quinta-feira, 24 de junho de 2010

A história ambiental e o choque das civilizações


A história ambiental e o choque das civilizações

José Augusto Drummod
José Augusto Drummond é professor do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal Fluminense


Guns, Germs and Steel - The Fates of Human Societies

Jared Diamond
New York, Norton, 1999. 480 páginas. Mapas, referências bibliográficas, bibliografia comentada, fotografias, ilustrações

A oferta de livros de história ambiental no mercado brasileiro tem progredido timidamente, embora alguns textos traduzidos tenham alcançado uma boa aceitação de crítica e público. Pelo menos quatro títulos de peso neste campo foram traduzidos do inglês para o português desde 1989: O Brasil e a Luta pela Borracha, de Warren Dean (1989); O Espírito Ocidental contra a Natureza - Mitos, História e as Terras Selvagens, de Frederick Turner (1990); Imperialismo Ecológico - A Expansão Biológica da Europa, de Alfred Crosby (1993) e A Ferro e Fogo, também de Warren Dean (1996). Do francês, a editora Martins Fontes traduziu, em 1990, O Espaço e a História no Mediterrâneo, de Fernand Braudel, o renomado historiador francês que influenciou muitos historiadores ambientais. Embora haja lacunas que uma iniciativa editorial mais ousada já poderia ter coberto - como a história das idéias ecológicas escrita por Donald Worster (1977), ou a história ambiental da cidade de Chicago escrita por William Cronon (1991) -, o fato é que, desde 1989, a cada dois anos, mais ou menos, um título de peso da história ambiental vem sendo lançado no Brasil.

Está na hora de tomar a decisão de publicar um novo título do campo da história ambiental, pois existe um novo vencedor no mercado, ainda em língua inglesa. Trata-se, desta vez, de um texto escrito por um cientista natural, Jared Diamond. Ele é professor de fisiologia da School of Medicine da University of California at Los Angeles e eminente pesquisador da diversidade biológica. Há décadas ele faz pesquisa de campo e desenvolve teorias sobre a distribuição de plantas e animais na Nova Guiné e em ilhas e arquipélagos do Oceano Pacífico. Como primeira recomendação, o livro - intitulado Guns, Germs and Steel - The Fate of Human Societies - ganhou o prêmio Pulitzer de melhor livro de não-ficção de 1998. Além disso, em 1999 ele mereceu uma caprichada edição em brochura, destino dos livros de língua inglesa cujo mercado extrapola os círculos relativamente restritos de cientistas, professores e estudantes universitários.

A terceira recomendação é a própria ousadia do tema. Diamond, que passou a maior parte de sua carreira estudando a diversidade de animais e plantas de áreas tropicais do Oceano Pacífico, neste livro se debruça sobre uma questão muito mais ampla, totalmente distinta e de grande relevância: a diversidade cultural, econômica, tecnológica e mesmo civilizatória das populações humanas dos vários continentes, sub-continentes e ilhas de todo o planeta. Sua pergunta básica é: o que aconteceu nos últimos 11-13 mil anos que tornou a experiência humana no planeta tão variada, de época a época, de região a região, e por vezes até no mesmo lugar e na mesma época? Em outras palavras, por que os humanos são tão diferentes entre si?

Sua resposta é: os diferentes grupos humanos, apesar de dotados de uma capacidade equivalente de construir civilizações, foram fortemente condicionados por fatores naturais - climáticos, biológicos, geológicos, etc. - que não se dobraram aos seus instrumentos culturais e tecnológicos. Diamond, portanto, inclui fatores não humanos e não sociais nas suas explicações de fenômenos sociais e culturais. Ele desenvolve as suas argumentações no marco de um relativismo cultural típico dos antropólogos e cientistas sociais em geral. Vale destacar que ele critica e refuta explicitamente explicações baseadas em determinismos biológicos, genéticos ou raciais. No entanto, por causa da sua familiaridade com os instrumentos das ciências naturais e os processos do mundo natural, ele não tem medo de apontar fatos naturais como explicadores de fatos sociais. Este tem sido, não casualmente, o marco explicativo adotado pelos melhores estudos de história ambiental, e Diamond desenvolve a questão da forma mais extensa e mais ousada entre todos os livros da área que conheço, produzindo o que poderíamos chamar de uma história das civilizações conforme moldadas pelas forças naturais. Pode-se não concordar com todas as respostas de Diamond, mas é preciso admitir que ele fez todas as perguntas importantes, mesmo as "delicadas" ou "perigosas".

