TRAVASSOS, Elizabeth. 1997. Os Mandarins Milagrosos: Arte e Etnografia em Mário de Andrade e Béla Bartók. Rio de Janeiro: Ministério da Cultura /Funarte/Jorge Zahar Editor. 236 pp.
João Felipe Gonçalves
Mestrando, PPGAS-MN-UFRJ
Uma das formas mais promissoras de abordar as complexas relações entre os conceitos antropológico e humanístico de cultura é o estudo do ideário estético primitivista. Baseado no aproveitamento, pela "alta cultura" erudita, de elementos culturais populares tradicionais, esse ideário se confunde amiúde com a reflexão sobre identidade nacional e com o desejo de afirmação de uma arte autenticamente nacional. É o caso de Mário de Andrade (1893-1945) e de Béla Bartók (1881-1945). Ambos compartilham a prática da coleta etnográfica de música popular, tida como instrumento de conhecimento da especificidade natural de seus povos, e, portanto, como base de uma nova visão de mundo que deveria orientar a cultura erudita de seus países.
Os pensamentos desses artistas são minuciosamente comparados no livro de Elizabeth Travassos, derivado de uma tese de doutorado defendida em 1996 junto ao PPGAS/MN/UFRJ. Nessa obra, marcada pelo trânsito por várias disciplinas, a autora, professora de etnomusicologia da Uni-Rio, mostra as proximidades e as diferenças entre dois projetos de "modernização pela tradição", que tinham em comum a idéia de que grandes coletâneas impressas de música popular seriam a base da renovação artística modernista. Sendo tanto uma reflexão sobre as relações entre arte e identidade nacional quanto uma etnografia de teorias de arte, o trabalho é belamente apresentado em um livro com várias ilustrações, dois mapas e um importante quadro cronológico. O bom tratamento editorial tem como grande falha a ausência de bibliografia, o que é parcialmente sanado pela distribuição de uma separata.
Elizabeth Travassos tem formação musical e realizou trabalhos na Comissão de Folclore e Cultura Popular da Funarte, tendo feito ainda uma dissertação de mestrado sobre os índios Caiabi e seus cantos xamanísticos. Com esse background, debruça-se basicamente sobre os escritos teóricos e etnográficos de M. de Andrade e de Bartók, dando menor atenção a seus trabalhos propriamente artísticos (à exceção da análise de obras literárias do brasileiro).
O resultado desse esforço é uma cuidadosa comparação de dois pensamentos, cotejados a respeito de várias questões inter-relacionadas. E ela é feita de forma que cada um dos autores ilumine o outro, demonstrando suas especificidades e trazendo à tona temas pouco explícitos. Como as questões tratadas são transdisciplinares e de imediato interesse da antropologia, muitos nomes da disciplina são trazidos à comparação com os dois pensadores. Isso ajuda a impedir que se torne labiríntica a riqueza de detalhes fornecida pela autora, que demonstra habilidade em remeter pequenas soluções e idéias de sutis meandros aos grandes problemas que estruturam o livro.
Na primeira parte da obra, Travassos aborda o ataque dos dois musicólogos à arte acadêmica, seja pelo combate de ambos ao virtuosismo, seja pela preocupação marioandradiana de criar uma arte vital e expressiva sem ser sentimental. Se Bartók é pouco preocupado com a questão da expressão e se M. de Andrade quer criticar o tecnicismo parnasiano, ambos têm de acertar contas com a arte romântica e dela distinguir-se. Isso é mais importante para o húngaro, que, inspirando-se nas teorias de Herder e Grimm, corre o risco de se confundir com o populismo romântico anterior. Assim, lança-se à construção de métodos rigorosos para a determinação das diferenças culturais no Leste Europeu e ao ataque impiedoso a produções culturais "misturadas" ou "contaminadas" pelo mundo moderno e urbano.
