domingo, 30 de maio de 2010

Italianidade no Brasil Meridional

Identidade étnica no Brasil Meridional

Lucy Maffei Hutter
Docente / IEB-USP (área de História)



ZANINI, Maria Catarina Chitolina. Italianidade no Brasil Meridional: a construção da identidade étnica na região de Santa Maria – RS. Santa Maria (RS): Ed. da UFSM, 2006.

"Italianidade no Brasil Meridional" é um amplo estudo – do ponto de vista antropológico – sobre os descendentes dos italianos de Santa Maria e Silveira Martins, região esta que integrava a extensa área de colonização que se deu no Rio Grande do Sul nos finais do século XIX e princípios do XX.

Dentro dessa visão antropológica a autora considera a italianidade "como uma construção, na qual a veracidade ou autenticidade dos símbolos diacríticos usados para se auto-referirem não é fundamentalmente relevante". No contexto foi observado como os descendentes dos italianos "apropriam-se de determinados símbolos como seus e lhes atribuem valor e significação".

A obra – prefaciada por João Baptista Borges Pereira – enfoca o que os descendentes mantêm, ainda, de toda a vivência que herdaram dos italianos, seus antepassados.

Sendo dividida em quatro capítulos, o primeiro analisa como é vista, pelos descendentes dos imigrantes, a travessia do oceano realizada pelos ascendentes que, contada e recontada através das gerações, tornou-se uma referência de valores de personalidade que, em princípio, deveriam ser mantidos ainda hoje. A parte introdutória do capítulo dá uma visão da Itália, então recém-unificada, bem como do Brasil, na época.

A narrativa do imigrante sobre a chegada no Brasil, por vezes meio fantasiada, passada de geração em geração, serve, ainda hoje, como demonstra a autora, para justificar certas ações dos antepassados. Uma descendente explicava a escolha do lote no morro, por parte de seus ascendentes, devido ao medo destes frente ao mar, durante a travessia do oceano. Abrigando-se no morro "sabiam que seria quase impossível a água atingir tamanha altura".

Em outro capítulo o enfoque se volta para a proveniência dos imigrantes e o difícil início, adaptação e vivência nos lotes de terra dos núcleos coloniais nos quais acabavam se estabelecendo. Quanto ao trabalho insano até que conseguissem obter recursos da lavoura, passaram os imigrantes, para as gerações que se seguiram, a idéia de que o colono italiano "soffre e lavora con quella tenacitá che é peculiare alla nostra stirpe".

Com relação aos que venceram, a autora destaca a construção do mito do herói, o qual foi, também, passado de geração em geração.

Já aqueles que não conseguiram melhorar a condição econômica eram vistos, entre os conterrâneos, como pessoas com "pouca vontade de trabalhar", como até hoje são designados pelos descendentes.

A religiosidade do italiano – analisada também em outras obras – é relembrada como elemento de importância na adaptação dos peninsulares quando de sua chegada ao Brasil.

No terceiro capítulo a autora analisa a repressão sofrida pelos italianos e descendentes na região de Santa Maria e Silveira Martins, durante a vigência do Estado Novo, que abrangeu, também, a língua por eles falada e as escolas ali mantidas.

A obrigatoriedade do ensino em português fez com que as crianças tivessem de, simultaneamente, aprender as matérias e a língua portuguesa, na época, não dominada por muitos deles.

Aqueles que não falavam o português tornaram-se menos sociáveis temendo a repressão ou, até mesmo, serem considerados traidores da pátria, em se tratando do Brasil.

A repressão deu-se com maior intensidade nos centros urbanos, onde sobreveio tanto o fechamento da Sociedade de Mútuo Socorro, italiana, como saques em estabelecimentos comerciais, quer de peninsulares, quer de alemães.

Na obra em questão é, também, analisada a atuação do jornal local A Razão. Adepto da política nacionalizadora do governo Vargas, considerava mesmo os descendentes de italianos e de alemães membros "perigosos", amigos do Eixo e com possibilidade de atuação favorável ao país de origem.

Com a repressão, os italianos e descendentes foram se adaptando mais aos costumes considerados nacionais. Só voltaram a valorizar a sua origem italiana, e o que herdaram dos hábitos dos antepassados, com a comemoração dos cem anos do início da colonização italiana no Rio Grande do Sul, em 1975.

É dado enfoque à questão da "italianidade" e de que modo, atualmente, os descendentes daqueles provenientes das diferentes regiões da Itália a vêem e/ou a transmitem às outras gerações; e como, com o passar dos anos, costumes brasileiros foram sendo reavaliados e introduzidos entre eles, evidenciando o chimarrão.

A culinária, por sua vez, já se encontra um pouco modificada devido às alterações e adaptações sofridas, no decorrer do tempo.

Nesse estudo, embora a autora tenha por objetivo analisar "a construção da italianidade entre os descendentes" constata que os mais jovens "descendentes de italianos de Santa Maria e Silveira Martins se sentem, além de brasileiros, gaúchos". Isso não surpreende, visto que os descendentes já se encontram na quinta geração e tendo a facilidade de transporte de um local ao outro, de estudo em outras cidades e, principalmente, com acesso à comunicação de massa, o entrosamento com os nacionais e pessoas de outras origens é muito mais rápido. Assim, os costumes dos antepassados vão ficando cada vez mais distantes no dia a dia do indivíduo, sobrevivendo mais como interesse de dupla cidadania ou mesmo visando a atração turística.

Analisando a zona rural e a urbana, a autora aborda a questão da diferenciação que ainda persiste entre os provenientes de uma e outra região da Itália e mesmo aquela existente entre os descendentes que foram para a zona urbana e lá se estabeleceram e os que continuaram na zona rural.

O estudo se detém, sobretudo, na busca das origens, por parte dos descendentes dos italianos que se radicaram na região de Santa Maria e Silveira Martins, no Rio Grande do Sul. A história da família é reconstruída e, por vezes, reinventada de acordo com a imaginação de cada membro do núcleo familiar.

Anexos se encontram questionários que serviram de base para as entrevistas realizadas pela autora. Um deles é dirigido aos estudantes do ensino fundamental e médio de Silveira Martins. Neste tem-se a impressão de que a primeira questão é um tanto forçada, premeditando um tipo X de resposta.

Consta também – além do "Roteiro orientador das entrevistas" – o "Roteiro da pesquisa referente à novela Terra nostra". Neste caso, não se pode esquecer que se trata de uma ficção e, como tal, o autor pode dar asas à imaginação, não tendo o tema, obrigatoriamente, de condizer com a realidade.

A obra em questão Italianidade no Brasil Meridional é, não obstante, um estudo antropológico de peso sobre os descendentes dos italianos na região de Santa Maria e Silveira Martins, no Rio Grande do Sul e, tratando-se de uma excelente contribuição temática merece, sem dúvida, a atenção dos estudiosos da imigração italiana no Brasil.

Revista do Instituto de Estudos Brasileiros - USP

Vira e mexe nacionalismo: paradoxos do nacionalismo literário


Vira e mexe nacionalismo

Álvaro Silveira Faleiros
Professor do Departamento de Letras Modernas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo


PERRONE-MOISÉS, Leyla. Vira e mexe nacionalismo: paradoxos do nacionalismo literário. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

Ao colocar como subtítulo de sua mais nova e iluminadora coletânea de textos, os "paradoxos do nacionalismo literário", Leyla Perrone-Moisés define com clareza o fio que guia sua reflexão ao longo dos quatorze artigos que compõem o livro. Refletir sobre as tensões que permeiam a idéia de nação, assim como os conceitos de cultura, identidade, alteridade e colonialismo que lhe são correlatos, por meio da literatura, justifica-se, para a autora, pelo fato de que "as obras literárias esclarecem, tanto ou mais do que os discursos políticos, como são construídos os conceitos de nação e de identidade nacional".

Leyla Perrone-Moisés, mais do que refazer a história desses conceitos, trata de alguns dos paradoxos característicos da identidade nacional na América Latina e no Brasil e de como são problematizados sobretudo em obras literárias de autores ibero-americanos. No primeiro artigo, "A cultura latino-americana, entre a globalização e folclore", ela atenta para o fato de que a vontade de construção de uma identidade latino-americana pode levar a enganos, como o nacionalismo exacerbado, o populismo e o que chama de espontaneísmo. O nacionalismo exacerbado equivoca-se, pois reduz a cultura a uma suposta origem, o que limitaria a cultura latino-americana às culturas indígenas ou às heranças africanas. O populismo, por sua vez, é de natureza paternalista e, ao cultuar o folclore, impede as culturas de inovar e as camadas populares de receber informações mais complexas; as manifestações culturais só são, nesse caso, apreendidas no que têm de pitoresco e exótico. O espontaneísmo é também um discurso redutor, pois, em nome da espontaneidade, da alegria e da afetividade - características imputadas à parte sul do continente -, recusa-se o experimentalismo e o rigor artístico latino-americano. Todas essas concepções estão, de alguma forma, vinculadas à relação "filial, edipiana, com a Europa", de onde provém, inclusive, a própria noção de nacionalismo.

Como já havia indicado desde 1982, em seu artigo "Literatura comparada, intertextualidade e antropofagia", Leyla Perrone-Moisés sublinha mais uma vez a capacidade criativa e própria de se tratar com o paradoxo da herança européia, de autores como Jorge Luís Borges e sua concepção de patrimônio universal latino-americano, como José Lezama Lima e seu conceito de "protoplasma incorporativo", ou ainda como Oswald de Andrade e sua antropofagia cultural. Essas formas de "receptividade crítica e criadora" apontam para a necessidade e a existência de um discurso crítico latino-americano para o qual constantemente contribui. Ela comenta ainda que, "num mundo globalizado, essa capacidade de incorporação, e sobretudo de prefiguração, é um modelo que podemos oferecer às outras culturas".

A "prefiguração" é também central para se compreender como opera criticamente Leyla Perrone-Moisés. Em "Castro Alves e o aplicativo Victor Hugo", ao estabelecer relações entre os autores, ela desenvolve a noção de confluência. Além da influência e da aclimatação de Victor Hugo por Castro Alves, o poeta brasileiro "às vezes prefigura os procedimentos hugoanos" (grifo da autora), ou seja, há semelhanças entre os autores, coincidências que "não tem anterioridade temporal como prova".

Esse fenômeno de prefiguração, que chama de confluência, é um dos modos como Leyla Perrone-Moisés pensa a intertextualidade: um modo de reinterpretar, renovar, mediar. Assim, rompe-se com a lógica da influência, como na análise que ela faz em "Lautréamont e as margens americanas". Neste artigo, a autora aponta a dupla origem cultural de Isidore Ducasse e de como ela foi, primeiramente, negligenciada e, em seguida, exotizada por estudiosos. Foi seu trabalho desenvolvido com o crítico uruguaio Emir Rodríguez Monegal, publicado a partir de 1983, que evidenciou as marcas do bilingüismo e do bicultualismo nos Cantos de Maldoror, que vão desde a influência do barroco espanhol até os hispanismos que introduziu no léxico e na sintaxe de seus textos escritos em francês. Os efeitos literários dessas incorreções seriam, em parte, responsáveis por expressões originais cunhadas por Lautréamont; o que faria de seu handicap uma "vantagem estética". Leyla Perrone-Moisés propõem, pois, pensar-se a relação entre a dupla cultura, hispano-americana e européia, de Lautréamont numa lógica avessa à influência.

A desestabilização da relação filial entre velho e novo mundo, produzida por Perrone-Moisés, dialoga com o conceito de "imagem dialética" de Walter Benjamin. Conceito que ela atualiza num dos mais brilhantes e reveladores artigos do livro, intitulado "Passagens: Isidore Ducasse, Walter Benjamin e Júlio Cortázar". A autora parte do conto "El outro cielo" de Cortázar, no qual a personagem se desloca no tempo e no espaço, indo de uma rua de luxo coberta (chamada à época de "passagem") da Buenos Aires dos anos 1940 para uma outra "passagem", em Paris, nos últimos dias do Segundo Império (1870), e estabelece uma relação deste conto com o Livro das passagens de Walter Benjamin, recentemente traduzido no Brasil.

Tendo como ponto de partida justamente as passagens parisienses, Benjamin desenvolve, nesse livro, um "novo método dialético da historiografia" que consiste em "atravessar o passado com a intensidade de um sonho, a fim de experimentar o presente como o mundo da vigília, ao qual o sonho se refere". Isto pressupõe seu novo conceito de "imagem dialética", que consiste, por sua vez, em lançar sobre o passado um olhar, tendo, como contraponto, o futuro daquele passado. Assim, seria possível compreender o presente "à luz daquilo que se anunciava (e se preparava) no ventre do passado".

Perrone-Moisés vê, no conto de Cortázar, a realização mais completa da imagem dialética de Benjamin. Nele, as imagens são duplicadas e, se por um lado, anulam a idéia de progresso, por outro, não reduzem o gesto do futuro à mera repetição do passado. Dessa maneira, ao atualizar o passado, o presente (futuro do passado) se constitui dialeticamente como síntese, realiza-se como um momento novo e inesperado. A autora destaca ainda que o maior interesse das imagens dialéticas para a literatura é o fato de que Benjamin declara que as mesmas se encontram na linguagem; nas suas palavras: "só as imagens dialéticas são imagens autênticas (isto é, não arcaicas); e o lugar onde as encontramos é a linguagem".