O episódio que originou a pesquisa e a qual, por sua vez, resultou no livro, merece ser narrado. Yali, um nativo da Nova Guiné, amigo de Diamond, fez-lhe em 1972 uma pergunta, subitamente, sobre uma diferença que ele percebia entre colonizadores europeus chegados uns 200 anos antes e os habitantes da Nova Guiné: "Por que vocês brancos fabricaram tanta carga e a trouxeram para a Nova Guiné, e por que nós pretos tínhamos tão pouca carga fabricada por nós?". (Carga é o nome genérico que Yali e seu povo dão aos numerosos objetos que os europeus carregam consigo para todos os lugares e sem os quais não sabem viver - fósforos e machados de aço, guarda-chuvas e remédios, sapatos e armas, e assim por diante). Sem ser um cientista social, na hora Diamond não teve uma resposta. Mergulhou desde então numa longa série de leituras "sociais" - de antropologia, arqueologia, história das civilizações, lingüística, tecnologia, epidemiologia. Combinando essas leituras com o seu treinamento em biologia, ecologia, genética, biogeografia e outras ciências naturais, ele produziu este livro ousado, porém sereno, abrangente, porém substantivo, extenso, mas fácil de ler e de entender. Publicada 26 anos depois, essa obra é a resposta de Diamond àquela "pergunta de Yali".

É uma resposta longa e detalhadamente argumentada, mas pode ser resumida assim: os povos que desenvolveram sistemas de produção de alimentos, basicamente a agricultura e a pecuária, ganharam nos últimos 11 mil anos uma enorme vantagem sobre os povos que não foram além de sistemas extrativos de alimentos (caça, coleta vegetal e pesca). Os primeiros aprenderam a pro-duzir muito mais carga que os segundos. De uma situação praticamente igualitária de todos os povos (conhecidos a partir dos seus vestígios arqueológicos), há cerca de 11 mil anos, e em todos os continentes, alguns agrupamentos humanos se diferenciaram marcadamente dos demais e dos seus próprios antepassados. Diamond atribui isso principalmente ao fato de eles terem domesticado plantas e animais e criado com eles sistemas artificiais cada vez mais complexos para multiplicar a sua produtividade como fontes de alimento (além de outras utilidades) - fenômeno para o qual a arquelogia reserva a expressão revolução neolítica. Suas cargas engordaram. Enquanto isso, outros povos preferiram ou não tiveram alternativa a viver da produtividade natural menor e/ou menos confiável de plantas e animais selvagens. Suas cargas continuaram magras. Este foi, segundo Diamond, o grande divisor de águas da diversidade social, cultural, tecnológica, política e econômica entre os povos nos últimos 6-8 mil anos.

Assim, Diamond considera a agropecuária - criada em algumas poucas partes do mundo e aos poucos disseminada para outras - como o mais importante fator de diferenciação civilizatória. Os fenômenos muito mais modernos da industrialização e urbanização, que geralmente chamam mais a atenção dos estudiosos e leigos interessados nas questões sócio-ambientais, são tratados por Diamond escassamente, como desdobramentos da grande revolução dos sistemas de produção de alimentos. Indústrias, serviços e grandes cidades dos últimos 200 anos também têm uma distribuição desigual no planeta, mas Diamond sustenta que a desigualdade da revolução industrial é estritamente ligada às origens e aos desdobramentos da revolução agropecuária mais remota, de cerca de 6 a 8 mil anos atrás. Ou seja, a industrialização seguiu os passos da produção de alimentos. As cargas industriais ganharam a mesma dimensão dilatada das grandes cargas agropecuárias. Neste aspecto, o texto de Diamond é curiosa e inadvertidamente complementar ao controvertido e popular livro de David S. Landes (1998). Landes procura mostrar por que a Europa moderna se distanciou tanto de outras partes do mundo na produção de riquezas, mas já numa fase bem mais recente de mercantilismo, comércio, manufaturas e indústrias.

Um dos capítulos mais instigantes, e que Diamond usa como um verdadeiro catálogo de fatos e processos reveladores das diferenças entre os distintos agrupamentos humanos, é o de número 3. Ele narra o conhecido episódio do encontro do pequeno grupo de espanhóis liderados por Francisco Pizarro com o enorme exército de Atahuallpa, o imperador Inca, em Cajamarca, em 1532. Os espanhóis representavam uma vanguarda em expansão e herdeira da revolução agropecuária do Velho Mundo, enquanto os Incas estavam entre os povos do Novo Mundo que mais tinham avançado no mesmo sentido - tinham agricultura, pecuária, irrigação, estado centralizado, religião organizada, povos que lhes pagavam tributo, e assim por diante. Mesmo assim, cerca de 170 espanhóis, sem aliados nem abastecimento, mas com a ajuda de suas armas de fogo e de metal, seus cavalos e seus microorganismos geradores de insólitas (para os habitantes da América) doenças do Velho Mundo, quebraram a espinha dorsal dos exércitos de Atahuallpa com uma facilidade espantosa. Diamond usa esse episódio para mostrar que nem mesmo os mais avançados produtores de alimentos do Novo Mundo - o que incluía o império Azteca, também conquistado com certa facilidade, poucos anos antes, por Hernan Cortez - tiveram força civilizatória suficiente para resistir à agressão e à expansão dos europeus. Faltaram a eles alguns ingredientes básicos da civilização dos produtores de alimentos, tais como metalurgia, um estoque variado de animais domesticados e a escrita. Foi o bastante para sucumbirem facilmente aos pequenos grupos de aturdidos europeus que aportavam em seus litorais.