Esse tipo de produção - a cultura popular "falseada", "inautêntica" - é o grande "outro sinistro" de ambos os autores, desejosos de uma tradição pura e genuína. As "bandas ciganas" de Bartók e as modinhas de M. de Andrade são o emblema dessa semicultura, oposta igualmente aos dois pólos valorizados: o do folclore, coletivo, e o da criação erudita, individual. Como mostra a segunda parte do livro, o repúdio a esse elemento híbrido é menos forte no autor brasileiro, que tem mais tolerância e matizes, devido à sua concepção do Brasil como um país em formação, um povo ainda sem tradições firmes e totais, com um perfil ainda por definir. Essa cultura "sem caráter" não leva o paulista a contestar o ideal de uma tradição autêntica a ser cultivada, mas contrasta com o populismo camponês de Bartók, que o leva a traçar rigorosas cartografias étnico-musicais - atividade de graves efeitos políticos no conflituoso espaço interétnico do antigo império austro-húngaro.
Esse contraste entre os autores é explorado na terceira parte do livro, onde percebemos que a arqueologia musical de Bartók (e de seu colaborador Zoltán Kodály) visa a uma essência magiar primordial, enquanto a de M. de Andrade busca o fundo primitivo da humanidade, uma base comum dada na mentalidade pré-lógica - a leitura de Lévy-Bruhl foi influência fundamental - e na fisiologia extática da música como socializadora primitiva. Bartók distancia-se de M. de Andrade não só pela sua aversão à música ritual primitiva, como por sua aceitação sem restrições da tese herderiana da criação espontânea pela coletividade. M. de Andrade matiza esta tese com o reconhecimento da criação individual no povo e da legítima apropriação popular de obras eruditas. Ademais, para ele, o maior valor da música popular residia na superação de várias dicotomias que embaraçavam o Ocidente, sobretudo entre subjetividade e cultura. Sustenta que o cantador popular possibilita a remissão a um universo primitivo de indissociação entre lirismo e arte, entre culturas objetiva e subjetiva. Não busca, portanto, o coletivo puro de Bartók.
O capítulo conclusivo mostra como essas diferenças levam a projetos distintos sobre o destino das coletâneas. A simples relação de afinidade natural que Bartók vê entre seus pólos valorizados é para M. de Andrade problemática, propugnando ele que seus pares mergulhem nas coisas do povo não apenas para produzir obras nacionais, mas também para superar grandes dicotomias como entre indivíduo e sociedade, entre expressão e técnica. Visam assim menos "à boca do povo" do que às salas de concerto.
Desse esboço percebe-se que, sendo antes de tudo uma metaetnografia, o trabalho de Elizabeth Travassos tem a especial virtude de ter como interlocutor principal o seu próprio objeto. Seus "nativos" não são pensadores filiados à tradição das ciências sociais, mas discutem questões a elas pertinentes, estando na peculiar posição tanto de nativos quanto de colegas antecessores. A autora não poderia propiciar o diálogo entre Bartók e M. de Andrade sem entrar também na conversa, pois a sua etnografia envolve posicionamentos sobre a possibilidade de intercâmbio entre níveis de cultura e sobre o caráter complexo e heterogêneo da cultura moderna. A cultura aparece aí como produto construído de um intercâmbio constante, e não como essência total e coerente. Sendo ela vista como um permanente processo, contrasta com a autenticidade popular buscada pelos autores estudados. É como se Travassos lhes respondesse, narrando suas atividades, em que medida uma "cultura popular" é construída pela erudita e quanto os intelectuais contribuem para criar a idéia de uma nação autêntica, que é mais inventada do que descoberta.
Se o debate "nativo" é, assim, enriquecido pelo distanciamento relativizador da antropóloga, nota-se também que esse livro é uma admoestação a que nós, antropólogos, dialoguemos e aprendamos com tradições com menor êxito acadêmico (como os estudos de folclore), bem como com tradições mais distantes de nós (como teoria e crítica de artes, e as próprias artes). O tipo de antropologia da arte aí exercitado, tão raro no Brasil, mostra quão fecundo pode ser tratar os artistas como pensadores sociais. Reconhecê-los como tal não é apenas ser fiel à crença nativa, como também ampliar o debate sobre nossas questões tradicionais, trazendo à baila concepções diversas e contribuindo para o cumprimento de uma das mais ambiciosas promessas da disciplina: a de ter no nativo um interlocutor e um espelho.
