segunda-feira, 28 de março de 2016

As visitas que hoje estamos


Vozes do interior
Leia a resenha do livro "As visitas que hoje estamos"
Antônio Geraldo



Antônio Geraldo poderia ser chamado de um escritor de província. É de sua Mococa, no interior do estado de São Paulo, que o poeta e agora romancista acompanha a vida brasileira recente. E este é o tema de As Visitas que Agora Estamos, seu primeiro e espantoso romance. Há no livro um desejo de totalização que chega a impressionar.

Em suas mais de 400 páginas, Geraldo testemunha, mas sempre entregando a voz para os outros, seus protagonistas, a transformação por que vem passando o interior do Brasil, principalmente de São Paulo e Minas Gerais, nos últimos anos – os da Era Lula. Não é um livro simples: a própria denominação tradicional de “romance” se torna complicada, já que não há propriamente dito um fio narrativo único que reúne os diversos episódios encenados. São muitas as narrativas, quase que romances miniaturizados, em primeira pessoa.

Uma espécie de “A comédia caipira”, com a densidade trágica que encontramos em seu modelo, Balzac. A mescla também passa pela forma, que abarca tanto o conto, quanto a poesia, o ensaio e o teatro. Tudo entra na dança para resgatar o passado do interior, com seus costumes em vias de desaparição, e o momento presente, com o nosso incompleto mundo da tecnologia e misturebas religiosas. As Visitas que Hoje Estamos
Antônio Geraldo Figueiredo Ferreira
Editora Iluminuras
448 págs.
Revista CULT

O PROFESSOR DE CRISTOVÃO TEZZA


O CRIME QUE NÃO COMETEMOS – SOBRE O PROFESSOR DE CRISTOVÃO TEZZA
Olhar de Marcia Tiburi sobre o livro "O Professor", de Cristovão Tezza


“O Professor” é a história de Heliseu, um filólogo que tem uma homenagem a receber por ocasião de seus 70 anos e o fim de sua carreira acadêmica. Como professor, ele ensina uma matéria cujo grau de inutilidade se torna cada vez mais impressionante. A matéria, a filologia românica, é rejeitada por todo o corpo docente da universidade e também pelo corpo discente. Sabemos como a inutilidade das coisas define o desinteresse dos estudantes, que se convencem fácil de que a pressa é, de algum modo, a alma do negócio. Eles têm razão, é a alma do negócio ao qual servirão em vida (que vida?), mas não da formação que não é negócio algum. Quem é professor vive de mostrar que o que não importa, na verdade, importa mais ainda. Heliseu, talvez tenha tentado. Mas Heliseu, de algum modo, virou um fóssil.


Ele tem que se resolver com isso. O seu problema não é a luminosa questão do ensino e da formação. A parte sombria de sua vida – ou pelo menos aquela parte não declarada – é o que lhe vem à mente. Preocupa-se com o discurso da homenagem, com o que dizer. Como dizer o que deve ser dito diante dos colegas, eis a questão de Heliseu enunciada na clara exposição da superfície da vida. Do outro lado, aquilo que mesmo não devendo ser dito, acaba por ser lembrado, se torna o eixo de tudo o que virá. A força da rememoração, a sua crueza estranhamente parcimoniosa, eis o que devora o nosso amigo. Aquilo sobre o que todos falavam sem que, no entanto, pudessem saber do que realmente se tratava: a morte de sua mulher por suicídio, o caso com a aluna, o filho homossexual que vai embora. Ora, quem vai saber o que se passa na pele do outro quando confrontado com sua própria experiência? O encontro com Heliseu talvez nos permita dar conta disso, de que é preciso ter respeito com aquilo que não se conhece. A experiência alheia nos é evidentemente inacessível.

Cristovão Tezza escreveu algo que nos oferta justamente essa experiência. É a tarefa da literatura – talvez não possamos encontrar outra. Teremos que enfrentar Heliseu, o frio e solitário Heliseu. Um homem de seu tempo esperando pra sair dele, ou será um homem fora do tempo, que não se preocupa em entrar nele. O professor de filologia exposto em sua condição solitária, pois que a filologia não importa a quase ninguém, dedicou sua vida a ela e se pode dizer que apaixonadamente. Uma paixão fria como são as paixões relativas ao conhecimento. O que lhe importou foi a beleza do saber, da língua, da velha língua, da língua que já morreu e, todavia, sobrevive também – ou talvez apenas – por sua causa.

Do mesmo modo, Heliseu se apaixona por uma aluna, uma única pessoa que ainda quer fazer tese na área; paixão desse tipo que não é incomum na vida acadêmica que bem conhecemos. Mas que parece importar a ele mais pela “tese” da aluna, do que pela aluna em si mesma. Já a sua mulher, a sua mulher era um parâmetro de normalidade, algo que ficava na luz até que, apagadas as lâmpadas da idealização, mostrou-se puro breu.