Apesar do ótimo rendimento que tira desse episódio, Diamond passa a maior parte do livro discutindo outros tipos de encontros e confrontos humanos e civilizatórios. Ele trata dos milhares de povos coletores e caçadores de todos os continentes - desprovidos de sistemas de produção de alimentos - que sistematicamente sucumbiram, pela conquista, subordinação ou extermínio, aos povos produtores de alimentos em expansão, antes e durante os tempos modernos. Aliás, este predomínio dos produtores sobre os coletores é o que ele chama de "o padrão mais abrangente da história" (ver diagrama na p. 87). As bases mais remotas desse padrão em que os povos produtores de alimentos do Velho Mundo euro-asiático prevaleceram sobre os restantes são: latitudes mais homogêneas (o eixo Leste-Oeste da Eurásia, em contraste com o eixo predominantemente Norte-Sul da África e da América) que facilitavam a expansão da agricultura e da pecuária; a existência de muitas espécies nativas de plantas e animais domesticáveis e a sua efetiva domesticação; a produção e a estocagem de excedentes e a formação de sociedades populosas, densas, sedentárias e estratificadas. As bases mais recentes, que derivam das anteriores, são os avanços tecnológicos (armas de fogo, armas de metal, embarcações e instru-mentos de navegação oceânica etc.), a escrita, a organização política e as epidemias de origem animal (doenças às quais essas sociedades se adaptaram). É esse "pacote" de bases recentes que Diamond capta no título "armas, germes e aço". Neste partciular, o estudo de Diamond se parece com o de Alfred Crosby (1993), Ecological Imperialism, sendo que este se concentra apenas na expansão dos europeus, e só depois do ano 900 da era atual. Diamond estuda um período de tempo bem maior (os últimos 11 mil anos), se concentra no período pré-histórico e trata de muitos outros povos além dos europeus.

Diamond dedica vários capítulos muito bem documentados e organizados às diferentes plantas domesticadas em distintas partes do mundo, em épocas não muito distantes entre si, mostrando as vantagens concretas do "pacote agrícola" do Velho Mundo (ver, por exemplo, a Tabela 7.1, pp. 127-28). A Tabela 8.1 (p. 140) mostra que o Velho Mundo teve a forte vantagem natural de contar com 33 das 56 espécies nativas de gramíneas de sementes grandes (como trigo e arroz), altamente propícias à domesticação. Outras plantas fundadoras da agricultura também eram nativas do continente eurasiano. Ou seja, na Eurásia havia muito mais plantas próprias para serem domesticadas e, assim, houve muito mais chances de domesticações bem sucedidas.

Discussão equivalente é feita para o muito mais limitado "pacote pecuário" de espécies animais domesticáveis e efetivamente domesticadas pela humanidade. A Tabela 9.1 (pp. 160-61) traz os nomes, as terras de origem e as características dos principais animais domesticados da humanidade, as "14 antigas espécies de grandes mamíferos herbívoros domesticados" (ovelhas, bodes, bois, porcos, cavalos, camelos, burros, renas etc.), das quais apenas uma não é do Velho Mundo - a lhama dos altiplanos e das montanhas dos Andes. A Tabela 9.2 (p. 162) complementa a anterior mostrando que essa distribuição de animais domesticados nada tem a ver com capacidades inatas diferentes dos grupos humanos, pois, de novo, o Velho Mundo eurasiano tinha vantagens naturais: contava com 72 espécies animais potencialmente domesticáveis (tendo domesticado 13 delas). Já a África Subsaariana tinha 51 espécies potencialmente domesticáveis, mas nenhuma delas foi domesticada. No continente americano, de 24 espécies propícias, apenas uma (a lhama) foi domesticada.

