quinta-feira, 29 de setembro de 2011

The changing politics of foreign policy


Maria Izabel V. de Carvalho

Doutora em Ciência Política pela Universidade de São Paulo (USP) (1989), pós-doutoranda em Política Internacional pelo Centre for International Studies da London School of Economics and Political Science (2004) e professora do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de Brasília (UnB)

A partir da década de 90, a intensificação da globalização atingiu todas as dimensões da atividade social e atenuou as diferenças entre a esfera doméstica e a esfera externa. Dessa maneira, os relacionamentos transnacionais e transgovernamentais expandiram-se de modo expressivo1. Por outro lado, o fim da Guerra Fria levou à criação de novos Estados e reafirmou a importância do papel desses atores no contexto internacional. A intensa globalização e a expansão do formato Estado- nação apresentaram desafios relevantes para as investigações que procuravam explicar a constituição do ordenamento internacional, com atores cada vez mais diversos, bem como para os estudos calcados na tradição da análise da política externa, focalizados no comportamento dos agentes estatais.

No final da década de 80 e durante os anos 90, avançaram-se abordagens direcionadas a refletir sobre a nova conformação da ordem internacional. Conceberam-se, nesse período, conceitos como, por exemplo, o de governança global2, o qual considerava a nova ordem como sendo um sistema de ordenação constituído pela atuação de atores governamentais e não-governamentais e pelos entendimentos intersubjetivos formais e informais relacionados ao seu funcionamento e evolução. Além disso, o caráter anárquico -tão caro aos quadros de referência realistas -estava ausente da conceituação desse sistema. No contexto dessas reflexões, o Estado não era mais que um tipo de ator entre outros.

A disciplina Análise de Política Externa -que se desenvolvera em oposição ao realismo, defensor de uma abordagem do Estado como um agente unitário e racional -permaneceu tendo como foco de investigação as relações interestatais3.

Assim, enquanto se desenrolavam processos no âmbito externo, limitando e restringindo a capacidade de atuação dos Estados, e se produziam estudos que apreendiam a nova configuração do ambiente internacional em uma macroperspectiva em que o papel desses atores não se delineava claramente, os estudos a respeito da política externa investigavam, predominantemente, o ambiente doméstico e seu impacto nas decisões tomadas pelos governos no meio internacional4. Em vista disso, desafios foram colocados não apenas no sentido de redimensionar o objeto da disciplina -afinal, o que é política externa hoje?-, mas também com o objetivo de inseri-lo em um espaço de múltiplos condicionamentos originados interna e externamente.

Como salientam W ebber e Smith (2002:26), poucos são os estudos que tiveram como meta repensar a relação entre a política externa e as transformações globais5. Christopher Hill, professor do departamento de Relações Internacionais da London School of Economics and Political Science, com o livro The Changing Politics of Foreign Policy, contribui de forma primorosa para preencher essa lacuna. Ele dispõe de um conhecimento profundo sobre o referencial teórico da disciplina Análise de Política Externa e sobre a política externa em sua dimensão comparativa. Destaca-se, ainda, o seu domínio da teoria das Relações Internacionais e do rol de suas questões atuais.

Éo campo de estudos sobre a política externa capaz de produzir um conhecimento significativo sobre as Relações Internacionais? A resposta de Hill é sim, mas, segundo ele, para tal é necessário realizar um aggiornamento e formular uma nova perspectiva sobre os fenômenos associados à política externa. São esses os principais propósitos que o autor pretende alcançar no livro.

Nesse sentido, Hill confronta os desafios mencionados anteriormente analisando o impacto das mudanças globais sobre a política externa e ressaltando ser a capacidade de agir (agency) um elemento importante de constituição e de explicação do âmbito internacional - aspecto este não considerado pelas abordagens de globalização e de governança global, mas possível de ser tratado a partir da perspectiva teórica e conceitual desenvolvida nos estudos relativos à política externa.

Em vista disso, o autor é capaz de relacionar conceitualmente a política externa a um ambiente de interpenetração entre o externo e o interno e de erosão de suas fronteiras (tradicionalmente tão definidoras do campo da política externa) sem, no entanto, deixar de distingui-la como um espaço próprio e relevante de reflexão e de ação significativa no âmbito internacional.

No capítulo primeiro, "Foreign Policyin International Relations", Hill propõe que se defina política externa como: "a soma das relações oficiais externas conduzidas por um ator independente (usualmente um Estado) nas relações internacionais"(:3)6. Esta é uma definição inovadora, uma vez que não limita a ação, no âmbito da política externa, ao Estado. Na verdade, ela possibilita que se repense a política externa de entidades que, embora não tenham uma conformação estatal, possuam também estruturas de governo e de responsabilização, a exemplo da União Européia, como destaca o autor.

Entretanto, cabe ressaltar que para Hill o ator mais relevante no âmbito da política externa ainda é o Estado, tendo em vista a sua capacidade de mobilização política. Contudo, o autor salienta que

"[...]mesmo onde um ator não é independente inteiramente dos Estados, carece de um eleitorado claro e possui somente um âmbito limitado de interesses, ainda assim pode ser válido considerá-lo em termos de política externa. [... ]Soberania [... ]pode estar faltando, mas a entidade interessada pode ainda possuir abrangência para implementar decisões que afetem outros - em resumo, um grau de atuação" (:41).

Cidades, regiões, seitas e organizações não-governamentais são possíveis atores que podem e devem ser investigados quanto à "política externa" (:41).

Entretanto, esta assertiva e suas implicações no plano das diferenças entre as "políticas externas" desses atores e as dos Estados não são exploradas pelo autor, o que deixa o leitor com mais perguntas do que respostas. Uma dessas implicações, porém, é debatida: a questão da coordenação e da coerência no contexto da política externa quando se considera a atuação de entidades subnacionais. Esta é uma discussão relevante já que remete, por exemplo, ao papel desempenhado pelos atores regionais no processo decisório da União Européia (ver ) e ao fenômeno relativamente recente de uma atuação externa não desprezível de determinados municípios no Brasil, como é o caso do M unicípio de São Paulo (ver ).

Ainda no capítulo primeiro, Hill discute os limites e as contribuições de diferentes abordagens teóricas das Relações Internacionais para o entendimento da política externa. De acordo com ele, o realismo e o neo-realismo são insuficientes, não apenas pelas razões que vêm sendo tradicionalmente apontadas no âmbito da disciplina - os pressupostos do ator unitário e racional -, mas, também, porque aqueles quadros de referência não consideram o inter-relacionamento entre fatores de ordem doméstica e internacional na explicação dos fenômenos associados à política externa - dimensão relevante na configuração da perspectiva teórica do autor, como será visto mais adiante.

Suas críticas aos quadros teóricos realistas não significam, no entanto, que a questão das assimetrias de poder na esfera internacional seja desconsiderada. Este aspecto - também caro às abordagens realistas- permeia toda a análise desenvolvida pelo autor e pode ser encontrado, por exemplo, nas discussões a respeito dos recursos e capacidades dos atores estatais para implementarem decisões em termos de política externa (cap. 6) e na avaliação do impacto das diferenças entre níveis de desenvolvimento sobre os graus de liberdade para a atuação daqueles atores no âmbito internacional (cap. 9).

As abordagens que pressupõem como modelo para o comportamento humano o homo economicus, tais como a teoria da ação racional e a teoria da escolha pública, focalizam facetas restritas do fenômeno da política externa. O formalismo que elas embutem pode trazer contribuições limitadas, como é o caso da Teoria dos Jogos, porém, ele não é suficiente para dar conta da complexidade envolvida na explicação das preferências dos atores. Como afirma Hill, no capítulo 11, "[...] Elas existem além da conta [as preferências dos indivíduos tomadores de decisão] e os valores em jogo são difíceis de simplificar, envolvendo poucos saldos óbvios e idéias difusas, tais como estabilidade internacional, prestígio e memória histórica" (:293). Além disso, "a natureza e as origens das preferências em política externa não podem ser consideradas como dadas" (:293). Sugere, ainda, que o estudo da política externa, "pode e deve ser, comparativo, conceitual, interdisciplinar e que se estenda através da fronteira externo/doméstica". E, também, que ele "deve ser analítico no sentido do distanciamento, de não ser preconcebido, porém, não deve ser positivista no sentido de assumir que os fatos são sempre exteriores e desligados das percepções dos atores e de seus próprios entendimentos" (:10).

No capítulo segundo, "The Politics of Foreign Policy", Hill versa sobre a relação entre ação e condicionamentos, a multiplicidade de atores, o contorno do doméstico e do externo, a relevância do ator estatal, do seu papel interno e internacional, a natureza dos eleitorados da política externa e o problema de finalidades e expectativas.

Cabe destacar que, de acordo com o autor, o entendimento da capacidade de agir no ambiente internacional passa, necessariamente, pela discussão da relação agente/estrutura, insuficientemente tratada pelas abordagens estruturalistas. Segundo Hill, estrutura e agente constituem-se mutuamente e, como tais, devem ser investigados7.

As estruturas, por sua vez, dizem respeito não apenas à esfera externa (que é multidimensional, já que contém estruturas que se constituem a partir dos diferenciais de poder e estruturas que se estabelecem por meio de normas e valores), mas incorporam também as estruturas políticas, burocráticas e sociais de âmbito doméstico. Sendo assim, "O processo decisório em política externa é uma complexa interação entre muitos atores inseridos em uma ampla variação de estruturas. Suas interações são processos dinâmicos, conduzindo à evolução constante de ambos, atores e estruturas" (:28).