Revista Mana
João Felipe Gonçalves
Mestrando, PPGAS-MN-UFRJ
Uma das formas mais promissoras de abordar as complexas relações entre os conceitos antropológico e humanístico de cultura é o estudo do ideário estético primitivista. Baseado no aproveitamento, pela "alta cultura" erudita, de elementos culturais populares tradicionais, esse ideário se confunde amiúde com a reflexão sobre identidade nacional e com o desejo de afirmação de uma arte autenticamente nacional. É o caso de Mário de Andrade (1893-1945) e de Béla Bartók (1881-1945). Ambos compartilham a prática da coleta etnográfica de música popular, tida como instrumento de conhecimento da especificidade natural de seus povos, e, portanto, como base de uma nova visão de mundo que deveria orientar a cultura erudita de seus países.
Os pensamentos desses artistas são minuciosamente comparados no livro de Elizabeth Travassos, derivado de uma tese de doutorado defendida em 1996 junto ao PPGAS/MN/UFRJ. Nessa obra, marcada pelo trânsito por várias disciplinas, a autora, professora de etnomusicologia da Uni-Rio, mostra as proximidades e as diferenças entre dois projetos de "modernização pela tradição", que tinham em comum a idéia de que grandes coletâneas impressas de música popular seriam a base da renovação artística modernista. Sendo tanto uma reflexão sobre as relações entre arte e identidade nacional quanto uma etnografia de teorias de arte, o trabalho é belamente apresentado em um livro com várias ilustrações, dois mapas e um importante quadro cronológico. O bom tratamento editorial tem como grande falha a ausência de bibliografia, o que é parcialmente sanado pela distribuição de uma separata.
Elizabeth Travassos tem formação musical e realizou trabalhos na Comissão de Folclore e Cultura Popular da Funarte, tendo feito ainda uma dissertação de mestrado sobre os índios Caiabi e seus cantos xamanísticos. Com esse background, debruça-se basicamente sobre os escritos teóricos e etnográficos de M. de Andrade e de Bartók, dando menor atenção a seus trabalhos propriamente artísticos (à exceção da análise de obras literárias do brasileiro).
O resultado desse esforço é uma cuidadosa comparação de dois pensamentos, cotejados a respeito de várias questões inter-relacionadas. E ela é feita de forma que cada um dos autores ilumine o outro, demonstrando suas especificidades e trazendo à tona temas pouco explícitos. Como as questões tratadas são transdisciplinares e de imediato interesse da antropologia, muitos nomes da disciplina são trazidos à comparação com os dois pensadores. Isso ajuda a impedir que se torne labiríntica a riqueza de detalhes fornecida pela autora, que demonstra habilidade em remeter pequenas soluções e idéias de sutis meandros aos grandes problemas que estruturam o livro.
Na primeira parte da obra, Travassos aborda o ataque dos dois musicólogos à arte acadêmica, seja pelo combate de ambos ao virtuosismo, seja pela preocupação marioandradiana de criar uma arte vital e expressiva sem ser sentimental. Se Bartók é pouco preocupado com a questão da expressão e se M. de Andrade quer criticar o tecnicismo parnasiano, ambos têm de acertar contas com a arte romântica e dela distinguir-se. Isso é mais importante para o húngaro, que, inspirando-se nas teorias de Herder e Grimm, corre o risco de se confundir com o populismo romântico anterior. Assim, lança-se à construção de métodos rigorosos para a determinação das diferenças culturais no Leste Europeu e ao ataque impiedoso a produções culturais "misturadas" ou "contaminadas" pelo mundo moderno e urbano.