Heliseu tem de fato o reconhecimento de seus colegas, ele escreveu uma tese importante e, por meio dela, encontrou um lugar nesse mundo meio miserável que é o acadêmico. Mas o que mais impressiona em Heliseu é que ele não é de modo algum um herói. Cristovão Tezza sabe que seus personagens não são heróis. Não quer que sejam, ele mesmo afirma. Heliseu é, assim, apenas uma pessoa que viveu sua vida como se ela fosse uma sucessão de acontecimentos, no caso, uma “cadeia de desconcertos” como ele percebe ao amanhecer, no ponto onde o livro começa. É claro que Heliseu, do ponto de vista onde tudo é contado, nos faz perguntar se a vida poderia ser outra coisa. E talvez o seu desafio seja colocar em cena que ninguém precisa mais responder a uma pergunta como essa em um mundo como o nosso.

A narrativa se desenvolve dentro da expectativa e a da preparação da homenagem. Heliseu faz a barba, toma seu banho, toma um café, veste sua roupa. Enquanto isso vamos descobrindo o que se passou na vida de Heliseu. Sua visão de si mesmo e do mundo se expõe a partir dos textos do português arcaico que são abundantemente citados no livro. Quem, ao ler, prestar atenção na questão da “queda das consoantes intervocálicas” perceberá que se trata de uma metáfora da passagem do tempo materializado no modo como falamos. Bonito quando ele conta que a palavra “lágrima” é a única que não mudou entre nós. Eu particularmente, adorei essas partes. Cristovão Tezza brinca com o anacronismo elevado a linguagem no tempo do pleno elogio ao “contemporâneo”. (No tempo dos moderninhos, um homem como Heliseu é adorável). Tezza nos oferece um encontro com a sombra do nosso tempo, o tempo de cada um, o tempo em que o passado simplesmente se repete enquanto escapa de nossas mãos.

***

Toda experiência é experiência da perda e da conquista de si mesmo. A consciência não é uma experiência à toa, é um jeito de permanecer inteiro, seja lá o que isso possa significar. Heliseu é um sujeito lançado na história econômica e política brasileira, mas que a viveu pela margem. A viveu como se não fosse com ele, como acontece com a maioria das pessoas, embora estivesse ligado nos fatos e sua vida possa ser compreendida em sincronia com momentos dessa história. Ele escuta os fatos – ele os escuta muito com os ouvidos de sua mulher, Mônica. Ele se lembra de ter ouvido sobre os acontecimentos. Isso faz pensar que o cidadão em um país como o nosso é sempre um coadjuvante. Coadjuvante de sua própria vida, de certo modo. E, como tal, é uma vítima de nossas escolhas estúpidas, suas e de outros. Ninguém sabe direito que escolha está fazendo por si mesmo ou pelos outros. Ninguém sabe, no extremo, o que está fazendo ao viver uma vida inteira.

Todo mundo que tenha adquirido algum grau real de consciência – ou tanta consciência que ela se torne contra-consciência – terá um inspetor Maigret na sua cola lhe fazendo saber que “não perdoamos os outros do crime que nós cometemos”. É disso que esse livro fala, que uma vida é um crime que não se comete.
Revista CULT

A experiência do horror: arte, pensamento e política

A experiência do horror
Resenha do livro A experiência do horror: arte, pensamento e política, de Rafael Araújo (Alameda Editorial, 2015)
Carlos Rogerio Duarte Barreiros