A Parte I do livro, "Agency", é composta de três capítulos, nos quais o autor aborda os aspectos relativos à tomada de decisão sobre a política externa. Dessa maneira, são analisados: o papel dos atores - os que são formalmente responsáveis pela política externa - e o dos agentes;a burocracia e as condições que permitem que esta adquira uma capacidade de decisão;o quadro de referência da política burocrática;os limites da abordagem do ator racional;o processo de execução da deliberação.

Quanto ao processo de tomada de decisão, vale realçar duas conseqüências apontadas por Hill e provocadas pelas mudanças globais. Em primeiro lugar, destaca-se a ampliação de questões "intermésticas", isto é, questões que partilham dimensões internacionais e domésticas. Em decorrência disso, o processo decisório tende a adquirir uma característica colegiada e passa a agregar, além dos tradicionais atores, chefe do governo e/ou presidente da República e ministro das Relações Exteriores, os ministros de outras pastas, atingidos pelo processo de internacionalização das políticas públicas domésticas. Em segundo lugar, ocorre o fenômeno da descentralização horizontal burocrática da política externa com a redução do monopólio do Ministério das Relações Exteriores sobre a sua formulação e sua execução. Os problemas de coordenação, desenvolvimento, planejamento estratégico e atuação externa, como uma única voz, são discutidos pelo autor a partir dessas mudanças8.

No capítulo relativo à implementação da decisão, esta questão é enfocada a partir do vínculo entre capacidade e ação. Dessa maneira, é desenvolvido e discutido um quadro de referência em que os meios (considerados como um continuum entre poder e influência) e os instrumentos para a execução (desde militares a diplomáticos) são condicionados pelos recursos (derivados da história e da geografia) e capacidades (definida como a operacionalização dos recursos) dos atores.

A Parte II, "The International", abrange os capítulos "Living in the Anarchical Society" e "Transnational Reformulations". A conceituação do sistema internacional, proposta no capítulo sétimo, inspira-se nas contribuições de Hedley Bull (1977) e combina as dimensões de anarquia e de sociedade. Em vista disso, instituições, regras e expectativas também moldam as orientações de política externa dos atores estatais, bem como as de outros atores que atuam na esfera externa. Aliás, o sistema internacional é múltiplo em atores que o constituem com suas ações, mas que também são constituídos por ele.

Dessa maneira, a rede institucional de organizações internacionais, o direito internacional, as normas informais, a política exterior dos outros Estados, a distribuição de poder entre eles e as ações das organizações não-governamentais internacionais são fatores que geram constrangimento político e interdependência para a atuação dos governos no meio internacional. Além disso, uma sociedade mundial (ver Kaldor et alii, 2003) significativa em sua atuação, mas não dominante no modo como defende seus proponentes, também é parte do sistema internacional em transformação.

Por outro lado, se existe uma pressão de conformação do sistema internacional sobre o comportamento dos Estados, ela não é determinante. Diferentes tipos de estratégia de não-acomodação são possíveis naquele ambiente, ilustradas, entre outras, pela conduta de neutralidade do Grupo dos Não-Alinhados durante o período da Guerra Fria.

Os atores transnacionais são objeto de investigação de um capítulo à parte - o que realça a preocupação do autor com a questão. Nesse capítulo, por meio da formulação de uma taxonomia de atores transnacionais (territoriais, ideológicos/culturais e econômicos) e de um modelo de relacionamento entre os atores transnacionais e estatais, o autor busca integrar a questão da capacidade de agir em política externa a um meio internacional transformado.

O modelo sugerido pelo autor é complexo e nele incluem-se facetas relevantes daquele relacionamento. Os tipos de vínculo entre os atores referidos e os atores transnacionais são: a) barganha; b) competição e poder; c) transcendência. Para cada um o autor explora os seguintes aspectos: as ações possíveis dos atores transnacionais e estatais, a natureza do processo de interação e as vantagens da conduta adotada por ambos os tipos de atores.

O meio internacional emergente da análise de Hill é significativamente transnacional, uma vez que as relações entre as sociedades se estabelecem, em grande parte, independentemente dos governos9 e o externo e o interno parcialmente sobrepõem-se. Nesse contexto, "as aspirações que o governo poderia ter de ser porteiro [...] a capacidade exclusiva de mediar entre o mundo e sua própria sociedade, são destinadas ao fracasso." (:209)

Os condicionamentos da esfera doméstica sobre a conduta dos atores são investigados, por um lado, a partir das origens da política externa e, por outro, a partir dos eleitorados dos atores oficialmente responsáveis pela política externa nos dois capítulos - "The Domestic Sources of Foreign Policy" e "The Constituencies of Foreign Policy" - entre os três que compõem a última parte do livro, "Responsibility".

A apreciação das fontes da política externa leva o autor a reexaminar a conexão entre o interno e o externo sob o ponto de vista da influência das estruturas constitucionais - incluindo as relações entre o Executivo e o Legislativo - do sistema federativo e do tipo de regime, quando, então, a questão da "paz democrática" é analisada.

Hill investiga também os mecanismos formais de controle democrático dos atores em política externa, a partir da discussão sobre o papel das estruturas constitucionais e das instituições que vinculam os tomadores de decisão e a sociedade, tais como a opinião pública, os grupos de interesse e os meios de comunicação de massa. Ressalta que os mecanismos de responsabilização ainda são limitados na esfera da política externa, porém, o esmaecimento das fronteiras entre o interno e o externo, o aumento de questões "intermésticas", a intensificação da interdependência e a mobilização de organizações não-governamentais de âmbito internacional são fatores que cooperam para o envolvimento e o maior interesse dos membros das sociedades nacionais em relação à política externa e contribuem para aumentar a eficácia dos mecanismos de controle democrático.

Argumenta, por fim, no último capítulo, "On Purpose in Foreign Policy: Action, Choice and Responsibility", que as características transformadoras do ambiente internacional colaboram, ainda, para expandir os eleitorados dos tomadores de decisão e, conseqüentemente, as relações de responsabilidade em que eles se inserem. Em vista disso, as fontes de legitimidade da conduta dos atores não estão mais circunscritas à esfera doméstica, como tradicionalmente é concebida nos estudos de Análise de Política Externa, mas se estendem também ao âmbito internacional.

Os vínculos transnacionais, as redes que se formam na sociedade global, a conformação da ordem internacional por meio de regimes, a multiplicação das organizações internacionais e a expansão do direito internacional contribuem para que se desenvolva nos atores um sentido de identificação parcial com o "outro", com o "estrangeiro".

Portanto, em oposição às perspectivas defensoras de que a política externa se refere à definição de uma identidade exclusiva e em oposição ao que está fora dos limites do Estado nacional, Hill defende que "não é possível nem desejável definir em termos domésticos o conjunto particular de interesses [...]. Identificação com os de fora, ainda que intermitente e parcial, modifica a natureza do jogo e significa que responsabilidades também passam a ser percebidas como se estendendo para fora dos limites formais do Estado" (:302).

As transformações que ocorrem no espaço internacional vêm desafiando as investigações de política externa, muitas vezes excessivamente baseadas em uma concepção centralizada no Estado e limitada ao ambiente doméstico. As contribuições de Hill são, nesse sentido, muito relevantes: um quadro de referência original foi produzido e temas habituais da área foram revisitados e rediscutidos. Dessa maneira, o autor responde à pergunta por ele colocada no início do seu livro e é possível afirmar-se que o ponto de vista da Análise de Política Externa ainda é um lugar capaz de gerar um conhecimento significativo sobre a capacidade de agir no âmbito internacional.



Notas

1. Em meados da década de 70, esses processos já se encontravam em curso e tinham sido apreendidos pela abordagem conceitual da interdependência proposta por Keohane e Nye (1977).

2. O conceito de governança global foi desenvolvido por Rosenau (1992). A reflexão sobre os processos de constituição do sistema internacional, a partir de entendimentos partilhados entre os seus membros, já podia ser encontrada em Young (1989).

3. Ver, por exemplo, a excelente revisão analítica dos estudos de política externa entre 1950 e 1995, realizada por Hudson e Vore (1995).

4. Isso não significa a inexistência de estudos que analisassem os condicionamentos internacionais e os seus efeitos sobre o âmbito doméstico (ver, por exemplo, Gourevitch, 1978). Porém, o ponto aqui ressaltado tem a ver com o impacto das transformações do sistema internacional e a atenuação das diferenças entre os níveis interno e externo sobre a reflexão relativa à política externa e o redimensionamento do seu objeto de estudo, para além da constatação da redução da autonomia decisória do Estado. Uma exceção a essa tendência é a abordagem dos jogos de dois níveis (Putnam, 1988), na qual a explicação do comportamento dos atores estatais em negociações internacionais resulta da interação entre processos que se desenrolam nos níveis interno e externo.

5. Voltados também para responder a esses desafios, destacam-se os seguintes trabalhos: o dos mencionados autores Webber e Smith (2002) e Rosati et alii (1997).

6. Vale a pena cotejar a definição proposta por Hill com a apresentada por Webber e Smith (2002:9-10): "A política exterior é composta de objetivos a serem perseguidos, valores estabelecidos, e decisões feitas e ações tomadas pelos Estados, e governos nacionais que os representam, no contexto das relações externas das sociedades nacionais".

