segunda-feira, 14 de junho de 2010

Avant-garde na Bahia


João José Reis
Depto. de História/Universidade Federal da Bahia


RISÉRIO, Antônio. Avant-garde na Bahia. São Paulo, Instituto Lina Bo e P. M. Bardi, 1995. 259p.

Fundada em 1946, a partir da reunião de escolas e faculdades isoladas, a Universidade Federal da Bahia foi dirigida desta data até 1962 por Edgard Santos, que projetou a instituição para além de seus muros, inclusive para além da Bahia. Não negligenciando o campo das ciências, o reitor entretanto centrou fogo no campo das artes e humanidades: o teatro, a dança, a música, os estudos africanos, todos novidades no currículo universitário brasileiro de então. Para sua mini-revolução cultural, recrutou gente de peso e de fora, o humanista Agostinho da Silva, o maestro Hans Koellreutter, o diretor teatral Martim Gonçalves, a dançarina Yanka Rudzka. Outros personagens seguiram a estes, como os músicos Ernest Wídmer e Walter Smetak, os únicos que ficaram depois do reitorado de Edgard. Essas pessoas se encontraram com outras vindas de fora e por fora da universidade, como Pierre Verger e Lina Bo Bardi. Todos aqui encontraram gente de cultura, nativos que engrossariam o caldo daquela "Ilustração baiana", como os antropólogos Thales de Azevedo e Vivaldo da Costa Lima e o crítico de cinema Walter da Silveira. Interagindo e aprendendo com muitos desses, e trazendo suas próprias luzes, circulavam pela UFBa os jovens Caetano Veloso, Gilberto Gil, Glauber Rocha, Carlos Nelson Coutinho, Lia Robatto, Sérgio Cardoso, entre outros.

O livro de Antônio Risério é sobre a passagem desses personagens por uma Bahia ainda sonolenta em termos de sua economia, apenas recém-animada pelo surgimento da Petrobrás, e entrevada em termos de suas estruturas sociais, mas parte de um país otimista pelo desenvolvimentismo, um Brasil visto com otimismo por estrangeiros que deixaram a Europa recém-saída da guerra - vinham de Portugal, Itália, Alemanha, Suíça, Polônia - para descobrir terras onde achavam ser possível o máximo de realização pessoal e criação artística. As trajetórias, as idéias e obras de alguns serão nesse livro enfocadas com mais vagar, o caso de Agostinho da Silva e o Centro de Estudos Afro-Orientais que fundou na UFBa; de Koellereutter à frente da Escola de Música; Lina Bo Bardi e seus museus de Arte Moderna e Artes Populares; além do próprio reitor Edgard Santos.

O reitor ganhou um capítulo próprio, onde aprendemos por exemplo que ele entendia pouco de arte e arquitetura, tinha uma concepção pobre sobre música erudita, enfim tinha uma cultura mediana face ao grande empreendimento cultural que conseguiu realizar na Bahia daquela UFBa. Mas era um homem intuitivo, charmoso, que circulava com desembaraço nas esferas do poder federal e conseguia verbas com relativa facilidade. Tendo governado a universidade durante dezesseis anos, certamente teve tempo para aperfeiçoar cada uma dessas qualidades. É possível que seu longo reinado explique em grande parte o que conseguiu realizar. Um estudo historiográfico que seguisse as "iscas e pistas" deixadas por Risério, poderia revelar mais de perto seus métodos, apreender melhor seu próprio aprendizado, identificar suas redes de apoio local e nacional. Mas também revelar as forças que resistiram à sua obra e sobretudo a ação de seus convidados estrangeiros. Nós aprendemos que estes tiveram de enfrentar "a mediocridade suburbana e a velhacaria paroquial", que aliás acabaram vencendo em 1962 quando o reitor caiu. Mas quem eram os medíocres e os velhacos da Bahia? Os "mandarins culturais da província"? Que tipo de mediocridade, de velhacaria, de "baixaria" a elite intelectual e outras elites da velha Bahia aprontaram contra essa vanguarda cultural? Forças e faculdades ocultas. Risério optou por discutir os heróis, sem expor os malfeitores.