Em seguida, a autora identifica a personagem do conto de Cortázar a Isidore Ducasse e retoma sua reflexão sobre o modo como Lautréamont produz imagens dialéticas da colonização atualizando, por exemplo, o passado barroco e Homero como invenção. Em sua conclusão, lança luz sobre o papel vital das imagens no processo de construção do saber, como revelação. Ela aponta, também, para a "função organizadora" da obra literária sem, contudo, perder de vista que a força revolucionária da literatura está não em introduzir conteúdo revolucionário numa obra, mas, sim, em desenvolver formas literárias com potencial revolucionário, como é o caso de Cortázar.

Situar com mais clareza a natureza específica do objeto literário por meio do conceito de imagem (imagens dialéticas, prefiguração) permite a Leyla Perrone-Moisés apontar alguns caminhos profícuos para uma crítica literária capaz de lidar com a complexidade e o caráter híbrido da literatura pós-colonial. O conceito de imagem serve também para uma melhor compreensão de alguns dos "Paradoxos do nacionalismo literário na América Latina", como se pode notar no artigo assim intitulado.

Nele, a autora parte do princípio de que "a nação é um conjunto de imagens" e identifica uma série de metáforas sobre a América, surgidas logo após o Descobrimento, como a oposição entre a "velha Europa" e a "nova América" ou, ainda, "a tópica do americanismo como desterro" - discurso que vai dos primeiros letrados até Jorge Luís Borges e Sérgio Buarque de Holanda. Em seguida, outras metáforas ganham força, derivadas da primeira, como as oposições entre civilização e barbárie, aldeia e mundo, centro e periferia; sempre numa atitude depreciativa em relação à América. Essas tentativas de definição, como o nacionalismo, desembocaram em paradoxos, devido à inevitável origem européia tanto das línguas como da idéia mesmo de nação. Uma vez mais, Perrone-Moisés aponta, como superação, as propostas inclusivas de autores como Oswald de Andrade, Borges, Octavio Paz e Sábato.

Em outros artigos, acrescenta à lista Machado de Assis e Mário de Andrade. Retomando Gilberto Pinheiro Passos, nota, no primeiro, a presença de uma "poética diplomática" por meio da qual Machado lida ironicamente com a questão da nacionalidade, deixando-a em aberto, "porque esta é reconhecida como uma representação imaginária". Mário de Andrade, por sua vez, é considerado pela autora como aquele que criou, no modernismo, "a obra máxima dedicada a essa questão [o nacionalismo]; diferentemente de Oswald, que ela define como autor da astuciosa e sugestiva metáfora antropofágica, mesmo se "não foi um pensador consistente". Leyla Perrone-Moisés assinala o uso do termo "entidade"ao invés de "identidade" por Mário de Andrade, evitando o essencialismo e a busca de uma origem que este último termo pressupõe. Mário trata, assim, do sujeito de cultura como um sujeito sempre em formação e em devir.

Dessa maneira, a autora coloca a discussão da formação das nações e de suas literaturas em relação a sua dimensão simbólica, por meio das metáforas. Não se trata, pois, de "fazer coincidir a autonomia literária com a autonomia política da nação", mas de compreender os paradoxos da literatura ibero-americana em função das imagens que cria de si mesma. O modo como se constituem as figurações preparam e anunciam prefigurações. As imagens constituídas, porém, não se estabilizam, mas estão em formação e são sempre negociadas.

Sua atitude reflexiva, contrária a qualquer dogmatismo e essencialismo, a leva, em dois outros artigos, a discutir os rumos dos estudos culturais e pós-coloniais. Em um deles, procura "desconstruir os estudos pós-coloniais", mostrando como desvirtuam o pensamento derridiano ao tratar de forma essencialista as questões referentes à mulher, à raça e à periferia. Perrone-Moisés lembra que Derrida não trabalha com oposições e sim com des centram ento, que para o filósofo francês não se trata de opor as margens ao centro, pois "as margens não tem centro único". Isso não significa que ele seja um relativista, uma vez que sua relação com a tradição - acrescenta a autora - é complexa e que é a partir de um profundo conhecimento dela que ele almeja desconstruí-la. A autora assinala a presença de aporias no pensamento derridiano e destaca o fato de a desconstrução ser uma prática filosófica e acadêmica, não política. Ela não visa, contudo, apontar possíveis limites e contradições desse pensamento identificados, por exemplo, por autores como Richard Freadman e Seumas Miller (RE-pensando a teoria, Unesp, 1994), para os quais o construtivismo lingüístico pós-saussureano de Derrida é, em grande medida, anti-humanista.

Em outro artigo, ela apresenta justamente o pensamento de Edward Said, que define como "um intelectual fora de lugar", chamando-o, em tom elogioso, de "humanista". Segundo a autora, Said, em Orientalismo (1979), antecipou os estudos culturais norte-americanos e os estudos pós-coloniais, mas, diferentemente da "impostação freqüentemente raivosa, simplificadora e demagógica de boa parte da produção teórico-crítica pós-colonial subseqüente", Said não adota atitude arrogante e procura "encarar os problemas de vários ângulos". Sua postura, com efeito, se aproxima daquela adotada por Leyla Perrone-Moisés, pois ambos recusam "tanto o determinismo historicista quanto 'a despreocupação etérea da crítica pós-axiológica' da chamada pós-modernidade" e, se lidam com os condicionamentos históricos e geográficos da obra literária, é sempre por meio da avaliação estética e da singularidade desta com as imagens que produz.

Enfim, essa breve resenha é mera introdução, pois nenhuma síntese será capaz de reproduzir a riqueza das análises contidas nesses quatorze brilhantes artigos, dos quais apenas comentamos alguns. Por isso, é imprescindível lê-la para entender, de fato, o alcance de suas reflexões.

Revista do Instituto de Estudos Brasileiros - USP

Lugar do mito: narrativa e processo social nas Primeiras estórias de Guimarães Rosa


A matéria histórica interroga a forma mítica

Danielle Corpas
Professora visitante no Departamento de Ciência da Literatura da Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro


PACHECO, Ana Paula. Lugar do mito: narrativa e processo social nas Primeiras estórias de Guimarães Rosa. São Paulo: Nankin, 2006

Num artigo publicado em 2001, Ana Paula Pacheco assinalou o seguinte problema na recepção de Guimarães Rosa: "o perigo da regressão mítica de cunho conservador ronda a obra rosiana cada vez que nela a representação do atraso não parece a alguns viga de nossa modernização, e sim remanescente arcaico, mito nacionalista a frisar positivamente o que é defasagem"1. Esse perigo, ela contornou muito bem em Lugar do mito: narrativa e processo social nas Primeiras estórias de Guimarães Rosa. Em perspectiva rigorosamente materialista, o exercício crítico aí passa ao largo de qualquer tipo de apologia idealista da amplitude simbólica ou alegórica das narrativas, do elogio inócuo à habilidade do escritor em incorporar ao seu mundo-sertão signos de ressonância metafísica ou mitológica. Pelo contrário, a dimensão mítica é percebida como componente de um problema formal no qual se cristalizam impasses da história. O trabalho põe em discussão os "dilemas da representação" presentes em cada narrativa e na arquitetura de Primeiras estórias (1962), onde se imbricam a propensão rosiana para o transcendente e as contradições da modernização conservadora à brasileira. Refletir sobre o tratamento mítico da história do país na composição literária é um desafio que vem sendo encarado por uma leva de bons escritos sobre Rosa desde meados da década de 1990. Essa recepção está redimensionando a importância de sua prosa, tirando-a da posição de "grande obra" celebrada incondicionalmente para valorizá-la como feito estético capaz de se haver com a representação de problemas pungentes da experiência brasileira. Talvez esse movimento no tabuleiro crítico seja mais perceptível quando se trata do divisor de águas que é Grande sertão: veredas - em meio a tantas leituras em disputa sobre a obra-prima, aquelas cujo foco mantém um olho na forma singular do romance e outro no histórico da formação do Brasil moderno vêm conquistando mais espaço na pauta dos debates. Lugar do mito cobre uma lacuna nessa fortuna crítica recente, até então desprovida de uma reflexão abrangente que lançasse luz sobre a vinculação e a tensão entre mito e matéria histórica no livro publicado em 1962.



Molduras, tonalidades e pontos de vista

Postos lado a lado em Lugar do mito, os dois extremos de Primeiras estórias ("As margens da alegria" e "Os cimos") delineiam a moldura temporal que situa o volume: a arrancada modernizadora ocorrida no governo de Juscelino Kubitschek - esse é o ponto de partida do estudo. Afora outros índices de modernização disseminados nesses e nos demais contos, a construção de Brasília, ícone do período, é referência evidente nas duas narrativas protagonizadas pelo Menino. O livro de Rosa nos lança, portanto, num período de transformação da paisagem de roças e campos contemplada do alto em "As margens da alegria". Período em que o capitalismo brasileiro acelera seu ajustamento à sofisticação da lógica industrial (inclusive na produção rural) e ao sistema financeiro mundial; período em que se intensifica o convívio tenso entre modos de viver e de pensar arraigados no passado escravocrata (patriarcalista, mandonista, elitista) e os novos parâmetros da civilidade urbana (nominalmente esclarecida, institucional, democrática).

Na medida em que avança a explanação, vamos percebendo como esse ritmo de mudanças alimentou os "dilemas da representação" com os quais se defrontou Guimarães Rosa. O mítico vai aparecendo como "modo da cultura popular redimensionado pelo olhar erudito" (p. 18) e influência na figuração de "dinâmicas da identidade pessoal e coletiva" (p. 20). Assinaladas logo de saída, essa condição e essa função já indicam que relações entre estratos culturais e sociais, conformação de subjetividade e organização da sociedade serão aspectos privilegiados na abordagem das diferentes maneiras como mito e história se entretecem - as tonalidades que assumem as narrativas. De fato, a incorporação do traço mitificador nessa ficção é observada o tempo todo pelo prisma da armação do ponto de vista que comanda as narrativas e a simbolização da experiência social; é permanente a atenção à configuração do foco narrativo, ao lugar social dos narradores, à distância e/ou proximidade que mantém em relação à mentalidade sertaneja. Atenta também ao "olhar de classe do escritor" e aos "limites da grande obra", Ana Paula indica como e onde as estórias alcançam "a superação literária de seus impasses, ao formalizar contradições que são da matéria, do país" (p. 218, grifos da autora). É por essa via que o trabalho vai nos esclarecendo o que está por trás da assimilação ou da denegação da dimensão mítica, a que responde, no contexto da modernização acelerada, o diálogo com uma ótica não moderna, quais impasses históricos estão implicados nas opções formais que lidam com o pensamento amparado no mito.

Entendido inicialmente como (tentativa de) contraponto à realidade objetiva, material, das personagens via de regra excluídas, o mítico surge na dobradiça do foco narrativo ora como mentira, ora como sabedoria, mas também como mentira (que é) histórica, ou seja, visada do mundo que revela, no seu modo de entender/suprimir a História, contradições sociais verdadeiras. O mítico como resposta a mudanças, como leitura do processo social, como resguardo de uma cultura; enfim, como atraso e simultaneamente como resposta a um "progresso" desigual. [p. 19, grifos da autora]

Antes de chegar a esses resultados, vale atentar para uma segunda moldura de que a crítica lança mão. Ao contrário da primeira (a baliza histórica anunciada de saída), essa outra vai se configurando pouco a pouco, sem alarde, conforme a demanda da discussão em curso, de modo menos programático que ensaístico. Vou chamá-la, na falta de termo melhor, de moldura literária.

Muitas vezes, a argumentação progride por meio de comparações entre Primeiras estórias e obras anteriores de Guimarães Rosa, de outros autores brasileiros (Machado de Assis, Graciliano Ramos) ou do cânone ocidental (de Édipo-Rei a Edgard Allan Poe e Pirandello). No caso da literatura estrangeira, as referências apóiam a análise em andamento - é o que ocorre no capítulo sobre "O espelho" com o rol de narrativas européias e norte-americanas centradas no tema do duplo. Já a tradição literária local parece ser evocada para definir com mais precisão um diferencial entre a representação da história nas estórias e em prosas que respondem a outras circunstâncias - de modo que essa segunda moldura, mais tênue, reforça a primeira, ao sinalizar o lugar do livro de 1962 no conjunto da produção rosiana e no sistema literário nacional. Se no irônico espelho machadiano se vê "o burguês perfeitamente invulnerável" diante da possibilidade de questionamento à "lei cínica da sociabilidade liberal-escravocrata" (p. 251-252), no conto de Guimarães Rosa a especulação resulta, conforme mostra a leitura de Ana Paula, na visão de uma sociedade moderna, porém "sem formas estáveis de constituição do sujeito [autônomo], como de si mesma, [...] que refrata em mônadas de crenças individuais imagens de sua anomia social" (p. 255). O contraste entre estágios da formação nacional - e entre as respostas estéticas que lhes são correspondentes - também fica bastante evidente quando a análise se desvia de seu objeto central para comentar "A hora e vez de Augusto Matraga" ou Grande sertão: veredas. São passagens que exprimem bem como, nos modos específicos com que se efetua a notação da história na mimese, pode-se observar o ritmo do processo social. Um exemplo:

A violência dos jagunços [em Grande sertão: veredas] - ali isolada de outras violências sociais - podia ser imaginada como forma de redenção, talvez uma aposta na desordem ordenadora à margem da vida política que se estabelecia, desde épocas remotas, entre governo e coronéis, donos do país. Nesse sentido, é curioso pensar que o regionalismo (romântico e sobretudo em sua fase "realista", isto é, de escola realista) antepunha o homem civilizado ao caipira, como se aquele fosse reformar o Brasil "bárbaro". Já Guimarães Rosa, nesse livro da década de 50 - mas cujas ações se passam durante a Primeira República -, encena simbolicamente o contrário, talvez numa linha de continuidade modernista, apostando num substrato "primitivo" (e mítico) do país. [p. 106-107]

A aposta no mítico - viável no espaço e no tempo em que transitam Riobaldo e Augusto Matraga, uma vez que a dimensão do sagrado ali funcionava de fato como princípio organizador da vida social2 - ganha nuanças distintas em Primeiras estórias. Os três primeiros capítulos de Lugar do mito abordam separadamente três tonalidades da imbri cação entre mito e história no volume: o aventuresco, o anedótico e o trágico. Notando, em cada grupo de contos, a presença mais ou menos intensa de veios míticos e o alcance de sua eficácia como solução formal em relação à matéria da narrativa, a crítica vai especificando os sentidos do procedimento mitificante. Vamos a eles.

