sábado, 28 de janeiro de 2012

Troglodita é você! Pequeno guia darwiniano da vida cotidiana


Trogloditas somos nós
Livro traz curiosidades biológicas e mostra como a evolução se manifesta no comportamento humano

Sofia Moutinho

Por que há cada vez mais pessoas míopes no mundo? Por que grávidas têm enjoos? Devemos tomar uma aspirina quando temos febre? Essas e muitas outras perguntas são respondidas no livro Troglodita é você! Pequeno guia darwiniano da vida cotidiana, do pesquisador francês de biologia evolutiva Michel Raymond. Lançada no Brasil pela editora Paz e Terra, a obra descreve e explica, sob a ótica da teoria da evolução, comportamentos humanos que vão desde a preferência por algumas comidas até a orientação sexual.

A fácil leitura desse livro revela a manifestação da evolução humana no cotidiano. Evolução esta que nem sempre é sinônimo de progresso. Como nos conta o autor, a alergia, por exemplo, é algo novo em nossa sociedade. Esse mal, que atinge 40% das crianças apenas na França, é resultado da adaptação humana a um meio limpo. Com a maior higienização e a urbanização a partir do século 19, o nosso corpo deixou de ter contato com uma quantidade de microrganismos suficiente para que o sistema imunológico aprenda a se defender.

Em seus seis capítulos, a obra nos mostra que o homem é um animal altamente especializado, e, mesmo assim, não escapa das regras da biologia evolutiva. Possui, por exemplo, a cultura, que afeta o modo como evolui. É por causa da cultura de cada povo que alguns de nós conseguem beber leite depois de adultos sem problemas, enquanto outros passam mal só de pensar nisso. Curioso? O autor explica isso detalhadamente.

Explicação evolutiva
Tudo nesse livro é esclarecido por meio da evolução. Até mesmo o porquê das meninas gostarem de bonecas enquanto meninos preferem brincar de luta e com carrinhos. Então, se você for um aficionado por Freud ou antropologia provavelmente irá discordar de alguns comentários do autor. Raymond não hesita em tratar de assuntos polêmicos e defende que a homossexualidade é determinada por fatores biológicos e não por uma escolha individual. Ele também nos mostra que toda guerra – e não só a de Troia – tem como causa a disputa por uma mulher.

Ao longo do livro, o leitor irá se deparar com muitas desmistificações que podem parecer “politicamente incorretas” à primeira vista. No entanto, todas as afirmações, mesmo que por vezes irônicas, são cientificamente embasadas. Para não restarem dúvidas, há um espaço no fim do livro cuidadosamente dedicado a notas científicas que aprofundam a explicação sobre os temas tratados em cada capítulo.

Ao final da leitura, o leitor provavelmente não irá ficar chateado caso seja chamado de troglodita. Sim, segundo Raymond, trogloditas somos todos nós. Quando o que está em jogo é a luta pela sobrevivência, um resquício dos trogloditas do passado pode ser de grande ajuda.

Troglodita é você! Pequeno guia darwiniano da vida cotidiana
Michel Raymond
Tradução: Martha Gambini
São Paulo, 2009, editora Paz e Terra
256 páginas
Revista Ciência Hoje

A tribuna da ciência: as Conferências Populares da Glória



Darwinismo carioca
Livro analisa repercussão das ideias de Charles Darwin nos jornais do Rio de Janeiro no século 19

Isabela Fraga

No século 19, no bairro da Glória, no Rio de Janeiro, um ciclo de conferências para a disseminação das artes e da ciência trouxe à pauta popular um tema que já era alvo de polêmica na Europa e nas instituições letradas no Brasil: o darwinismo. Essas preleções não foram ignoradas pela imprensa, e os jornais cariocas tornaram-se veículo de repercussão e sedimentação das ideias nelas expostas.

É esse o tema do livro A tribuna da ciência: as Conferências Populares da Glória e as discussões do darwinismo na imprensa carioca (1873-1880), da historiadora paulista Karoline Carula. A partir de uma extensa pesquisa nos anais da imprensa do Rio de Janeiro do século 19, a autora busca mostrar de que forma esses veículos repercutiram as ideias – nem sempre alinhadas ao pensamento darwinista original – propagadas pelas conferências e sua importância na formação da opinião pública em relação ao conceito de raça.

Para exemplificar como o grande público assimilou a teoria darwinista, Carula fecha seu recorte histórico em 1880, ano de publicação do romance O Mulato, de Aluísio Azevedo. A boa recepção da obra pelas classes mais letradas foi um indício, para a autora, de que tanto as conferências da Glória quanto sua repercussão na imprensa ajudaram a preparar o público leitor para um romance de leitura darwinista.

Linguagem acadêmica
Por ser resultado da tese de mestrado de Carula, defendida na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), o livro apresenta muitas características de um texto acadêmico. Nos três capítulos que o compõem, as extensas notas de rodapé, a padronização de referências a teóricos (com o uso de termos em latim como ibidem, que indica a repetição da referência anterior) e a própria linguagem da autora podem cansar o leitor desacostumado ou sem familiaridade com o tema.

Para aqueles, no entanto, que já possuem certo conhecimento sobre as teorias de Darwin ou têm um foco mais direcionado no assunto, A tribuna da ciência se coloca como leitura interessante, tanto por seu lado mais voltado para a história da imprensa quanto pelo viés sociológico da análise.

Mas, acima de tudo, o tema tratado por Carula é de interesse geral, porque pretende responder a uma pergunta importante para compreender a história do pensamento no Brasil: como o processo de racialização da humanidade – que começou a acontecer naquela época – se apoiou em ideias que buscavam mostrar justamente o oposto? Afinal, como afirma a também historiadora Iara Lis Schiavinatto na apresentação do livro, a teoria darwinista é uma “argumentação em favor de uma sociedade de iguais”.

A tribuna da ciência: as Conferências Populares da Glória e
as discussões do darwinismo na imprensa carioca (1873-1880)
Karoline Carula
São Paulo, 2009, Annablume Editora
185 páginas

Revista Ciência Hoje

A goleada de Darwin


Uma partida e tanto
Com analogias ao futebol, livro usa evidências da evolução para rebater argumentos criacionistas

Barbara Marcolini

“Se a batalha entre evolucionismo e criacionismo fosse resolvida em uma partida de futebol, Darwin ganharia de goleada.” É o que afirma o biólogo Sandro de Souza, autor do recém-publicado livro A goleada de Darwin. Com base nas evidências científicas da evolução das espécies, a obra rebate os argumentos criacionistas que ainda hoje tentam pôr em xeque a contribuição do naturalista britânico Charles Darwin para a ciência mundial.

O embate entre evolucionismo e criacionismo, que há mais de um século gera polêmica, é o tema escolhido por Souza em sua estreia no segmento literário e na divulgação científica. A obra surge em meio às comemorações dos 150 anos da publicação do livro A origem das espécies, de Charles Darwin, e à existência de inúmeras manifestações de apoio ao criacionismo no Brasil e no mundo.

“A ideia do livro surgiu depois que escrevi um artigo para o jornal Folha de S. Paulo comentando as declarações da então ministra Marina Silva em defesa do criacionismo”, revela o autor. “Percebi que faltava ao público brasileiro uma obra escrita em português que servisse como uma introdução ao debate.”

Souza, que é especialista em genética e bioinformática e há 20 anos estuda o evolucionismo, passou um ano colhendo dados e informações que contribuíssem para a argumentação do livro. Além de contestar a hipótese criacionista com evidências do trabalho de Darwin e citar exemplos que ilustram a discussão, a obra mostra por que religião e ciência não devem se misturar. Com linguagem acessível, a narrativa agrada tanto a leigos quanto a especialistas.

Duas paixões

Darwinismo hoje
Para engrossar a lista de títulos lançados em comemoração aos 150 anos da publicação de A origem das espécies, chega às livrarias A evolução do Darwinismo, de António Bracinha Vieira, professor de evolução da Universidade Nova de Lisboa e autor de diversos livros sobre o tema. Com texto breve e coeso, Vieira mostra como a ciência tem produzido novas provas que sustentam a teoria da evolução pela seleção natural.


O autor destaca que a lógica evolucionista está presente em nosso dia-a-dia, seja na prevenção e no combate a doenças, nos empreendimentos agropecuários ou nas pesquisas feitas com animais. O livro é resultado da fusão dos textos que serviram de base para duas conferências ministradas pelo professor e conta com um glossário de expressões que facilita sua compreensão pelo leitor comum.

A analogia com o futebol deve-se à união entre as duas paixões do pesquisador. O resultado aparece, por exemplo, no capítulo "O gol contra de Deus", que aborda o argumento do desenho inteligente (uma vertente mais recente do criacionismo), e no apêndice "O golaço de Jones", que reproduz parte da sentença de um juiz norte-americano que refutou o caráter científico do criacionismo.

Uma das discussões presentes no livro diz respeito ao ensino do criacionismo a alunos do Ensino Fundamental. Souza alerta para a frequência com que a teoria tem sido levada às salas de aula em oposição ao evolucionismo e para os efeitos que essa abordagem pode ter sobre uma geração de estudantes. “Isso é um retrocesso. Espero que o livro sirva como um alerta para esse problema terrível”, declara.

Em relação à oposição entre ciência e religião, quem faz o gol é Souza. O autor expõe a opinião de intelectuais, estudiosos e até do papa Bento 16 sobre o assunto, e conclui: “Como dois fenômenos oriundos da mente humana, não há razão para acreditar que a ciência e a religião não possam coexistir em um mesmo indivíduo.”

A goleada de Darwin: sobre o debate criacionismo/ darwinismo
Sandro de Souza
Rio de Janeiro, 2009, Editora Record
224 páginas
A evolução do Darwinismo
António Bracinha Vieira
Rio de Janeiro, 2009, Vieira & Lent
120 páginas
Revista Ciência Hoje

A encruzilhada da nanotecnologia



O outro lado da inovação
Livro discute riscos e desafios associados ao desenvolvimento da nanotecnologia

Isabela Fraga

A nanotecnologia está na moda. Jornais, livros, revistas e artigos acadêmicos têm exaltado de forma entusiasmada o poder revolucionário dessa ciência inovadora que promete mudar a forma como encaramos e administramos medicamentos, exames médicos, a informática, entre outros. Como qualquer novidade, entretanto, a nanotecnologia não é unânime. Sua aplicação apresenta riscos e, por isso, requer ponderação e reflexão.

É justamente esse olhar mais crítico que o físico Peter Schulz demonstra em seu livro A encruzilhada da nanotecnologia: inovação, tecnologia e riscos. Professor da Universidade Estadual de Campinas, Schulz utiliza uma linguagem simples e direta para discutir os riscos da nanotecnologia em diferentes áreas (como a médica e a ambiental) – e, principalmente, os possíveis problemas de considerarmos essa ciência perfeita.

Schulz faz inicialmente uma breve contextualização do tema ao tratar dos conceitos de invenção, inovação e risco, com direito a fartos exemplos históricos de inovações anteriores – como o telefone – e suas repercussões na sociedade.

É no terceiro capítulo (de um total de 18) que o físico começa a tratar especificamente da nanotecnologia. A abordagem de questões como o mercado da nanociência e o seu apelo ao público dá um novo enfoque ao tema, que em geral é analisado somente do ponto de vista técnico e potencialmente revolucionário.

Esse é o diferencial do livro de Schulz: a articulação entre a discussão técnica e o público, com foco na aplicação realista da nanotecnologia. Referências a filmes populares, exemplos de histórias em quadrinhos e de produtos oferecem elementos familiares aos leitores leigos, que em princípio podem não se atrair por temas científicos.

Nem oito, nem oitenta
Mas o autor não se limita a bases históricas ou lúdicas para construir seu argumento de relativização da nanotecnologia. Artigos, opiniões de cientistas e relatórios oficiais recentes são utilizados para exemplificar a posição exagerada, tanto otimista quanto pessimista, em relação aos frutos da nanociência – que ora é encarada como a cura para todos os males, ora como uma bomba-relógio.

A mensagem de Schulz é, afinal, de incerteza. “Ainda não sabemos o que será de fato a nanotecnologia na nossa sociedade”, escreve o físico. Em meio a tantas promessas e projeções pessimistas, só nos cabe buscar avaliar essa ciência da forma mais consciente possível.

Para isso, afirma o autor, é necessário considerar em conjunto os diferentes atores que têm peso sobre o crescimento da nanotecnologia – o público, os cientistas e o governo –, para que essa ciência se desenvolva de maneira saudável e adequada.

A encruzilhada da nanotecnologia: inovação, tecnologia e riscos
Peter Schulz
Rio de Janeiro, 2009, Vieira & Lent
128 páginas

Revista Ciência Hoje

A extinção dos tecnossauros

Êxitos e fracassos
Livro resgata história dos carros voadores e de outras inovações tecnológicas que deram errado

Ivan da Costa Marques

Você quer deixar de ter aquela velha opinião formada sobre questões de ciência, tecnologia e sociedade? O livro A extinção dos tecnossauros, de Nicola Nosengo, oferece uma visita guiada com o intuito de “aproveitar os fracassos, que são momentos de crise de um sistema, para evidenciar os lugares-comuns nos quais se baseia nossa percepção da inovação tecnológica”.