Em A experiência do horror: arte, pensamento e política, Rafael Araújo apresenta a arte como alternativa crítica aos alcances e aos limites do projeto do esclarecimento e do consequente desenvolvimento tecnológico e científico, especialmente no contexto específico da Revolução Industrial e do século XX. Trata-se da publicação da tese de doutorado defendida pelo autor na Pontifícia Universidade Católica (PUC) de São Paulo, que finalmente vem a público pela Alameda Casa Editorial.
Se um trabalho acadêmico pode ser julgado, incialmente, por seus objetos de estudo, então a pesquisa de Araújo já é digna de nota: a partir de Nietzsche, por exemplo, investiga-se, na primeira seção, a representação algo nebulosa da filosofia em quadro de Gustav Klimt, além das “formas indomáveis” de Jackson Pollock e dos autorretratos de Francis Bacon. Seguem-se-lhes, do ponto de vista teórico, Karl Marx, Michel Foucault, Hannah Arendt e Giorgio Agambem, entre outros; quantos aos artistas, desfilam aos olhos do leitor obras de Käthe Kollwitz, Cândido Portinari, Antonio Henrique Amaral, León Ferrari, Karin Lambrecht, Goya e Picasso – todos, autores e artistas, integrados no projeto do pesquisador de aferir o alcance de sua hipótese inicial: a de que o horror é experiência comum aos homens e que assume, desde a ascensão do capitalismo, especialmente do capitalismo industrial, expressões específicas que, além de circunscreverem a própria experiência humana, acabam por evidenciar-se em formas artísticas algo descontínuas, nas quais está manifesto esteticamente o abismo entre a vida ideológica – na qual a razão técnico-científica rumaria em linha reta e ascendente para a felicidade humana – e avida material – em que predomina a própria experiência do horror, que dá título à pesquisa.
Ao contrário do que pode supor o leitor, o tom da obra de Araújo não é soturno, mas marcado pelo rigor da pesquisa empreendida no corpo a corpo com os trabalhos que lhe servem de referência teórica e principalmente com as obras artísticas por meio de cujas formas se abre a senda crítica da pesquisa. O autor nos apresenta uma tipologia do horror – o horror à imprecisão; o horror de si; o horror à reificação; o horror ao diferente; o horror à moralidade; o horror à biopolítica; o horror à guerra; e o horror ao desemprego – e a seguir o conceito de homo horrens, aquele cuja experiência é determinada pelo horror. É esse o projeto geral da obra, na qual cada manifestação do horror será investigada à luz de uma referência teórica e exemplificada por meio de uma obra de arte.
Interessa verificar que as obras de arte escolhidas por Araújo para análise ao longo do texto guardam entre si – a despeito, por exemplo, da distância no tempo e no espaço – pelo menos uma semelhança: em todas elas vibra o que Theodor Adorno chamaria, na Teoria Estética, de “fricção dos momentos antagônicos que a obra de arte procura conciliar”, isto é, em todas elas observam-se formas que prescindem do naturalismo organizador, unificador e apaziguador da tradição clássica do Renascimento ou do Neoclassicismo, e investe-se no que Araújo chama de fissuras, isto é, formas artísticas descontínuas ou “indomáveis”, por cujas rugosidades que escapam à organização tradicional é possível entrever a experiência do horror que lhes serviu de matriz para a composição.
É por meio dessas obras e das fissuras formais que as caracterizam que as promessas das ideologias burguesas ficam não apenas relativizadas, mas é também por meio da arte que se pode criticá-las em termos que lhes revelam a contradição intrínseca: na mesma medida em que se consolida o capitalismo, aprofundam-se também as experiências de horror que ele carrega em seu próprio seio, inscritas ideologicamente, em palimpsesto, nas suas promessas de prosperidade e de liberdade. Significa, portanto, que as obras de arte nas quais se inscreve o horror registram esteticamente a matriz do que pode ser a crítica radical da sociedade como a conhecemos, daí se poder afirmar que o potencial emancipador da arte é a grande linha de força que guia a obra de Araújo.
Carlos Rogerio Duarte Barreiros
Doutor em Literatura Portuguesa pela USP, atualmente empreende pesquisa de pós-doutorado na PUC-SP sobre as relações entre arte e sociedade. É professor de Literatura Brasileira e Portuguesa no Ensino Superior e em cursos preparatórios para vestibulares e concursos públicos há mais de vinte anos.
Le Monde Diplomatique

Apenas um socialismo possível


O contínuo trabalho de conquista dos espíritos empreendido pelo liberalismo, que foi respaldado pelo poder político e fortificado à medida que o capitalismo ampliava sua empresa, conduziu à construção metódica de uma visão de homem cuja conduta se assenta sobre o interesse e a utilidade

François Chesnais

Para compreender as entranhas do liberalismo é preciso situá-lo na história e tomá-lo por inteiro. É isto que nos lembram dois livros publicados recentemente. A obra de Christian Laval tem o feitio e as qualidades de uma pesquisa [1]. A de Jean-Claude Michéa é um ensaio [2]. Juntos, os dois autores revivem a construção metódica de uma visão de homem cuja conduta assenta- se sobre o interesse e a utilidade. O contínuo trabalho de conquista dos espíritos empreendido pelo liberalismo, que foi respaldado pelo poder político e fortificado à medida que o capitalismo ampliava sua empresa, conduziu ao que Laval chama de uma "mutação antropológica". Isso "fez o Ocidente passar de um estado em que a caridade cristã e a generosidade eram normas ideais de relação com o outro" para uma nova ordem na qual "o universo social é regido pela preferência que cada um dá a si mesmo, pelo interesse que anima o ser humano a manter relações com o próximo e até pela utilidade que ele representa para todos". Dessa forma, não pode haver, de um lado, um "bom" liberalismo político e cultural, e, de outro, um "mau" liberalismo econômico. "O mundo sem alma do capitalismo contemporâneo", escreve Michéa, constitui "a única forma histórica sob a qual a doutrina liberal poderia realizar-se efetivamente". E esse seria "o liberalismo que existe de fato". Em vão e de forma desonesta afirma-se que há um "ultraliberalismo" que poderia ser corrigido de seus "excessos".