No primeiro grupamento de contos (aqueles em que o narrador adere ao imaginário infantil), a resposta ao ritmo da modernização deixa entrever um tom de descontentamento. Seguindo a via do lúdico ("Partida do audaz navegante", "Pirlimpsiquice", "Os cimos"), do mágico-religioso ("A menina de lá"), da rememoração ("Nenhum, nenhuma") ou do resgate de integração com a natureza ("As margens da alegria"), os enredos se estruturam pela complementaridade de dois movimentos: descoberta do mundo desencantado e anseio de reencantamento. É grande aí o investimento na fabulação mitificadora, que promove a redução do percurso histórico à abstração de encenações da existência, com o fito de recuperar uma harmonia nostálgica, pré-moderna. No espaço privado em que circulam as crianças protagonistas, o idealismo rosiano se desdobra em poética do desejo - "experiência de perdas efetivas, recriar um mundo mais satisfatório, em que carências e sofrimentos teriam compensações simbólicas" (p. 44) - e em poética essencializante - "reaver, na redução do percurso histórico, o coração da existência", "uma 'substância' guardada na infância distante" e perdida na azáfama do mundo adulto, na conturbação da esfera pública (p. 29, grifos da autora). No refúgio do universo infantil pode-se - pelo passe de mágica do "era uma vez" mítico-aventuresco, que engendra cosmogonias, contos maravilhosos ou epopéias (subjetivas, por modernas) - figurar um mundo belo e ideal, reversão estética da realidade opressora, recriação simbólica que liberta das contingências do momento histórico, restando estas apenas como pálido pano de fundo. Com relação a essas estórias comoventes, o juízo crítico ressalta que são, no volume, as que manifestam com mais intensidade o escapismo da faceta idealizante presente na criação de Guimarães Rosa - o "lado menos atual" de sua obra (p. 47). Por outro lado, vantagem da "poética feita de contradições" (p. 18) em boa parte responsável pelo valor do livro, algumas narrativas não deixam de apontar para a limitação do idealismo - por exemplo, no salto para o vazio que dá o narrador de "Pirlimpsiquice", encerrando o transe em que se converteu a apresentação teatral, fazendo frente à dissolução da individualidade, à substituição do mundo pela representação essencializante que abole a materialidade da experiência histórica. Em outras palavras: nas encenações da existência que convocam o mítico-aventuresco como alternativa à reificação da vida no contexto moderno, a dimensão mítica parece pretender substituir a história. Porém, com a insistência própria dos dados de realidade, esta retorna pelas frestas da forma mitificadora, como se vê em "Nenhum, nenhuma" - aí a fabulação encantatória forjada na subjetividade se vê diante dos limites que o mundo lhe impõe, sua aspiração totalizadora esbarra na contingência de um tempo no qual já se perdeu a coesão coletiva que conferia eficácia ao mito. Essa estratégia de representação enfrenta, então, a crise - impossibilidade tanto de submeter o mundo a suas pretensões ordenadoras quanto de contorná-lo definitivamente no refúgio imaginário.

A falibilidade da associação entre mito e conjuntura moderna fica mais evidente no segundo conjunto de contos, aqueles que compartilham o tom anedótico. O mito comparece, nesse caso, em versão negativa: um ciclo de violência e uma maldição familiar que não se cumprem ("Os irmãos Dagobé"); a paródia de aventura romanesca em "Tarantão, meu patrão", espécie de périplo épico satirizado; a astúcia homérica com as palavras ("Famigerado", "Fatalidade"), fundamento mítico que vinca a atitude esclarecida, como mostram Adorno e Horkheimer em sua Dialética do esclarecimento. São enredos, ambientados na esfera pública, que tematizam a violência sem recorrer ao mítico-mágico, deixando a matéria histórica mais visível. Uma revelação desencantada de matizes da dinâmica política que põe em cena meandros de um processo em curso no contexto do desenvolvimentismo J. K.: o trânsito (incompleto, como sabemos) do convívio regrado pela violência privada para a ordenação civil, garantida (ao menos nominalmente) pelas instituições do poder público. Aqui também a percepção do fluxo para a modernidade tem a marca da contrariedade. Apresentando o novo quadro das relações de poder no sertão, reflexo da crescente hegemonia urbana, os contos fazem graça com as promessas do progresso, que não alcança resolver problemas seculares de nossa sociabilidade - sobreposição de poder público e força privada, reversibilidade entre ordem e desordem, cordialidade misturada a institucionalidade. É emblemática, nesse sentido, a atitude do delegado culto de "Fatalidade", que conduz o sertanejo pacífico em busca de garantia legal a fazer justiça com as próprias mãos.

Nesse anedotário, nota-se o recuo da mitificação, tornada derrisória. O que avulta é o procedimento chistoso. Ao destacá-lo, a crítica chama atenção para o sentido do equilíbrio entre dimensão mítica (residual) e tratamento humorístico das questões da esfera política. Justo quando vem à superfície um aspecto distintivo (e grave) da matéria histórica - "tensão gerada pela passagem, incompleta, entre mando pessoal e lei" (p. 113) - a representação convida ao riso. Riso discreto - é sempre discreta a comicidade em Guimarães Rosa -, e a análise não deixa de reconhecer nessa discrição algo do "caráter específico da nossa sociabilidade" (p. 113). Pois trata-se de um riso entre pares (narrador e leitor esclarecidos), que provém da quebra das expectativas de encaminhamento do enredo alimentadas pelo confronto entre vigência da tradição política arcaica nas comunidades que participam da ação e intervenção de recursos civilizatórios recém-instaurados. Nem o ciclo da violência mítica nem a civilidade se efetivam. O desfecho é risível - da perspectiva de classes que têm o privilégio de manipular a ambigüidade da situação - pelo realce de um descompasso no trânsito para a legalidade.

O humor, neste conjunto, não é o riso que permaneceu fora da mentira oficial, como o da cultura popular, presente no livro na praça pública da cidade, como se vê em "Darandina". Mas traz seu crivo crítico, não na superioridade de quem o manipula, e sim na composição que dá a ver o procedimento. Entre a lei e o mando, a anedota, como vimos, parece rir dessa nossa incapacidade histórica de nos "civilizarmos". [p. 114]

Como esse, outros impasses históricos da modernização à brasileira encontram-se formalizados com mais radicalidade nos contos em que o veio mítico se reveste de tonalidade trágica - "nos quais uma consciência em trânsito, entre o arbítrio e a necessidade, entre razões míticas e ordem citadina, permeia situações de catástrofe" (p. 20). O trágico aí é tomado em seu sentido rigoroso, bem estabelecido pelo paralelismo entre o quadro histórico da tragédia ática e o contexto brasileiro, em que o arcaico é constitutivo do moderno: "certa dimensão de encantamento permanece, contra-face de um país em que o capitalismo se manteve conjugado a uma ordem pré-burguesa no que se refere ao tratamento da pessoa, à sua constituição como sujeito de direitos" (p. 121).

No conjunto formado por "A benfazeja", "A terceira margem do rio", "Substância", "Sorôco, sua mãe, sua filha" e "Nada e a nossa condição", cruzam-se posse e privação, perspectiva mítico-religiosa e instrumental esclarecido, mundo do trabalho e transcendência, discurso individual e imaginário coletivo, pontos de vista de classes distintas. À diferença da atmosfera de sonho (ou pesadelo), da graça delicada ou pungente que perpassa os contos focados em crianças, nesses outros sobressai a concretude vívida dos percalços: o sofrimento deixa marcas nos corpos de várias personagens, a ação deixa à mostra condições de vida muito precárias (ausência de recursos institucionais, trabalho degradante, exclusão social, desespero). A notação mitificadora da história tem mais densidade - mais peso crítico - sobretudo quando ocorre paralisação do mito ("A benfazeja", "A terceira margem do rio", "Nada e a nossa condição"), quando a forma literária, lidando com experiências-limite sem amainar sua gravidade, põe em xeque a possibilidade de simbolizar saídas para contradições históricas bem precisas, que o não-tempo mítico pretende transcender. Sobretudo nas narrativas em que há mescla de vozes sociais, em que a mitificação viceja no cruzamento entre lógica coletiva de comunidade pobre e estratégia persuasiva de narrador esclarecido - "A benfazeja", "Nada e a nossa condição" -, o mito surge como construção fissurada. Já não mais repositório de convicções inabaláveis, como no pensamento religioso, a ordem mítica participa de uma postulação, funciona como artifício que confere (falsa) universalidade ao plaidoyer apaziguador de uma voz em primeira pessoa. O momento de verdade do mito coletivo se estilhaça no choque com a matéria histórica, na qual a distância entre classes e o insulamento da subjetividade, minando por entre as fissuras da tentativa de reversão simbólica da realidade problemática, põe sob suspeita a própria solução mítica.

O juízo sobre o recurso à mitificação como estratégia persuasiva de narrador em primeira pessoa é um dos mais altos rendimentos críticos de Lugar do mito, contribuição importante para o entendimento da obra de Guimarães Rosa (vale lembrar que também o narrador de Grande sertão: veredas está às voltas com um trabalho de persuasão que envolve a dimensão mítica). Agenciado pela perspectiva esclarecida, o espectro mítico, sob as lentes críticas de Ana Paula Pacheco, dá a ver os contornos da naturalização do destino histórico em nossa modernidade excludente, sem margem para a alteridade, suspensa na má infinitude da passagem para a civilidade prometida.

1 PACHECO, Ana Paula. História, psique e metalinguagem em Guimarães Rosa. Cult — Revista brasileira de literatura, São Paulo, ano IV, n. 43, p. 42-47, 2001. [ Links ]
2 Neste passo, Ana Paula não deixa de assinalar que em Grande sertão: veredas a eficácia do mito já se vê relativizada, que a fala do jagunço letrado "já deixa entrever os limites da explicação mítica do mundo" ao preocupar-se com uma potência de destruição puramente humana, e desvinculada da racionalidade e da idéia de justiça (p. 105).

Revista do Instituto de Estudos Brasileiros - USP

Du marché au marchand - La gravure populaire brésilienne



Gravura popular brasileira

Peter Burke
Professor no Emmanuel College, Universidade de Cambridge


RAMOS, Everardo. Du marché au marchand. La gravure populaire brésilienne. Gravelines: Musée du Dessin et de l'Estampe Originale, 2005. 191 p.

2005 foi comemorado na França como "o Ano do Brasil" e as comemorações incluíram uma exposição de gravuras brasileiras no Musée du Dessin et de l'Estampe Originale de Gravelines, da qual este livro é o catálogo. Seu autor, Everardo Ramos, terminou recentemente uma tese de doutoramento sobre o mesmo assunto na Universidade de Paris X e com certeza dá uma contribuição original ao conhecimento. Seu ensaio-catálogo é organizado cronologicamente e dividido em três fases principais: "origens", entre 1800-1860; a era dos livrinhos vendidos por ambulantes, que os brasileiros chamam de folhetos ou literatura de cordel, entre 1860-1950; e, finalmente, o último meio século, o tempo da passagem "da praça do mercado ao negociante" que deu título à exposição e ao ensaio.

Na primeira parte de seu ensaio, Ramos faz uma discussão inovadora de uma tópica negligenciada. Como observa, no Brasil, diferentemente da América Espanhola, nenhuma máquina impressora foi permitida antes de 1808. Depois deste ano, a imprensa foi estabelecida não só no Rio, mas também nas cidades maiores do Nordeste, Salvador e Recife. Periódicos produzidos no Recife e em outras partes tiveram papel importante nos debates ocorridos antes, durante e depois da independência do Brasil.

Historiadores têm estudado a imprensa brasileira do início do século XIX, mas, até Ramos, deram pouca atenção às xilogravuras que ilustraram jornais como O Marimbondo ou O Arara. Seus elogios da qualidade artística dessas xilogravuras podem ser meio exagerados, mas é convincente seu argumento de que reforçaram com intensidade as mensagens políticas freqüentemente polêmicas dos jornais. Com efeito, para o público iletrado, que era maioria mesmo nas cidades, as imagens eram as mensagens.