Privilegiando o prazer de contar histórias sobre a elaboração de teorias, ele afirma também que a história de um fracasso é geralmente mais interessante que a de um êxito porque as histórias de sucesso são mais parecidas entre si, uma ideia já celebrizada por Tolstói: “Todas as famílias felizes são parecidas entre si, cada família infeliz é infeliz a seu modo”.

Tal como o arranjo das salas em um museu bem arquitetado, o desfile de tecnologias que não emplacaram está organizado em capítulos de narrativas vivas, mas nem por isso fantasiosas ou historicamente mal referenciadas. Os fracassos de Thomas Edson, seja com o sistema elétrico de registro de voto, patenteado em 1869, seja com o caso mais conhecido do fonógrafo, ressaltam que “um inovador tem sucesso quando acerta em cheio a combinação de elementos [heterogêneos]”.

A ideia de uma separação nítida entre sucesso técnico e fracasso comercial ou ainda a complexidade da configuração de padrões são problematizadas por um olhar atento que enxerga que “no fundo, as coisas não foram tão mal para o sistema de gravação Betamax”.

Correio pneumático e carro elétrico
O caso do correio pneumático, que desapareceu das grandes cidades onde existiu por muitas décadas, mostra que “grandes sistemas podem ser considerados verdadeiramente concretizados apenas quando atingem um ponto [provisional] de não retorno.” O caso da recorrentemente frustrada espera pelo carro elétrico ilustra que não se entra duas vezes no mesmo rio da tecnologia, pois “aquele carro elétrico permaneceu uma promessa não cumprida”.

O fracasso do videofone ressalta que “a ausência de imagem é uma qualidade [e não uma limitação] do telefone.” A inexistência do carro voador é vista como evidência de que “os grandes sistemas técnicos precisam de um complexo aparato legislativo e logístico para funcionar, e é esse fator, só em parte influenciável pelo progresso técnico, o decisivo”.

As batalhas entre o CD e o velho vinil, o long playing, ilustram que “nenhuma indústria, por mais unida e bem organizada que seja, pode impor uma inovação.” O caso da longevidade da fita cassete ilustra uma “espécie de hierarquia informal, [pois ela] se aproxima, mais do que o disco, de uma tecnologia de rede, no sentido de que sua utilidade depende em maior medida da sua difusão, de sua ‘troca’ no interior de uma trama de relações sociais.”

A televisão, o empreendimento econômico do Japão no pós-guerra, as características da escrita em uso no extremo Oriente, a evolução do mercado telefônico no Ocidente, o aparecimento de instituições transnacionais para a padronização de aparelhos eletrônicos configuraram a “primavera tardia do fax.”

Um exame do estabelecimento de padrões mostra como as regras do jogo da concorrência podem se modificar e como a afirmação de um padrão pode “ser determinada mais pelas expectativas sobre o futuro do que pelas considerações sobre o presente.”

Metáforas para uma teoria da inovação
As limitações e mesmo as controvérsias relatadas no livro podem ser melhor percebidas quando se chega ao último capítulo. O autor desenvolve ali uma breve apresentação de “metáforas para uma teoria da inovação”, após o desfile no qual seu faro de perdigueiro soube identificar e apontar a heterogeneidade do mundo em que se configuram “redes sem costura”.

Talvez o uso mais intenso e explícito destas mesmas metáforas durante a descrição dos casos tornasse mais visível também as semelhanças, as maneiras como as coisas se juntam na heterogeneidade. Mas Nicola Nosengo está consciente da opção que fez: “em primeiro lugar vêm as histórias – e o prazer de contá-las –, em seguida vem a especulação teórica...”.

No entanto, além disso, e aí talvez com maiores conseqüências, o último capítulo surpreende o leitor atento ao revelar um anseio por uma “verdadeira essência da tecnologia”, o que leva Nicola Nosengo a concluir o livro singularizando o que considera “provavelmente o mais ambicioso esforço realizado até agora para modelar e compreender o processo de inovação”, mas um esforço que parece trazer em seu bojo, tal qual um cavalo de Troia, marcações e separações pretensamente universais que o restante do livro tanto ajuda a afastar.

Mas isto de maneira alguma tira do livro seu mérito e atração: um texto leve e bem humorado que abre seriamente as portas para o tipo de construtivismo realista-relativista dos “novos” estudos de ciência-tecnologia-sociedade.

A extinção dos tecnossauros – histórias de tecnologias que não emplacaram
Nicola Nosengo (tradução: Regina Silva)
Campinas, 2008, Editora Unicamp
320 páginas

Ivan da Costa Marques
Instituto de Matemática,
Departamento de Ciência da Computação,
Universidade Federal do Rio de Janeiro
10/06/2009
* Texto publicado originalmente no número 2 do Jornal de Resenhas.

Revista Ciência Hoje

Conversa sobre a fé e a ciência

Quando ciência e fé dialogam
O tema é antigo, mas a abordagem surpreende. O teólogo Frei Betto e o astrofísico Marcelo Gleiser mais concordam do que discordam em novo livro que traz um diálogo sobre questões científicas e religiosas.
Gabriela Reznik


O teólogo Frei Betto (à esquerda) e o físico Marcelo Gleiser (à direita) têm visões muitas vezes complementares sobre questões científicas e religiosas no livro ‘Conversa sobre a fé e a ciência’. (fotos: Rose Brasil/ABr – CC BY 2.5; e Marcelo Gleiser)
Discussões sobre ciência e fé não costumam acabar bem. Muitas vezes a dicotomia esconde outra polaridade: o ateu versus o religioso. Mas esse não é o caso do diálogo travado entre o astrofísico Marcelo Gleiser e o teólogo Frei Betto, mediado por Waldemar Falcão no livro Conversa sobre a fé e a ciência.

Gleiser, físico brasileiro radicado nos Estados Unidos, se considera judeu agnóstico; Frei Betto, frade católico, escritor e jornalista nascido e residente no Brasil, vê Deus e espiritualidade como amor e doação. Ambos fazem da meditação uma prática diária. No livro, trazem reflexões consoantes acerca do lugar que esses temas ocupam na sociedade. Muitas vezes, não se sabe quem está em defesa de qual.


Capa do livro ‘Conversa sobre a fé e a ciência’.A narrativa começa com Gleiser e Frei Betto contando suas trajetórias de vida e como, por linhas tortas, receberam os rótulos de homem de ciência e homem de fé.

Gleiser relata que seu primeiro desejo era ser músico, mas, aos 14 e 15 anos, os livros do físico alemão Albert Einstein (1879-1955) o consumiram. O menino desejava experimentar, assim como o cientista, o mistério e o desconhecido. Enquanto Gleiser lia os físicos, Frei Betto, com a mesma idade, se engajava politicamente em encontros periódicos mediados por frades dominicanos e nos quais discutiam teologia, filosofia e temáticas sociais.

O livro, escrito na forma de diálogos, mantém uma linguagem leve e coloquial e nos aproxima dos interlocutores, como se estivéssemos com eles nos jardins do Hotel Santa Teresa, no Rio de Janeiro. A obra foi consumada lá, ao longo de quatro dias, e o fluxo de assuntos ocorre como na troca de ideias cotidiana.

Ao contrário do esperado, é difícil encontrar um ponto de discordância ao longo do diálogoA conversa se encaminha para as supostas divergências e as aproximações entre as ciências – com ênfase para a pluralidade, destacada pelos dois – e a fé. Ao contrário do esperado, é difícil encontrar um ponto de discordância ao longo do diálogo; os argumentos são em geral complementares.

Gleiser tenta desmistificar o estereótipo do cientista como ser mais racional que os demais e vê, em sua atividade, uma relação espiritual com a natureza. “Não existe uma incompatibilidade entre espiritualidade e ciência”, afirma. E explica: “Muito pelo contrário, o cientista é uma pessoa que dedica toda uma vida ao estudo da natureza, justamente porque é apaixonado por ela. Senão qual seria a graça?”

Relações de poder
Uma das abordagens interessantes do livro diz respeito a como a relação da ciência e da fé com o poder se transformou ao longo dos séculos na sociedade. Na Idade Média, a fé regia a vida e os valores. Exemplo disso é que a inquisição medieval impediu que inúmeros conhecimentos científicos viessem à tona, como foi o caso da observação de que a Terra girava ao redor do Sol, feita pelo cientista italiano Galileu Galilei (1564-1642), que foi condenado à prisão domiciliar e impedido de divulgar sua obra.


A valorização da fé durante a Idade Média foi responsável por impedir a divulgação de conhecimentos científicos para a sociedade, como a observação de que a Terra girava ao redor do Sol feita por Galileu Galilei (retratado na tela de Justus Sustermans, de 1636).Na modernidade, a racionalidade se sobrepôs à fé cristã e assumiu o topo de um pedestal. Foi nesse contexto que a ciência, como instituição, se constituiu. Ter conhecimento passou a ser sinônimo de ter poder, controle e potencial de transformação.

Hoje, um dos paradigmas que regem nosso modo de vida é o mercado. A ciência e a fé, como instituições, estariam sujeitas à mercantilização de seus serviços e diante de uma crise ética. Gleiser e Betto analisam longamente essa questão, ponderando entre os benefícios que a ciência traz para a vida cotidiana e as diretrizes que ela assume devido a interesses de mercado.

Frei Betto, que já foi assessor especial do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e coordenador do programa Fome Zero, reforça o viés político do diálogo, afirmando que, apesar dos avanços científicos e tecnológicos ocorridos desde o período medieval, a socialização dessas conquistas não ocorreu.

Gleiser e Frei Betto não se furtam de falar sobre o fundamentalismo, postura muitas vezes responsável por fazer o embate entre ciência e fé terminar em briga. “Nós precisamos baixar a bola, ter humildade; a falta de humildade leva ao fundamentalismo”, analisa Frei Betto.

Independentemente das convicções de cada um, Frei Betto e Marcelo Gleiser mostram, em Conversa sobre a fé e a ciência, que esses dois mundos podem, sim, dialogar. “Temos que desenvolver, por meio da ciência, a busca da verdade pelos caminhos da dúvida e a busca de Deus pelo caminho da tolerância”, pondera o frade.

No último capítulo do livro, Gleiser filosofa sobre a ligação intrínseca entre ciência e fé: “Aprendemos que somos feitos de poeira de estrelas, que estamos no cosmo e o universo está em nós. Para mim, essa união é profundamente espiritual e nos foi revelada pela ciência.”

Conversa sobre a fé e a ciência
Frei Betto, Marcelo Gleiser e Waldemar Falcão
Rio de Janeiro, 2011, Editora Agir
334 páginas


Revista Ciência Hoje

O gênio em todos nós

Para derrubar o mito dos genes
Livro mostra por que a diferença entre as pessoas comuns e os grandes gênios não está no código genético e conta como Da Vinci, Dante e Beethoven alcançaram a genialidade.

Catarina Chagas


O que diferencia Einstein, Mozart e Michael Jordan de tantos que, na mesma época, desenvolviam teorias científicas, compunham ou jogavam basquete? Novo livro de David Shenk foge do determinismo genético para debater a questão. (fotos: Wikimedia Commons)
“Tudo o que você ouviu falar sobre genética, talento e QI está errado.” É assim, logo na capa de seu novo livro, que o jornalista David Shenk começa a provocar o leitor. O gênio em todos nós é, aliás, provocativo do começo ao fim. Seu objetivo maior é mostrar ao mundo que nem tudo está escrito nos genes e que nosso DNA não é capaz de determinar nosso futuro profissional ou intelectual.

O autor argumenta que Einstein, Mozart, Michael Jordan e outras personalidades não se destacaram na ciência, na música e no esporte por um acaso genético. Em vez disso, a forma como foram treinados, a dedicação com que trabalharam e o contexto em que viveram fez toda a diferença.

Explicar como isso acontece, porém, não é tarefa fácil, como admite o próprio autor. “Ajudar o público a entender a interação gene-ambiente é uma tarefa especialmente árdua, pois é de uma complexidade monstruosa”, escreve.


Motivado por esse desafio, Shenk compila uma série de pesquisas e informações históricas que ajudam a sustentar sua hipótese. Cada capítulo do livro é recheado de exemplos reais, nomes de cientistas e seus trabalhos.

Na primeira parte, o foco é desmistificar a inteligência e outras capacidades especiais, como o dom. Começando por explicar o funcionamento dos genes, o autor procura mostrar como o ambiente interfere no desenvolvimento da personalidade, do comportamento e da saúde, além de introduzir o conceito de “desenvolvimento dinâmico” para substituir o binômio inato + adquirido. Ele argumenta que a inteligência deve ser vista como processo e que, portanto, pode ser aprimorada ao longo da vida.

Shenk conclui que os talentos não são dons inatos, mas resultados do desenvolvimento pessoal desde o momento da concepção. Embora admita que nem todos nasçam com o mesmo potencial para certas atividades, o autor afirma que “ninguém é geneticamente destinado à grandeza” e que “poucos são biologicamente incapazes de alcançá-la”.

A combinação entre DNA e ambiente é que faz um verdadeiro talentoPara concluir a argumentação, procura explicar como as diferenças entre gêmeos idênticos, os exemplos de crianças prodígio, os talentos tardios e as aglomerações de talentos em determinados grupos étnicos podem corroborar a ideia de que, mais do que simplesmente o código genético, a combinação entre DNA e ambiente é que faz um verdadeiro talento.
Sangue e suor



Shenk defende que a genialidade é fruto do contexto sociocultural e de trabalho árduo. (foto: Ove Tøpfer/ Scx.hu)


Já a segunda parte do livro tem um propósito, digamos, mais prático: sabendo que não somos fadados geneticamente ao fracasso ou ao sucesso, como explorar ao máximo nosso potencial e alcançar a grandeza dos gênios?