E com que abrangência discute seus heróis! Os quais, diga-se logo, não são vítimas de uma visão meramente deslumbrada do escritor. Risério mobiliza sua ampla formação humanística - que envolve história, sociologia, antropologia, crítica literária, literatura etc. - para um balanço crítico de seus personagens e da produção destes. Para entender Edgard, discute o ambiente político e cultural dos anos trinta, que teriam sido fundamentais para a formação do reitor. Passeia pela Europa do pós-guerra para nos fazer entender a imigração de Agostinho, Lina, Hans. Avisa-nos, entretanto, que não é (e realmente não é) adepto de determinismos sociológicos ou históricos. O indivíduo conta e conta muito, a sensibilidade estética de cada um, suas opções políticas, suas razões íntimas, de ordem espiritual, de ordem afetiva. Sobretudo a formação específica de cada um. Assim, para "explicar" a trajetória de Lina Bo Bardi conta a desilusão pessoal com a Itália dos anos cinqüenta, que reconduziria ao poder velhas raposas políticas, mas também sua formação profissional, sua inserção em tendências da arquitetura (e ele discute essas tendências no país de origem e as que ela aqui encontrou), sua expertise em desenho industrial (e ele explica longamente do que se trata aqui, do começo, o que é "desenho industrial"). Faz o mesmo com a música de vanguarda de Koelleheuter, com o humanismo aberto de Agostinho da Silva. Enfim, contextualiza longamente seus personagens no ambiente históricosocial e no âmbito das idéias e práticas estéticas e outras. Com isso escapa ao biografismo estéril e ao sociologismo inepto.

Há, no entanto, um desequilíbrio no tratamento dos vários personagens e suas obras. Lina Bo Bardi, por exemplo, é mais detalhadamente tratada do que os demais, talvez em função do próprio patrocínio do livro, o Instituto Lina Bo e P. M. Bardi, que o encomendou. Já o trabalho de Martim Gonçalves à frente da Escola de Teatro é minimizado, o que fez Caetano Veloso corrigir o autor numa "Apresentação" que escreveu para o livro. Neste texto, aliás, Caetano fala da sensação que lhe causou a leitura de Risério: "É como se eu não soubesse bem quem eu era antes de lê-lo".

Antônio Risério é marinheiro de muitas viagens, já escreveu diversos livros e artigos sobre temas da história cultural da Bahia e outros assuntos. Cito Carnaval Ijexá (Corrupio, 1979), já um clássico sobre a reafricanização do Carnaval baiano; Caymmi (Perspectiva, 1993), uma biografia cultural do compositor baiano; Textos e tribos (Imago, 1993), sobre a poética nos textos orais - textos "extra-ocidentais" -indígenas e africanos. Este novo livro é um ensaio em história da cultura. Um belo ensaio, inteligente, informativo, polêmico, escrito de alguém que conhece na intimidade nossa e outras línguas. Seu estilo aliás é extraordinário. Ele brinca com a linguagem com rara desenvoltura. Cada parágrafo nos presenteia com tiradas luminosas, inovadoras - como bom (neo)barroco serpenteia sem a chatice da ornamentação pela ornamentação. As imagens, as metáforas, as palavras (algumas inventadas), não apenas exprimem, explicam. Não gosto de algumas coisas: seus longos parágrafos, seus parênteses também longos, embora substanciais, que às vezes o faz (nos faz) perder o foco e o fogo da questão tratada. Suas citações também longas e recorrentes, que no entanto têm a virtude de revelar um intelectual de formação abrangente (num universo cada vez mais de especialistas), um escritor que reconhece e celebra a contribuição de seus pares para sua própria criação.

O ensaio é uma tradição dos nossos grandes intelectuais - por exemplo Gilberto Freyre e Darcy Ribeiro - mas gênero que foi quase à extinção no âmbito da produção universitária, especialmente aquela gerada dentro dos programas de pós-graduação. É uma pena, porque se o ensaio não aprofunda, ele abre mais espaço à criatividade, o que sobra em Risério. Este livro, no entanto, foi originalmente uma tese de Mestrado em Antropologia na UFBA, que neste particular pareceu reencarnar o espírito inovador de suas origens.

Os limites do ensaísmo também se evidenciam neste livro, sobretudo em sua parca base documental - que contrasta, insisto, com a ousadia interpretativa do autor. Muitos aspectos ainda obscuros desse tema fascinante poderiam ser melhor esclarecidos se fontes primárias tradicionais - jornais, arquivos da UFBA, entrevistas - fossem recolhidas através daquele trabalho paciente de peão da pesquisa. Melhor talvez dizer, trabalho de garimpeiro. Mas ao terminar a leitura deste ensaio fica a boa impressão de que o autor descobriu a mina, recolheu suas melhores pepitas - entre as quais está um encarte de fotos dos personagens e do período - e, para conhecimento de todos, deixou o mapa da mina. E garante, diz com todas as letras: tem mais ouro lá.

Revista de História - USP

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