Esse tipo de produção - a cultura popular "falseada", "inautêntica" - é o grande "outro sinistro" de ambos os autores, desejosos de uma tradição pura e genuína. As "bandas ciganas" de Bartók e as modinhas de M. de Andrade são o emblema dessa semicultura, oposta igualmente aos dois pólos valorizados: o do folclore, coletivo, e o da criação erudita, individual. Como mostra a segunda parte do livro, o repúdio a esse elemento híbrido é menos forte no autor brasileiro, que tem mais tolerância e matizes, devido à sua concepção do Brasil como um país em formação, um povo ainda sem tradições firmes e totais, com um perfil ainda por definir. Essa cultura "sem caráter" não leva o paulista a contestar o ideal de uma tradição autêntica a ser cultivada, mas contrasta com o populismo camponês de Bartók, que o leva a traçar rigorosas cartografias étnico-musicais - atividade de graves efeitos políticos no conflituoso espaço interétnico do antigo império austro-húngaro.
Esse contraste entre os autores é explorado na terceira parte do livro, onde percebemos que a arqueologia musical de Bartók (e de seu colaborador Zoltán Kodály) visa a uma essência magiar primordial, enquanto a de M. de Andrade busca o fundo primitivo da humanidade, uma base comum dada na mentalidade pré-lógica - a leitura de Lévy-Bruhl foi influência fundamental - e na fisiologia extática da música como socializadora primitiva. Bartók distancia-se de M. de Andrade não só pela sua aversão à música ritual primitiva, como por sua aceitação sem restrições da tese herderiana da criação espontânea pela coletividade. M. de Andrade matiza esta tese com o reconhecimento da criação individual no povo e da legítima apropriação popular de obras eruditas. Ademais, para ele, o maior valor da música popular residia na superação de várias dicotomias que embaraçavam o Ocidente, sobretudo entre subjetividade e cultura. Sustenta que o cantador popular possibilita a remissão a um universo primitivo de indissociação entre lirismo e arte, entre culturas objetiva e subjetiva. Não busca, portanto, o coletivo puro de Bartók.
O capítulo conclusivo mostra como essas diferenças levam a projetos distintos sobre o destino das coletâneas. A simples relação de afinidade natural que Bartók vê entre seus pólos valorizados é para M. de Andrade problemática, propugnando ele que seus pares mergulhem nas coisas do povo não apenas para produzir obras nacionais, mas também para superar grandes dicotomias como entre indivíduo e sociedade, entre expressão e técnica. Visam assim menos "à boca do povo" do que às salas de concerto.
Desse esboço percebe-se que, sendo antes de tudo uma metaetnografia, o trabalho de Elizabeth Travassos tem a especial virtude de ter como interlocutor principal o seu próprio objeto. Seus "nativos" não são pensadores filiados à tradição das ciências sociais, mas discutem questões a elas pertinentes, estando na peculiar posição tanto de nativos quanto de colegas antecessores. A autora não poderia propiciar o diálogo entre Bartók e M. de Andrade sem entrar também na conversa, pois a sua etnografia envolve posicionamentos sobre a possibilidade de intercâmbio entre níveis de cultura e sobre o caráter complexo e heterogêneo da cultura moderna. A cultura aparece aí como produto construído de um intercâmbio constante, e não como essência total e coerente. Sendo ela vista como um permanente processo, contrasta com a autenticidade popular buscada pelos autores estudados. É como se Travassos lhes respondesse, narrando suas atividades, em que medida uma "cultura popular" é construída pela erudita e quanto os intelectuais contribuem para criar a idéia de uma nação autêntica, que é mais inventada do que descoberta.
Se o debate "nativo" é, assim, enriquecido pelo distanciamento relativizador da antropóloga, nota-se também que esse livro é uma admoestação a que nós, antropólogos, dialoguemos e aprendamos com tradições com menor êxito acadêmico (como os estudos de folclore), bem como com tradições mais distantes de nós (como teoria e crítica de artes, e as próprias artes). O tipo de antropologia da arte aí exercitado, tão raro no Brasil, mostra quão fecundo pode ser tratar os artistas como pensadores sociais. Reconhecê-los como tal não é apenas ser fiel à crença nativa, como também ampliar o debate sobre nossas questões tradicionais, trazendo à baila concepções diversas e contribuindo para o cumprimento de uma das mais ambiciosas promessas da disciplina: a de ter no nativo um interlocutor e um espelho.
Revista Mana
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