A parte principal do ensaio de Ramos, de maneira bastante razoável, trata dos folhetos brasileiros que floresceram muito mais tarde que seus congêneres europeus, especialmente entre 1900 e cerca de 1960, embora ainda hoje estejam sendo produzidos. Os folhetos são livrinhos baratos escritos em verso, tratando de um amplo elenco de temas, dos feitos de bandidos como Lampião ou de poetas populares que se desafiam uns aos outros a improvisar versos aos problemas da inflação e da AIDS. Esses livrinhos foram originalmente produzidos em tiragens reduzidas em pequenas prensas por poetas populares que geralmente recitavam ou cantavam suas obras em feiras antes de vender cópias deles para o público (incluindo iletrados, que habitualmente podiam contar com alguém que lia o texto quando pediam). A maior parte dos textos eram produzidos e consumidos no Nordeste do Brasil, a região mais pobre do país com o mais baixo nível de alfabetização, sem eletricidade nas áreas rurais até os anos de 1980 e, assim, não alcançada pela TV. Dos anos 1950 em diante, contudo, os folhetos foram sendo crescentemente produzidos em massa, especialmente em São Paulo, não só devido ao número crescente de migrantes nordestinos, mas também devido à distribuição por todo o Brasil. Mais de 200 mil cópias de um folheto descrevendo o suicídio do Presidente Getúlio Vargas em 1954 foram impressas.

Há uma ampla literatura secundária sobre folhetos e a maioria dela data do declínio do gênero dos anos 1960 em diante, frente à competição da TV, cassetes e DVDs, ilustrando assim o que Michel de Certeau chamou de "a beleza da morte". Contudo, como Ramos diz bem, quando examina essas ilustrações da perspectiva de um historiador da arte, os estudiosos tenderam a dar muito mais atenção aos textos que às imagens das capas. Quando os primeiros estudiosos discutiram as ilustrações, concentraram-se nas xilogravuras feitas à moda antiga, ao passo que Ramos dá igual atenção a outros media, principalmente zincogravuras e fotogravuras (ambas encontráveis cedo, por volta dos anos 1910). Também nota a crescente importância, nos anos 1950, das capas produzidas pelo processo de três cores. Compara e contrasta artistas autodidatas com os que aprenderam seu ofício trabalhando em jornais e observa os muitos empréstimos da linguagem visual de cartões-postais, filmes, cartazes e revistas em quadrinhos.

Nesse breve ensaio, Ramos tem pouco a dizer sobre seu conceito central de "gravura popular", embora pareça seguir a sugestão do historiador francês Roger Chartier de que deveríamos usar o adjetivo "popular" para descrever os usos de artefatos mais que textos ou imagens particulares. No entanto, Ramos demonstra estar bem ciente do paradoxo nuclear desse gênero. De um lado, intelectuais e turistas - que agora constituem uma parte importante da demanda de folhetos - apreciam esses artefatos por suas qualidades arcaicas, acreditando que fazem parte de um mundo rural virtualmente imutável. De outro lado, editores urbanos e também as pessoas comuns que compram folhetos consideram-nos modernos, preferindo fotografias a xilogravuras. Existe, assim, um sentido pelo qual as ilustrações modernas são mais autênticas ou pelo menos mais "populares" que as arcaicas.

Outra grande mudança tanto nos textos quanto nas imagens poderia ser descrita como "individualização". Como os trovadores da Europa, os poetas populares brasileiros inventaram e ainda inventam tendo por matéria um repertório oral, mas, como outros poetas de hoje, assinam suas obras. As imagens, como Ramos demonstra, muitas vezes eram adaptações de imagens mais antigas e eram freqüentemente recicladas, empregadas por diversos editores e também para ilustrar textos bastante diferentes. Do mesmo modo, os artistas que ele discute freqüentemente assinavam essas obras.

Dada essa tendência para a individualização assim como o interesse crescente pelos folhetos tradicionais demonstrado por um público de classe média e mesmo estrangeiro, foi virtualmente inevitável que as ilustrações xilogravadas se tornassem um gênero independente, vendido para colecionadores e museus, sendo apreciadas como obras de arte de artistas que vêm obtendo reputação internacional. Esse processo é o tema tratado por Ramos no último capítulo e explica o título do catálogo, Du marché au marchand, por outras palavras, a transferência da praça do mercado, onde os poetas declamavam seus versos antes de vender as cópias impressas deles, para os negociantes das galerias de arte. Ele está bem consciente do nexo existente entre o crescente interesse de classe média pelas xilogravuras e o que tem sido chamado de "invenção do Nordeste", o movimento regionalista que enfatizou os bens culturais dessa parte relativamente pobre do Brasil, sua arte, seu folclore e festejos. Assim, o folclorista Theo Brandão e o escritor regionalista Ariano Suassuna foram dos primeiros, por volta dos anos 1950, a chamar a atenção para as ilustrações dos folhetos. No início dos anos 1960, as xilogravuras brasileiras eram suficientemente conhecidas no cenário internacional para serem objeto de exposições em Paris, Barcelona e Basiléia. Um dos mais bem sucedidos e talentosos desses artistas, José Borges, agora vende sua obra através de uma galeria de Zurique, embora continue sendo possível comprar gravuras dele e de membros de sua família na sua oficina na cidadezinha de Bezerros, em Pernambuco (fiquei contente de poder fazê-lo em 2002). Esse sucesso tem seu preço, como o artista Amaro Francisco lamenta nessas páginas. O que o mercado procura é algo que pareça primitivo e, quando o artista produz uma obra de estilo diferente, o negociante pode recusá-la. A família Borges parece ser sábia ao restringir-se a temas tradicionais da cultura popular do Nordeste, como carnavais, feiras, santos, o profeta local, Antônio Conselheiro, e o rei dos bandidos, Lampião.

Brasileiro vivendo na França e escrevendo para um público francês durante o que foi para eles "l'Année du Brésil", Ramos deu a seu ensaio uma dimensão comparativa, focalizando em particular as imagens de cordéis franceses dos séculos XVII e XVIII, a assim chamada "Bibliothèque Bleue" de Troyes, simples xilogravuras que, como ocorre no caso dos folhetos, eram freqüentemente recicladas para ilustrar histórias diferentes. O autor tem pouco a dizer sobre conexões. Ele menciona de passagem fotos de estrelas de Hollywood, como Hedy Lamarr, que foram usadas como ilustrações, transformadas ou não em xilogravuras. Duas dessas ilustrações podem ser suficientes para sugerir outras conexões que valeria a pena continuar estudando. A mulher na capa de uma história publicada por volta de 1910 (figura 47) parece ter saído de um dos cartazes de Toulouse Lautrec. Poderia o artista anônimo ter tido familiaridade com a obra de seu colega francês? O segundo exemplo vem de 2005. Uma xilo recente de José Costa Leite, que mostra quatro versões do mesmo casal (p.150), certamente foi inspirada pela famosa imagem de Marilyn Monroe feita por Warhol. O Nordeste do Brasil pode ainda ser um mundo fechado nele mesmo, mas não é hermeticamente selado.

Este resenhista só lamenta duas coisas. É pena que esse ensaio pioneiro e penetrante não seja mais extenso; e, pena maior, que só tenha tido 700 cópias. Deve-se esperar que uma versão em português de Du marché au marchand logo apareça no Brasil.

Tradução do inglês de João Adolfo Hansen

Revista do Instituto de Estudos Brasileiros - USP

Caixa modernista

Caixa modernista

Marcos Antonio de Moraes
Professor de Literatura Brasileira da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP

SCHWARTZ, Jorge (Org.). Caixa modernista. São Paulo: EDUSP/ Imprensa Oficial; Belo Horizonte: Ed. da UFMG, 2003.

Em um olhar retrospectivo sobre as publicações que recuperam textos da fase "heróica" do modernismo brasileiro (1922-1929), constata-se a relevância dos lançamentos editoriais ligados à comemoração do cinqüentenário da Semana de Arte Moderna, em 1972. Naquela ocasião, três livros buscaram suprir a carência de documentos de fonte primária, favorecendo novas formulações críticas: Vanguarda européia e modernismo brasileiro, valiosa coletânea de manifestos modernistas traduzida e anotada por Gilberto de Mendonça Teles, Brasil: 1º tempo modernista - 1917/29, alentada "documentação" reunida por Marta Rossetti Batista, Telê Ancona Lopez e Yone Soares de Lima, sob a chancela do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo, e a edição fac-similar da revista Klaxon (1922-3), realizada pelo bibliófilo e empresário José Mindlin. As três obras permitiram que se captasse, em profundidade, a dimensão da vida cultural do período, para além da interpretação tout court dos livros modernistas. Deram continuidade à pesquisa pioneira de Mário da Silva Brito, História do modernismo brasileiro I. Antecedentes da Semana de Arte Moderna, publicada em 1958.

Nas décadas de 1980 e 1990, férteis em estudos beneficiados por essas edições, emergiu, em mais de uma dezena de livros, o consistente projeto epistolar de Mário de Andrade. Essa correspondência, cuja capacidade de refletir as diversas faces do movimento modernista já estava patente na edição das Cartas a Manuel Bandeira, em 1958, somente tornou-se objeto de maior interesse nos estudos literários brasileiros quando a "moda" estruturalista perdeu a força. Percebeu-se que a epistolografia de Mário de Andrade, tão abrangente quanto extensa, trazia elementos originais não apenas para se compor a biografia do escritor ou documentar o processo de criação de suas obras, como também para se avaliar linhas de força dentro do movimento de vanguarda, documentar influências, debates e intervenções a partir dos "bastidores", isto é, do espaço privado. Conjugando-se agora o potencial da correspondência com as obras editadas e a fervilhante vida literária espelhada nos periódicos, pode-se explorar com bastante proveito a dialética do público e do privado, percebendo os dois lados da tapeçaria do modernismo.

Sob essa ampla perspectiva de apreensão do movimento modernista brasileiro, percebe-se melhor a importância e a singularidade da Caixa modernista organizada em 2003 pelo professor de Literatura na Universidade de São Paulo, Jorge Schwartz. Trata-se, de fato, de uma caixa grande (38 x 30 x 2,5cm), de papel kraft, mostrando em seu rótulo a capa estilizada do livro de poemas de Mário de Andrade Paulicéia desvairada (1922). Aberta e desdobrado o conteúdo em forma de tríptico, o leitor depara-se com objetos heterogêneos, cuidadosamente acomodados. "Uma caixa encerra sempre enigmas", explica o idealizador do projeto no texto de apresentação. E o leitor, diante dessa "síntese caleidoscópica" que é a Caixa modernista, aceita participar de um ato lúdico, tirando daqui e dali livros e catálogos impressos em fac-símile, um CD de músicas, reproduções de quadros etc. Logo, ao prazer da surpresa soma-se o desejo do observador de encontrar razões para compreender o objetivo da empreitada ou o critério que norteou a escolha dos documentos para configurar o conjunto. Mas, será tarde demais para interrogações desse naipe, pois o jogo da amarelinha cortaziano já se impôs.

Há liames visíveis – confirmados pela própria contiguidade dos documentos – unindo, por exemplo, o programa do segundo dia da Semana de Arte Moderna ao datiloscrito original conservado pelo mecenas Paulo Prado, no qual se entrevê o primeiro momento da idéia levada a cabo. Da mesma forma, os livros presentes na caixa, Paulicéia desvairada de Mário de Andrade e Pau Brasil (1924) de Oswald de Andrade, explicitam duas etapas do ideário modernista, a saber, o acerto de ponteiros com as técnicas das vanguardas européias que marca primeiro volume, e a busca de uma poesia nacional a partir da incorporação das conquistas expressivas do modernismo, no livro de Oswald. O encarte do CD "Música em torno do Modernismo", produzido por José Miguel Wisnick e Cacá Machado, esclarece as relações entre Yara, xote de Anacleto de Medeiros composto na década de 1880 e o aproveitamento erudito desse tema nos Choros n. 10 (1926) de Heitor Villa-Lobos, fundamentando o trânsito entre a expressão musical popular e o experimentalismo da vanguarda.

Em outra direção, são inúmeras as combinações interpretativas possíveis deixadas a cargo do leitor perspicaz. Tomando por caminho a questão da "língua brasileira", central nas discussões dos anos de 1920 na literatura brasileira, despontam as reflexões do "Prefácio interessantíssimo" de Paulicéia desvairada ("Pronomes? Escrevo brasileiro. Se uso ortografia portuguesa é porque, não alterando o resultado, dá-me uma ortografia.") e da "Falação" do prefácio-manifesto de Pau Brasil ("A língua sem arcaísmos. Sem erudição. Natural e neológica. A contribuição milionária de todos os erros."). O assunto reaparece no poema "Vício na fala" de Oswald e em uma resenha do Livro de poemas de Jorge Fernandes, assinada por Alcântara Machado, no primeiro número da Revista de Antropofagia etc. Há, nesse sentido, uma proposição didática na Caixa modernista, ao incitar no leitor uma compreensão não linear das propostas da vanguarda nacional, por meio de um conjunto de elementos textuais e visuais paradigmáticos.

Inovando, essa box-art sublinha a importância do processo de criação da obra de arte, afinando-se com as atuais indagações da Crítica Genética. Como a obra acabada elide as escolhas feitas pelos pintores ali representados, a Caixa modernista propõe uma estratégia para que se possa fruir também um pouco do trajeto criativo deles. Assim, A negra ou A caipirinha de Tarsila do Amaral, reproduzidas em postais, em "formato sanfona", trazem a tela "definitiva" na parte superior e, nas dobras, os esboços e as versões preliminares. Essa justaposição ao mesmo tempo em que assinala o caráter dinâmico da criação, humaniza o procedimento artístico.