Apesar dos títulos que lembram livros de auto-ajuda (por exemplo, 'Como ser um gênio' ou 'Como arruinar (ou inspirar) uma criança'), o autor garante: “este, na verdade, não é um livro sobre a genialidade no sentido convencional do termo. Ele não é um manual que lhe diz como você também pode ser igualzinho a William Shakespeare”.

A genialidade chega apenas para aqueles que a perseguemOs capítulos seguem, então, oferecendo exemplos históricos que provam que a genialidade chega apenas para aqueles que a perseguem. A diferença entre cada um de nós e grandes gênios como Da Vinci, Dante e Beethoven não reside no fato de que eles seriam grandes e nós, comuns por natureza, mas na forma como foram moldados para se tornarem gênios.

Um alívio para alguns, certamente – e a perspectiva de muito trabalho pela frente para outros.

O gênio em todos nós
David Shenk
Rio de Janeiro, 2011, Editora Zahar
358 páginas
Revista Ciência Hoje

Polegares e lágrimas – e outras peculiaridades que nos tornam humanos

Revelações de lágrimas ao dedão do pé
Os polegares, as lágrimas, o beijo, os dedões do pé, o riso e a faringe: de que maneira eles nos modelam e nos definem como homens? Um livro procura explicar o desenvolvimento da espécie humana a partir desses seis elementos reveladores.

Larissa Rangel

No livro, Chip Walter fala de características humanas a partir de seis elementos: polegares, lágrimas, beijos, dedões do pé, risos e faringe (fotos: Wikimedia Commons e Sxc.hu/ Montagem: Júlia Dias Carneiro).
Você já parou para pensar sobre a importância de nossos dedões para que fiquemos de pé, ou de nossos polegares para manipularmos ferramentas? Já procurou entender por que choramos, beijamos ou rimos? Pois essas são algumas questões essenciais para se entender o desenvolvimento da espécie humana, defende o jornalista especializado em ciência Chip Walter.

No livro Polegares e lágrimas – e outras peculiaridades que nos tornam humanos, o escritor norte-americano analisa como essas seis características nos definem, como elas surgiram e como estão em constante mudança na nossa estrada evolutiva.

O homem compartilha parte do material genético dos chimpanzés, escreve Walter. Mas, em algum momento da evolução, seguimos um caminho diferente dos demais primatas – e esses seis elementos ajudam a explicar onde começa e aonde chega essa nova estrada.


O livro fala de evolução e comportamento de maneira divertida (imagem: reprodução).Aprendemos a nos comunicar por meio de sons específicos graças ao aprimoramento na nossa faringe. Começamos a andar em postura ereta porque nossos dedões foram se desenvolvendo para sustentar o nosso peso. Passamos a sentir emoções e refletir sobre a vida justamente pela mudança de tamanho e formato do nosso cérebro. Ao longo do livro, Walter explica como essas e outras características se desenvolveram na batalha pela sobrevivência.

Antes de partir para os exemplos específicos, Walter fala sobre as teorias de evolução do homem, apresentando tanto as ideias defendidas por Charles Darwin quanto as de Stephan Jay Gould.

O evolucionista norte-americano acreditava que as espécies podem ter sofrido mudanças abruptas em momentos pontuais, enquanto para Darwin a evolução das espécies ocorreu progressivamente. O britânico relacionava mudanças de comportamento às alterações ambientais. Para ele, as adaptações estavam associadas à sobrevivência. E um dos pontos principais dessa teoria é justamente a seleção sexual, ou a competição pelo sexo oposto.

Machos e fêmeas. E o beijo.
Segundo Walter, as complexas relações humanas são fundamentais para a vida, e também estão relacionadas à evolução, que acompanhou adaptações de comportamento. Por exemplo: o cérebro humano cresceu tanto que o tamanho da cabeça do bebê tornaria o parto inviável para a mãe. Mas o órgão se desenvolveu dividido em oito partes, permitindo que a cabeça humana se mantivesse maleável o suficiente para o nascimento. Isso comprova que nascemos todos prematuros e continuamos a crescer por mais um terço de nossas vidas.

Com os filhotes mais frágeis, as mães passaram a ser mais exigentes, à procura de pais mais cuidadososSe a reprodução bem-sucedida depende da escolha pela fêmea de um macho ideal, a fragilidade do recém-nascido também influiu na determinação do que seria este ideal. Com os filhotes mais frágeis, as mães passaram a ser mais exigentes, à procura de pais mais cuidadosos.

Aí está a semente para a monogamia, a fidelidade e a maior ligação entre pais e filhos, se comparado com os demais primatas. O ciúme é reflexo da preocupação em garantir a uma reprodução bem-sucedida.

Já o impulso para o beijo é atribuído por muitos cientistas aos feromônios. Eles são substâncias químicas utilizadas na comunicação entre indivíduos de uma mesma espécie. A alimentação também estaria relacionada ao desejo de beijar – o ato de ter a comida dada na boca durante os primeiros anos de vida indica carinho e atenção.

E tamanha é a importância dada ao sexo oposto que, numa conversa, usamos dois terços de nossa capacidade de comunicação para tratar de emoções e experiências pessoais com o nosso “par”, calcula Walter.

Falar, rir ou chorar
A linguagem articulada é outra singularidade dos seres humanos, e uma das mais importantes. Uma teoria para explicar seu surgimento é de que passamos a imitar os sons da natureza. De acordo com Walter, porém, a fala teria surgido há apenas 100 mil anos graças a mudanças ocorridas na faringe depois que os homens passaram a andar eretos – o que, por sua vez, está relacionado ao desenvolvimento do nosso dedão do pé.

Só conseguimos rir de cócegas feitas por pessoas íntimas a nós – caso contrário, será uma situação constrangedora e incômodaO nosso comportamento atual também está relacionado ao desenvolvimento do corpo. Só rimos, por exemplo, porque a forma como controlamos a respiração nos permite emitir sons ao mesmo tempo. E só podemos fazer isso porque andamos sobre duas ‘patas’, e não quatro. Além disso, só conseguimos rir de cócegas feitas por pessoas íntimas a nós – caso contrário, será uma situação constrangedora e incômoda.

Da mesma forma, o costume de chorar é único. O homem é o único animal que o faz por razões emocionais. O choro, mais que o riso, é uma importante ferramenta de comunicação. No início da vida, ele é a expressão de necessidades vitais básicas, como fome ou dor, hábito claramente instintivo.

Chorar é a maneira de liberar os hormônios que nos deixam tristes. E rir é a maneira de curarMas no livro aprendemos que o choro com propósito fisiológico é quimicamente diferente do emocional, que tem mais hormônios ligados a estresse, tristeza, ansiedade ou felicidade. Os nervos conectados às glândulas lacrimais passam por todo o cérebro e, por isso, choramos por tantos motivos diferentes.

Chorar é a maneira de liberar os hormônios que nos deixam tristes. E rir é a maneira de curar. O riso, por outro lado, libera substâncias como noradrenalina, endorfina e encefalinas analgésicas, que reduzem a sensação de dor e estresse, e acalmam. Entendemos, assim porque “rir é o melhor remédio”.

Ao ler essas e outras explicações de Chip Walter, apresentadas de maneira tão leve e divertida em sua obra, compreendemos um pouco mais sobre o que é ser humano. Entendemos que não somos subproduto da evolução, mas agente dela; e que, portanto, não há comportamento e explicação definitivos. O autor ainda arrisca algumas previsões para o futuro do homem, relacionando a tecnologia ao aparecimento dos cyber sapiens, como ele chama os robôs.

Será que, dos primatas, passaremos a nos comparar com robôs?
Larissa Rangel
Revista Ciência Hoje

Polegares e lágrimas – e outras
peculiaridades que nos tornam humanos
Chip Walter
320 páginas – Editora Record

sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

O mapa fantasma



O mapa fantasma - como a luta de dois homens contra o cólera mudou o destino de nossas metrópoles*

Selene Herculano
Departamento de Sociologia da Universidade Federal Fluminense - UFF

É um livro diferente e fascinante: o assunto - a história da epidemia de cólera na Londres de 1854, que seria um tema científico de leitura árida e austera, é lido por nós de um só fôlego, como se fosse uma obra de suspense. Nele também se encontra boa matéria para se discutir metodologia de pesquisa, da busca às escuras da relação de causa e efeito entre fenômenos e de como, apesar de se desconhecer então a existência da bactéria causadora - o vibrião do cólera - através de observações metodológicas meticulosas, pôde se chegar ao seu foco epidêmico: a bomba d'água da Broad Street.

O livro conta a história da epidemia de cólera que se abateu sobre Londres, em 1854, nas cercanias do Soho, tendo seu epicentro em Berwick St e Broad St (desde 1936 denominada Broadwick St), próximo à então elegante Golden Square. O Soho é descrito como sendo então uma área decadente, uma ilha de pobreza proletária e de indústrias malcheirosas encravada no próspero West End e rodeada pelas casas opulentas de Mayfair e Kensington. (Como uma nota curiosa sobre as camadas urbanas e os usos contrastantes de uma mesma área ao longo do tempo, o autor rememora que o elegante distrito de Golden Square erguia-se sobre o que fora "o campo da peste de Craven", um cemitério a céu aberto onde se amontoavam as vítimas da peste de 1665.)

Londres era então "[...] uma metrópole vitoriana - com dois milhões e meio de habitantes - às voltas com uma estrutura pública elisabetana [...]" (JOHNSON, 2008, p. 15). O livro a descreve como uma cidade imunda, com profissões bizarras, tão numerosas quanto necessárias: catadores de fezes, de ossos, limpadores de fossa, catadores de lixo, que faziam parte de um comércio estabelecido que atendia às necessidades de remoção de dejetos urbanos e de captação de fertilizantes para a agricultura. Eram tais profissionais uma subclasse numerosa que mantinha em operação todo um sistema de processamento de dejetos. Sua presença é tanto mais crucial em sua importância se nos lembrarmos, como salienta o autor, que o tamanho da população urbana estava então limitado pela fertilidade do solo circundante que abastecia a cidade. Restituir à terra os dejetos urbanos fechava portanto um circuito lógico. Os "homens-tonéis", os "homens-buraco" e os "homens-corda", categorias da equipe dos limpadores de fossa, desempenhavam um trabalho repugnante, mas de rendimento alto. Todavia, sendo Londres uma cidade plana e em expansão, levar o carregamento de fezes até o perímetro agrícola da cidade significava fazer uma viagem cada vez longa, o que encarecia o serviço e aumentava os rendimentos dos limpadores. Nem todos podiam pagar, o que resultava no acúmulo de excrementos em porões que transbordavam. Londres, literalmente, estava afogada em merda. Londres fedia. Para piorar as coisas, os indigentes mortos aos milhares pelo cólera eram empilhados em cemitérios a céu aberto em St. Bride.

O livro relata o embate entre duas teorias e providências da época para tentar explicar a doença e vencê-la: a teoria miasmática de Edwin Chadwick, do Comitê Geral de Saúde (1848), para quem tudo que cheirasse mal fazia mal. E a teoria da transmissão do cólera pela água, de John Snow, médico anestesiologista estabelecido no Soho e que se tornou cirurgião da rainha.

Chadwick culpou a fedentina daquela Londres imunda, atribuindo aos ares pestilentos a causa da epidemia e sua providência inicial foi encharcar as ruas com cloreto de cal. Dando prosseguimento ao trabalho de sanear Londres, promulgou-se a lei de remoção de estorvos e prevenção de doenças contagiosas, que obrigava que as casas se conectassem ao sistema de esgoto então existente mas que tinha sido concebido apenas para dar vazão às águas de superfície da cidade. Até 1815 era proibido tal lançamento e as águas do Tâmisa foram descritas como imaculadas e piscosas; 35 anos após, tornara-se um rio poluidíssimo, "a fossa de todos". Diz o autor: "[...] ninguém morreu por causa do fedor da Londres vitoriana. Dezenas de milhares morreram, entretanto, pois o medo da pestilência os cegou para os verdadeiros perigos da cidade e os levou à implementação de uma série de reformas mal direcionadas que apenas agravaram a crise [...]" (JOHNSON, 2008, p. 25). Ou seja, a água e detritos da fossa contaminada, que estavam restritos à Broad Street, foram parar no Tâmisa e se espalharam.

O afã de encontrar e isolar a causa dos males e doenças frequentemente induz a erros e as soluções saem pela culatra e podem piorar o quadro. O autor frisa este ponto, ilustrando com a lembrança da peste de 1665-66, quando a população exterminou em massa cães e gatos para terminar com a peste bubônica e ela se alastrou mais ainda, pois a peste era transmitida por ratos, cuja população cresceu sem a presença de seus predadores naturais.

Assim se deu com a solução de Chadwick para enfrentar a epidemia de cólera: ao ligar as casas ao sistema fluvial, a fim de que os excrementos fossem levados para longe e os miasmas se extinguissem, ele favoreceu que o então desconhecido vibrião se espalhasse por toda a região.