7. O autor utiliza o conceito "structuration", proposto por Giddens (1979).

8. No Brasil está se assistindo a um fenômeno semelhante, visto que, por exemplo, as decisões ministeriais sobre as negociações multilaterais de comércio têm transcorrido na Câmara de Comércio Exterior (CAMEX), órgão integrante do Conselho de Governo que congrega os ministros do Desenvolvimento, Indústria e Comércio, o chefe da Casa Civil, da Fazenda, do Planejamento, do Orçamento e Gestão, das Relações Exteriores, e da Agricultura, Pecuária e Abastecimento. Consultar , visitada em 27/7/2004.

9. O autor trabalha com o conceito de linkage politics, proposto por Rosenau (1969).


Referências Bibliográficas

BULL, Hedley. (1977), The Anarchical Society: A Study of Order in World Politics. London, Macmillan.
GIDDENS, Anthony. (1979), Central Problems in Social Theory:Action, Structure and Contradiction in Social Analysis. London, Macmillan.
GOUREVITCH, Peter. (1978), "The Second-Image Reversed: The International Sources of Domestic Politics". International Organization, vol. 32, nº 4, pp. 881-911.
HUDSON, Valerie M. e VORE, Christopher S. (1995), "Foreign Policy Analysis Yesterday, Today and Tomorrow". Mershon International Studies Review, vol. 39, nº 2, pp. 209-238.
KALDOR, M., ANHEIER, H. e GLASIUS, M. (eds.). (2003), Global Civil Society. Oxford, Oxford University Press.
KEOHANE, Robert O. e NYE, Joseph S. (1977), Power and Interdependence. Boston, Little Brown.
PUTNAM, Robert D. (1988), "Diplomacy and Domestic Politics: The Logic of Two-Level Games". International Organization, vol. 42, nº 3, pp. 427-460.
ROSATI, J. A., HAGAN, J. D. e SAMPSON, M. W. (eds.). (1997), Foreign Policy Restructuring: How Governments Respondto Global Change. Columbia, University of South Carolina Press.
ROSENAU, James N. (1969), Linkage Politics. New York, Free Press.
____. (1992), "Governance, Order and Change in World Politics", in James N. Rosenau e Ernst-Otto Czempiel (orgs.), Governance without Government: Order and Change in World Politics. Cambridge, Cambridge University Press.
WEBBER, Mark e SMITH, Michael. (2002), Foreign Policy in a Transformed World. Harlow, Prentice Hall.
YOUNG, Oran R. (1989), International Cooperation: Building Regimes for Natural Resources and the Environment. Ithaca, Cornell University Press.
Revista Contexto Internacional

International systems in world history - remaking the study of international relations


Any Correia Freitas
Barry Buzan e Richard Little. Oxford, Oxford University Press, 2000, 452 páginas.

Em que momento da história mundial surgiram os primeiros sistemas internacionais? De que modo eles se desenvolveram? Como o sistema internacional contemporâneo se tornou aquilo que é atualmente? Para que direção aponta seu futuro? À primeira vista, são perguntas dessa natureza que parecem ter instigado Barry Buzan e Richard Little, levando-os a escrever International Systems in World History. A leitura de suas primeiras páginas revela, no entanto, que não foram de fato as perguntas que os incentivaram a investigar o assunto, mas, em grande medida, a limitação e, não raro, a ausência de respostas que as teorias de Relações Internacionais poderiam oferecer a elas. Investigar as causas desse silêncio, e apresentar alternativas a ele, parece ter sido o ponto de partida para o livro.

O diagnóstico de Buzan e Little para o problema, além de bastante incisivo, ilustra com precisão o estado atual da disciplina. Perdida em meio a grandes debates, e com o foco de atenção voltado para questões atuais, nenhuma perspectiva teórica dentro das Relações Internacionais teria formulado um conceito de sistema internacional capaz de transcender as fronteiras de Westphalia.

Para a grande maioria delas, a referida história dos sistemas internacionais se resumiria àquela do sistema de Estados europeu e pouca coisa antes disso teria relevância para as pesquisas e análises produzidas na área. De fato, isto não está muito longe da verdade. Embora o interesse pela história não seja inédito na disciplina, a tendência é que esta seja usada anacronicamente para comprovar teorias e modelos do presente. Deve-se, sem dúvida, reconhecer que realistas clássicos, como Morgenthau, por exemplo, acrescentaram grande conteúdo histórico às suas análises; no entanto, isto parece ocorrer muito mais como uma tentativa de construir um passado clássico para o realismo do que como um desejo real de elaborar uma abordagem histórica abrangente da teoria.

Essa falta de perspectiva histórica (ou, ao menos, de uma perspectiva de mais longo termo), além de representar um entrave para o desenvolvimento dessas mesmas teorias, impede ainda que a área de Relações Internacionais consiga sair do gueto no qual se encontra confinada. Muito embora esta tenha, por natureza, tanto o potencial quanto a obrigação de exercer influência fora de suas fronteiras e, dessa forma, desempenhar o papel de macrodisciplina integradora das ciências sociais e da história, seu status atualmente ainda é o de uma disciplina periférica e atrasada em relação às demais (:33, 384 e 407). Os conceitos e abordagens que desenvolve - por estarem presos a uma experiência bastante particular, essencialmente moderna e européia - não teriam robustez e expressividade suficientes para suscitar o interesse de outras áreas, o que acaba aprofundando seu isolamento.

Para Buzan e Little, esta seria também a causa principal para o confinamento do conceito (e objeto) próprio das Relações Internacionais que é o "sistema internacional". Apesar de sua evidente qualidade de veículo capaz de estruturar uma perspectiva de história mundial, bem como de unidade para macroanálises nas ciências sociais, o sistema internacional continua sendo ignorado, normalmente preterido pelo conceito de sistema mundial, elaborado pelo sociólogo Immanuel Wallerstein (:5-9, 30-33).

A característica a-historicidade das teorias dominantes na disciplina - mais especificamente aquelas ligadas à tradição americana, como o neo-realismo - é que, em grande medida, teria levado à formulação de um conceito de sistema internacional restrito ao setor político-militar, dotado de unidades (em geral Estados) sem diferenciação funcional (i.e., unidades idênticas) e cuja estrutura é sempre anárquica. Com efeito, os autores parecem ter razão quando afirmam que, apesar de se pretender universal, esse conceito de sistema internacional, normalmente aceito na disciplina, não pode ser usado em análises que se estendam em um espectro de tempo e espaço mais amplo do que aquele compreendido na história pós-Westphalia.

Desse modo, torna-se mais fácil compreender as razões para o silêncio das diversas teorias da área quando são chamadas a identificar e analisar sistemas internacionais ao longo da história mundial. Na verdade, diante de sistemas que não se limitam ao setor político-militar, cujas unidades dominantes não são homogêneas (e tampouco se parecem com o Estado) e onde a estrutura não é anárquica, essas teorias não teriam sequer o instrumental teórico necessário para identificá-los como tais. No entanto, esta é, segundo Buzan e Little, justamente, a configuração de muitos dos sistemas internacionais que existiram ao longo da história.

A solução proposta para o impasse parece, de fato, bastante lógica: a união da história com a teoria. Dotadas de um conteúdo histórico mais abrangente, as teorias de Relações Internacionais poderiam rever e reformular suas premissas e, conseqüentemente, seu objeto, para tornar o sistema internacional finalmente apto a assumir o papel de unidade de análise transdisciplinar que lhe é devido. Por outro lado, esse novo conceito também teria condições de fornecer a estrutura teórica necessária para sistematizar o estudo da história mundial, viabilizando, assim, um novo modo de se fazer sua periodização. Tomando as idéias que dão título ao livro, olhar para o passado com um conceito de sistema que escapa ao modelo westphaliano permitiria não só oferecer uma alternativa ao modo como normalmente a história mundial é narrada, como também refazer o estudo desses sistemas dentro da própria disciplina.

O casamento entre as teorias de Relações Internacionais e a história mundial é, de fato, uma das idéias centrais de International Systems in World History. Não se trata, na verdade, de algo novo, mas reconhecidamente da continuação - ou releitura - de um trabalho já desenvolvido pela Escola Inglesa - na qual os autores fortemente se baseiam -, só que, desta vez, com a pretensão de conferir-lhe bases teóricas mais sólidas. Buzan e Little acreditam que tal união seja mutuamente benéfica, "um ato essencial", para o desenvolvimento da disciplina e suas teorias e, sem dúvida, uma maneira de estruturar o estudo da história mundial (:385, 408).

Ainda que sejam claros para a disciplina os ganhos dessa junção entre teoria e história, é mais difícil perceber até que ponto as Relações Internacionais poderiam realmente favorecer a história mundial. A proposta de uma periodização tripartite da história, tendo como base a formação e o desenvolvimento - no tempo e no espaço - de diferentes tipos de sistemas internacionais, pode ser (e, muitas vezes, de fato é) bastante interessante1. No entanto, de certo modo ela parece representar muito mais um ganho para a própria disciplina (já que esta teria a possibilidade, até então inédita, de fazer um recorte próprio da história) do que um efetivo avanço para a história mundial.