O capítulo 11 complementa essa discussão sobre a domesticação de animais, discutindo as doenças que os domesticadores adquiriram (como "presentes letais") por causa do seu contato mais íntimo com os seus rebanhos. Não obstante todas as dificuldades criadas para essas sociedades por essas doenças, as vantagens da domesticação dos animais se revelaram maiores. Mais tarde, quando as sociedades produtoras de alimentos se espalharam pelo planeta, essas doenças se transformaram em armas valiosas, mesmo que involuntárias, contra os povos coletores, já que no mundo inteiro estes últimos foram invariavelmente vitimados de forma epidêmica, pois, não tendo domesticado animais, careciam de resistências orgânicas ou imunológicas contra elas. Esta é outra vantagem que, em última instância, é natural, ou ao menos biológica.

Diamond dedica alguns capítulos a outras importantes vantagens que sistematicamente ajudaram a prevalência dos povos produtores de alimentos. Estas são mais familiares ao campo das ciências humanas e sociais: a escrita, a contabilidade, a metalurgia, a cerâmica (para estocagem de alimentos) as tecnologias de navegação marítima, a roda, as máquinas, os Estados centralizados, as religiões organizadas, a estra-tificação social, a divisão do trabalho, os exércitos permanentes e outras. A correlação desses traços com a produção de alimentos é altíssima, ou seja, povos coletores e caçadores raramente desenvolveram sequer uma dessas características, e muito menos um conjunto delas.

O único capítulo no qual o cientista natural Diamond não fez o seu "dever de casa" de forma adequada, a meu ver, foi o de número 14, dedicado à formação do Estado centralizado. Embora trabalhe com uma classificação das organizações políticas (bando, tribo, chiefdom e Estado) que é útil para as suas distinções analíticas, é muito simplória a oposição argumentada entre o "igualitarismo" existente nas duas primeiras e a "hierarquia cleptocrática" que seria característica do Estado. Se o Estado - a forma de organização política por excelência dos povos produtores de alimentos - fosse construído sobre uma base tão frágil quanto à do roubo institucionalizado, ele não teria sido um instrumento tão eficaz para subordinar os povos coletores. Essa importância dada à "cleptocracia" vai contra o citado "padrão mais abrangente da história", proposto e usado pelo próprio Diamond em capítulos anteriores. Faltou, assim, mais nuance e sofisticação à análise propriamente política de Diamond, pois o Estado tem outras bases de força e legitimação que não o roubo, por si só insuficiente para que alcance a consistência por ele presumida.

O livro conclui com cinco capítulos dedicados a estudos de casos em que povos produtores de alimentos expandiram a sua influência para além de seus territórios originais, afetando povos coletores. Diamond estuda episódios de longa duração na ocupação humana da Austrália e da Nova Guiné, na Ásia Oriental, na chamada Austronésia, no continente americano e na África. Esses capítulos, embora abreviados, ilustram bem muitos dos pontos argumentados nos capítulos anteriores de forma mais genérica e assim consolidam a análise do autor. Mesmo nesses capítulos ele se restringe principalmente a períodos pré-históricos, usando elementos como a expansão de animais e plantas domesticados, línguas e diversas tecnologias para entender como se deram os choques entre povos produtores de alimentos e povos coletores.

Em suma, trata-se de um livro inovador, ousado, bem escrito e organizado, bem documentado, que dá uma resposta a uma das perguntas mais persistentes de tempos passados e modernos: por que a experiência humana no planeta é tão variada de um ponto a outro, de uma época a outra? Essa pergunta foi feita no passado toda vez que povos diferentes entraram em contato, depois de séculos ou milênios de ignorância mútua, e continua a ser feita hoje, na era da globalização e do encurtamento dos espaços e tempos culturais, quando o conjunto da experiência humana é muito mais facilmente conhecido em suas semelhanças e contrastes. Toda vez que essa pergunta for feita, o livro de Jared Diamond trará ao menos uma parte da resposta.

NOTAS
BRAUDEL, F. O Espaço e a História no Mediterrâneo, São Paulo, Martins Fontes, 1990.

CRONON, W. Nature's Metropolis, New York, Norton, 1991.

CROSBY, A. Imperialismo Ecológico - A Expansão Biológica da Europa, São Paulo, Companhia das Letras, 1993.

DEAN, W. O Brasil e a Luta pela Borracha, São Paulo, Nobel, 1989.

____. A Ferro e Fogo, São Paulo, Companhia das Letras, 1996.

LANDES, D. A Riqueza e a Pobreza das Nações - por que algumas são tão ricas e outras são tão pobres, Rio de Janeiro, Campus, 1998.

TURNER, F. O Espírito Ocidental contra a Natureza - Mitos, História e as Terras Selvagens, Rio de Janeiro, Campus, 1990.

WORSTER, D. Nature's Economy, Cambridge, Cambridge University Press, 1977.

Revista Ambiente e Sociedade

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