Durante todo esse período epidêmico, o médico John Snow fazia a leitura frequente dos Registros de Nascimento e Óbito que William Farr, do Departamento de Registros Gerais, tão diligentemente produzia. Snow passou a marcar as ocorrências de óbito no mapa da cidade. Ao mesmo tempo o pároco Henry Whitehead, em visitas ao seu rebanho de fiéis, historiava os casos nos seus detalhes. Nenhum deles estava informado sobre a existência do vibrião, mas deduziram - pelo mapa e por histórias de vida - que o cólera de alguma forma se propagava pela água da bomba da Broad Street, que era então muito procurada por fornecer uma água límpida e de bom paladar. A bomba foi lacrada, sob protestos. Escavações feitas em seguida descobriram que o poço ficara contaminado por uma fossa nas redondezas, onde se lançava os excrementos das pessoas coléricas.

A partir do primeiro mapa, com a localização da ocorrência das mortes, Snow preocupou-se em representar um novo mapa, com a circulação dos vivos em redor desta bomba e das 13 outras que abasteciam os moradores da área e lançou mão de uma ferramenta matemática que mais tarde seria conhecida como o Diagrama de Voronoi. Diz o autor: "[...] o mapa era um brilhante trabalho de informação e de epidemiologia. E também a representação de certo tipo de comunidade, representando as vidas densamente interligadas de um bairro metropolitano [...]" (JOHNSON, 2008, p. 181).

Um sistema completo de esgotamento e de elevatórias para o Tâmisa foi finalmente construído em 1865 pelo engenheiro Joseph Bazalgett e deu-se por eliminado o problema da contaminação miasmática, o que não correspondeu às expectativas por conta do mau funcionamento da East London Water Company, cujos filtros não funcionavam como se supunha: nova leva de mortos por cólera apareceu e 93% deles eram consumidores da água desta companhia. Tal ocorrência fez com que a teoria de Snow ganhasse sustento e passasse a ser seriamente considerada.

Tanto no epílogo do livro quanto nas suas páginas introdutórias, Johnson se preocupa em defender as grandes cidades das críticas usuais sobre seu gigantismo disfuncional e do sonho ambientalista de retorno ao campo. Para ele a densidade populacional urbana não será problema se houver uma eficiente reciclagem de resíduos. Compara os grandes centros urbanos às florestas tropicais em adensamento de formas de vida diversas, a diferença sendo que as florestas têm processos microbianos de decomposição, vale dizer, de reciclagem, de uso microbacteriano em seu favor e as cidades ainda não. Johnson defende o adensamento urbano: os habitantes das cidades têm maior expectativa de vida, o adensamento facilita a conexão da rede de saneamento e o tratamento de esgotos, bem como de energia e de abastecimento de alimentos. A grande cidade, resume taxativamente, oferece mais soluções que problemas: "[...] consideramos a densidade urbana uma força positiva: um mecanismo de sustentação de riqueza, de redução populacional e de sustentabilidade ambiental. Nossa espécie depende, agora, de densos centros urbanos como uma estratégia de sobrevivência." (JOHNSON, 2008, p. 213). Além do mais, a população adensada em pontos do território permite que áreas verdes, florestadas ou cultivadas, se estendam. Contudo, ele reconhece duas novas fragilidades decorrentes do adensamento e da vida urbana conectada por tantas redes: novas epidemias e o terrorismo.

Steven Johnson, nosso autor, é formado em Semiótica e em Literatura Inglesa e faz parte do Departamento de Jornalismo da Universidade de Nova York, sendo autor de outros livros já publicados no Brasil, como "De cabeça aberta", "Emergência" e "Cultura da interface". É um exemplo muito feliz da construção de um conhecimento multidisciplinar. O apêndice de seu livro, com dicas generosas de sites e de livros, vão desde a microbiologia ao urbanismo e à história social.

Autor para correspondência:
Seleno Herculano
Departamento de Sociologia, Universidade Federal Fluminense - UFF
CEP 24230-320, Niterói, RJ, Brasil
E-mail: selene@pq.cnpq.br

* Do original: JOHNSON; Steven. O mapa fantasma: como a luta de dois homens contra o cólera mudou o destino de nossas metrópoles. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008. 271 p.

Revista Ambiente e Sociedade

domingo, 22 de janeiro de 2012

Caricatura y poder político. Crítica, censura y represión en la ciudad de México, 1876-1888



Alexandre Andrade da Costa
Doutorando em História - Programa de Pós-Graduação em História - Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, Faculdade de Ciências e Letras de Assis. Avenida Dom Antônio, 2100 Parque Universitário 19806-900 - Assis, SP - Brasil. E-mail: aachistoria@yahoo.com.br

GANTÚS, Fausta. Caricatura y poder político. Crítica, censura y represión en la ciudad de México, 1876-1888. Ciudad de México: El Colégio de México, 2009, 441 p.

O renovado interesse dos historiadores no que concerne ao estudo das imagens, tema que ganhou novo ânimo devido à transformação ocorrida no campo historiográfico a partir dos anos 1970 e 1980, torna a leitura desta obra, ainda não traduzida, mais que oportuna. Os estudos culturais que, a partir de então, tomaram as diferentes formas de mídia não mais como mecanismo de comprovação de teses previamente estabelecidas mas, principalmente, como fonte primária que poderia contribuir para a compreensão das formas de atuação dos distintos grupos no espaço público, encontraram na iconografia um manancial de problemáticas e questionamentos.

A imprensa, diferentemente do que ocorreu no Brasil, onde só foi permitida no século XIX, esteve presente na história do México desde o século XVI. Todavia, as primeiras caricaturas, tema central do livro, surgiram somente na primeira metade do século XIX, por volta de 1847. A partir de então, elas foram utilizadas pelos diversos periódicos que circulavam na capital, ora para reforçar, ora para minar o poder estabelecido.

A preocupação precípua da autora nas páginas iniciais é explicar a periodicidade e a especificidade do objeto por ela analisado: as caricaturas. No que se refere à primeira questão, o livro trata da imprensa durante a etapa tuxtepecana, de 1876 a 1888, marcada pela chegada do general Porfírio Díaz ao poder.

Fausta Gantús apresenta, no que concerne à singularidade do gênero estudado, uma elaborada apreensão do que significa trabalhar com uma fonte complexa como a caricatura. De acordo com a autora,

[...] la caricatura es aquí un documento fundamental, cuya lectura y desciframiento permite entender la época en estudio observando las dinámicas de los enfrentamientos facciosos por el usufructo del poder y el papel que desempeñaba la prensa como parte de la estrategia de esas luchas entre grupos rivales; igualmente, es un recurso que permite descubrir la forma en que se generaban determinados imaginarios en torno de ciertas personalidades del momento. Asimismo, desde la sátira y el humor, posibilita el análisis de los discursos oficiales y contestarios y el develamiento de los intríngulis políticos (p. 19).

O livro é dividido em sete capítulos, sendo o último reservado às conclusões. No primeiro deles, La caricatura política en la prensa periódica de la Ciudad de México 1876-1888, Gantús insere o leitor nos debates políticos que mobilizaram intelectuais e caricaturistas na luta por um projeto de poder e de país que se utilizaram da imagem para forjar realidades com o fim de produzir e controlar os imaginários coletivos.

Uma questão fundamental discutida pela professora do Instituto de Investigaciones Dr. José María Luis Mora/México é a recepção desse material pela opinião pública mexicana, assunto problemático nos estudos de história da imprensa em virtude da falta de dados que comprovem como os indivíduos liam ou reagiam a determinados textos ou imagens. As caricaturas demandavam, para serem compreendidas, certo conhecimento das personagens envolvidas e ainda de questões relacionadas ao campo político, à cultura e à sociedade em geral.

Partindo dessa premissa, Gantús atribui dois prováveis níveis de leitura da referida iconografia a partir do capital cultural do leitor: o primeiro era composto por pessoas que se fixavam no sentido imediato da imagem, mais simplista; enquanto o segundo, compunha-se daqueles esclarecidos e engajados, que apreendiam as sutilezas e as mensagens implícitas que a imagem trazia a partir de sua visão de mundo.

No segundo capítulo, intitulado Los caricaturistas: trazos que dibujan filias y fobias, a autora discute o papel dos responsáveis pela criação dos desenhos que tinham por objetivo forjar realidades. Os caricaturistas mexicanos do século XIX eram homens de pouco dinheiro, sem reconhecimento social (diferentemente do que ocorria com os outros profissionais que trabalhavam em periódicos) que, compondo um grupo heterogêneo, tinham os traços determinados pelos proprietários dos órgãos aos quais se associavam. A autora elencou os nomes do "seleto grupo de engenhosas armas" (p. 106) e seus respectivos periódicos o que denota a preocupação em traçar um perfil do local de onde publicavam e de seus temas diletos.

Entre os citados, Gantús confere destaque a Daniel Cabrera, responsável pelas maiores críticas a Porfírio Díaz e preso inúmeras vezes, como consequência. Ele assinava suas obras com o pseudônimo Fígaro e, assim como o restante dos caricaturistas que tinham na figura presidencial seu principal tema, dedicou-se a dissecar as relações da cúpula do poder mexicano nesse início da profissionalização da profissão.

A relação entre o poder, os símbolos que o constituem e os governantes foi a temática discorrida no capítulo três, De la proclama tuxtepecana a la idea del 'hombre necesario'. La construcción de imaginarios a través de la caricatura política. A autora utilizou os conceitos de Maurice Agulhon para demonstrar que diferentemente dos símbolos que conferiam poder e status aos goverantes, "[...] la caricatura se vale de los mismos recursos que avalan al poder pero para enfrentarlo y cuestionarlo", (p.150).

As análises dos significados conferidos à cadeira presidencial, objeto de desejo, e da espada do general Porfírio Díaz, símbolo polissêmico, constituem o cerne do capítulo no qual Gantús descreve as caricaturas com um rigor metodológico substancial demonstrando como elas serviram aos críticos do governo porfirista. Uma vez na presidência, ao suceder Lerdo de Tejada, Díaz foi mostrado pelos caricaturistas como

[...] una persona de escaso brillo intelectual y un usurpador ambicioso; o lo que es lo mismo como un hombre ignorante, en algunos casos casi se le representaba como un tonto, y un tirano y así se le pintaba de manera franca y explícita (p. 190).

A Constituição do México não permitia a reeleição, projeto pelo qual Díaz se batera antes da chegada ao poder. Assim, uma vez concluído seu mandato, o general tratou de afiançar a candidatura de um aliado no intuito de que este último lhe devolvesse a cadeira, no quadriênio posterior. Esse aliado foi Manuel Gonzáles, "su compadre" (p. 195) que deu continuidade às políticas repressoras ao campo jornalístico.

Intitulado Las políticas de Lerdo, Díaz y Gonzalez en torno a la prensa, o quarto capítulo denota o esforço da autora em tecer uma análise comparativa dos governos dos três presidentes mexicanos no que se relaciona às mídias e às práticas repressoras. A partir dessa diretiva, Fausta Gantús conclui que havia uma permanência de disposições contrárias à liberdade de expressão iniciadas com Lerdo de Tejada, que enviou à prisão inúmeros jornalistas, e teve como corolário as sanções aplicadas por Díaz, que em um só dia emitiu ordens para que fossem presos redatores de sete publicações diferentes.

O governo ainda estimulou a criação de outros periódicos que combatessem os da oposição propugnando que a imprensa se combate a partir da própria imprensa, além de impedir que os dissidentes tivessem acesso ao papel, praxe no que se referia às relações entre a mídia impressa e o poder.

As ações governamentais regulatórias são demarcadas no capítulo cinco, Los marcos legal y jurídico para la instrumentación de una política de censura. El triunfo del gobierno sobre la prensa, no qual Gantús delineia que medidas foram implementadas e de onde elas emanaram. O governo mobilizou sua força na Câmara e no Senado para, sob o manto da legalidade, remover os obstáculos que o impedia de obter o comando da (in)formação da população mexicana.

Ambas as casas, pilares do regime democrático, concordaram em modificar um ponto específico do sétimo artigo da Constituição que sustentava a liberdade de expressão. A principal alteração ocorreu nas garantias que os acusados detinham quando sujeitos a um processo: ao invés de haver um foro próprio para os supostos delitos, a emenda de Díaz propunha que eles fossem julgados por tribunais comuns. Ainda no governo de Manuel Gonzáles, o projeto foi aprovado.

Quando Porfírio Díaz retornou ao poder, os mecanismos de censura estavam já instalados e seu papel foi o de impor aos inimigos a força da lei. Vários periódicos deixaram de circular vítimas da "psicologia", mote das explanações propostas no penúltimo capítulo, 'La psicología' o la revancha de la prensa con caricaturas. Entre el recurso legal represivo y la estrategia contestataria, 1885-1888. Nele, há a discussão sobre o destacado papel que os juízes teriam no que se referia à repressão aos crimes de imprensa. De acordo com a autora,

Con base en el análisis de los alegatos legales, podemos definir a la función psicológica como la facultad que dejaba al arbitrio de los jueces la estimación de posibles motivaciones e intenciones que pudieran primar detrás de determinados actos y, en circunstancias particulares, conferirles carácter delictivo (p. 337).