Para as Relações Internacionais, as vantagens dessa conexão são, com efeito, manifestas. Ao contrário do que pensam Buzan e Little, no entanto, talvez a maior delas não seja a possibilidade de desenvolvimento e a afirmação da disciplina, mas sim o fato de a história tornar evidentes todas as falhas e insuficiências das teorias dominantes na área e, mais precisamente, as do neo-realismo2. Quando analisados sob uma perspectiva histórica, os sistemas internacionais podem assumir configurações bem diferentes daquelas ditadas pelas premissas neo-realistas, e é essa nova maneira de olhar que representa a grande possibilidade que a história pode trazer à teoria.

A presunção neo-realista de que as unidades do sistema são sempre iguais em sua totalidade, pode não se verificar. Em muitos momentos, tais unidades podem possuir diferenças não somente estruturais, mas também funcionais, a despeito da existência de forças de socialização e competição que tenderiam a homogeneizá-las. Este foi o caso das eras antiga e clássica quando cidades-estado, impérios, tribos e impérios nômades coexistiram durante muito tempo como unidades principais em um mesmo sistema internacional. Outra premissa neo-realista, de que a anarquia é uma característica constante do sistema, aliás, também cai por terra quando se analisa esse mesmo período. Em muitas instâncias, anarquia e hierarquia podem alternar-se em "fases" sem que, por isso, o sistema internacional deixe de existir. A idéia de que são modificações no plano da estrutura que levam a mudanças no sistema também pode ser questionada. De uma perspectiva histórica, as características das unidades e o modo como se estruturam internamente é que seriam as chaves para se entender o caráter e as transformações que podem ocorrer no sistema (ver nota 1).

Historicamente, torna-se mais interessante pensar não somente nos tipos de unidade dominantes, mas também nos diferentes tipos de interação (processo) e estrutura que podem ser construídos entre essas unidades. A diferenciação setorial - introduzida pelos autores no que chamam de seu "kit de ferramentas teóricas" - é essencial para perceber que, na verdade, em vez de um, vários sistemas internacionais podem coexistir em um mesmo momento da história mundial, ampliando dessa forma suas possibilidades de análise.

Em cada setor - seja ele político-militar3, econômico, sociocultural ou ambiental4 - haverá um tipo de processo e estrutura distinto, que freqüentemente se relacionam, mas cujo desenvolvimento não se dá ao mesmo tempo nem com a mesma intensidade. Dessa forma, para definir o caráter e a escala do sistema internacional, o setor econômico tende a tornar-se mais importante do que o político-militar, por exemplo. Esta seria uma tendência visível no sistema internacional global contemporâneo, em que os processos do setor econômico, por terem assumido maior abrangência e intensidade do que os de qualquer outro, acabam tornando mais fácil falar em "economia global" do que em governo ou sociedade global.

Essa diferenciação dos sistemas internacionais por setores, vale ressaltar, é o instrumento que permite que Buzan e Little resgatem as idéias da Escola Inglesa de distinção entre sistema internacional, sociedade internacional e sociedade mundial, segundo três diferentes tradições (hobbesiana, lockiana e kantiana). Nessa releitura, os sistemas internacionais equivaleriam aos sistemas internacionais observados no setor político-militar (mais próximo também do sistema neo-realista); as sociedades internacionais, no setor sociocultural, e as sociedades mundiais poderiam ser entendidas como sistemas analisados no plano do indivíduo. A diferenciação dos níveis de análise é, aliás, outra ferramenta analítica introduzida pelos autores. Segundo eles, além do nível individual5, haveria outros quatro usados com freqüência em Relações Internacionais: os níveis do sistema, do subsistema, da unidade e da subunidade.

O último instrumento do referido "kit" consiste na separação das diversas "variáveis que explicam o comportamento", ou melhor, das fontes de explicação que podem ser encontradas em todos os sistemas, seja qual for o setor e o nível de análise. Tais fontes seriam três: a capacidade de interação (que corresponderia à quantidade de interação possível, tendo em vista as tecnologias físicas e sociais disponíveis em certo tempo e lugar), o processo (os padrões de ação e interação existentes, ou ainda, a interação que efetivamente ocorre) e, por fim, a estrutura, para a qual usa a definição clássica de Waltz (os princípios que definem como as unidades serão arranjadas dentro de um sistema, qual a diferenciação entre elas e também seu relacionamento, tendo por base suas capacidades relativas).

O que Buzan e Little propõem é que, com base nessas diferentes ferramentas teóricas, os sistemas internacionais possam ser observados em seus diferentes setores, cada um deles podendo ser analisado em níveis distintos, aos quais são conferidas fontes de explicação próprias. Com essa abordagem em mente, identificam três tipos básicos de sistema: os sistemas internacionais completos (abrangendo todos os setores), os econômicos (no qual tem maior relevo o setor econômico, sem, contudo, excluir o político-militar) e os pré-sistemas internacionais (com maior ênfase no setor sociocultural). Tal diferenciação não significa, contudo, uma separação ou corte radical. Porque fazem parte de uma mesma realidade, tais sistemas podem coexistir - e isto é o que com freqüência ocorre.

A maior parte dos argumentos apresentados até aqui - argumentos, aliás, sobre os quais o livro se baseia - são introduzidos já na primeira parte de International Systems in World History. A premissa central é que o conceito de sistema internacional, tal como formulado dentro da disciplina, não só impede que as teorias de Relações Internacionais possam descrever e analisar o modo como diversos sistemas internacionais surgiram e se desenvolveram ao longo da história mundial, como também impossibilita que o mesmo assuma seu papel de unidade de análise comum a todas as ciências sociais e à história mundial.

O "presentismo" (foco nas questões de história e política contemporânea), o "a-historicismo" (busca de leis e padrões imunes às variações históricas), o "eurocentrismo" (percepção da história mundial como uma extensão da experiência histórica européia), a "anarcofilia" (fixação em questões como anarquia e soberania) e o "estadocentrismo" (Estado encarado como unidade dominante, o que acaba vinculando o sistema internacional ao setor político-militar), arraigados nas teorias dominantes da disciplina, explicariam por que o conceito de sistema internacional não consegue libertar-se do modelo westphaliano e abranger diferentes experiências ao longo da história mundial (:17-22).

Para transcender tais fraquezas e, ainda, para dar conta da complexidade do tema, faz-se necessária a adoção de um pluralismo, tanto teórico quanto metodológico. Somente por meio de uma abordagem desse tipo seria possível formular um conceito capaz de abranger tanto a dimensão social quanto material dos sistemas internacionais, possibilitando, dessa forma, a conciliação de elementos de diferentes abordagens teóricas (no caso, o neo-realismo de Waltz, o construtivismo de Alexander Wendt6 e a Escola Inglesa) com elementos da história mundial.

Quando analisado com maior cuidado, contudo, o referido pluralismo guarda mais semelhança com a abordagem que a Escola Inglesa faz dos sistemas internacionais (segundo os autores, a única capaz de superar todas aquelas fraquezas já apontadas) do que como uma tentativa real de congregar elementos de diferentes teorias. Não se está querendo negar aqui que os postulados da teoria sistêmica de Waltz são, de fato, os fundamentos sobre os quais essa nova percepção dos sistemas internacionais será construída, ou ainda, que alguns elementos do construtivismo estejam presentes (ver nota 6). No entanto, são as idéias da Escola Inglesa que, como já foi dito, informam tal construção. Buzan e Little, por certo, reconhecem suas limitações (uma delas, seria o fato de a Escola Inglesa também não conseguir oferecer um conceito suficientemente abrangente para os propósitos do livro), mas a intenção dos autores é justamente superá-las, indo buscar na história mundial os instrumentos necessários para tanto.

Esse pluralismo metodológico, aliado às ferramentas de análise anteriormente mencionadas, são os elementos que, em grande medida, garantem a originalidade da proposta dos autores. Tendo em mãos esses instrumentos, Buzan e Little procuram estabelecer os critérios apropriados para a formulação de um conceito transhistórico de sistema internacional, capaz de expandir-se para muito antes dos quinhentos anos de Westphalia. O tipo e a quantidade de interação, o padrão, a escala, o tipo de unidade dominante, a relação existente entre elas, bem como a estrutura são os elementos necessários para que um sistema internacional possa ser identificado (:90-108). A intenção aqui faz lembrar o intuito de Waltz de construir uma teoria sistêmica parcimoniosa e elegante, capaz de explicar um grande número de eventos com o menor número de variáveis possível, resistindo ainda às variações e particularismos da história. Ao contrário de Waltz, entretanto, Buzan e Little pretendem levar as possibilidades de análise do conceito para além das fronteiras da disciplina, alcançando outras ciências sociais e, ainda (ou sobretudo), a própria história. Em vez de "rejeitar a história", como teria feito Waltz, pretendem "injetar história".

As três partes que se seguem no livro constituem justamente a aplicação desse novo conceito, buscando, assim, analisar o surgimento e desenvolvimento dos diferentes tipos de sistema internacional que existiram (e, freqüentemente, coexistiram) ao longo dos cinco mil anos de história mundial. Iniciando a narrativa com os pré-sistemas internacionais, passando pelos múltiplos sistemas internacionais dos mundos antigo e clássico até chegar no sistema internacional de escala global contemporâneo, Buzan e Little fazem especulações sobre as unidades dominantes, a capacidade de interação, o processo e a estrutura de cada um deles, em diferentes setores, considerando ainda distintos níveis de análise (especificamente, os do sistema, subsistema e unidade).