Como são muitas as peças deste "museu portátil', o jogo de combinações multiplica-se: o nacionalismo cheio de humor, que viceja na capa de Pau Brasil, alcança, sem essa nuance crítica, porém, os frontispícios de Vamos caçar papagaios (1926) e Martim Cererê (1928) de Cassiano Ricardo; o anúncio do filme São Paulo – a Sinfonia da metrópole vincula-se à arquitetura revolucionária da "casa modernista" de Warchavchik. A reprodução fotográfica da famosa escultura Cabeça de Cristo de Victor Brecheret associa-se a Paulicéia desvairada, como testemunha Mário de Andrade em "O movimento modernista" (1942):

[...] afinal pude desembrulhar em casa a minha Cabeça de Cristo, sensualissimamente feliz. Isso a notícia correu num átimo, e aparentada [...] invadiu a casa pra ver. E pra brigar. [...] Onde se viu Cristo de trancinha! [...] Fiquei alucinado, palavra de honra. Minha vontade era bater. [...] Depois subi para o meu quarto [...]. Me lembro que cheguei à sacada [...]. Ruídos, luzes, falas abertas subindo dos choferes de aluguel. Eu estava aparentemente calmo, como que indestinado. Não sei o que me deu. Fui até a escrivaninha, abri um caderno, escrevi o título em que jamais pensara, 'Paulicéia desvairada'. O estouro chegara afinal [...].1

Pela ousadia deste projeto editorial que suscita a efetiva interação do leitor, pela instigante possibilidade de múltiplas leituras e pelo destaque dado ao processo de criação, a Caixa modernista afirma-se, certamente, como mais um marco na bibliografia do modernismo brasileiro.

1 ANDRADE, Mário de. Aspectos da literatura brasileira. 4. ed. São Paulo: Martins; Brasília: INL, 1972. p. 233-4.

Revista do Instituto de Estudos Brasileiros - USP

Uma história do romance de 30



O romance de 1930

Simone Ruffato
Mestranda no Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada da FFLCH-USP

BUENO, Luís. Uma história do romance de 30. São Paulo: Edusp; Campinas: Editora da UNICAMP, 2006. 712 p.

A representação do Brasil na literatura brasileira transitou, grosso modo, da tentativa de autonomização de um todo (um país, uma nação) composto de diferentes regiões e suas peculiaridades – projeto principalmente de José de Alencar –, para a exaltação particular de cada uma de suas partes, como maneira mais obstinada de se afirmar "brasileiro" (cujo primeiro grito possivelmente foi dado já pelo escritor Franklin Távora, em prefácio a seu romance O cabeleira, de 1876).

Devido a essa transição, ainda existem entre os estudiosos discordâncias a respeito de se as obras literárias produzidas a partir da década de 1930 foram influenciadas pelo Modernismo de 22, ou se apenas deram continuidade a uma preocupação que vinha de antes. Há quem afirme que não houve desdobramento entre 1922 e 1930 – caso de Octavio de Faria, Jorge Amado e de Graciliano Ramos, este último tornado escritor-símbolo da época, que em nada se identificou com o momento que considerou apenas destruidor, nunca criador – e quem, como Lúcia Miguel-Pereira, afinal reconhecida como uma das grandes críticas literárias do século XX, acredite que a literatura de 1930 jamais seria a mesma, nem teria sido tão bem recebida, sem os modernistas para lhe abrir os caminhos. O que mais ou menos permaneceu consensual é o fato de que essa produção desenvolveu-se em duas direções, aparentemente opostas, a "social" e a "intimista".

Não seria sábio tentar compreender essa evolução de maneira categórica, mesmo porque estas são somente algumas das muitas dúvidas que a permeiam. Qualquer que seja a conclusão a que se chegue, certamente haverá argumentos ou exceções suficientes que a contestem, e é exatamente por isso que, de antemão, devem ser louvados todos aqueles que se proponham a enfrentar abertamente tão intricada tarefa.

O imponente volume de Uma história do romance de 30 pode assustar à primeira vista, mas a fluência e objetividade de seu autor, Luís Bueno, professor da Universidade Federal do Paraná, logo desfazem essa impressão. Antes, contudo, há duas ressalvas a fazer, por sua grande relevância no livro, e para que ao final se sobreponham apenas seus aspectos positivos. Dois conceitos são utilizados ao longo da obra que podem causar certa confusão a um leitor mais minucioso. O primeiro deles é o de "proletário"; o segundo, o de "romance de 30".

Tomado pelos autores da época com uma acepção mais genérica, e com o intuito de "esquadrinhar palmo a palmo a miséria do país", incorporando os "pobres" à cena política e intelectual, "proletário" termina por designar todo e qualquer indivíduo que traga em si um "ar de revolta", que esteja contra o "sistema" ou, de alguma forma, à margem da sociedade. Assim sendo, para os escritores de 1930, "proletários" seriam desde trabalhadores rurais, passando por estivadores, vaqueiros, militantes, miseráveis, prostitutas, malandros, boxeurs, capoeiras, retirantes, desempregados, crianças, homossexuais, inválidos, mendigos, viúvas desamparadas, pescadores, jovens intelectuais, soldados, até o operário urbano. Tratando-se de escritores que aberta e radicalmente se declaravam comunistas, marxistas ou "de esquerda", essa generalização deve ter tido uma razão de ser muito forte, uma vez que o Manifesto Comunista deixa explícito que proletários são os "operários modernos"1.
A respeito de "romance de 30" (que abarcaria tanto os de "esquerda" quanto os de "direita"), a mesma confusão pode se dar, ao depararmos com outros tantos termos que se referem à mesma coisa: "romance social", "regionalista", "de esquerda", "engajado", "revolucionário", "intimista", "psicológico", "católico". No caso da literatura de esquerda, Bueno explica que ela "tinha se definido de forma pouco precisa, sobre aqueles três pilares – espírito documental (especialmente voltado para a vida das camadas mais pobres), movimento de massa e sentimento de luta e revolta (...)". No caso da direita, a situação não é muito menos vaga, pois, no ápice da polarização política, "católico" era o mesmo que "conservador" e, portanto, anti-comunista; bem como "intimistas" e "psicológicos", cujas sutilezas tampouco estarão expostas nesta resenha.

Sendo neutro, portanto, o termo "romance de 30" é de fato uma solução "menos rígida" para encarar o período, e possibilita ao leitor o acesso às obras sem as – por vezes – engessantes categorias literárias. Contudo, ainda que todas aquelas nomenclaturas sejam muitas vezes auto-atribuídas, ao ser aleatoriamente substituído no texto por seus imprecisos e polivalentes "sinônimos", "romance de 30", para o leitor, torna-se tudo e nada. Talvez faça falta uma melhor especificação desses usos, pois também deles depende concluir pelo grau de sucesso ou fracasso dos romances.

Feitas essas observações, a fatura é excelente. Luís Bueno segue à risca o que se propõe a fazer no prefácio: partindo do texto literário, e cuidadosamente atento à recepção das obras pelos críticos, constrói um panorama esclarecedor do desenvolvimento do romance de 1930, e evidencia muito bem como essa produção, em seu percurso de surgimento-apogeu-decadência, desenvolveu-se de forma controversa, coletiva e individualmente. Ou seja, o que num primeiro plano é por impulso associado ao tal "regionalismo", ou aos escritores do Norte, foi, na realidade, um momento de tensão política generalizada (no Brasil, os movimentos que levaram à Revolução de 1930; a instituição do Estado Novo em 1937; no mundo todo, os embates que culminaram na II Guerra), que se refletiu na literatura de diversas maneiras, todas elas norteadas pela necessidade de adoção de uma postura ideológica de direita ou de esquerda – daí variarem tanto suas "correntes literárias". Fica, afinal, perfeitamente exemplificada a menção ao que Antonio Candido identificou como um sentimento de "país novo" e de "país subdesenvolvido"; ou, segundo Haroldo de Campos, de "utópico" e "pós-utópico": a esperança que vinha sendo cultivada ao longo do século XIX, palco da Independência e da proclamação da República, transformou-se em desencanto ao deparar os regimes autoritários, nas primeiras décadas do século XX.

Através desse meticuloso paralelismo entre os movimentos político e literário, pode-se distinguir, por exemplo, o que levou à mudança de perspectiva tanto de escritores como de críticos, que resultaria na enfática aceitação do romance "social" (identificador dos "problemas" sociais), decorrido do acirramento político, em detrimento do "intimista" e, logo depois, na substituição daquele por este (ao se instalar por completo a descrença na modernização do país, por volta de 1937). Dessa maneira, é possível retificar algumas injustiças cometidas e dar às obras sua devida importância, contextualizando-as e tentando identificar quais teriam sido seus propósitos – o que quase sempre vem acompanhado de belas leituras dos textos.

É o caso, por exemplo, de Jorge Amado, desde então e até hoje o mais popular escritor brasileiro: depois de um início de carreira declaradamente apolítico (com O país do carnaval, que lhe rendeu a pecha de anti-comunista), o escritor traz ao público sua opção na forma de livros como Cacau e Jubiabá – já "oficialmente" esquerdistas – e parece abandoná-la de Capitães da areia para Mar morto. Além dele, Raquel de Queiroz (por João Miguel) e Graciliano Ramos (por S. Bernardo) também teriam sido acusados de falta de solidariedade à revolução. Este tipo de interpretação não visa melhorar ou piorar sua qualidade artística ante os olhos do leitor; mas certamente ajuda a refinar nossa opinião saber quais eram as prioridades ou necessidades específicas naquele momento.

Nesse contexto de antagonismos, Bueno destaca outros fatores: um deles é o registro lingüístico de que se vale o escritor para compor seu painel social. A utilização da norma culta remete aos conservadores; a da forma oral ou "popular", aos revolucionários – ambas, de um e de outro lado agudamente condenadas. Outro fator é a descrição maniqueísta que se faz das personagens femininas ("prostitutas" ou "namoradas"); a apresentação de um tipo que foge a ambos os estereótipos causaria polêmica e até mesmo indignação por parte da crítica. Em sua maioria, obras com essas características conservaram valor apenas histórico ou documental, uma vez que, por sua natureza quase sempre didática ou doutrinária, trazem prontas e explícitas as lições que desejam transmitir, e vedados todos os vãos por onde possa escapar o pensamento ou entrar questionamentos. Posteriormente, os romancistas cujas obras habilmente "driblaram" essa polarização foram tidos como os mais brilhantes – caso de Érico Veríssimo.

Com o desânimo provocado pelo golpe que instituiu o Estado Novo em novembro de 1937, o romance "social" inicia sua derrocada, vitimando outros tantos "proletários" tardios, entre eles – voilà! – Raquel de Queiroz (Caminho de pedras) e Graciliano Ramos (Vidas secas), ambos considerados já obsoletos. Apoiado na recepção crítica destas obras, Luís Bueno demonstra como se inverteu a opinião dos leitores, pendendo agora para o "psicológico": "Os mesmos sinais foram lidos de maneiras diametralmente opostas em momentos diferentes, o que diz mais do clima intelectual do que dos livros propriamente ditos"; e o "social" ou "regionalista", antes fundamental para a esquerda, passa a ser considerado "arcaico". Apesar disso, manteve-se a divisão entre romances "intimistas" e "sociais".

A tendência dos autores, por outro lado, é menos parcial e a atitude que toma vulto passa a ser o questionamento. Surgem então obras como Um rio que imita o Reno (1939), de Viana Moog (segundo Bueno, uma "discussão sobre as certezas tão absolutas que dominaram a discussão política da década até ali. Nem direita nem esquerda, enquanto visões definitivas e propostas de solução, parecem ter sentido nesse romance"); Carvão da vida (1937), de Armando de Oliveira; Amanhecer (1938), de Lúcia Miguel-Pereira; e Navios iluminados (1937), de Ranulfo Prata.

A impressão que se tem é a de que houve um "micro-processo" de euforia e desilusão dentro desse momento de tomada de consciência de país subdesenvolvido: a crença na eficácia do partidarismo indicava ainda algum caminho para os intelectuais de 1930; renunciar aos valores ideológicos, aos movimentos de luta, ao escancaramento das mazelas nacionais, enfim, à revolução, esse sim talvez tenha sido o fim da utopia particular do romance de 1930. Em resumo do autor:

Pertencer a uma família, a uma classe, a um grupo, a um sindicato: nada disso serve para impulsionar as grandes mudanças. Nem tampouco o indivíduo, sozinho, poderá encontrar saída fácil para os seus problemas. (p.503).

De brinde, Luís Bueno deixa-nos suas impressões a respeito de quatro magníficos autores – Cornélio Pena, Ciro dos Anjos, Dionélio Machado e Graciliano Ramos –, sendo os três primeiros (autores, respectivamente, das obras-primas A menina morta, O amanuense Belmiro e Os ratos) injustamente pouco lidos, e mais que merecidamente destacados em meio ao imenso legado dos artistas de 30.