Ao atuar dessa maneira, o juiz seria capaz de 'captar una realidad más profunda' (p. 347), uma vez que, ao submeter o periódico, o texto ou a caricatura, que eram, em si, as evidências dos crimes, ele inferiria as intenções dos autores num processo que Gantús compara ao descrito por Carlo Ginzburg quando este autor trata do paradigma indiciário e da busca por sinais, rastros, fios que remeteriam o leitor atento ao detalhe perdido.

Não obstante as tentativas de coerção, Gantús recordou que a caricatura cumpriu seu papel. Por meio dos trabalhos dos artistas do traço, a autora

[...] encontró los espacios para elaborar un discurso de cuestionamiento que hiciera frente a las políticas gubernamentales tendientes a censurar y limitar la libertad de imprenta, cobijadas al amparo de un marco legal y jurídico que permitía la represión sin menoscabar la legitimidad del régimen (p. 383).

Nas Reflexiones finales, a autora retoma as premissas essenciais que discutiu ao longo da obra, a saber: a metodologia de trabalho com as fontes iconográficas, a relação conturbada entre a imprensa e o governo mexicano. A despeito das emendas constitucionais e das violências que emanavam do poder Executivo, as críticas se fizeram presentes durante todo o governo de Díaz o que evidencia que as tentativas de instalar um regime que controle totalmente a mídia, apesar de recorrente na América Latina, é natimorta: sempre há resistências.

Este livro, em virtude das brilhantes ilações advindas da interpretação das caricaturas, da rigorosa sistematização das diversificadas fontes apresentadas em tabelas e gráficos e da pertinente bibliografia que serve de esteio às análises, contribui de maneira efetiva para o debate acerca das fontes iconográficas em história dialogando com distintas abordagens que se vinculam, concomitantemente, à História Política e à História Cultural.
Revista História da UNESP

Les larmes de Rio. Le dernier jour d'une capitale (20 avril 1960)



Fernando Lobo Lemes
Doutorando em História. IHEAL - Institut des Hautes Études de l'Amérique Latine Université Sorbonne Nouvelle/Paris 3 fernandolobolemes@gmail.com

VIDAL, Laurent. Les larmes de Rio.Le dernier jour d'une capitale (20 avril 1960). Paris: Éditions Flammarion, 2009, 254p.

Constantinopla, Bizâncio e Istambul. Nomes diferentes para uma mesma cidade que ocupou, sucessivamente, a posição de capital de três grandes impérios: o romano, o bizantino e o otomano. Guardadas as devidas especificidades, a cidade do Rio de Janeiro também atravessou o tempo, através de um percurso que lhe emprestou uma feição muito particular: capital e ponto de convergência no centro-sul da América, no contexto do Império português, posteriormente, capital do Império e, mais tarde, capital e espaço de gestação da nova ordem republicana. Preservando sempre o mesmo nome, atravessou três grandes momentos da história do Brasil, sempre na posição privilegiada conferida pelo status de cidade-capital. Contudo, em 20 de abril de 1960, o Rio de Janeiro vive um acontecimento decisivo: a partir deste dia, não será mais a capital do Brasil. Os elementos que lhe conferem a condição de capital abandonam a cidade para se instalar em Brasília, novo símbolo da modernidade brasileira.

É sobre este evento particular que mergulha Laurent Vidal. Tomando o acontecimento como uma espécie de cruzamento de itinerários possíveis, o autor delineia uma narrativa que revela de forma surpreendente as expressões e os gestos dos atores que viveram aquele momento na cidade do Rio de Janeiro: as encenações elaboradas pelas elites políticas, os testemunhos dos cidadãos comuns e as palavras dos poetas, marcados por sentimentos e emoções que compunham a crônica de uma despedida anunciada.

A mobilidade das capitais ou sedes de governos foram registradas com certa frequência na história das cidades. Assim, desde os Impérios da Antiguidade às dinastias medievais europeias, o nomadismo de imperadores e monarcas sempre dificultou a identificação de suas capitais a uma cidade específica. Na história do Brasil, a transferência de capitais de uma cidade para outra, foi uma constante. Basta lembrar a mudança da capital, sede do vice-reinado, da cidade de Salvador para o Rio de Janeiro, em 1763. Mais tarde, seguindo uma tendência cada vez mais rara, este fenômeno se multiplica sobre o território nacional: as capitais das províncias do Piauí e Sergipe são transferidas, respectivamente, da cidade de Oeiras para Teresina, em 1852, e de São Cristóvão para Aracajú, em 1855. Em Minas Gerais, Ouro Preto perde seu estatuto de capital para Belo Horizonte, em 1897. Em Goiás, a capital é transferida de Vila Boa para Goiânia, inaugurada em 1942.

Embora frequente na história, a transferência do poder político (e das instituições que o acompanham) de uma cidade para outra nunca foi objeto de uma encenação especial. Da mesma forma, mesmo que alguma manifestação tenha sido organizada nestas ocasiões, jamais foi singular o suficiente para atrair a atenção dos contemporâneos ou de historiadores. Reside aqui um dos méritos da obra de Laurent Vidal: sua originalidade.

Les larmes de Rio constitui-se, certamente, na primeira referência, na historiografia das cidades, que não se detém apenas na avaliação da transferência institucional dos poderes políticos de uma cidade para outra. Mais que isso, trata-se de um estudo inédito que elege como objeto o momento da retirada dos aparatos políticos institucionais, lançando luzes sobre as estratégias utilizadas para a transferência das instituições que legitimam e revestem a cidade de sua condição de capital. Por meio de uma análise refinada pelos recursos metodológicos que utiliza, Laurent Vidal traz à superfície de suas reflexões os efeitos e as especificidades que fazem deste fenômeno um acontecimento singular e excepcional.

O interesse e o ponto de vista adotados pelo autor têm implicações mais amplas para a historiografia, pois fazem deste episódio um caminho privilegiado para observar as relações entre cidade e poder, a partir de um viés absolutamente inovador: abandonando a perspectiva positiva que aproxima cidade e poder, comumente associada às narrativas de fundação de cidades e das entradas triunfais (que já mobilizaram vasta literatura), Laurent Vidal lança um outro olhar sobre o tema, privilegiando o aspecto do distanciamento entre a cidade e o poder, consagrando como ponto de inflexão o momento em que o poder deixa a cidade. O maior mérito, contudo, desta perspectiva, que insiste em desvendar os laços e as conexões que se desfazem, pondo em evidência um processo fatal de separação, é apresentar a cidade como espaço de predileção do político, reatando, ao mesmo tempo, o seu vínculo indissolúvel, pois é no espaço real e virtual da cidade que se afirma o poder político.

Mas esta separação entre o político e a cidade implica sobretudo numa passagem: o poder federal deixa o Rio de Janeiro e, ao mesmo tempo, o antigo Distrito Federal deve desaparecer para dar nascimento a uma nova capital. A passagem do poder do Rio a Brasília. Não se trata, no entanto, de um simples traslado das instituições existentes no Distrito Federal. Afinal, a capital não é apenas o lugar de concentração dos órgãos da administração que constituem a natureza visível do poder político, é também um reservatório de forças de ordem espiritual. Neste sentido, a autoridade e a natureza do poder que legitima a cidade enquanto capital informa, antes de tudo, a existência de elementos e dados imateriais. É isto, exatamente, que estimula o esforço de Vidal.

Para além das provas materiais da transferência da capital, é necessário apontar os indícios e os efeitos do deslocamento deste poder imaterial, promovendo uma imersão no mundo dos sentimentos e emoções, perseguindo a ressonância dos acontecimentos no universo afetivo e sensível dos protagonistas. Em meio a uma confusão de sentimentos, as lágrimas são perceptíveis nos olhos da população do Rio. Assim, para emergir à superfície da história, o acontecimento deve se realizar no interior de percepções diversificadas e simultâneas que reenviam ao domínio dos afetos. Na narrativa de Laurent Vidal, a emoção parece constitui-se em um dos componentes da inteligência, onde os afetos assumem papel fundamental1.

Mas passagens deste tipo, como lembra o autor, são sempre acompanhadas de cerimoniais bem definidos. Na Roma Antiga, por exemplo, havia mesmo um deus que as governava: Janus, o deus de duas faces, uma voltada para o futuro e outra para o passado, deus dos começos e das passagens, da mudança e da transição, guardião dos cruzamentos, que abre e fecha as portas, vigia as entradas e as saídas. Coincidentemente, ao presidir a passagem do poder do Rio para Brasília, é esta a função que deve assumir Juscelino Kubitschek. É por isso que a despedida do Rio de Janeiro não poderia se limitar a um simples adeus. A morte de uma capital federal implica um luto cuja dimensão pouco banal o grande maestro da mudança tinha perfeita consciência. Era preciso velar pela passagem, afastando os fantasmas das incertezas e preencher os vazios deixados pela partida anunciada do poder.

Assim, a morte iminente da capital nacional seria acompanhada pelo anúncio do nascimento de outra capital: a do Estado da Guanabara. À ausência de um poder corresponderia a emergência de novas instâncias políticas. Contudo, como o destino não tem a pretensão de submeter rigorosamente os acontecimentos, deixa sempre um espaço vazio, uma margem de indefinição entre os episódios2, um inventário aberto de possibilidades. Por isso, seria Juscelino Kubistchek, presidente da república e idealizador de Brasília, encarregado de pacificar esta passagem, este momento incerto, organizando os cerimoniais da transferência da capital como um drama antigo, atuando, ao mesmo tempo, como autor, diretor e ator principal.

Fazendo do drama um mecanismo que permite compartimentar a trama vivida naquele 20 de abril, Vidal não despreza as dimensões sociais e a diversidade dos grupos existentes. De fato, percebe que o drama vivido pelos atores é entrecortado por uma situação de conflito que opõe, na malha dos tempos múltiplos da experiência coletiva, as várias figuras da vida social a um obstáculo comum3. Produzido socialmente, o acontecimento é apropriado de modos diferentes pelo conjunto dos grupos sociais, multiplicando leituras, sentimentos e percepções.

As variadas leituras do evento presentes nos discursos, nas falas e testemunhos, revelam, por outro lado, um outro recurso inovador utilizado pelo autor: uma sociologia da espera4. Neste episódio anunciado e vivido previamente, como é o caso da construção de Brasília e da transferência da capital federal, o estatuto do acontecimento existe antes mesmo que ele se produza de fato, levando o presente que se desenrola aos olhos dos indivíduos a estar subordinado ao futuro. Assim, o horizonte da espera também faz parte das lógicas mentais e organiza parte significativa do acontecimento5. Neste caso, o lapso de tempo que separa o anúncio e os preparativos para a mudança da capital e sua transferência propriamente dita é revestido de uma essência muito particular: descolado de uma cronologia ordinária, este intervalo se diferencia por um ritmo e uma amplitude própria. Portanto, este tempo de espera excita os atores, produz representações carregadas de sentidos, estimula esperanças, projetos, angústias, medos e inquietações. Estas emoções que afloram neste tempo virtual, ainda não realizado, são tomadas pelo autor como um horizonte da experiência dos agentes do drama, enquanto termômetro que permite medir a temperatura dos sentimentos coletivos na cidade.

Do nosso ponto de vista, é a arquitetura do acontecimento que parece sustentar o empreendimento de Laurent Vidal. Sua narrativa parte do pressuposto que o acontecimento tem uma duração que ultrapassa a simples temporalidade dos fatos que o constituem, como se o olhar do autor atravessasse longitudinalmente a cena, expondo o acontecimento em toda a sua riqueza e complexidade, pensando "através" das coisas e dos casos. Deixando nas estantes toda uma bibliografia que prega que a história é uma continuidade que se desdobra num tempo homogêneo, o autor parece denunciar o tempo vivido na história enquanto uma catarata de tempos6, em que múltiplas temporalidades coexistem e constituem uma mesma trama, interferindo nas percepções possíveis do atores.

Neste caso, num primeiro momento, o acontecimento aparece carregado de percepções e sensibilidades gestadas antes mesmo de sua plena efetivação. Em seguida, no interior do tempo peculiar ao evento propriamente dito, os agentes que o produzem ou a ele estão submetidos o fazem num contexto temporal e histórico que contém ao mesmo tempo seu passado, sua genealogia, sua forma presente e suas visões do futuro. Desta forma, seguindo a trilha deixada por Laurent Vidal e inspirados pelas ponderações de Arlette Farge, vemos que o acontecimento apenas pode ser definido a partir de um sistema complexo de temporalidades7.

Proposta de tal envergadura será, certamente, muito apreciada entre historiadores europeus e brasileiros que assistem, atualmente, ao advento de novas vias que se abrem à história social das cidades. Os novos trilhos para história urbana do Brasil devem provocar estudos mais atentos à multiplicidade dos tempos e dos ritmos sociais, colocando no centro das atenções dos pesquisadores os pontos e contrapontos das identidades e as incertezas das configurações socioespaciais na cidade8. Les larmes de Rio confere ao autor outros dois méritos indiscutíveis: primeiro, como guia que indica um caminho a seguir por entre as trilhas renovadas da história das cidades. Segundo, como autor que nos convida para um passeio incontornável por entre os traços, indícios e pistas deixados pelos protagonistas que viveram o último dia do Rio como capital federal.