Na parte final, os autores voltam-se para o que chamam de "especulações, avaliações e reflexões", em que consideram as vantagens e possibilidades que o conceito de sistema internacional - formulado nessas novas bases - pode trazer tanto para as Relações Internacionais quanto para a história mundial. Sendo o conceito tão aberto à história, nada impede que este seja estendido também em direção ao futuro. Desse modo, Buzan e Little tentam desenhar o esboço de um provável "sistema internacional pós-moderno" - aceitando-se que o sistema internacional global contemporâneo esteja de fato sofrendo mudanças que o levariam a evoluir nesse sentido.

Alternando entre um tom futurista e a constatação de que previsões não são próprias das teorias das ciências sociais, a conclusão a que os autores parecem chegar não é de fato surpreendente. Segundo eles, ainda que possibilidades de transformação possam estar em curso, a médio (e talvez) longo prazo, não há nada de novo no sistema internacional westphaliano que conhecemos, além do fato de este se ter tornado global. O Estado ainda é a unidade dominante do sistema; a capacidade de interação, o processo e a estrutura chegaram ao seu limite de modificação e expansão, enfim, seja o que for que testemunhemos no futuro, será, em grande medida, algo bem parecido com o passado.

Se Buzan e Little efetivamente conseguiram refazer o estudo de Relações Internacionais é algo que se pode questionar. Por outro lado, talvez a contribuição mais importante do livro não tenha sido apresentar uma proposta de reformulação da disciplina, mas sim apontar suas deficiências, explorar suas contradições e expor suas falhas.



Notas

1. Buzan e Little (:386-406) apontam três pontos de mudança em que seria possível fazer uma divisão da história mundial: a formação dos pré-sistemas internacionais (entre 40 e 60 mil anos atrás), a formação dos primeiros sistemas internacionais (cerca de 3500 a.C.) e, por fim, as transformações que marcaram a formação do sistema internacional global moderno (por volta de 1500 d.C.). A idéia central é que não houve pontos de mudança radicais entre os diferentes sistemas, mas que estes coexistiram durante muito tempo, em diversos setores do contexto internacional, sendo progressivamente subsumidos uns pelos outros. O mais interessante dessa periodização é que ela parece contar, de fato, a história da contínua evolução e substituição das unidades dominantes desses múltiplos sistemas internacionais. Conforme tais unidades vão se tornando mais complexas e estáveis (vale dizer, à medida que o poder político e a hierarquia social vão se institucionalizando cada vez mais), convertendo-se também em unidades dominantes, as mudanças no sistema vão ocorrendo. Em outras palavras, são as mudanças que sucedem na estrutura interna das unidades dominantes (e não as que acontecem na estrutura do próprio sistema, como poderia prever a teoria sistêmica neo-realista) que, efetivamente, marcam os grandes pontos de mudança dos sistemas internacionais e, portanto, da história mundial.

2. Embora muitas críticas sejam dirigidas, de maneira geral, às chamadas teorias dominantes de Relações Internacionais, parece não haver muitas dúvidas de que o grande interlocutor de Buzan e Little é, de fato, o neo-realismo, referência constante no livro. Mesmo quando muitas vezes falam em "realismo", na verdade estão se referindo à sua versão "cientificista" e "sanitarizada", da qual Kenneth Waltz é o maior representante. Em grande medida, isso se justifica pelo fato de os autores estarem partindo das idéias neo-realistas para desenvolver seus próprios argumentos (:10), além de ser a obra de Waltz fundamental para quem pretende falar de sistemas dentro das Relações Internacionais. No entanto, o que pretendia ser uma reformulação, ampliação e convergência das diversas teorias sistêmicas da disciplina, acaba parecendo, ao final, um longo diálogo com o neo-realismo.

3. Vale notar aqui que, embora nesse momento inicial Buzan e Little separem o setor político do militar de forma bastante clara - e reafirmem, posteriormente, a diferença entre os dois -, ao longo do livro tal diferenciação parece diluir-se um pouco. Porque são "intimamente vinculados", ambos acabam sendo analisados como integrantes de um único setor, misturando, assim, relacionamentos baseados na coerção com aqueles fundados na autoridade, bem nos moldes neo-realistas.

4. Ainda que interessante, vale ressaltar, entretanto, que em muitos momentos a descrição dos processos e estruturas ambientais de diversos sistemas ao longo da história não é bastante clara, sendo questionável se os autores conseguem, de fato, fazer a análise a que se propõem (algo que, ao final, eles próprios acabam reconhecendo).

5. Embora seja possível afirmar que o nível individual é, de fato, fundamental para as ciências sociais, este não parece ser o caso em Relações Internacionais. Análises no plano individual podem ocorrer, mas tendem a ser mais exceção do que regra na disciplina.

6. É bastante curiosa por sinal essa leitura que Buzan e Little fazem do neo-realismo de Waltz e do construtivismo de Wendt. Grosso modo, este último corresponderia a uma abordagem sociológica dos sistemas internacionais, na qual elementos como interação, identidade, instituições, valores e normas comuns seriam realçados. O neo-realismo, por sua vez, teria uma perspectiva material (mecanicista), onde poder, anarquia, soberania, balança de poder e guerra seriam alguns dos elementos essenciais. Segundo eles, a posição teórica de Wendt caracterizaria as sociedades internacionais, enquanto a de Waltz os sistemas internacionais, tais como são entendidos pela Escola Inglesa (:39-45). Uma identificação desse tipo pode até ser verdadeira para o neo-realismo, mas revela-se falha no caso do construtivismo. Wendt, de fato, faz uma leitura "sociológica" das relações internacionais, mas tal afirmação não significa que as relações entre os Estados sempre serão caracterizadas como uma sociedade no sentido proposto pelos autores. A interação interestatal pode levar tanto à formação de uma sociedade baseada em regras, instituições e valores comuns, como também a um sistema internacional nos moldes neo-realistas. Tudo dependerá do modo como os Estados percebem a si mesmos e aos demais, e da maneira como estes constroem a anarquia. O fato de a própria estrutura do sistema internacional ser composta por normas não implica que este será uma sociedade, tudo depende do que tais normas informam. Talvez pelo fato de apenas um artigo de Wendt ter sido utilizado como fonte para suas idéias, ou talvez ainda por uma vontade de querer ver nestas uma relação de "inexorabilidade" com as idéias da Escola Inglesa (:43), a leitura que os autores fazem do construtivismo é bastante limitada. Buzan e Little dão grande relevância a elementos como a construção social, normas, intersubjetividade, mas a conclusão que parecem tirar daí é a de que a posição metodológica de Wendt caracterizaria melhor as sociedades internacionais. O que, talvez, tenha fugido à percepção deles, é que o construtivismo não elide a possibilidade de que um "sistema realista" exista. Sob um prisma construtivista, tal sistema também será social - porque socialmente construído, resultante da interação -, mas não necessariamente uma sociedade internacional nos moldes da Escola Inglesa.
Revista Contexto Internacional

New and old wars - organized violence in a global


Liana Araújo Lopes
Mary Kaldor. Stanford, Ca., Stanford University Press, 1999, 206 páginas (com posfácio de janeiro de 2001).

O sistema da Guerra Fria serviu como referencial para explicações sobre uma certa estabilidade na ordem política internacional resultante da combinação de dois fatores: o antagonismo estratégico-militar entre Estados Unidos e União Soviética e a dissuasão nuclear. Ademais, constituiu uma base para o entendimento sobre a contenção de conflitos armados locais e regionais, em decorrência do controle dos governos norte-americano e soviético de seus respectivos aliados e da intervenção em assuntos domésticos dos países periféricos. Seria natural, pois, que se questionasse em que medida a natureza e as características do fenômeno da guerra mudariam com o fim do período do paradigma Leste-Oeste.

Embora reconheça a pertinência das análises que apontam certas conseqüências do fim da Guerra Fria - tais como a disponibilidade de um excedente armamentístico e a suspensão do apoio soviético a certos regimes - como significativas para a compreensão da emergência e novos conflitos, Mary Kaldor propõe que estes sejam avaliados à luz da globalização. Nesse sentido, salienta a relação entre conexões transnacionais características da era global e as novas formas de organização da violência nos anos 90. O fenômeno da guerra configura-se sob uma nova forma de violência que, segundo Kaldor, corresponde a um misto de guerra praticada pelos Estados ou por grupos políticos, de crime organizado e de violações aos direitos humanos.

A linha analítica seguida pela autora diferencia-se, ainda, de outras abordagens, definindo as novas guerras como civis, étnicas ou resultantes da mera privatização da violência, uma vez que Kaldor destaca o caráter essencialmente político das novas guerras.

Após um capítulo introdutório* em que expõe seu argumento central e uma breve descrição das seções do livro, Kaldor apresenta um histórico da evolução da guerra entre o século XVII e fins do século XX. Pretende demonstrar que, não obstante tenha passado por diferentes fases, cada uma com a utilização de meios e aparatos militares distintos, o fenômeno da guerra, nesse período, deve ser compreendido no contexto da construção de uma ordem centralizada, hierárquica e racionalizada no Estado moderno territorialmente delimitado. A essa conformação de Estado se associou a legitimidade do monopólio do uso da força por esse ator, sendo a guerra entendida como uma ação legítima entre Estados soberanos perseguindo objetivos políticos, traduzidos na forma de interesse estatal.