Combinando a história da emergência das idéias liberais na filosofia política e na filosofia moral com a história dos fatos econômicos, Laval traça a trajetória de uma construção ideológica longuíssima e dá continuidade à caminhada de Marx e Weber. O autor começa seu percurso nos primeiros textos que fundam uma ética capitalista isolada de qualquer consideração moral ou religiosa nas cidades mercantis italianas dos séculos 14 e 15 e chega até o utilitarismo plenamente acabado de Jeremy Bentham no século 19. A atenção está concentrada no papel de autores com nomes familiares: La Rochefoucauld, Hobbes, Locke, Hume, Montesquieu, Condillac e Adam Smith. Mas Laval cita, também, outros menos notados, como do jansenista Pierre Nicole, ou aqueles mais conhecidos, porém pouco lidos, como Mandeville, William Petty e Daniel Defoe.

Como pensar um "outro mundo possível" se ainda não foram estabelecidos os papéis fundadores do interesse e da utilidade na dominação ideológica neoliberal? Ou, pior ainda, como assumir uma nova sociedade se nós compartilhamos os pressupostos da atual, como demonstra nossa atitude complacente face ao individualismo contemporâneo? - questiona Laval. Michéa é taxativo em seu julgamento: "se o homem não é egoísta por natureza, a armação jurídica e mercantil da humanidade criou, dia após dia, o contexto cultural ideal que permitirá ao egoísmo tornar-se a forma habitual do comportamento humano".

Michéa remonta a um passado menos longínquo que o de Laval. Ele também empresta aos pensadores do liberalismo intenções iniciais louváveis, como a resposta dada às guerras de religião dos séculos 16 e 17. Aqui os marcos intelectuais são Emery de Lacroix e, é claro, Hobbes e Smith. Depois, destacaram-se, na França, Benjamin Constant e seus discípulos, como o economista Bastiat. Tanto entre os ingleses como entre os franceses, o objetivo era criar a paz civil, transferindo para o mercado [3] as soluções de salvação e felicidade dos indivíduos, que vinham então da religião ou do Estado.

Há um momento em que o liberalismo apresentou-se como "o império do mal menor", mas que durou apenas algum tempo. Uma vez que "o sistema capitalista historicamente constituído" pôde "se desenvolver sobre a base de suas próprias leis" ou pressupostos, o liberalismo sucumbiu, por sua vez, ao mal que os pensadores liberais haviam denunciado: querer "organizar cientificamente a humanidade".

Milton Friedman e a escola de Chicago são um exemplo típico da política liberal no que ela tem "de essencialmente deliberado e experimental". A volta completa se produziu com a teoria do "fim da história" formulada por Francis Fukuyama após a queda da URSS. Fukuyama anunciou, e deseja ardentemente, as "novas descobertas científicas que, por sua própria essência, abolirão a humanidade como tal. (?.) Então começará uma nova história para além do humano" [4].

Como fazer para que não cheguemos "até o fim do processo de desagregação social"? - questiona Laval. Michéa dirige-se aos "partidários da humanidade": o tempo está contado no que diz respeito à mutação antropológica do homem e à destruição da natureza. Citando Jean-Pierre Dupuy, o anúncio da catástrofe possível não pretende "dizer o que será o futuro, mas simplesmente o que ele poderá ser se não tomarmos cuidado" [

François Chesnais é economista, professor titular de Ciências Econômicas na Universidade Paris-XIII e co-autor de La finance capitaliste, Paris, PUF, 2006.


[1] Christian Laval, L?homme économique. Essaie sur les racines du néoliberalismo [O homem econômico. Ensaio sobre as raízes do neoliberalismo], Paris, Gallimard, 2007.

[2] Jean-Claude Michéa, L?empire du moindre mal. Essaie sur la civilisation libérale [O Império do Mal Menor. Ensaio sobre a Civilização Liberal], Paris, Flammarion, 2007.

[3] Esse é certamente o caso de Constant, mas não o de Hobbes. Ver a esse respeito C.B. Macpherson, La théorie politique de l?individualisme possessif: de Hobbes à Locke [A Teoria Política do Individualismo Possessivo: de Hobbes a Locke], Paris, Gallimard, 1971.

[4] Francis Fukuyama, "La fin de l?história dix ans après" [O Fim da História Dez Anos Depois], Le Monde, 17 de junho de 1999.

[5] Petite métaphysique des tsunamis [Pequena Metafísica dos Tsunamis], Jean-Pierre Dupuy, Paris, Seuil, 2005
Le Monde Diplomatique