Esta saída do poder político da cidade é narrada em duas partes principais. A primeira, "Quando o poder deixa a cidade", divide-se em oito capítulos que, após apresentar os atores principais, eleva as cortinas para descrever o cenário de uma separação dramática. Em quatro atos, desvenda a profundidade dos gestos e palavras utilizados por Juscelino Kubitschek, agentes políticos e a grande imprensa, cujo objetivo visa desfazer os laços complexos que ligam a cidade aos organismos que lhe conferem o estatuto de capital. Na segunda parte, intitulada "Poétique de L'événement", dividida em quatro capítulos, o autor dialoga com as fontes históricas e os protagonistas da época buscando pôr em evidência as diversas leituras realizadas pelos contemporâneos. Oferecendo a palavra aos poetas, explora seus testemunhos e suas imagens, mesclando suas intuições com as emoções suscitadas pela proximidade do evento anunciado. Assim, procura esboçar o que denomina poétique de l'événement, método ou maneira para se construir um caminho o mais próximo possível do acontecimento, visando desvelar não o seu sentido, mas o modo como ele nos afeta. Se é da obra dos poetas que nascem as primeiras lágrimas do Rio, após a partida da capital serão eles os profetas que anunciarão a ressurreição de uma cidade renovada. Mas esta é apenas uma entre as leituras possíveis do livro de Laurent Vidal. Les larmes de Rio certamente vai estimular outras interpretações na medida em que o leitor aceitar o desafio de revisitar este momento crucial para a história da cidade maravilhosa.

Notas

1 Arlette Farge, « Penser et définir l'événement en histoire ». In: Terrain, nº 38, Qu'est-ce qu'un événement ? (mars 2002), [En ligne], mis en ligne le 06 mars 2007. URL : http://terrain.revues.org/index1929.html. Consulté le 11 octobre 2010, p. 6.
2 Yves-Marie Berce, "Conclusion : vide du pouvoir. Nouvelle légitimité". In: Histoire, économie et société. 1991, 10e année, nº 1. Le concept de révolution. pp. 23-25.
3 Jean Duvignaud, Introduction à la sociologie, Gallimard, Paris, 1966, p. 77.
4 Laurent Vidal, Mazagão, la ville que traverssa l'Atlantique. Du Maroc à l'Amazonie (1769-1783). Aubier, Paris, 2005.
5 Arlette Farge, « Penser et définir l'événement en histoire », op. cit., p. 6.

6 Expressão que emprestamos de Siegfried Kracauer. Siegfried Kracauer, L'histoire. Des avant-dernières choses. Stock, Paris, 2006, p. 272.
7 Arlette Farge, « Penser et définir l'événement en histoire ». In: Terrain, nº 38, Qu'est-ce qu'un événement ? (mars 2002), [En ligne], mis en ligne le 06 mars 2007. URL : http://terrain.revues.org/index1929.html. Consulté le 11 octobre 2010.
8 Laurent Vidal, "Os 'trilhos' da história do Brasil urbano". In: Ler História, nº 48, 2005, pp. 75-85. Aqui, p. 85.

Revista História da UNESP

De Nova Lisboa a Brasília: a invenção de uma capital



Amilcar Torrão Filho
Professor Doutor – Departamento de História da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Rua Monte Alegre, 984, Perdizes, São Paulo, CEP: 05014-901. E-mail: amilcartorrao@uol.com.br

VIDAL, Laurent. De Nova Lisboa a Brasília: a invenção de uma capital (séculos XIX-XX). Trad. Florence Marie Dravet. Brasília: UnB, 2009. 352 p.

O professor Laurent Vidal, da Universidade de La Rochelle se debruçou sobre as cidades brasileiras ou luso-brasileiras em diversas publicações – como a nômade Mazagão, que atravessou o Atlântico, deixando o Marrocos onde era o último bastião português, passando por Lisboa e vindo aportar, finalmente, na Amazônia portuguesa em 17691 –, agora nos traz uma leitura de fôlego da construção de Brasília, nas comemorações de seus 50 anos. Trata-se de sua tese de doutorado defendida na Universidade de Paris III, em 1995, publicada em francês no ano de 2002 pelo Institut des Hautes Études de l'Amérique Latine. A primeira e mais evidente qualidade deste trabalho é recuperar o longo período no qual a capital brasileira foi projetada no interior de seu imenso território, desde a Nova Lisboa, que seria a nova sede do novo Reino Unido de uma corte no exílio, até a Brasília de Juscelino Kubitschek, saída do traço da arquitetura moderna diretamente para o planalto central. Além disso, o livro tem a preocupação de colocar uma questão importante, sobretudo no caso de Brasília, que está definida em sua introdução; se com Mazagão Vidal havia se perguntado para que serve uma cidade em suspensão e em trânsito, no caso de Brasília ele questiona: "Para que serve uma cidade quando ela não existe?" Questão que é acrescentada por outra, correlata: "A que corresponde essa imperiosa necessidade social de projetar ou fundar, mesmo no papel ou em palavras, as cidades?" (p. 11). Portanto, este trabalho trata destas duas dimensões fundamentais para a compreensão de Brasília, e de todas as capitais sonhadas e desejadas: a sua dimensão material, com as agruras de sua construção e os resultados urbanísticos de sua efetiva ocupação, mas também a sua dimensão projetiva, imaterial, os projetos realizados ou não, os traços de suas utopias que revelam os desejos, as ambições e os planos por trás de sua construção ou o que vai além de sua redução ao puramente utópico ou técnico, este momento, como define o autor, "intermediário, em que a cidade ainda não possui existência física, mas em que já deixou de ser simplesmente uma visão utópica" (p.11).

No caso de Brasília, cidade capital por definição e por projeto, cabe ainda indagar-se sobre o seu papel na construção de uma memória e uma identidade da nação que ela representa, ou do processo pelo qual "a identidade de uma nação ou de uma comunidade pretende espacializar-se"; o que coloca outra pergunta importante: "quem ou o que produz uma cidade para nela depositar uma memória" (p. 16). Não se trata, portanto, apenas de um projeto de cidade nova, é uma nova capital, e uma capital que deve redefinir o país projetando um Brasil moderno, desenvolvido, interiorizado, correspondendo a um "projeto de sociedade" (p. 18). Uma sociedade até então dividida pela antinomia sertão/litoral, que para muitos impedia o desenvolvimento de todas as suas partes; não por acaso, será a nova cidade chamada de a capital da esperança.

O livro está dividido em sete capítulos, seis dos quais dedicados a projetos para a construção da cidade capital que finalmente faria o sertão vencer a dominância do litoral. O primeiro diz respeito à Nova Lisboa, a cidade que seria construída para substituir o Rio de Janeiro como sede da nova monarquia, num momento no qual havia dúvidas em relação à qualidade da nova corte para assumir o papel de capital, por seu terreno pantanoso, seu clima úmido e cheio de insetos. A decisão de manter a capital no Rio de Janeiro levou a cidade a ser remodelada para adequar-se ao decoro de uma capital real, digna da monarquia portuguesa, reformas que são bastante conhecidas e deram grande parte da feição mais típica da cidade tal como a conhecemos. Entretanto, a necessidade de "interiorização" da capital não desaparece das preocupações geopolíticas e estratégicas, presentes nos projetos de Hipólito José da Costa ou de Antônio Rodrigues Veloso de Oliveira. A grande cidade portuária, para estes autores, não possui as qualidades requeridas a uma verdadeira capital, cuja criação se torna uma exigência de modernização, na qual o autor observa "um deslocamento da representação do espaço construído para o espaço mental, um deslocamento do conceito da cidade, como espaço político, lugar de trocas econômicas e sociais, para seu inverso imaterial, sua idealização" (p. 48).

O capítulo seguinte trata de projeto similar, já agora no âmbito da construção do Estado nacional separado de Portugal, a Cidade Pedrália, indefectível referência ao príncipe, depois imperador, Pedro I, homenagem de seu idealizador, o desconhecido Paulo Ferreira Menezes Palmiro. A nova capital era parte de um projeto de interiorização e povoamento do imenso interior, o "desertão" brasileiro, de José Bonifácio, o Patriarca, bem como uma estratégia para garantia da unidade territorial e a sua consequente definição da nacionalidade brasileira. Não por acaso a sua localização teria como "coluna vertebral", diz o autor, o rio São Francisco, o rio da unidade nacional para muitos (p. 61). Apesar destes projetos, para Vidal, a permanência do Rio de Janeiro como capital imperial "se inscreve na lógica do projeto geopolítico definido pelo imperador: inserção da jovem nação brasileira no mercado comercial internacional", com a necessidade de manter a capital num porto e seguindo a política imaginada por João VI, a "vocação do Brasil como nação 'européia'" (p. 63). Processo coerente com outra interiorização, diferente da projetada aqui na transferência da capital para o sertão, aquela descrita por Silva Dias, o enraizamento de interesses portugueses no Brasil e o processo de interiorização da metrópole no centro-sul da colônia, sendo a separação com Portugal resultado de um aumento das divergências entre os interesses portugueses no Brasil e o Reino2. É muito mais uma interiorização centrada no Rio de Janeiro, incompatível com a transferência da sede de governo para o interior. Vidal, neste capítulo, recupera o esquecido projeto ilustrado e racional da Cidade Pedrália, de Menezes Palmiro, que pretendia dar corpo a uma ambição social e geopolítica que rompia com os modelos urbanos adotados pelos portugueses até então (p. 70).

O projeto seguinte é Imperatória ou, como diz o título deste terceiro capítulo, o sonho de uma São Petersburgo tropical, seguindo as intermináveis dúvidas em relação à capacidade do Rio de Janeiro em representar bem seu papel de capital. Trata-se do projeto de Francisco Adolfo de Varnhagen, Visconde de Porto Seguro, que critica justamente o comprometimento das principais cidades brasileiras com o comércio internacional, com a exterioridade, não dando espaço à necessária construção da nacionalidade brasileira, que o Visconde buscou tanto na história quanto num projeto de capital. O interior, o homem do sertão seriam, na visão de Varnhagen, os instrumentos de redenção do país, Minas seria, então, a Castela do Brasil (p. 87). O Visconde de Porto Seguro se insere, ao mesmo tempo, num rompimento com o modelo colonizador português que convive com a sua inserção em seu modelo civilizatório lusitano, que afirma a posição preeminente da população branca no controle do aparelho de Estado. Seu modelo urbanizador vê na cidade não um quadro estático, mas "o local, o motor da modernização. Imperatória é assim a cidade do homem brasileiro reconciliado com a modernidade" (p. 100).

O quarto capítulo/projeto trata de Tiradentes, não a cidade mineira antiga São José Del Rei, mas um projeto republicano para uma nova capital que se torna um dispositivo constitucional na República. Trata-se, para Vidal, de um projeto de mudança que oferece "a possibilidade de planejar uma cidade especialmente destinada às elites, uma cidade sem povo" (p. 104). Em 1892, é criada a célebre Comissão de exploração do Planalto Central do Brasil, dirigida por Luís Cruls, diretor do Observatório Astronômico do Rio de Janeiro, que deveria demarcar a localização da nova capital. Para o autor, a mudança funcionava, para as elites republicanas, como uma forma de "conjurar o medo da cidade, da grande cidade como o Rio que, todo dia, inquieta um pouco mais os republicanos no poder" (p. 124-125). O medo, presente tanto em liberais como em conservadores, de que o crescimento da cidade seja acompanhado pelo direito à cidade, o direito à cidadania. Esta discussão se apoia muito menos no conceito de progresso da nação do que na construção de uma nacionalidade na qual a cidade grande aparece para muitos, como Euclides da Cunha, citado por Vidal, como um espaço demasiadamente cosmopolita, que impõe modelos culturais importados, que não traduzem o espírito brasileiro. Uma capital cosmopolita, nessa visão, não seria uma adequada cabeça da nação, não pensaria o país de acordo com os interesses brasileiros (p. 129). Concepção que teria muita fortuna no meio intelectual e acadêmico, das ideias fora de lugar, importadas, que não estariam aclimatadas à "realidade" e ao espírito nacional. Esta visão da capital se materializa não no Planalto Central e na substituição do Rio de Janeiro, mas pela construção de Belo Horizonte, paralelamente às reformas de Pereira Passos, nova adequação da capital carioca aos desígnios das elites. Em 1930, Teodoro Figueira de Almeida propõe no jornal A Ordem um projeto de nova capital chamado Brasília: a cidade histórica da América, demonstrando, segundo Vidal, um gesto deliberado de tentativa de "reescritura da história" por meio da forma urbana, que poderia materializar o sonho de uma "capital sem povo" (p. 142).

A sequência do trabalho de Vidal nos revela como, no tema da nova capital, perpassou praticamente todos os governos monárquicos ou republicanos. O quinto projeto/capítulo trata do período Vargas, que retoma a discussão sobre a transferência para o centro do Brasil de sua sede de poder. Para Vidal, a instauração do Estado Novo, em 1937, procura estabelecer um Estado verdadeiramente nacional, o que implica uma nova divisão territorial do país, o estabelecimento de uma nova geografia, o que culmina com a criação do IBGE, em 1938. Para o autor, está em processo também, no Brasil deste momento, uma "reavaliação do papel da cidade nas atividades de uma nação", o que é visível, por exemplo, na construção de Goiânia, cujo plano levaria em conta a dupla natureza da cidade, "lugar de exercício do poder e de atividades econômicas e sociais" (p. 156). Em seu segundo governo, Vargas voltaria ao plano de transferência, criando em 1953 a Comissão de Localização da Nova Capital Federal (CLNCF), de evidente tarefa. Neste momento, gesta-se uma ruptura em relação às anteriores propostas, pois aqui não se trata mais de discutir a criação de uma sede administrativa para o país, mas de "dar coerência a uma sociedade não mais dividida, mas reconciliada em torno de um mesmo projeto de futuro" (p. 174).