Contudo, afirma a autora, constitui um anacronismo tratar a guerra a partir dos anos 1980 tendo como referência essa concepção de Estado, na medida em que a configuração de um espaço definido em termos territoriais e a centralização da ordem internamente vêm sofrendo alterações no processo de globalização. Kaldor concebe a globalização não como causa, mas como um contexto fundamental para se compreender a manifestação dos novos tipos de organização da violência, voltando sua atenção para o impacto da intensificação das interconexões globais sobre o futuro do Estado moderno baseado em uma soberania definida territorialmente e, em particular, para os efeitos de tal processo sobre o declínio do monopólio do uso legítimo da força pelo Estado. Concentrando-se nesse eixo de análise, a autora destaca dois movimentos que têm contribuído para a perda de autonomia estatal e para a desintegração de alguns Estados. Quanto ao primeiro, constata a erosão desse monopólio em conseqüência da transnacionalização de forças militares, iniciada na Segunda Grande Guerra, e das diversas conexões transnacionais estabelecidas entre Forças Armadas no pós-guerra, refletidas sob a forma de alianças, vendas de armas, cooperação e treinamentos na área militar. O outro movimento tem a ver com o enfraquecimento de algumas economias e a expansão da violência por meio do crime organizado e a ação de grupos paramilitares.

Ressalte-se, porém, que, em alguns trechos de sua retrospectiva histórica acerca dos antigos conflitos armados, a autora trata de longos períodos sem uma análise mais pormenorizada, limitando a compreensão do significado das guerras contemporâneas. E, ainda, quanto aos conflitos da segunda metade do século XX, importantes, como salienta Kaldor, para o entendimento sobre as novas guerras, as referências dizem respeito às técnicas e estratégias herdadas pelos novos movimentos, sem que se explique com maiores detalhes a passagem de uma fase para outra.

O terceiro capítulo é um estudo de caso sobre as singularidades do conflito na Bósnia-Herzegovina, que permitem enquadrá-lo na concepção da autora de "novas guerras". As particularidades do evento revelaram, ainda, que o pensamento estratégico dos principais atores da comunidade internacional e os arranjos e as propostas para sua resolução não condiziam com a natureza específica daquele novo tipo de guerra. Vale dizer, configurou-se um conflito relativo a um problema de organização política e social, em que as elites políticas lutavam pelo controle do Estado, não se tratando, pois, de uma disputa de fronteiras e território tal como foi concebido pela comunidade internacional. Ademais, conclui a autora, o colapso da legitimidade e do monopólio da violência organizada, levando à desintegração da Iugoslávia, deve ser entendido como um novo nacionalismo, em contraste com os modernos movimentos de formação do Estado.

Nessa parte do livro, entretanto, falta um cotejamento mais sistemático entre a guerra na ex-Iugoslávia e outros conflitos, não só para justificar sua denominação de caso paradigmático das novas guerras, mas também para deixar mais clara a distinção entre antigas e novas formas de conflitos armados, assim como para contribuir com uma apreciação comparativa de confrontos contemporâneos. A autora priva-nos também de uma análise mais fina sobre os impactos da globalização sobre o conflito analisado, uma vez que acaba por privilegiar uma abordagem voltada para a ação internacional e seus equívocos na resolução do conflito. Kaldor ressalta apenas que a Bósnia-Herzegovina foi foco da atenção global de governos, de organizações não-governamentais, da imprensa, além de terem sido direcionados para a região inúmeros esforços internacionais para se chegar a uma solução do conflito e a manifestação da prática de um novo tipo de intervencionismo humanitário.

A leitura dos dois capítulos subseqüentes é que nos permite compreender melhor o vínculo entre os novos tipos de guerra e a globalização. Nesse sentido, argumenta a autora, é preciso examinar em que medida a globalização possibilita o surgimento de novas formas de identidade política, ao romper divisões culturais e socioeconômicas características do período moderno. Nessa ordem de idéias, Kaldor observa que novas identidades políticas podem emergir ora como reação à importância cada vez maior ou à perda de legitimidade das classes políticas, ora como resultado da economia paralela, que diz respeito a formas alternativas, legais ou não, de atividades desenvolvidas pelos excluídos da sociedade. Esse é o eixo central do quarto capítulo, concernente aos movimentos identitários étnicos, raciais ou religiosos mobilizados com o fim de disputar o poder estatal. Dito de outro modo, esses movimentos constituem o meio pelo qual as elites políticas reproduzem seu poder, sendo fundamentais para se avaliar os objetivos das novas guerras. Por conseguinte, a autora chama a atenção para o fato de as recentes manifestações desse fenômeno apresentarem propósitos distintos dos conflitos anteriores, notadamente de cunho geopolítico e ideológico. Cabe ponderar, no entanto, que a autora não menciona a possibilidade de os conflitos armados contemporâneos, não obstante sua natureza política, possuírem elementos geoestratégicos e ideológicos, ainda que de forma residual.

No capítulo seguinte, o enfoque recai sobre a economia política da guerra, na qual um conjunto de novos militares - remanescentes de exércitos estatais, grupos paramilitares, unidades de autodefesa, mercenários estrangeiros e tropas internacionais - se envolve em novas formas de violência organizada que denotam estratégias de controle político mediante a exclusão de civis. Dentre estas, o assassinato sistemático dos oponentes, as expulsões forçadas de populações, o medo e a desestabilização. As técnicas de deslocamento populacional consideradas ilegítimas nas antigas guerras passam a fazer parte das práticas nas novas formas de conflito. Kaldor acrescenta que, em contraposição à centralização da administração das antigas guerras, o novo tipo de economia da guerra "globalizou-se", devendo ser visualizado sob a ótica da desintegração do Estado, da perda de sua legitimidade, da redução de recursos e da produção doméstica, da fragmentação militar do Estado. Nesse cenário, ocorre uma crescente privatização da violência, observa Kaldor. Por outras palavras, há uma descentralização do seu controle, uma vez que o Estado não mais detém exclusivamente o monopólio do uso da força.

Importante, ainda, é a constatação da autora de que essas manifestações da violência são reproduzidas através de uma versão extremada da globalização, em que ocorre uma deterioração da capacidade produtiva e redução do montante de recursos arrecadados. Nesse caso, os governos e grupos militares buscam formas alternativas para realizarem suas atividades, não só no plano doméstico, mas estabelecem-se novos fluxos econômicos, em especial por meio da assistência de governos estrangeiros e de ajuda humanitária.

Adotando uma perspectiva cosmopolita, ao longo do sexto capítulo, Kaldor descreve um conjunto de propostas para acabar com as novas formas de violência, devendo este constituir um empreendimento global, ainda que sua aplicação se dê em âmbito local ou regional. Ao defender um projeto político dessa natureza, a fim de recompor a legitimidade nas áreas em conflito e restaurar o controle da violência organizada pelas autoridades públicas, Kaldor expressa sua crítica à maneira como a prática da intervenção humanitária tem sido implementada, chegando mesmo a contribuir, em alguns casos, para a manutenção da violência, seja por meio da legitimidade conferida aos criminosos de guerra quando são chamados a participar das negociações, seja ao buscar compromissos políticos fundamentados em premissas exclusivistas. Sobretudo, diz Mary Kaldor, os insucessos das operações humanitárias decorrem de interpretações equivocadas baseadas em antigas formas de pensar a guerra e da incompreensão acerca da natureza das novas formas de violência organizada.

Por outro lado, a autora mostra-se consciente de que a proposta de um processo político cosmopolita representa um grande desafio. Trata-se, pois, de localizar, nas próprias comunidades locais, grupos defensores do cosmopolitismo capazes de mobilizar apoio e enfraquecer o poder das partes beligerantes, ou seja, encontrar as "ilhas de civilidade", onde seja possível construir políticas democráticas pluralistas como contraponto a políticas exclusivistas. Nesse sentido, Kaldor propõe que se estabeleçam alianças entre os defensores locais da civilidade e instituições internacionais que sejam fundamentadas no direito internacional, no respeito a princípios e normas internacionais. Este é um mecanismo básico por meio do qual se espera controlar a violência e restituir a legitimidade.

No sétimo capítulo, Kaldor faz referência a três cenários possíveis para se pensar sobre a governança, a legitimidadeeasegurança, baseados em distintas interpretações sobre a natureza da violência na era global. Ao apontar as falhas e os limites explicativos da análise sobre o "Choque de Civilizações" de Samuel Huntington e sobre a visão do neomedievalismo presente no livro The Ends of the Earth, de Robert D. Kaplan, sua intenção é reforçar seus argumentos anteriormente descritos. Kaldor defende a proposta de uma governança universalista, na qual se vislumbre uma concepção de pacificação global em que as entidades políticas não sejam definidas por limites territoriais. Para tanto, julga o papel das instituições internacionais fundamental para a garantia da implementação de regras aceitas pela comunidade internacional, em especial aquelas concernentes aos direitos humanos.

Em que pesem as ponderações feitas ao livro de Mary Kaldor, sua análise contribui para ampliar nosso entendimento sobre os conflitos armados contemporâneos, revelando-se igualmente útil para estudiosos de relações internacionais, na medida em que trata de temas às vezes deixados de lado por trabalhos sobre globalização e sobre resolução de conflitos e intervenções humanitárias. Ademais, registre-se que a perspectiva proposta pela autora, nem sempre comum na literatura nessa área de estudos, reflete a combinação da visão de uma acadêmica com a experiência, enquanto membro da Assembléia de Cidadãos de Helsinki, de quem participa de discussões em entidades internacionais envolvidas com políticas para regiões em conflito, como a OTAN e as Nações Unidas.