1 Ainda: "As camadas médias – pequenos comerciantes, pequenos fabricantes, artesãos, camponeses – combatem a burguesia porque esta compromete sua existência como camadas médias. Não são, pois, revolucionárias, mas conservadoras; mais ainda, são reacionárias, pois pretendem fazer girar para trás a roda da História. Quando se tornam revolucionárias, isto se dá em conseqüência de sua iminente passagem para o proletariado; não defendem então seus interesses atuais, mas seus interesses futuros. Abandonam seu próprio ponto de vista para se colocar no proletariado. O lúmpen-proletariado, putrefação passiva das camadas mais baixas da velha sociedade, pode, às vezes, ser arrastado ao movimento por uma revolução proletária; todavia, suas condições de vida o predispõem mais a vender-se à reação." MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Manifesto Comunista. São Paulo: Boitempo Editorial, 1998. p. 46-9.

Revista do Instituto de Estudos Brasileiros - USP

Arquitetura e trabalho livre



Comentários incomodados

João Marcos Lopes
Arquiteto, doutor em Filosofia, professor no Departamento de Arquitetura e Urbanismo da Escola de Engenharia de São Carlos - USP e associado da USINA - Centro de Trabalhos para o Ambiente Habitado



FERRO, Sérgio. Arquitetura e trabalho livre. Organização e apresentação de Pedro Fiori Arantes. Posfácio: Roberto Schwarz. São Paulo: Cosacnaify, 2006. 456 p.

Não são absolutamente desconhecidas do público em geral as pretensões da construção civil afirmar-se como protagonista de um projeto de desenvolvimento nacional: a gritaria de um SINDUSCON (Sindicato da Indústria da Construção Civil do Estado de São Paulo), por exemplo, faz-se ouvir semanalmente entre as páginas de um grande diário paulistano, reclamando o reconhecimento do quanto a construção civil "contribui" para o desenvolvimento nacional, para a descompressão do desemprego, para a redução do descompasso econômico e para a realização bem sucedida dos destinos do país1. A ainda e por muito tempo necessária concorrência de extenso contingente de mão-de-obra na composição orgânica de seu capital faz da construção civil um fértil e vigoroso provedor de valor excedente, também vigorosamente disposto à extração na forma de mais-valia. De olho nessa "virtude" do canteiro de obras, o país, não poucas vezes, procurou ali aninhar, em boa medida, seu padrão piratininga de desenvolvimento nacional.

Por esta pista, e lá pelos anos de 1950, também a arquitetura se aproximaria programaticamente, como coadjuvante no setor da construção civil, para ensaiar sua participação no modelo de enfrentamento dos desacertos da nação – esta vítima predileta, desde tenra idade, da mais descarada endofagia bandeirante. Tratava-se de pensar a construção do país, de realizar a promessa de um progresso sempre adiado e, para tanto, aqui alinhar aquele ofício cujo núcleo, o projeto, só se faz possível se nele se reconhecer permanentemente a possibilidade de um futuro a ser construído coletivamente. Na contra-mão de um desenvolvimento dependente e combinado, aquele que se construiria autonomamente e na forma técnica apropriada à realidade que nos afligia. E nas entranhas do processo, presenciaríamos a intensificação do desenvolvimento das forças produtivas e o acirramento inexorável das tensões inerentes ao sistema de contradições presentes na evolução do capital.

Entretanto, algumas aporias insinuavam-se já nas origens do discurso e projeto desenvolvimentistas, arrastando para seus becos o protocolo de intenções que a arquitetura trazia a público lá pelo final dos anos 1950. Se Lúcio Costa recusava o termo "modernismo" – pelo desconforto com a palavra em moda e pela moda – é em favor da defesa de um projeto maior, mais consistente e mais cuidadoso que se estruturaria para assumir uma parcela de contrapeso mais significativo no esforço de reduzir o descompasso de nosso país em tempos modernos. Mas outros já falaram com maior propriedade sobre o assunto2.

Retomo a questão apenas para alcançar outra: o livro Arquitetura e trabalho livre, coletânea de textos do arquiteto, artista plástico e professor Sérgio Ferro, reconstitui um percurso de 40 anos de reflexão e escrita que recoloca, oportunamente, algumas questões já presentes no inventário do Dr. Lúcio – em sinal contrário, ressalte-se. Não que Sérgio cometa desaforos com o mestre: não denega seus esforços em reconhecer uma preocupação com a participação do "próprio obreiro" como "parte consciente na elaboração e invenção" da obra de arquitetura – como nos resgata Pedro Arantes, já no proêmio que apresenta a coletânea, da qual é responsável pela organização. Mas Ferro, desde logo, já fazia pé firme na idéia de que nosso desenvolvimento era falso e sustentado por uma realidade falseada e, a partir deste pressuposto, recusava-se a compor uma necessária relação entre desenvolvimento das forças produtivas e democracia. Neste palco, "a arquitetura representa um papel: é comediante", como diz ao final de um dos primeiros textos de Arquitetura e trabalho livre, "Arquitetura nova" (1967).

Já a caminho do final dos anos de 1960, Sérgio Ferro aparece, ao lado de Rodrigo Lefèvre e Flávio Império, todos arquitetos e professores, em trânsito já emburricado. Suas formulações e a arquitetura que dividia com o grupo – trama e urdidura, singularmente complexas e rústicas ao mesmo tempo, então tingidas com as cores da época – fizeram-no um "traidor". Estranhamente, podemos não compreender porque ainda assim poderão julgá-lo – como certamente se fará. Outros dirão, "trata-se de texto datado", exorcizando toda espécie de comprometimento daquele dito com o tempo de hoje3. No entanto, mesmo considerando que nossa raquítica democracia – parafraseando Lúcio Costa ao se referir à arquitetura moderna brasileira como "garota bem esperta, de cara lavada, e perna fina" – não impede o trânsito de nosso ir e vir como arquitetos, ainda assim somos forçados a admitir que vários dos argumentos de Sérgio Ferro são irritantemente atuais – registrados particularmente em "Arquitetura nova" (p. 47) e no rebatizado "A produção da casa no Brasil" (p. 61), o corte em esboço que aborta prematuramente a proposta que vem logo atrás: a arquitetura brasileira, "castrada", continua servindo de "agente de vendas" da mercadoria que ajuda a produzir (p. 50); os arquitetos,

alienados de sua função real por um sistema caduco, reagem dentro da faixa que o sistema lhes atribui, aprofundando, com isto, a ruptura entre sua obra e a situação objetiva a ser combatida. (p. 50-1).

repete-se, constantemente, inclusive com apoio de arquitetos e engenheiros 'progressistas' que, no Brasil, é importante a manutenção das características atuais da construção civil porque ela é um campo de absorção de mão-de-obra. (p. 101).

Parece-nos o eco às avessas do que ainda apregoa o SINDUSCON.

Mas por que propor a atualidade dos textos de Arquitetura e trabalho livre? Com o aparente esfacelamento, no início dos anos 1980, do programa estabelecido e mantido pelo regime militar ao longo de mais de uma década, não ficava claro, também no calor da hora, que uma saída de tal natureza não deixaria o lugar liberado para as alvíssaras de um novo tempo anistiado. Os que viveram este período nas escolas de arquitetura (ainda não eram muitas!) podemos lembrar um certo arrefecimento daltônico das cores ideológicas de que o movimento estudantil, na época, ainda insistia em fazer persistir a intensidade: acreditava-se, ainda, no conluio revolucionário entre as vanguardas intelectuais e a classe trabalhadora, compondo, numa improvável coalizão gramsciana em versão trotskista, os vertedouros de uma possível nova ordem social. Mas os estudantes mais engajados rompiam alguns limites já claramente delineados pelo novo movimento operário que, naquele momento, retomava seus postos e já fazia bastante barulho: lembro-me de alguns colegas que, pretendendo emparelhar seus esforços nas portas das fábricas, voltavam exibindo hematomas conquistados justamente junto à classe operária com a qual pretendiam alguma aliança revolucionária e que dali os expulsava com o dedo em riste, mandando-os voltar para a "casa do papai".

No final dos anos 1970 e início dos 1980, pensando a Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, que demitira Sérgio Ferro em 1971 por "abandono de cargo" justamente no período em que estava preso, também era fácil não perceber que nossos ouvidos sofriam de espasmos de surdez. É certo que, naquela hora, operários, movimentos sociais e uma parcela da intelectualidade do país, ainda digerindo o jejum solitário de tanto tempo sem sequer poder ouvir, inventavam instrumentos menos contundentes porém mais eficazes para uma resistência inconformada à perspectiva sintomaticamente totalitária de um desenvolvimento periférico e perverso que nos tomava a farinha e o fermento do bolo com a promessa de reparti-lo quando crescesse – sabemos no que deu. Mas, voltando, a grande maioria de nós, alunos da FAU daqueles tempos, sequer tolerávamos o discurso encardido contra a "camarilha militar" que os militantes da LIBELU4 insistiam em trazer às salas de aula, criando caso com os professores mais suscetíveis e os alunos menos engajados. O meio de campo acabou ficando ainda mais confuso – criando oposições entre os trotskistas que chamavam colegas de "reformistas" e aqueles que não tinham nome porque os reformistas ignoravam os trotskistas – quando, em 1981, Vilanova Artigas, Paulo Mendes da Rocha e Jon Maitrejean retornaram à FAU, após o período de afastamento compulsório imposto pelo regime militar. Sabemos que Artigas não achava que o golpe militar havia obstruído a concepção de uma arquitetura visceralmente comprometida com o desenvolvimento radical das forças produtivas – e novamente é Pedro Arantes quem nos lembra uma certa sincronia ao mencionar a publicação de "Uma falsa crise", de Artigas, justamente no mesmo número da revista Acrópole (nº 319, 1965) que trazia "Arquitetura experimental" (p.37), onde era apresentado o trabalho do trio da chamada Arquitetura Nova (Ferro, Lefèvre e Império) e suas propostas para debate. Parece-me que, lembrando essa época, Artigas retornava retomando – sob outros contornos – o discurso de uma arquitetura em plena posse de seus rumos e caminhos.

Retomo o período para nele gravar a impressão que ainda preservo, do quanto o texto de Sérgio Ferro era, para nós, naquele momento, uma composição por fragmentos: alguns colegas gostavam de exibir seus textos elaborados "ao estilo de Sérgio Ferro". Alguns professores insistiam, nas aulas, em esparsas referências, a título de substrato para suas abordagens, a "O canteiro e o desenho" (p.105) – um bocado escondido na sua versão de 1976 na revista Almanaque, posteriormente publicado pela Editora Projeto em 1979 e agora também presente na coletânea Arquitetura e trabalho livre. Também dela faz parte um texto de 1969 que, naquela época, nos era oferecido pelo Grêmio da faculdade, o GFAU, em publicação de 1972 – "A casa popular", agora rebatizado de "A produção da casa no Brasil" (p. 61). Seu autor, após um ano de prisão e desligado da FAU-USP, havia deixado o país em 1971 e instalara-se em Grenoble, na França, onde passou a dar aulas na Escola de Arquitetura daquela cidade e dedicar-se à pintura. No geral, o que mais ouvíamos falar de Sérgio Ferro era o silêncio.

Principalmente quando Artigas retornou com Paulo Mendes e Maitrejean e o alarido de boa parte dos alunos, sequiosos por uma arquitetura que nos elevasse a alguma condição demiúrgica, abafava as então chamadas "chatices" de Sérgio Ferro. Daí, parece-me que o discurso da função positiva do desenho ganhava posição isolada, aparecendo apenas como construção de liberdade, de autonomia, ficando assim praticamente sem antagonista, sem a crítica sistemática de seu conteúdo ideológico e de sua condição de heteronomia como funcionalidade sistêmica inerente às dinâmicas do capital – este, um dos assuntos centrais de "O canteiro e o desenho" (p. 105), exposto a uma cuidadosa revisão do autor – "Sobre 'O canteiro e o desenho' " (p. 321) –, também publicada na coletânea que comento.

Não denego, contudo, alguns esforços. Neste período, Rodrigo Lefèvre – que dava aulas no primeiro ano do curso desde seu retorno à FAU-USP em 1977 e que poderia eventualmente partilhar as questões de Sérgio Ferro e participar no ensaio de um contraponto mais sólido (falo isso do ponto de vista dos alunos) – já se ia afastando da Faculdade para sua ida sem volta à Guiné Bissau: faleceria ali, em 1983, vítima de um acidente automobilístico que surpreeendeu a todos na época. Mas em 1978, com Ermínia Maricato, Siegbert Zanettini e Walter Ono, entre outros, ministrava nosso curso "integrado" (uma velha história sempre reeditada nos cursos de arquitetura), ocupando nossas tardes com Projeto, Planejamento, Programação Visual e Desenho do Objeto. Levavam-nos para a periferia, propondo nosso encontro com as opções que nos pretendiam fazer ver. Mas o fio da meada parecia rompido, como também se rompera o cordão umbilical na gestação interrompida que nos era imposta como herança: estes procedimentos didáticos, naquele momento, eram o máximo de contraponto. No entanto, aquele também era o tempo em que novos movimentos entravam em cena, que prometia uma nova rodada de utopias também nos territórios da arquitetura e do urbanismo.