Um projeto de futuro reconciliado e unificador parece ser o mote para o definitivo projeto de Brasília, obra capital do governo Juscelino Kubitschek, no feliz título de seu sexto capítulo. Vidal trata, aqui, de feitos conhecidos, dando especial atenção ao contexto histórico da construção de Brasília, bem como ao plano vencedor de Lucio Costa e Niemeyer. A qualidade deste capítulo está justamente na forma como as dimensões políticas e arquitetônicas são analisadas na construção, não apenas de uma cidade, mas da "idéia mesmo de capital", afirmando um Brasil moderno (p. 202). Ou como ressalta adiante, o concurso de Brasília e a sua construção colocam um problema mais amplo do que a simples construção de uma nova cidade, o da "invenção de um urbanismo político adaptado a uma democracia liberal do século XX" (p. 220). O autor vê a possibilidade de um jogo de ambiguidades entre o projeto político e o projeto social de Brasília, ou uma cidade "esticada entre duas tendências: a ambição igualitária do urbanista e do arquiteto e a ambição liberal do político, tudo isso acobertado pela idéia de modernismo" (p. 240). Ou de uma propensão latina de aspiração à grandeza, audácia e imaginação com uma lógica de disciplina que vem tolher estes impulsos.

De Nova Lisboa a Brasília propõe uma leitura histórica da construção de Brasília não apenas no estabelecimento de uma linhagem cronológica dos diversos projetos e planos de transferência, que pela primeira vez foram tratados em seu conjunto como uma unidade, mas também da representação de uma certa imagem de Brasil, de determinadas expectativas deste gesto fundador da criação de uma capital que coincide com o "batizado" do país e que nasce sob o signo deste gesto tão simples de Lucio Costa em forma de uma cruz que designa o plano piloto, dando-lhe uma feição ao mesmo tempo mítica, mística e moderna. A inauguração de Brasília é um ato fundacional; fundação de uma nação moderna, reconciliada, a marca de uma utopia que o urbanismo moderno muitas vezes sonhou, mas poucas vezes pôde realizar, com toda a esperança e a frustração que envolvem as utopias, tão bem descritas neste trabalho que recupera o longo caminho de invenção de uma capital e de um sonho.

1 VIDAL, Laurent, Mazagão: a cidade que atravessou o Atlântico. Trad. port. Marcos Marcionilo. São Paulo: Martins, 2008. Primeira edição francesa de 2005.
2 DIAS, Maria Odila Leite da Silva, A interiorização da metrópole e outros estudos. 2. ed. São Paulo: Alameda, 2005.

Revista História da UNESP

A arquitetura da alteridade: a cidade Luso-Brasileira na literatura de viagem (1783-1845)


Luciana Gama (SHLOMIT OR)
Mestre em Teoria e História Literária – IEL/Unicamp - Doutoranda -Programa de Teoria e História Literária -Universidade Estadual de Campinas - IEL/Unicamp - Rua Sérgio Buarque de Holanda, 571. CEP 13083-859 -Campinas - São Paulo e no Dept. of Romance and Latin - American Studies - The Hebrew University of Jerusalém-HUJI. Mount Scopus, 91905 - Jerusalem - Israel. Bolsista Fapesp. E-mail: shlomit.gama@mail.huji.ac.il

TORRÃO FILHO, Amilcar. A arquitetura da alteridade: A cidade luso-brasileira na literatura de viagem (1783-1845). São Paulo: Hucitec/Fapesp, 2010. 347 p.

Retórica na Pitoresca Confusão da Literatura de Viagem

Ordem para a cidade é o heroísmo dos homens, para o corpo a beleza, para a alma a sabedoria, para o ato a excelência, para o discurso a verdade; o contrário disso é a desordem. E, em relação ao homem, à mulher, ao discurso, à ação, à cidade e ao ato particular é necessário honrar com louvor o digno de louvor e sobre o indigno aplicar censura; pois igual erro e ignorância é censurar as coisas louváveis e louvar as censuráveis.

(Górgias, Elogio de Helena).

Com o intuito de demonstrar como o caráter identitário presente nos relatos dos viajantes franceses e britânicos ocorre nas descrições da cidade Luso Brasileira nos séculos XVIII e XIX (1783-1845) edificando, portanto, o discurso da imagem de duas alteridades – a do construído e a do construtor – uma preocupação se impõe e objetiva a metodologia do livro lançado no ano de 2010 pela HUCITEC/ FAPESP, a saber, decifrar ao leitor como a historicidade da cidade colonial brasileira é moldada por meio da representação textual elaborada por autores como Debret, Maria Graham, Saint-Hilaire, Spix e Martius como Suzannet, Thevenot, Thomas Lindley e Luccock entre outros tantos citados e estudados por Amilcar Torrão em sua obra que, propositada, "não privilegia um ou outro autor, mas propõe uma visão de conjunto, por amostragem" (TORRÃO FILHO, 2010, p. 34).

Aqui, vamos tratar do primeiro dos cinco capítulos, tendo em vista que é emblemático, fazendo-se, às vezes, de exórdio para a leitura dos subsequentes, já que desenvolve o raro questionamento do uso dos relatos de viagem pela historiografia posterior como descrições do real e do existente, como documentos de fidelidade objetiva. Assim, com bibliografia crítica contemporânea impecável e variada, surge uma confusão pitoresca a respeito das definições sobre o "gênero viático" – ou para usar sua nomenclatura mais usual – sobre o "gênero literatura de viagem". Demonstrando que o gênero, portanto, possui diversas definições, podemos considerar então, pelas negativas, que o que não está definido, indefinido está: seja por sua especifica pluralidade, seja pela grande força esponjosa que o termo "gênero" adquire quando se trata de uma categoria trans-histórica como a denominada por "literatura de viagem", que se apresenta melhor como um frango com tudo dentro do que como um gênero propriamente dito.

Ao apontar, por exemplo, que uma das principais características do gênero é a problemática de classificá-lo porque é "enorme a sua diversidade de registros" e ao mesmo tempo "grande sua permeabilidade" o autor toca num ponto nefrálgico e naufragável ao descrevê-lo "do ponto de vista da forma" como "diário de campo, cartas, relato, relatório científico, itinerário, relato de peregrinação; além de suas formas ficcionais em prosa e poesia" (TORRÃO FILHO, 2010, p. 39). Nefrálgico, porque a literatura de viagem não foi associada hermeneuticamente na sua ascensão moderna com um gênero maior como o épico, por exemplo, que comportava obrigatoriamente dentro de si preceitos do gênero trágico, dos quais dependia para formar seu conceito e suas regras, mesmo que um estudioso de envergadura de Normand Doiron tenha generalizado sua definição para "um gênero literário claramente constituído, ' dotado de um estilo, de uma poética e de uma retórica que lhe são próprias'" e instituído com precisão: "a data da constituição do gênero de viagem em 1632, ano da publicação de três relatos importantes, de Champlain, Lejune e Sagard" (TORRÃO FILHO, 2010, p. 37).

O que ocorre aqui, é que há um mesmo uso para o termo "gênero" para categorias que foram instituídas e, portanto, definidas anterior ao século XVIII pós-iluminista como a Ars dictaminis e os Tratados de Peregrinação, com termos que foram instituídos no fim do século XVIII, começo do XIX, como "ficção" e "literatura". Naufragável, porque falar em gênero sem discutir o seu estatuto tão caro primeiramente a Platão e Aristóteles e depois em seu revival no século XVI, quando a Poética e a Retórica foram utilizadas para a confecção de cânones a que as obras deveriam se ajustar e em que são nitidamente demarcadas, não mudando o "tom preceptista a que o tratamento dos gêneros se associava" até o século XVIII (LIMA, 2002, p.258-260). Coloca em primeiro plano o desconhecimento de uma história dos gêneros, em que apenas seus apontamentos históricos nos orientariam para uma discussão que, se fomos nós que paramos não fomos nós que começamos: O que é literatura? O que é história? O que é ficção? O que é verdade histórica? Ou melhor formulando: Como é distinguível num texto o que é ficção do que é história?

A discussão estava em voga, para usar um exemplo próximo, no setecentos português e pode ser encontrada em autores como Cândido Lusitano e Francisco de Mello e Pina, ou, como fundamenta Adma Muhana "para a poética não se colocou a questão da falsidade ou veracidade da história como matéria da poesia porque a matéria da poesia é as 'coisas que são, que podem ser, ou que os antigos tiveram por verdadeiras', importando sim, 'a conveniência entre as coisas narradas e a imitação conduzidas". Nesse sentido, "a história também é matéria bruta de toda poesia" e "apresenta-se incompatível com a arte da poesia. Do ponto de vista da poesia, natureza é história. Ou seja, o poeta imita pessoas, coisas e eventos, como os que encontra na história. Mas não são os mesmos: a história narra sucessos ocorridos, já singularizados em sua ocorrência, enquanto o poeta narra 'verossímeis e possíveis', nunca esgotados em sua possibilidade de ser" (GAMA, 2009, p.12). Ou, como arqueólogos do saber, podemos desenterrar com Hansen a obra Due Dialogi (1564) de Giorgio Gilio, que "inverteu o conhecido preceito aristotélico da superioridade da poesia, que trata do universal, sobre a história, uma arte das particularidades, afirmando que a história é superior, porque é sempre história sacra" (HANSEN, 1994, p.30). Ou podemos, ainda, recordar, quando se trata de Jean- Batiste Debret, que " A prescrição de um 'pintor historiador' que substitui 'o pintor poeta' tinha por referência a fala de um papa, Gregório Magno: 'A pintura é a história do ignorante', e logo se transferiu para os discursos, visando regular-lhes a persuasão na propaganda fidei" (HANSEN, 1994, p.30).

No primeiro capítulo do livro de Amilcar Torrão, denominado "Imago Mundi", chega-se a essa inquestionável pergunta – O que é ficção? – por meio da constatação de que literatura de viagem "trata-se de um gênero compósito, fronteiriço, e esse desejo de clareza e veracidade deve-se em muito, à proximidade que esses textos têm com a ficção, uma tensão que permeia toda a sua história e que colocava problemas difíceis de solucionar" (TORRÃO FILHO, 2010, p. 43). Nesse sentido, a confusão se torna mais e mais pitoresca: a literatura de ficção e a literatura de viagem se utilizam ambas dos mesmos recursos para formar suas verdades e suas mentiras, ou, suas mentiras e verdades não sabendo mais o leitor o que é verdade ou mentira, o que é ficção o que é história, porque uma se utiliza da outra, sem fronteiras claras, em autores como Defoe, Swift, Walter Scott, Chateaubriand ou até mesmo Italo Calvino. Relembrando, Amilcar autor, obviamente discordando de Sylvie Requemora, que para ele organiza uma apresentação esquemática em demasia do tema:

[...] as relações entre literatura de viagem e a ficção são tão estreitas, que Requemora propõe sua periodização para o século XVII. No período de 1600 a 1640, a teoria da imitação prevalece e os romances barrocos imitam os gregos e os relatos de viagem imitam os relatos da Renascença; de 1640 a 1660 passa-se da imitação à história: seria a época do "Grande Romance" e da "viagem literária"; o terceiro período, entre 1650 a 1700, coloca questões de mímesis e de suas significações, por meio do "romance verdadeiro" e da viagem alegórica; e o período de 1670 a 1700, que vê o apogeu das aproximações entre a literatura e a viagem, com o desenvolvimento das viagens imaginárias e utópicas (TORRÃO FILHO, 2010, p.51).

É como colocar um imã próximo a uma bússola: aqui, obviamente, a confusão já fundamentou seus alicerces, mas para torná-la mais nítida e mais confusa há termos em uso como "retórica", "tópica" "lugares-comuns (topos)", "descrição", "textos retóricos", "repetição descritiva", "tradição intertextual da viagem", "procedimentos retóricos", "retórica do gênero", "retórica da alteridade", "convenção retórica", seja quando o autor vai tratar diretamente do tema ou quando cita os autores por ele estudados.

No entanto, faz-se necessário explicar, aqui, o que o autor está querendo dizer quando usa o termo "retórica", tendo em vista que o objetivo do autor é "demonstrar como a descrição textual das cidades na literatura de viagem obedece a certas convenções e a uma 'teoria' trazida na bagagem do viajante, aos quais o historiador não pode desprezar ao utilizar-se de uma fonte tão rica de informações e, ao mesmo tempo, tão complexa em sua estrutura" (TORRÃO FILHO, 2010, p.89)

Possivelmente, Amilcar Torrão quando diz "retórica" está a se referir ao conjunto de regras que visam à persuasão cuja realização permite convencer o ouvinte do discurso e mais tarde, o leitor da obra, mesmo se aquilo que se pretende inculcar for "falso". No entanto, também quando escreve "retórica" em seu texto está usando um termo genérico que não se mais sustenta nos dias de hoje como uma palavra metonímica que em seu todo oculta os detalhes de suas partes como técnica, como ensino, como protociência, como uma moral, como uma prática social e uma prática lúdica. (BARTHES, 1975, p. 148). O uso do termo retórica é usado geralmente para significar um discurso falso, diletante e de empirismo grosseiro, que foi muito bem definido e difundido a partir de Locke, no seu "Ensaio sobre o Entendimento Humano III", 10, 34:

[...] nós precisamos admitir que toda arte do discurso (redekunst), todo emprego artístico ou figurado das palavras encontrado pela eloqüência, não servem para nada além de provocar representações incertas, suscitar paixões e, através disso, desorientar (missleiten) o juízo, sendo assim, de fato, uma completa fraude (FONSECA, 1999, p.29).