* A obra foi publicada após as operações da OTAN contra a Iugoslávia em 1999. No posfácio, a autora faz uma análise da campanha dessa Organização no Kosovo, baseando-se em sua experiência como membro da Comissão Internacional Independente sobre o Kosovo.

Revista Contexto Internacional

Desnutrição e obesidade: faces contraditórias na miséria e na abundância


Dixis Figueroa Pedraza

Universidade Federal de Pernambuco. Centro de Ciências da Saúde. Departamento de Nutrição. Cidade Universitária, Recife, PE, Brasil CEP: 40.670-901


Desnutrição e obesidade: faces contraditórias na miséria e na abundância. Sueli R. Tonial. Recife: IMIP; 2001. 189p. (Série: Publicações Científicas do Instituto Materno Infantil de Pernambuco, IMIP, n.2).

Direto, objetivo, sintético, cuidadoso, ameno, agradável, interessante, científico, útil, entre outros, são os termos que se pode usar, com toda propriedade, para adjetivar o trabalho da professora Sueli R. Tonial, editado na Série de Publicações Científicas do Instituto Materno Infantil de Pernambuco, IMIP. A autora é uma nutricionista paranaense, hoje professora pesquisadora do Departamento de Nutrição da Fundação Oswaldo Cruz (FIOCRUZ). O livro oferece ao leitor frutíferas e atualizadas informações e levanta questões de indiscutível importância na ciência da nutrição. É o resultado de um árduo trabalho junto à professora Maria Cecília de Souza Minayo da Fundação Oswaldo Cruz, responsável pelo excelente e contagiante prefácio do livro, não permitindo ao leitor outra coisa senão esperar uma grande leitura.

O sentido do trabalho de Tonial foi penetrar nas dimensões simbólicas e culturais envolvidas nas questões alimentares que se refletem no estado nutricional. Foi um grande desafio profissional para a autora, pois no campo da nutrição são poucos os trabalhos nesta acepção, o que faz com que os profissionais da área quase sempre trabalhem de forma apenas técnica com os distúrbios, sem atentar para o fato de que tais problemas têm causas que ultrapassam a mera ingestão alimentar. Assim, a autora pretendeu servir aos que, como ela, procuram contribuir para mudanças necessárias no campo da nutrição no país.

Acreditamos que, se na hora de enfrentar os problemas nutricionais de diferentes populações, os estudos abrangessem a complexidade de fatores que neles atuam, incluindo a questão antropológica, com certeza nos dias de hoje mais da metade da população mundial não estaria sofrendo de mal-nutrição, seja por excesso ou por déficit. Este é o grande desafio do presente para os profissionais da nutrição e para aqueles que o serão. Eis a importância principal deste trabalho, eis a questão a enfrentar pelos nutricionistas que pretendam avançar e ser bem sucedidos em uma ciência que precisa de uma abordagem multidisciplinar.

O livro que Tonial nos apresenta é fruto da sua tese de doutorado, na Escola Nacional de Saúde Pública (instituição que consolidou o mais consistente grupo de antropologia da saúde da América do Sul), tendo como objetivos: 1) analisar aspectos quantitativos sobre indicadores antropométricos de diagnóstico da situação nutricional em mulheres/mães no município de São Luís e sua relação com a escolaridade e a renda familiar e 2) analisar aspectos qualitativos quanto às percepções da desnutrição, da obesidade e da alimentação. Assim, a autora, tenta produzir um saber que possa servir de instrumento aos profissionais de saúde e planejadores das ações e políticas públicas relacionadas às questões alimentares.

O trabalho baseou-se em dois pressupostos: 1) o entrelaçamento das questões nutricionais com as raízes sócio-históricas, socioeconômicas e culturais, envolvendo o acesso aos serviços de saúde e escolaridade; 2) as representações da obesidade e desnutrição formuladas por mulheres adultas, refletindo representações sociais do corpo.

O livro, com uma extensa e atualizada bibliografia, consta de uma introdução, cinco capítulos e considerações finais; é muito bem concebido e seqüenciado de forma lógica e amena que nos encaminha por uma ótima leitura. A introdução nos remete à justificativa e metodologia do estudo (anteriormente referidas). O capítulo I apresenta as suas bases históricas e metodológicas. O segundo capítulo descreve as condições históricas de consolidação das questões relativas às condições de vida dos maranhenses, buscando evidenciar, especialmente, aquelas relativas aos alimentos, à alimentação e ao corpo. O capítulo III trata, brevemente, da caracterização socioeconômica da população do Maranhão, analisando e discutindo os dados quantitativos de renda e escolaridade, com os índices de desnutrição e obesidade encontrados, e apresenta as condições de vida das mulheres entrevistadas a partir da pesquisa qualitativa. Já no Capítulo IV, a autora refere-se às tradições e hábitos alimentares dos maranhenses e, também, aos valores, conhecimentos e atitudes alimentares das mulheres entrevistadas frente às suas condições biológicas (de obesidade ou desnutrição) e sociais (de escolaridade, renda familiar, migração e acesso aos alimentos). No capítulo V são discutidas as representações do corpo obeso e as representações do corpo das mulheres desnutridas, e de como elas se percebem em seu ambiente. Nas considerações finais, a autora resgata os objetivos do estudo a partir dos pressupostos que, ao longo do trabalho, buscou ampliar, aprofundar.

As bases teóricas e metodológicas do estudo deixam claro que na hora de entender a problemática alimentar e nutricional deve-se ter presente os aspectos econômicos, sociais, históricos, culturais, políticos e as especificidades internas do grupo social. Também manifestam como o corpo representa uma categoria responsável pelo acesso ao mundo, no qual está presente o componente existencial, o modo de ser e de se manifestar ligado ao ser humano enquanto consciente de seu corpo.

O contexto histórico e econômico coloca a população maranhense adentrando-se no século XXI sob um "modelo" de "desenvolvimento econômico" altamente concentrador de riquezas para uma minoria, com políticas que, historicamente, expropriaram possibilidades que pudessem garantir a constituição de condições dignas de sobrevivência, incluídas aí as formas de subsistência, de valorização dos modos de vida e das questões culturais que se configuram nas representações sociais do corpo e dos alimentos.

A pesquisa ressalta que convivem num mesmo cenário mulheres com baixo peso e mulheres com excesso de peso, bem como um certo descompasso na transição de perfil nutricional (que vem acontecendo no Brasil e países da Latino América) das mulheres do estudo em relação aos índices nacionais, o que indica um rápido movimento de descenso da desnutrição e aumento da obesidade. Tal fato, segundo a autora, pode ser justificado pelas diferenças sociais e econômicas do Estado que, em comparação aos dados nacionais, tem sido indicado como o detentor da mais baixa renda média mensal do país, com uma imensa e persistente desigualdade na distribuição de riquezas. Comenta vários estudos que destacam o Maranhão como o estado com a pior situação nutricional do Brasil, o que reflete precárias condições de vida, e especialmente, situações de fome, manifestadas no consumo de chibé (mistura de sal, água e farinha) ou de larvas de besouros que se criam dentro dos cocos maduros ou velhos, assadas ou fritas, ou de mucura (espécie de roedor parecido com um rato grande).

A pesquisa, na sua parte qualitativa, confirmou a grande desigualdade de renda, de condições de vida e de moradia, entre as mulheres que tinham segundo grau completo ou escolaridade superior, daquelas que não possuíam escolaridade ou tinham escolaridade até o primeiro grau maior. Diante dessa situação, quando possível, uma rede de cooperação entre vizinhos e familiares parecia funcionar para garantir os alimentos mínimos. A maior parte das famílias estudadas estava totalmente fora do âmbito das políticas públicas de geração de emprego e renda, ou de programas compensatórios, como o de distribuição de cestas alimentares, que podem, pelo menos em parte, amenizar a situação de miséria absoluta.

Assim, a autora expõe as faces da desigualdade social, indica que se conviverá ainda algum tempo com a calamidade da desnutrição em adultos pela falta de alimentos para repor os gastos energéticos diários. Mas, também, com a situação não menos calamitosa dos obesos que não possuem qualquer condição de se alimentarem adequadamente. Para essa parcela da população existe, como Tonial metaforicamente fala, apenas uma moeda: pouca ou nenhuma opção alimentar que lhes permita uma nutrição adequada. Tais fatos se materializam num corpo frágil e desvalorizado: desnutrido ou obeso.

Por outro lado, há uma parcela muito pequena da população que, pelas condições socioeconômicas, convive com padrões nutricionais do chamado primeiro mundo. Entre esses, desenvolvem-se problemas crescentes de obesidade e de desnutrição em pequena escala, especialmente, entre as mulheres jovens. Para essa população, certamente, a questão maior não é a disponibilidade de comida, mas a existência de padrões alimentares influenciados por representações sociais dos alimentos e do corpo, que levam a alterações comportamentais nos modos de vida e, também, a problemas metabólicos.

"Muitas variedades, poucas moedas", é a frase que a autora utiliza para descrever os hábitos alimentares dos maranhenses e os valores, conhecimentos e atitudes alimentares das mulheres entrevistadas frente às condições biológicas e sociais.