Mesmo numa compreensão fraturada, e já um pouco para além daquele período, o texto de Sérgio Ferro – particularmente "O canteiro e o desenho" (p. 105) – ainda continuava frisando, mesmo que às migalhas, o reverso da reafirmação de um caminho glorioso para os desígnios da arquitetura. Tais migalhas, somadas a excertos de aspirações anarquistas, conjuminações idealizadas de um corte político-assitencialista da ação do arquiteto engajado com as questões sociais, concepções estetizantes da miséria e do pobre – muito em voga, em tempos de Comunidades Eclesiais de Base – ou até mesmo certo inconformismo frente às opções que a prática da arquitetura apresentava naquele momento, levaram-nos – friso o "nos" – a compor uma espécie de caleidoscópio das idéias que Sérgio Ferro incubara com Flávio Império e, particularmente, Rodrigo Lefèvre. Além disso, há outras tradições que, saindo dos anarquistas e passando por John Turnner, ou partindo da antropologia e chegando à fusão "antropoteta" de Carlos Nelson Ferreira dos Santos, acabaram compondo outras vozes para o canto dissonante que se ensaiava já no início dos anos de 1980. Acho que o corte que faz o prelúdio dos textos do Sérgio Ferro no além-mar, ou seja na França, também impediu torná-los refratários, permitindo ajuntar aos seus ditos os tantos ditos de outras searas. Talvez tenha sido bom: a visão por fragmentos contribuiu para a admissão de outros fragmentos e ajudou a não transformar – o que imagino que Sérgio Ferro odiaria – a crítica em doutrina.

Dessa percepção descontínua da crítica de Sérgio Ferro associada a um sem número de referências as mais diversas, passamos a viver uma série de "experimentos localistas" considerando, aqui e ali, alguns aspectos que a crítica ao modo de produção da "forma da forma-mercadoria" articulava fragmentos de inconformismo e resistência: os Laboratórios de Habitação em algumas instituições de ensino superior – Faculdade de Belas Artes de São Paulo, num primeiro momento, PUC-Campinas e FAU-Santos ou nas engrenagens de extensão da UNICAMP, posteriormente; o caminho voluntário de arquitetos e estudantes de arquitetura que se dirigiam à periferia para ali fundarem os primeiros passos de uma outra possível prática de ofício; a agremiação de profissionais em torno de organizações voltadas a atividades junto ao movimento popular; o desenvolvimento de técnicas construtivas que expunham diretamente o corolário formal ou conceitual da manufatura heterogênea – uma "arquitetura da terra" mecanizada, desde o CEPED na Bahia até os painéis cerâmicos e as abóbadas da UNICAMP, por exemplo –, até mesmo posturas diferenciadas frente às antinomias do desenho e à heteronomia do canteiro de obras que já faziam teimar uma outra composição não hierárquica entre arquitetos e operários; todas estas maquinações, certamente, interagiram e se alteraram, como a alquimia que tem, como fim último, a transformação do alquimista: lidávamos diretamente com aqueles a quem Sérgio Ferro gostaria de ter dedicado seu "O canteiro e o desenho" (p. 105) – os trabalhadores da construção civil e seus usuários pobres. "Tratava-se", como diz Roberto Schwarz no posfácio que integra a coletânea de Sérgio Ferro, "de democratizar a técnica, ou, também, de racionalizar a técnica popular por meio dos conhecimentos especiais do arquiteto" (p. 436). Estes "experimentos localistas" fizeram escola – literalmente – e organizaram uma extensa rede de profissionais que se engajaram no planejamento e na produção habitacional no país. Criaram a cultura da "assessoria técnica" aos movimentos de moradia, consolidaram uma postura mais "diluída", digamos assim, da ação profissional do arquiteto, formaram professores, resgataram o problema da moradia como uma questão da arquitetura, etc. etc.

No entanto, essa época "heróica", de reconstrução de uma possível democracia, de novas relações entre poder e povo, de utopias que ainda não tinham lugar, parece que foi paulatinamente esgotando suas alternativas para dar lugar a um lugar sem utopias. Chegamos aos nossos dias com um operário no poder, à posse daquela estrutura técnico-burocrática que afirmávamos ser capazes de mudar ao som de nossas utopias e, meio abobados, percebemos que o poder é que tem o operário e aquela estrutura estatal é que se apropria de nossas utopias. Os movimentos populares que tanto gritaram nos anos 1980 parecem cada vez mais afônicos e atrelaram-se, em diversas instâncias, às ordens burocráticas de uma relação administrada. Transformamos nossas concepções fragmentárias de "arquitetura do trabalho livre" em "programas de governo", em "políticas públicas" de ocasião e as submetemos à ordem que desordena a legítima vontade que tínhamos de mudar.

Assim, chegamos hoje a tempos irônicos: a "cara lavada" daquela moça de "pernas finas" já não esconde o encardido, e tanto a arquitetura do Dr. Lúcio Costa como a nossa democracia já não têm vergonha de mostrar não serem assim tão asseadas. Novamente, citando Roberto Schwarz, parece um tempo em que "o êxito da esquerda foi pessoal e geracional, mas não de suas idéias, das quais ela se foi separando, configurando algo como um fracasso dentro do triunfo, ou melhor, um triunfo dentro do fracasso". Pior ainda, "talvez se pudesse dizer também que parte do ideário de esquerda se mostrou surpreendentemente adequado às necessidades do capital" (p. 438). Nestes novos tempos, a versão por fragmentos de uma "arquitetura do trabalho livre" sequer almeja mais compor um projeto para desenvolvimento de si mesma, quanto menos o do país, sucumbindo à carga despótica dos tempos de subsunção do capital produtivo ao capital financeiro – na sua forma de absoluto abstrato.

Numa carta a Adorno, justificando a não admissão de um candidato ao Instituto de Pesquisa Social que dirigia em Frankfurt, Horkheimer reclama que faltava ao pretendente aquele "olhar aguçado pelo ódio a tudo o que está no lugar"5. Uma "arquitetura do trabalho livre" ainda reclama por outros "instrumentos mais contundentes" e, em tempos de pax romana rediviva, restam-nos o gesto e as palavras: reinventadas, reinventam idéias, reinventam a possibilidade da experiência e reconquistam os sentidos da política. Que para isso venha a coletânea de Sérgio Ferro: não se trata de um manual ou de doutrina curada em concreto armado mas retomada no varejo de um debate que espanta a lógica reacionária do "faço o que posso" (uma "estética do possível"?) que desliza pela esteira das determinações econômicas que perversamente nos "roubam a fala": como disseram os situacionistas, "o que queremos, de fato, é que as idéias voltem a ser perigosas"6.


1 Ao tratar do impacto do preço do gás de petróleo na economia e no setor da construção civil: "Afinal, dois terços de todos os investimentos realizados no país passam de uma ou outra maneira pelas mãos do setor da construção. Qualquer impacto maior nos seus custos poderia ter repercussões inflacionárias. Reverteria o cenário macroeconômico positivo, proporcionado pela deflação nos preços do atacado, e desaceleraria mais uma vez a queda dos juros" (SINDICATO DA INDÚSTRIA DA CONSTRUÇÃO CIVIL DO ESTADO DE SÃO PAULO. Janela: informe publicitário. Folha de São Paulo, São Paulo, p. A-14, 14 maio 2006). Ao comentar o pacote da construção civil, de setembro de 2006 – e ensaiando recomendações aos candidatos à presidência da República: "Portanto, quem conseguir acabar com essa corrida de obstáculos (impedimentos para concessão de créditos consignados para aquisição de moradia, facilitação dos procedimentos burocráticos para concessão de financiamentos habitacionais, política de subsídios para famílias com renda menor que três salários mínimos, fortalecimento do segmento formal da construção civil etc.) dará uma grande contribuição ao desenvolvimento do país..." (SINDICATO DA INDÚSTRIA DA CONSTRUÇÃO CIVIL DO ESTADO DE SÃO PAULO. Janela: informe publicitário. Folha de São Paulo, São Paulo, p. A-15, 17 set. 2006).
2 Ver, por exemplo, ARANTES, Otília. Lúcio Costa e a "boa causa" da arquitetura moderna. In: ARANTES, O. B. F.; ARANTES, P. E. Sentido da formação: três estudos sobre Antonio Candido, Gilda de Mello e Souza e Lúcio Costa. São Paulo: Paz e Terra, 1997. p. 113-133.
3 Especialmente no caso de "A produção da casa no Brasil", é quase ironia afirmar que se trata de "um texto datado", pelo fato de promover reflexão a partir de pesquisa que vinha sendo conduzida pelo prof. Carlos Lemos em 1969. Claro, tudo que se escreve deixa o tempo do que escreve para mergulhar no tempo do mundo. Mas é no mínimo equivocado o veredicto que condena o conteúdo de um texto como superado tendo por argumento apenas a data de sua produção. Basta que se dê uma olhadela ao redor: ora, continuamos na mesma – senão pior.
4 Liberdade e Luta, corrente do movimento estudantil de linha trotskista, atuante no fim dos anos 1970 e ligada à Organização Socialista Internacionalista (OSI).
5 WIGGERSHAUS, Rolf. A escola de Frankfurt: história, desenvolvimento teórico, significação política. Rio de Janeiro: DIFEL, 2002. p. 15.
6 INTERNACIONAL SITUACIONISTA. Situacionista: teoria e prática da revolução. São Paulo: Conrad Editora do Brasil, 2002. p. 72.

Revista do Instituto de Estudos Brasileiros - USP

Distorções do espelho

Distorções do espelho

Adriano Schwartz*
Professor de Literatura da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da USP


ASSIS, Machado de. Várias histórias. Ed. preparada por Hélio de Seixas Guimarães. São Paulo: Martins Fontes, 2004. 247 p.
______.Histórias sem data. Ed. preparada por Marta de Senna. São Paulo: Martins Fontes, 2005. 254 p.
______.Papéis avulsos. Ed. preparada por Ivan Teixeira. São Paulo: Martins Fontes, 2005. 338 p.
______. Contos fluminenses. Ed. preparada por Marta de Senna. São Paulo: Martins Fontes, 2006. 344 p.

A editora Martins Fontes vem, desde 2004, reeditando os volumes de contos de Machado de Assis. Trata-se de um trabalho precioso, que repõe em circulação na íntegra, em obras preparadas por especialistas, conjuntos de textos fundamentais. O projeto começou com Várias histórias, seguiu com Histórias sem data e Papéis avulsos e, recentemente, com os Contos fluminenses. Ainda falta muito para que a produção literária do escritor esteja disponível em bibliotecas e livrarias como merece1, mas o fato é que, com estes livros, uma de suas partes mais decisivas está pelo menos acessível de modo adequado. Em vez de resenhar de forma genérica estas quatro edições, optou-se aqui por discutir brevemente um único conto, "O espelho" (incluído em Papéis avulsos). Uma das narrativas curtas mais conhecidas do autor, ela foi, surpreendemente, muito pouco estudada.

Talvez não seja exagerado pensar que, dentre estes poucos comentaristas do conto, predomine uma linhagem que extrai da obra uma suposta visão aprofundada da condição do "ser humano". Veja-se, como amostra, a conclusão de um ensaio dedicado ao texto por um célebre machadiano, Augusto Meyer:

Ora, Jacobina somos nós. Botamos a farda e representamos uma paródia do nosso eu autêntico – não na vida social apenas, na vida profunda do espírito, que anda quase sempre fardado. O imperativo do instinto vital se encarrega de fardar o espírito para que ele não se veja no espelho tal como é na verdade. Só existem as almas exteriores, bovarizadas, mascaradas, e para elas que só navegam na sabedoria da superfície [...].2

Outro crítico, o norte-americano Paul Dixon, afirma que o conto antecipa "em uns 30 anos o modelo fenomenológico da consciência, com sua intersubjetividade ou implicação mútua do sujeito e do objeto"3. Por fim, para citar apenas mais um exemplo, pode-se pensar em um estudo recente de Alfredo Bosi, O enigma do olhar4, no qual ele inclui a peça em uma série maior que denomina de os "contos-teoria". De acordo com Bosi, "O espelho" é a "matriz de uma certeza machadiana que poderia formular-se assim: só há consistência no desempenho do papel social; aquém da cena pública a alma é dúbia e veleitária."

Reforçada pela própria denominação "conto-teoria", o que essa minúscula genealogia pretende sugerir é que essa corrente crítica talvez esteja levando demasiadamente a sério o que o texto pretenderia dizer, e deixando um pouco de lado o que ele concretamente diz: o fato de que ele está a todo instante destruindo as próprias concepções, mais propenso a distorções do que a reflexos5.

Mesmo a visada irônica, uma escapatória possível desse tipo de interpretação, pode não ser tão eficaz assim, já que vem normalmente acompanhada de um referencial imediato ao efeito irônico. Para pensar melhor sobre isso, vale a pena recorrer a uma célebre fala do conto "Teoria do medalhão", na qual o pai, em sua conversa com o filho que pretende "educar", disseca a figura:

A ironia, esse movimento do canto da boca, cheio de mistérios, inventado por algum grego da decadência, contraído por Luciano, transmitido a Swift e Voltaire, feição própria dos céticos e desabusados.6

Machado está aqui, por intermédio de sua personagem, apontando sua linhagem. Borgianamente, dir-se-ia que está escolhendo seus precursores: trata-se da tradição da sátira menipéia, tão bem estudada por Bakhtin e relacionada já diversas vezes à obra do escritor a partir do ensaio pioneiro de José Guilherme Merquior. Ao mesmo tempo, o pai dá involuntariamente uma receita para ler o próprio conto, de resto, uma das regras fundamentais da sátira menipéia: inverta tudo. Ou seja, a ironia reside no fato de que o trecho faz exatamente o que o personagem recrimina no instante mesmo em que a recriminação é feita e sendo ela própria, a ironia, o seu assunto.