O sentido de retórica como discurso falso é amplamente utilizado pelo senso comum nos séculos posteriores ao XVIII e nos faz esquecer de considerar o que Roland Barthes delineava como um verdadeiro império, um "Império Retórico" mais vasto e mais tenaz que qualquer outra dominação política, que por suas dimensões e duração, faz malograr o próprio quadro da ciência e da reflexão históricas, a ponto de pôr em questão a própria história e de obrigar a conceber o que se pôde chamar, aliás, de uma história monumental. Lembremos, ainda com Barthes, que a retórica, mesmo com suas variações internas do sistema, reinou no Ocidente durante dois milênios e meio, de Górgias a Napoleão III (BARTHES, 1975, p. 150).

As preceptivas Retórica e Poética aristotélicas, claro está, se fundem a partir da época de Augusto com Ovídio e Horácio e são consagradas pelo vocabulário da Idade Média em que as artes poéticas são artes retóricas e os grandes retóricos são poetas. Esta fusão é capital, segundo Barthes, pois está na origem da ideia de literatura. Dessa retórica aristotélica, continua Barthes, teremos a teoria com o próprio Aristóteles, a prática com Cícero, a pedagogia com Quintiliano e a transformação por generalização com Dionisio de Halicarnasso, Plutarco e o Anônimo do tratado Do Sublime (BARTHES, 1975, p.156).

Assim reconsiderada, podemos redefinir que quando se diz retórica não se fala em uma sistematização pós-iluminista do saber, de um ramo que pertence exclusivamente às letras ou à literatura, mas de uma disciplina que – ensinada no Trivium e Quadrivium – se fundamenta no discurso sobre o discurso seja ele histórico, médico, geográfico, teológico, político, aritmético ou poético.

Podemos, agora, restaurar o uso de termos que nos são caros hoje em dia e lhes devemos respeito: "descrição" (descriptio) e "tópica" (topos, topoi). A retórica, quando mutilada, fosse pela queda da disciplina na Universidade de Coimbra do Portugal pombalino e seus domínios ultramarinos no século XVIII, fosse por Jakobson que a reduziu toda aos tropos de metáfora e metonímia no século XIX, deixou rabos de lagartixas se mexendo durante os séculos posteriores e ainda estava fartamente em uso no século XIX e no Brasil, como nos demonstra Roberto Acízelo, em "O Império da Eloqüência: Retórica e Poética no Brasil Oitocentista" (SOUZA, 1999). Essa autonomia caudal distraiu seus predadores enquanto se retirava para algum refúgio onde não poderia mais ser vista nem notada.

Da lagartixa retórica, cujo corpo não pode ser pensado sem suas cinco partes, a techne rhetorike compreende, a saber, a inventio, a dispositio, a elocutio, a actio e a memória; além disso, as três primeiras sobreviveram e alimentaram a retórica até o seu último suspiro no século XVIII e as duas últimas (actio e memória) foram rapidamente sacrificadas. Assim, apenas para resumir, quando estamos falando de tópica, estamos nos referindo a lugares que se referem à inventio de um texto, quando apontamos para uma descrição em um texto estamos nos referindo à dispositio de um texto e, por fim, quando nos referimos a metáforas ou a usos alegóricos, estamos tratando da elocutio.

Quando consideramos uma descrição das ruas de uma cidade num texto de um viajante dos séculos XVIII ou XIX e a deslocamos para fundamentar uma argumentação, estamos desconsiderando sua teleologia, isto é, a sua finalidade que comporta uma causa, que por sua vez, está explícita no prêmio da obra, porque não estamos levando em conta seus mecanismos de invenção e disposição retóricas. O uso do termo "descrição" é recorrente e corrente quando se trata da historiografia da literatura de viagem e é importante que se estabeleça, portanto, que a descrição é uma subdivisão, um elemento da narração (narratio) que, por sua vez, pertence à dispositio, e é codificada em topográfica (lugares), cronográfica (tempo) e prosopográfica (retratos).

Já as tópicas – essas formas vazias comuns a todos os argumentos (e quanto mais vazias, mais comuns) não são os próprios argumentos, mas sim os compartimentos em que são ordenados, são estereótipos, proposições muito repetidas, uma reserva plena, um método de se encontrar os argumentos (quis? quid? ubi?) que pertencem à parte da retórica que diz respeito à inventio, "essa parte da retórica encarregada de fornecer conteúdos ao raciocínio" (BARTHES, 1975, p. 194-197) – são amplamente citadas e demonstradas por Amilcar Torrão em todo o livro: tanto as mapeadas pelos Jesuítas (preguiça, hospitalidade), as da falta de letras (letramento) e as da natureza sã versus os maus costumes (PÉCORA, 2001, p.44) – que vai vigorar nas descrições dos viajantes do XVIII e XIX quando o assunto é levado ao limite pelos autores franceses e britânicos ao discorrerem sobre a "imoralidade, desordem e caos da sociedade e das cidades luso-brasileiras (TORRÃO FILHO, 1995, p.205) – quanto as fundamentadas pelos próprios viajantes, como por exemplo, a do "desleixo das edificações" (TORRÃO FILHO, 1995, p. 196), ou da "cidade suja" como poderemos verificar no capítulo quatro e a "tópica dos ciúmes" que advém da falta de gentileza com os viajantes, uma herança portuguesa, já que por três séculos esconderam "ciumentamente sua principal colônia da cobiça das nações mercantes" (TORRÃO FILHO, 1995, p.114, p.212), ecos de uma condenação à colonização portuguesa.

Uma tópica recorrente e bem explorada por Amilcar Torrão é a da "edênica paisagem exterior", na chegada às cidades do Rio de Janeiro, Salvador ou Olinda, cuja fruição estanca cidade adentro que é obscura com seus negros e bastante suja (TORRÃO FILHO, 1995, p.250). Alegorizando essas paisagens, inicialmente encantadoras, comparando-as com um "anfiteatro" de Salvador no caso de Tollenare como em Arsène Isabelle, em visita ao Rio Grande do Sul, em 1834, onde a cidade de Porto Alegre é "elevada em anfiteatro"; e também por Debret, em 1816, cujo "quadro textual praticamente ignora a presença de uma cidade na paisagem do Rio de Janeiro"; ou o viajante Lacordaire: o que importa é que essas "serão algumas das imagens mais fortes criadas pela literatura de viagem sobre o Rio de Janeiro que serão transpostas a todas as cidades luso-brasileiras: sua beleza ilusória, percebida apenas à distância, enquanto a aproximação do viajante, uma apreciação pedestre da cidade, revela a sua mácula e a sua desordem" (TORRÃO FILHO, 1995, p.238).

Podemos transpor essa metáfora da paisagem inicial como um anfiteatro para outra, a saber, de que essa paisagem é um proêmio, um exórdio que não cumpre o que esboça na sua narração, na sua disposição interior, tornando-a, assim, um monstro, um espetáculo horrendo e mal formado aderindo, aqui, à tópica da doutrina da proporção decorosa dos efeitos das obras, o ut pictura poesis horaciano nos versos 361-365: "como a pintura é a poesia: coisas há que de perto mais te agradam e outras, se a distância estiveres. Esta quer ser vista na obscuridade e aquela à viva luz, por não recear o olhar penetrante dos seus críticos; esta, só uma vez agradou, aquela dez vezes vista, sempre agradará" (HORÁCIO, 1984, p. 109-111).

A paisagem da chegada, portanto, vista de longe, é uma imagem icástica, proporcional ao paradigma do europeu, e a imagem fantástica, a cidade que se adentra, uma deformação ou desproporção da imagem icástica, a cidade de perto, obscura:

[...] a desproporção fantástica pressupõe, mimeticamente, o ponto de vista icástico que a proporciona como desproporção: ela só é fantástica como uma das séries da relação, ou seja, é um efeito, ou um diferencial. Esta relação é objeto de uma arte das desproporções proporcionadas - a cenografia, skenografia- dos tratados de óptica [...] Pensando-se o ut pictura poesis cenograficamente, a relação de proporcional/desproporcional – ou de icástico/ fantástico – implica não qualquer proximidade ou qualquer distanciamento, mas, sempre a correta distância, a distância exata [...]. (HANSEN, 2007, p. 183).

A vista do arrazoado disposto acima, fica mais claro o entendimento da tópica da natureza sã, exuberante versus os maus costumes, bem como a alegoria da paisagem da chegada nas cidades como anfiteatro.

É inevitável observar que todas essas tópicas irão repercutir em nossa historiografia até os dias de hoje, com base nas determinações de Von Martius em Como se deve escrever à história do Brasil, em 1847, pelo Instituto Histórico e Geográfico, esquecendo, que são tópicas, muitas delas que remontam as obras de Homero, Ovídio ou Virgilio, suas fontes. Por serem tópicas, se repetem por séculos, em vários textos, garantindo a argumentação. Se, dentro delas, propositadamente (claro está: o domínio das técnicas do império retórico não admite nenhuma inocência discursiva) nomes ou livros são citados metonimicamente, estamos invariavelmente entrando no reinado das "auctoritas", dos argumentos de autoridade. É a esta rede milenar textual maquinada pela retórica que o autor vai denominar, heroicamente, de "Memória de Biblioteca". (TORRÃO FILHO, 2010, p.302).

Se chamamos o autor de herói é também porque a impecável bibliografia foi por ele composta, nos fornecendo, assim, a chance de ter acesso a uma bibliografia opulenta traçada e usada em todas as páginas do seu livro que demonstra um intelecto hercúleo. Quero deixar claro que a aparente desordem exposta no primeiro capítulo é decorrente da grandeza da matéria tratada pelo autor ao tentar caminhar com as preceptivas da retórica e da historiografia juntas. Se tal metodologia se torna pitoresca é porque a empreitada é salutar: como "ir a Jerusalém caminhando para Emaús", capitalizando aqui o empréstimo que João Adolfo Hansen fez de um sermão de Vieira. É como se no itinerário traçado para a hipótese desenvolvida por Amilcar Torrão, ele arranjasse confusão no primeiro porto, na primeira parada, ou tivesse que enfrentar o Gigante Adamastor definitivamente para cruzar o Cabo da Boa Esperança, explicando para confundir, confundindo para esclarecer.

No entanto, o autor optou pelo caminho mais longo que é sempre mais curto que o mais curto para usar uma máxima talmúdica: optou por um trajeto desconhecido ao colocar na sua nau elementos da retórica literária como instrumento de navegação que serão então utilizados nos capítulos posteriores para medir tabus historiográficos da terra ignota: mapear a construção da imagem da cidade luso-brasileira por meio da narração da literatura de viagem e dos viajantes franceses e britânicos, desconstruindo, assim, tópicas e lugares-comuns que emprestamos deles para construir as nossas sobre as nossas cidades, coisa que, de quebra, fornece também uma boa oportunidade, após a leitura de "A Arquitetura da Alteridade: A cidade Luso-Brasileira na Literatura de Viagem", para que se possa dizer ou escrever com consciência histórico-discursiva que o Rio de Janeiro continua lindo, mesmo que isso seja inútil, mesmo que seja só uma paisagem, um retrato num prato, ou uma descrição de Maria Graham.

Referências

BARTHES, R. A Retórica Antiga. In: COHEN, J. et al. Pesquisas de Retórica. Rio de Janeiro: Vozes, 1975, pp.147-227.
GAMA, L. Sobre a superioridade da Poesia em Relação à História: O Canto VII do Caramuru. Revista Cantareira, Rio de Janeiro, n 2, p.1-12, 2009.
HANSEN, J. A. Prefácio. In: PÉCORA, A. Teatro do Sacramento. São Paulo: Unicamp/ Edusp, 1994, p. 15-36
HANSEN, J. A. Ut Pictura Poesis e Verossimilhança na doutrina do conceito no século XVII colonial. Revista de Crítica Literária LatinoAmericana, Peru, Año 23, n 45, p.177-191, 2007.
HORÁCIO. Arte Poética. Introdução, Tradução e Comentário de R.M. Rosado Fernandes. Lisboa: Inquérito, 1984.
LIMA, C. L. A Questão dos Gêneros. In: LIMA, L. C. (Org). Teoria da Literatura em suas Fontes. v.1. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002, p. 253-292.
NIETZSCHE, F. Curso de Retórica. In: FONSECA, T. L. (tradução e notas). Cadernos de Tradução, São Paulo, nº.4, p. 23-69.
PÉCORA, A. A Arte das Cartas Jesuíticas do Brasil. In: Máquina de Gêneros. São Paulo: Edusp, 2001.
SOUZA, R. A. O Império da Eloquência. Rio de Janeiro: Uerj/ Eduff, 1999.
Revista História da UNESP