ERIKSON, Philippe. 1996. La Griffe des Aieux: Marquage du Corps et Demarquage Ethniques chez les Matis d'Amazonie. Paris/Leuven: Peeters. 365 pp. Series: 5.
Elvira Belaunde
Profª de Antropologia, University of Durham
Esse livro convencerá o leitor de que o que sai da boca das mulheres é digno da melhor pesquisa antropológica. Estou falando sobre cerveja, preparada com produtos da roça e fermentada com saliva feminina. A análise de Erikson das idéias matis de gosto revela uma lógica englobante modelada na preparação e transformação da comida "doce" bata em bebida "amarga" intoxicante chimu. O sabor, o autor demonstra, é a chave para o pensamento e a prática matis. Ele gera uma ordenação dual "doce/amargo" dos mundos social e da floresta, que não é estático e polarizado, mas dinâmico e processual, como a fermentação. O que temos aqui é uma lógica de diferenciação visando uma mistura apropriada de opostos, que favorece o crescimento e o controle sobre os extremos a-sociais. Fazer cerveja fornece uma metáfora-base a todos os processos de maturação, incluindo o crescimento de meninos e meninas, a acumulação de "poder místico" sho e o declínio da morte. Flagelações rituais, decorações corporais e o escurecimento da pele com tatuagens, em particular, são meios culturais de tornar o corpo "amargo", portanto, vigoroso e capaz de trabalho duro, em oposição a um corpo preguiçoso excessivamente "doce". Se o "amargo" é buscado ativamente, seu excesso é letal, pois se o concebe como conduzindo à perda de controle sobre os "poderes místicos" e à feitiçaria. Como a boa cerveja forte que é "amarga" e também levemente "doce", a idéia matis do social é a de uma proporção adequada de sabor.
O trabalho de Erikson trata de temas centrais às sociedades Pano, das quais ele afirma que os Matis constituem um caso típico. Embora não reivindique ter tocado em um princípio pan-amazônico, seus achados ecoam várias etnografias da região e fornecem inestimável alimento para o pensamento. Seu estudo põe um fim à popularidade outrora desfrutada pela hipótese de Siskind de que a troca de carne por sexo era a base da sociedade Sharanahua (também um grupo Pano), e, de fato, das sociedades caçadoras da floresta tropical em geral.
Erikson mostra que não é sexo, mas cerveja, a contrapartida feminina da comida, pois fazer cerveja é uma atividade misticamente tão poderosa quanto matar animais (e os caçadores são verdadeiramente sedentos de cerveja). Além do mais, a paixão matis pelo "amargo" e pelo trabalho pesado sustenta a interdependência dinâmica e a mistura dos gêneros. Homens trabalham para manter as mulheres, e vice-versa. Nenhum deles pode fazer sua parte sem a contribuição do outro. Isto não quer dizer que homens e mulheres tenham status iguais; mulheres são concebidas como "mais doces" que os homens, pelo menos até alcançarem a menopausa. Mas através de seus ciclos de vida e de seus trabalhos, ambos os gêneros crescem "amargos" e amadurecem à sua própria maneira. Como Erikson afirma, a diferenciação dos gêneros é um meio cultural de torná-los mais próximos por meio da cooperação.
Embora o autor se desculpe por seus escritos não conterem a reflexividade esperada das etnografias pós-modernas, sua discussão é bem ilustrada com interpretações de suas experiências e citações de seus informantes. Seu estilo é, contudo, por vezes, seco e conceitual, mas esse é um preço menor a pagar por uma análise rica em detalhes etnográficos maravilhosos e idéias iluminadoras. Além disso, o trabalho de Erikson é historicamente situado de um modo que poucas etnografias amazônicas o são. O autor mostra que os Matis do Brasil, entre os quais ele e sua mulher passaram doze meses entre 1985 e 1986, são os sobreviventes de epidemias devastadoras e que suas práticas culturais e as percepções de sua história foram inevitavelmente afetadas pela rápida diminuição de sua população. Seguindo uma lógica caracteristicamente amazônica da morte como fruto da ação humana, os Matis acreditavam ter atraído as doenças para si devido à falta de controle sobre seus próprios "poderes místicos". A resposta histórica para dar um fim ao que eles viam como sua autodestruição foi restringir a acumulação ritual de decorações corporais e tatuagens pelos indivíduos, de modo a frear o fardo do "amargo" entre eles.
O leitor pode erroneamente pensar que, por se tratar de uma etnografia especializada, ela é de pouco interesse para uma audiência antropológica mais ampla. Longe disso, a novidade teórica e a argumentação persuasiva da análise de Erikson derivam de seu sólido fundamento etnográfico, mas são inspiradoras para um contexto amazônico mais extenso, assim como para muitas outras sociedades espalhadas pelo mundo inteiro, onde princípios culturais são incorporados [embodied] em decorações, gostos e capacidades de trabalho. Embora evidentemente tributária do estruturalismo francês, a abordagem de Erikson evita com sucesso as armadilhas de polarizações abstratas e camisas-de-força dualistas. Como a fermentação, seu trabalho nos lembra o borbulhar da vida.