Pois bem, aplicada a "O espelho", a lei da inversão produz resultados interessantes, retirando, principalmente da segunda parte do conto, o ar circunspecto que a ela se costuma dar. Ainda assim, o texto não perde seu perfil quase filosófico: persiste uma espécie de intenção subjacente de "conhecer" o homem, mesmo que pela via negativa.

De um e de outro modo, apesar de o caminho trilhado render frutos, o esforço hermenêutico conduz, em última instância, a conclusões banais, tais como a de que essa entidade, o ser humano, "resulta" da mistura de fatores internos e externos, de que os fatores externos governam nossa existência, de que o homem está fadado a sucumbir perante o prestígio e a vaidade ou de que, ao contrário, o prestígio e a vaidade (o desejo, se se quiser alternar a terminologia) dão a esse homem força para seguir adiante...

A intenção aqui é colocar de lado esse aspecto "filosófico" e examinar um pouco mais detidamente o encadeamento narrativo de "O espelho" para, quem sabe, redimensionar um pouco a questão.

Deixando para depois o comentário sobre a função desempenhada pelo conjunto título/subtítulo, podemos começar pelo primeiro parágrafo, que oscila entre um tom sarcástico e misterioso. Cito:

Quatro ou cinco cavalheiros debatiam, uma noite, várias questões de alta transcendência, sem que a disparidade dos votos trouxesse a menor alteração aos espíritos. A casa ficava no morro de Santa Teresa, a sala era pequena, alumiada a velas, cuja luz fundia-se misteriosamente com o luar que vinha de fora. Entre a cidade, com as suas agitações e aventuras, e o céu, em que as estrelas pestanejavam, através de uma atmosfera límpida e sossegada, estavam os nossos quatro ou cinco investigadores de cousas metafísicas, resolvendo amigavelmente os mais árduos problemas do universo (p. 219).

Normalmente, divide-se o conto em duas partes, que internalizam a metáfora do espelho sugerida pelo título. A primeira iria desse ponto até o momento em que Jacobina começa a contar o seu fantástico caso e é demarcada pela seguinte fala do narrador: "Eis aqui como ele começou a narração" (p. 223). Assumiria a voz, então, o segundo narrador, que permaneceria no comando até praticamente o final do texto. Tal divisão faz sentido, mas gostaria aqui de propor algo diferente. Em vez dessa repartição espelhada, sugiro uma pontuação por alguns saltos, que causam inversões e deslocamentos de sentido em maior ou menor grau – e aí surge um dos toques de gênio do autor, já que essas transições passam facilmente despercebidas. Em vez de reflexo, refrações.

Já no segundo parágrafo, somos informados que Jacobina não aceitava participar das discussões porque elas eram a "forma polida do instinto batalhador, que jaz no homem, como uma herança bestial" (p. 220). Ora, se há algo que o trecho inicial enfatiza é que as discussões não eram nada contundentes, de forma alguma evocando qualquer ancestralidade animalesca. Reitero como elas eram qualificadas: "não havia a menor alteração dos espíritos", o ambiente era profundamente harmônico, a ponto da luz das velas se confundir com a luz do luar, os "investigadores das cousas metafísicas" resolviam "amigavelmente" os "árduos problemas".

Se essa passagem torna talvez exagerada a preocupação do "provinciano, capitalista e inteligente" senhor, ela se justifica, contudo, logo a seguir, revertendo a inversão, quando um dos presentes "contesta" essa posição e o "desafia" a demonstrá-la se ele "fosse capaz": a agressividade latente dos termos não combina nada com a paz quase celestial anunciada no primeiro parágrafo. A provocação é respondida com uma frase, "pensando bem, talvez o senhor tenha razão" (p. 220), evidentemente ambígua. O que quer dizer com ela Jacobina: 1) que, sim, o senhor tem razão, preciso demonstrar concretamente a minha posição, ou 2) que, sim, o senhor tem razão, minha posição na verdade não faz tanto sentido assim...

A questão seria de extrema importância se o que viesse a seguir tivesse algo a ver com ela. O problema é que não tem. Toda a história das duas almas, a externa e a interna, que juntas compõem o ser humano, e todo o caso da juventude desse segundo narrador em momento algum justificam sua posição inicial de não participar de debates, o que consistiria numa réplica ao desafio, bem como não explicam uma eventual concordância, o que implicaria uma capitulação. Isso sem contar que o próprio fato de dizer que talvez o interlocutor tivesse razão já coloca Jacobina no papel a priori rejeitado de "debatedor".

A quebra de seqüência é inclusive reforçada pelo início do parágrafo seguinte: "Vai, senão quando, no meio da noite, sucedeu que este casmurro usou da palavra..." (p. 220). O debate encaminhou-se para a natureza da alma e, ao contrário do que afirmara o início do texto, que aqueles homens resolviam ali os "mais árduos problemas do universo", naquele momento não houve resolução alguma, a discussão tornou-se difícil, os pareceres, inconsistentes. E aí, aquele que não falava nunca foi instado a comentar a matéria, circunstância que poderia indicar que ele afinal de contas mudara mesmo sua deliberação. Só que ele aceita impondo uma condição fundamental: todos precisam ficar calados, o que repõe em pauta a ambigüidade. Então ele discorre sobre o tema, e inicia pela bombástica asserção de que o homem não tem apenas uma alma, mas duas. A idéia elevada7 é logo bastante diminuída pelos exemplos que ele escolhe para ilustrá-la: a alma exterior pode ser um fluído, um objeto, um botão de camisa. "Metafisicamente falando", continua ele, o homem é uma "laranja", cujas duas metades se completam. Se perde uma metade, divide sua existência no meio. Perceba-se que, entre todas as frutas (para ficar no mesmo grupo "orgânico" citado) que Jacobina poderia escolher para fazer a sua comparação, optou exatamente por aquela que, espremida, praticamente desaparece, quase dizendo que, "metafisicamente falando", o homem não é nada.

Depois disso, numa estratégia narrativa que prosseguirá até o final do texto, serão apresentados exemplos e mais exemplos da presença e inter-relação das duas almas, dos quais o caso da juventude é o ponto culminante. Às vezes, eles estão distorcidos, como o que vem logo após a metáfora cítrica, quando uma citação extraída de O mercador de Veneza dá entender que alma exterior de Shylock morre quando ele fica sabendo que sua filha levara seus ducados; às vezes, beiram a zombaria, como a lembrança de que para certos cavalheiros, na infância, a alma exterior era um chocalho, ou um cavalinho de pau... Desse ponto de vista, a história do alferes, momento culminante dessa pedagogia do espírito partido, funciona quase como um despiste, atraindo para si a atenção que deveria se fixar no que viera antes. Não é à toa que o primeiro narrador é praticamente expulso, retornando apenas na última linha do texto, sendo, aliás, a única figura do conto a respeitar a ordem peremptória para não interferir enquanto a narrativa fosse contada, uma vez que os outros a todo instante fazem interferências de caráter retórico que apenas reforçam o que está sendo dito.

Neste longo exemplo final, um dos participantes da conversa chega a dizer: "Custa-me a entender". Ao que Jacobina replica: "Vamos aos fatos, os fatos são tudo" (p. 226). Se os fatos são tudo, recordemo-nos brevemente deles. O jovem é nomeado alferes e viaja para a casa de uma tia, que, deslumbrada com a visita importante, pede que ele ali permaneça por um período. Ela o enche de mimos, obséquios e atenções, reforçando permanentemente como a patente o tornara especial e, inclusive, cedendo a ele o seu objeto mais valioso, um antigo espelho. A tia é então forçada a sair da casa pela doença de um parente, os escravos aproveitam para fugir. Sozinho, Jacobina sente falta dos cuidados e se deprime, até que tem a idéia de vestir a farda e se olhar no espelho, "terapia" que o consola e reanima.

Recontados assim, sem as elocubrações filosóficas a respeito das duas almas, os fatos só comprovam a futilidade desse narrador e imploram para que as suas idéias sejam descartadas. Até porque ele mesmo se encarrega de definir o lugar em que situa o pensamento especulativo, primeiro com o exemplo tautológico do filósofo grego que demonstrou o "movimento andando" e, em seguida, quando se encontra sozinho, ao descrever o ambiente que o circundava deste modo:

Corri a casa toda, a senzala, tudo, nada, ninguém, um molequinho que fosse. Galos e galinhas tão somente, um par de mulas que filosofavam a vida, sacudindo as moscas, e três bois. (p. 228).

Ou seja, que as mulas "filosofam" a vida é dito pelo mesmo homem que não podia discutir porque a discussão evocava a sua ancestralidade bestial e que naquele momento arriscava uma teoria a respeito de tão elevado assunto, filosofava. É a partir dessa premissa, "as mulas filosofam a vida", aliás, que precisa ser enquadrado o subtítulo do conto, o "esboço de uma nova teoria da alma humana". Quanto ao título propriamente dito, vale notar o que o alferes "concretamente" enxerga quando busca a seu reflexo:

Olhei e recuei. O próprio vidro parecia conjurado com o resto do universo; não me estampou a figura nítida e inteira, mas vaga, esfumada, difusa, sombra da sombra. (p. 231).

Na imagem forte e impossível da "sombra da sombra"8, esse borrão, quem sabe se encontre uma dica, um momento de "verdade" de tão diminuído personagem...

Este pequeno comentário começou rememorando certa tradição interpretativa das obras de Machado de Assis. Para terminá-lo, seria o caso de relembrar outra, que nas últimas décadas vem mostrando como o escritor revela muito mais do que a princípio se imagina com suas histórias, ou seja, incorpora em sua literatura aparentemente comportada todas as contradições do Brasil do século XIX, fazendo muito do aparentemente pouco. Defende-se aqui que em "O espelho" a equação está invertida: ele exagera, hipertrofia, transforma o excesso em ridículo para fazer pouco, o muito em quase nada, um borrão. Talvez nesse niilismo radical, que supera em tanto o seu já acomodado pessimismo, esteja afinal de contas a sua cota de preocupação filosófica com a condição humana, pois olhar o espelho nunca foi, de fato, tarefa simples.





* Este texto retoma, com modificações, comunicação apresentada durante congresso internacional da Abralic (Associação Brasileira de Literatura Comparada), na UERJ, em agosto de 2006.
1 Ver a respeito a introdução do mais recente livro de GLEDSON, John. Por um novo Machado de Assis. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. [ Links ]
2 Ver MEYER, Augusto. O espelho. In: BARBOSA, João Alexandre (Org.). Textos críticos de Augusto Meyer. São Paulo: Ed. Perspectiva, 1986. p. 210. [ Links ]
3 Ver DIXON, Paul. Os contos de Machado de Assis: mais do que sonha a filosofia. Porto Alegre: Editora Movimento, 1992. p. 19. [ Links ]
4 Bosi, Alfredo. Enigma do olhar. São Paulo: Editora Ática, 1999. [ Links ]
5 Na introdução do volume de contos machadiano, o crítico Ivan Teixeira já apontava o problema, principalmente para ressaltar o lado humorístico da peça: "O primeiro ('O espelho') já foi bastante discutido por estudiosos, mas é provável que ainda não tenha sido inteiramente decifrado, porque sempre houve uma certa inadequação de perspectiva crítica. Normalmente, subtrai-se o conto ao conjunto humorístico e paródico de 'Papéis avulsos'". In: ASSIS, Machado. Papéis avulsos. Ed. preparada por Ivan Teixeira. São Paulo: Martins Fontes, 2005. p. XXXVII. [ Links ]
6 ASSIS, Machado de. Papéis avulsos. Ed. preparada por Ivan Teixeira. São Paulo: Martins Fontes, 2005. p. 98. Todas as demais citações deste conto de Machado de Assis são desta edição e, a partir de agora, serão citadas apenas as páginas, entre parênteses, no próprio texto. [ Links ]
7 É curioso que este não é o único conto de Machado de Assis que poderia conter uma suposta "teoria" a respeito da alma humana. Em "As academias de Sião" (de Histórias sem data), por exemplo, é feita uma discussão bastante atual sobre "almas masculinas" e "almas femininas" à qual, no entanto, a crítica não tem dado nem de longe a mesma importância que dá a "O espelho", talvez por conta de seu desfecho quase debochado.
8 Perceba-se que o autor utiliza a mesma expressão em um dos momentos mais fortes de outro de seus principais contos, "A causa secreta": "Garcia defronte, conseguia dominar a repugnância do espetáculo para fixar a cara do homem. Nem raiva, nem ódio; tão somente um vasto prazer, quieto e profundo, como daria a outro a audição de uma bela sonata ou a vista de uma estátua divina, alguma cousa parecida com a pura sensação estética. Pareceu-lhe, e era verdade, que Fortunato havia-o inteiramente esquecido. Isto posto não estaria fingindo, e devia ser aquilo mesmo. A chama ia morrendo, o rato podia ser que tivesse ainda um resíduo de vida, sombra de sombra; Fortunato aproveitou para cortar-lhe o focinho e pela última vez chegar a carne ao fogo. Afinal deixou cair o cadáver no prato, e arredou de si toda essa mistura de chamusco e sangue". ASSIS, Machado de. A causa secreta. Várias histórias. Ed. preparada por Hélio de Seixas Guimarães. São Paulo: Martins Fontes, 2004. p. 102 (grifo meu).

Revista do Instituto de Estudos Brasileiros - USP