugar fixo na "cultura indiana". A autora mostra que o Sati foi praticado no passado em apenas algumas regiões da Índia; novas ocorrências são extremamente raras e restritas exclusivamente àquelas regiões. Daly, contudo, dá a entender que o Sati é uma prática corrente que ameaça a vida de grande parte das mulheres indianas ainda hoje. Narayan acusa Daly de desprezar a história do Sati e seu papel na sociedade indiana do passado e do presente. Isso é conseqüência de uma postura colonialista, pois nega que a sociedade em questão tenha uma história, e, portanto, esteja sujeita à transformação.

Narayan não se limita a dizer o que não deve ser feito, e, logo após apontar as falhas no texto de Daly, apresenta sua própria interpretação sobre o fenômeno do Sati. Segundo a autora, a incorporação do Sati à "tradição" indiana deve ser entendida como um produto da relação colonial entre nacionalistas indianos e colonizadores ingleses. Os vários grupos nacionalistas da Índia colonial buscaram forjar uma "cultura nacional" que fosse capaz de unificar os povos do subcontinente em torno da luta pela independência política. Nesse processo, muitos usos regionais e ancestrais, como é o caso do Sati, adquiriram a aparência de características tradicionais da cultura nacional indiana. A incorporação do Sati à "tradição", porém, sempre foi uma questão de disputa entre grupos conservadores patriarcalistas – que viam na prática mais um instrumento de dominação das mulheres – e grupos nacionalistas progressistas, que rejeitavam totalmente esse uso. Os ingleses também se interessaram pela nacionalização e tradicionalização do Sati, pois tal prática acentuava o caráter bárbaro e incivilizado dos indianos, e, portanto, ajudava a justificar o colonialismo.

Segundo Narayan, o Sati praticamente desapareceu depois da Independência indiana. Ela então examina duas raras ocorrências recentes e mostra que, em ambos os casos, a morte ritual da esposa não foi produto do funcionamento orgânico de uma sociedade tradicional. Pelo contrário, o que ocorreu foi a manipulação da idéia do Sati como tradição pelas autoridades locais e pela família do marido, com fins políticos e pecuniários.

O terceiro ensaio finaliza a trilogia de capítulos que constitui, de fato, a parte principal do livro. Narayan examina as interpretações correntes na literatura ocidental de língua inglesa sobre a prática indiana do assassinato por dote para demonstrar quão preconceituosas e prenhes de noções colonialistas elas são. Nesse mesmo capítulo a autora faz uma comparação entre os níveis de violência doméstica nos EUA e na Índia e chega à "surpreendente" descoberta de que eles se equivalem. Para tanto, Narayan desconstrói o método quantitativo empregado pelas ciências sociais, acabando por desvelar a arbitrariedade das categorias empregadas pela literatura acadêmica e a maneira como a escolha dessas categorias influencia o resultado da pesquisa. Segundo a autora, o intelectual ocidental tende a enfatizar a diferença e menosprezar as características das sociedades do Terceiro Mundo que são comuns às dos "países desenvolvidos". Uma conseqüência dessa distorção é a escolha de variáveis de análise que super-representam os aspectos "exóticos" daquelas sociedades.

O quarto capítulo é uma reflexão sobre os diferentes papéis desempenhados por intelectuais do Terceiro Mundo no contexto acadêmico do Primeiro Mundo. Baseando-se em parte na sua trajetória de vida, Narayan inicia uma importante reflexão sobre a antropologia e os estudos da cultura no Ocidente, e a maneira como indivíduos de "fora" são tratados por profissionais dessas disciplinas. Sem cair na solução irreal do abandono de qualquer rotulação, a autora propõe uma tática de apresentação na qual o indivíduo de "fora" se utiliza dos próprios preconceitos contidos no olhar do outro para descontruir esses preconceitos e infundir uma perspectiva crítica ao encontro.

O último capítulo do livro leva o nome de "Comendo Culturas" ("Eating Cultures") e funciona, de fato, como uma sobremesa ao fim de uma lauta refeição. Narayan começa o capítulo com a revelação, surpreendente para muitos, de que o tempero curry – um produto internacionalmente reconhecido como genuinamente indiano –, é de fato uma criação colonial inglesa. Os indianos de verdade comem massalas, que são combinações variadas de temperos que mudam de acordo com o prato e a região onde ele é preparado. Os ingleses foram os responsáveis por transformar um massala qualquer em um produto industrial, ao qual deram o nome de curry. A autora mostra que na Índia a comida assumiu um importante papel político e cultural. Muitos nacionalistas indianos usaram a culinária como fator de aglutinação cultural e orgulho perante a incipiente culinária inglesa. A comida, porém, pode ser também fator de geração de preconceitos e divisão interna em um país com tantas culturas, línguas e hábitos alimentares: muçulmanos comedores de carne bovina, hindus vegetarianos do sul, indianos carnívoros do norte etc.

Narayan nasceu e passou sua infância na Índia, estudou na Inglaterra, e, mais tarde, mudou-se para os EUA para prosseguir em sua carreira acadêmica. Ao longo de sua vida, a autora conta ter sido exposta a um sem-número de encontros nos quais foi chamada a assumir uma identidade que lhe era desconfortável. O descompasso entre a visão do outro sobre o sujeito e a auto-imagem desse sujeito tem sido um assunto recorrente na filosofia e nas ciências sociais. Essa questão encontra-se na Fenomenologia do Espírito, de Hegel, no Segundo Sexo, de Simone de Beauvoir e também no livro de Narayan, Dislocating Cultures. Em sua ânsia de responder a essa questão, a autora acaba por abusar do conceito de "Terceiro Mundo", dando a entender que todas as sociedades que não pertencem ao Primeiro Mundo têm alguma coisa essencial em comum, que não o simples fato de não pertencerem a ele. Conseqüentemente, Narayan acaba tomando coisas que são particulares a seu objeto, a Índia, como características gerais do tal "Terceiro Mundo". Essa atitude é, em parte, um produto das demandas da academia americana, na qual conceitos pseudodescritivos e generalizantes como "Terceiro Mundo", "América Latina", "raça", "etnia" etc. ainda se encontram em pleno uso. Isso porém não cancela as virtudes desse livro. Nele, Nara yan apresenta um potente argumento em prol do movimento feminista e da liberação da mulher indiana e, através de uma prosa fluida e expressiva, demonstra que questões culturais estão inevitavelmente ligadas à política.

Revista Mana

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