Tradução: Silvia Nogueira
Revisão técnica: Carlos Fausto
Revista Mana
Elvira Belaunde
Profª de Antropologia, University of Durham
Esse livro convencerá o leitor de que o que sai da boca das mulheres é digno da melhor pesquisa antropológica. Estou falando sobre cerveja, preparada com produtos da roça e fermentada com saliva feminina. A análise de Erikson das idéias matis de gosto revela uma lógica englobante modelada na preparação e transformação da comida "doce" bata em bebida "amarga" intoxicante chimu. O sabor, o autor demonstra, é a chave para o pensamento e a prática matis. Ele gera uma ordenação dual "doce/amargo" dos mundos social e da floresta, que não é estático e polarizado, mas dinâmico e processual, como a fermentação. O que temos aqui é uma lógica de diferenciação visando uma mistura apropriada de opostos, que favorece o crescimento e o controle sobre os extremos a-sociais. Fazer cerveja fornece uma metáfora-base a todos os processos de maturação, incluindo o crescimento de meninos e meninas, a acumulação de "poder místico" sho e o declínio da morte. Flagelações rituais, decorações corporais e o escurecimento da pele com tatuagens, em particular, são meios culturais de tornar o corpo "amargo", portanto, vigoroso e capaz de trabalho duro, em oposição a um corpo preguiçoso excessivamente "doce". Se o "amargo" é buscado ativamente, seu excesso é letal, pois se o concebe como conduzindo à perda de controle sobre os "poderes místicos" e à feitiçaria. Como a boa cerveja forte que é "amarga" e também levemente "doce", a idéia matis do social é a de uma proporção adequada de sabor.
O trabalho de Erikson trata de temas centrais às sociedades Pano, das quais ele afirma que os Matis constituem um caso típico. Embora não reivindique ter tocado em um princípio pan-amazônico, seus achados ecoam várias etnografias da região e fornecem inestimável alimento para o pensamento. Seu estudo põe um fim à popularidade outrora desfrutada pela hipótese de Siskind de que a troca de carne por sexo era a base da sociedade Sharanahua (também um grupo Pano), e, de fato, das sociedades caçadoras da floresta tropical em geral.
Erikson mostra que não é sexo, mas cerveja, a contrapartida feminina da comida, pois fazer cerveja é uma atividade misticamente tão poderosa quanto matar animais (e os caçadores são verdadeiramente sedentos de cerveja). Além do mais, a paixão matis pelo "amargo" e pelo trabalho pesado sustenta a interdependência dinâmica e a mistura dos gêneros. Homens trabalham para manter as mulheres, e vice-versa. Nenhum deles pode fazer sua parte sem a contribuição do outro. Isto não quer dizer que homens e mulheres tenham status iguais; mulheres são concebidas como "mais doces" que os homens, pelo menos até alcançarem a menopausa. Mas através de seus ciclos de vida e de seus trabalhos, ambos os gêneros crescem "amargos" e amadurecem à sua própria maneira. Como Erikson afirma, a diferenciação dos gêneros é um meio cultural de torná-los mais próximos por meio da cooperação.
Embora o autor se desculpe por seus escritos não conterem a reflexividade esperada das etnografias pós-modernas, sua discussão é bem ilustrada com interpretações de suas experiências e citações de seus informantes. Seu estilo é, contudo, por vezes, seco e conceitual, mas esse é um preço menor a pagar por uma análise rica em detalhes etnográficos maravilhosos e idéias iluminadoras. Além disso, o trabalho de Erikson é historicamente situado de um modo que poucas etnografias amazônicas o são. O autor mostra que os Matis do Brasil, entre os quais ele e sua mulher passaram doze meses entre 1985 e 1986, são os sobreviventes de epidemias devastadoras e que suas práticas culturais e as percepções de sua história foram inevitavelmente afetadas pela rápida diminuição de sua população. Seguindo uma lógica caracteristicamente amazônica da morte como fruto da ação humana, os Matis acreditavam ter atraído as doenças para si devido à falta de controle sobre seus próprios "poderes místicos". A resposta histórica para dar um fim ao que eles viam como sua autodestruição foi restringir a acumulação ritual de decorações corporais e tatuagens pelos indivíduos, de modo a frear o fardo do "amargo" entre eles.
O leitor pode erroneamente pensar que, por se tratar de uma etnografia especializada, ela é de pouco interesse para uma audiência antropológica mais ampla. Longe disso, a novidade teórica e a argumentação persuasiva da análise de Erikson derivam de seu sólido fundamento etnográfico, mas são inspiradoras para um contexto amazônico mais extenso, assim como para muitas outras sociedades espalhadas pelo mundo inteiro, onde princípios culturais são incorporados [embodied] em decorações, gostos e capacidades de trabalho. Embora evidentemente tributária do estruturalismo francês, a abordagem de Erikson evita com sucesso as armadilhas de polarizações abstratas e camisas-de-força dualistas. Como a fermentação, seu trabalho nos lembra o borbulhar da vida.
Tradução: Silvia Nogueira
Revisão técnica: Carlos Fausto
Revista Mana
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