A frase visa transmitir as diferenças entre os pobres e os da melhor camada social. Para os pobres, as variedades alimentares existem, inclusive no sentido de valorização de muitos itens - através do conhecimento fornecido pelo discurso oficial ou do status que tais alimentos podem lhes conferir - mas, diante da impossibilidade de acesso, eles figuram apenas como uma idéia de consumo. A camada social mais alta acaba pressionada para o consumo das novidades disponíveis no mercado, sendo conduzida a escolhas de um padrão alimentar excessivamente restrito ou recheado de calorias. Essa opção se entrelaça com os padrões de corpo, vinculados à estética e ao consumo.

Deste modo, as "moedas" são as impostas pelo mercado e pelas formas contemporâneas de vida. Quem as possui é uma pequena parcela da população, que tem poder de compra e incorpora a necessidade de consumir. Outra parte, muito maior, restringe cada vez mais as suas possibilidades de sobrevivência, sonhando com um ideal a ser buscado, incluindo aí o ideal de saúde, de nutrição, de corpo "necessário" para o trabalho.

Assim, além das questões culturais e econômicas que desempenham importante papel na configuração das práticas alimentares propriamente ditas, as representações do corpo também condicionam suas escolhas.

O estudo identifica que ao longo da história da consolidação da população maranhense houve, para a maior parte da população, diminuição de possibilidades alimentares. Tanto a desnutrição como a obesidade, encontram, socialmente, justificativas e símbolos positivos que amenizam ou respaldam, pelo menos em parte, a condição corporal. Os corpos representam espelhos da desigualdade.

Acredito que a autora conseguiu resgatar as dimensões simbólicas e culturais das questões alimentares que se refletem no estado nutricional, e triunfou neste desafio. Qualquer profissional da área que leia este livro compreenderá, refletirá e ficará alerta a tal desafio na hora de enfrentar o estudo dos problemas nutricionais: mudar o sentido eminentemente biologicista, enfrentando o entorno abrangente (sócio-histórico-econômico-cultural-político-específico) que nos coloca o campo da nutrição.
Revista Brasileira de Saúde Materno Infantil

quinta-feira, 1 de setembro de 2011

Desarquivando a ditadura - memória e justiça no Brasil



Desarquivando a ditadura

Miliandre Garcia

A coletânea de artigos intitulada Desarquivando a ditadura: memória e justiça no Brasil, organizada pela soció-loga Cecília MacDowell Santos, pelo professor de Filosofia Edson Teles e pela historiadora Janaína de Almeida Teles, publicada em dois volumes, vem contribuir de maneira substancial com os estudos em torno da ditadura militar e das questões que envolvem a construção da memória sobre os anos de repressão. Trata-se, pois, de uma tarefa conjunta de historiadores, cientistas sociais, filósofos, críticos literários, jornalistas e profissionais do direito na tentativa de esquadrinhar a constituição da memória política e dos diferentes aspectos da justiça relacionados às violações de direitos humanos cometidas durante a ditadura militar no Brasil (p.15). A partir de uma abordagem multidisciplinar, a coletânea de trabalhos visa ao estudo da constituição da memória política por meio de diferentes aspectos teóricos e metodológicos, possibilitando inúmeras abordagens sobre a justiça e as violações de direitos humanos durante o regime militar.

Na distribuição das colaborações que totalizam 27 capítulos, os autores adotaram alguns recortes temporais didaticamente dispostos com intuito de orientar o leitor nas questões que gradativamente se colocam em torno do tema geral da obra. Desse modo, o primeiro volume da coletânea contém trabalhos que vão do golpe de 1964 até o final de década de 1970. No segundo volume, abrange-se, em linhas gerais, o período da redemocratização da sociedade brasileira até a atualidade. Ou seja, no primeiro volume, contemplam-se os capítulos que discutem as práticas sociais, ideologias e instituições do Estado durante a ditadura militar, enquanto o segundo centra-se nas mesmas questões, contudo no contexto de abertura democrática com a anistia política, a partir de 1979.

O primeiro volume composto por quatorze capítulos traz, na sua primeira parte, quatro conjuntos temáticos definidos pela similitude de seus objetos. O primeiro e segundo capítulos procuram considerar a questão dos itinerários político-intelectuais, sobretudo a partir de casos que ganharam dimensão pública pelos meios de comunicação. Assim, o historiador Murilo Leal Pereira Neto reconstrói as trajetórias de Sidney Fix Marques dos Santos, Olavo Hansen e Paulo Roberto Pinto, o Jeremias, no artigo "Sidney, Olavo e Jeremias", perfazendo as biografias desses três militantes trotskistas do Partido Operário Revolucionário: Jeremias foi assassinado por latifundiários em Pernambuco, em 1963, enquanto Sidney e Olavo foram mortos logo após o golpe de 1964.

Dentro da mesma temática, o historiador Mário Sérgio de Moraes, em artigo intitulado "Memória e cidadania: as mortes de Vladimir Herzog, Manuel Fiel Filho e José Ferreira de Almeida", discorre sobre a repercussão desses casos (em especial, a morte de Vlado) nos meios de comunicação e a revelação da operação Jacarta, organizada oficiosamente pelos órgãos de repressão militar que, antes de prender Herzog, já havia capturado outro jornalista, Sérgio Gomes da Silva. Em suma, o autor questiona por que apenas a morte do jornalista suscitou um grande movimento de massas (p.58). Foi esse fato, segundo Moraes, que possibilitou o surgimento de uma discussão específica sobre cidadania no Brasil em plena ditadura militar, abrindo as portas para a consolidação dos direitos políticos e civis (p.61).

No segundo conjunto temático dessa primeira parte, "A liberdade nasce da luta: o nascimento da Organização Socialista Internacionalista na crise da ditadura", de autoria do historiador Everaldo de Oliveira Andrade, e "Servir ao povo de todo coração: mulheres militantes e mulheres operárias no ABC na década de 1970", do também historiador Antonio Luigi Negro, são capítulos que se concentram na discussão em torno da mobilização de trabalhadores pela resistência à ditadura militar. No primeiro caso, Andrade contribuiu para uma reflexão sobre a atuação e a resistência das classes trabalhadoras à ditadura, resgatando a formação e as primeiras resoluções da Organização Socialista Internacionalista, surgida em 1976 (p.72-3); enquanto o capítulo de Luigi Negro, a partir de uma discussão sobre gênero, aborda a inserção de militantes de esquerda nas fábricas em São Paulo e as relações com as operárias. O autor destaca a relevância da atuação das mulheres nas iniciativas das esquerdas em integrarem seus militantes na produção. O autor sublinha a importância da relação entre as militantes e as operárias (p.88-9). Ressalta, ainda, a aliança entre empresários e a polícia em reação contrária ao associativismo operário (p.85).

Outro conjunto temático que predominará não apenas no primeiro, como no segundo volume da coletânea é a questão do Judiciário e suas relações com a repressão política operada pelo governo militar. Nesse primeiro volume, destacam-se quatro contribuições: os capítulos "Sistema judiciais e repressão política no Brasil, Chile e Argentina", de autoria do cientista político Anthony W. Pereira; "O sistema penal de exceção em face do direito internacional dos direitos humanos", da professora de Direito Kathia Martin-Chenut; "Violência política e justiça sem fronteiras", da historiadora Samantha Viz Quadrat; e "As Comissões Parlamentares de Inquérito na Câmara dos Deputados durante a crise político-institucional brasileira (1963-1968)", do historiador Silvio Luiz Gonçalves Pereira.

O primeiro trabalho compara a prática dos tribunais militares no Brasil, Chile e Argentina e explicita suas diferenças de atuação na repressão dos opositores e dissidentes políticos (p.204-14). O autor, a partir dessas comparações, postula que sistemas jurídicos conservadores, como o brasileiro, podem evitar alguns excessos das forças de segurança, mas são muito mais problemáticos uma vez terminado o período de governo autoritário (p.218). O capítulo de autoria de Martin-Chenut, a partir de uma perspectiva técnico-jurídica, demonstra de que forma a comunidade internacional, preocupada com a "epidemia" de Estados de exceção (p.225) no mundo, passou a controlar a instauração e o desenrolar desses mecanismos de suspensão da ordem jurídica em tempos de crise, impondo-lhes limites e condenando os desvios na utilização desses mecanismos de urgência (p.242).

O capítulo intitulado "A arte de manter em segredo atos praticados por agentes públicos", de autoria do jornalista Maurício Maia, com uma abordagem enfática, toma como objeto o que ele denomina "cultura do segredo", no âmbito da administração da justiça criminal. Aborda as relações entre a imprensa, os órgãos de segurança pública e o Tribunal do Júri na cidade de S. Paulo, entre 1960 e 1975 (p.293). Segundo ele, as "zonas sombrias" (p.287) que encobrem o esclarecimento cabal de casos de "desaparecimento" de perseguidos políticos parecem ser o mais grave sintoma da convivência da sociedade brasileira com o sigilo de informações por tempo indeterminado (p.307-8).

A partir dessa mesma perspectiva de análise, outros dois capítulos tangenciam esse conjunto temático. "Violência política e justiça sem fronteiras", de autoria da historiadora Samantha Viz Quadrat, considera a Operação Condor e o impacto das denúncias nos meios judiciais, discutindo de que maneira esses acontecimentos repercutiram no Brasil. Com processos judiciais tramitando em tribunais de vários países, as denúncias da Operação Condor tornaram-se peça fundamental para o fim da impunidade dos crimes de violações dos direitos humanos cometidos pelas ditaduras (p.257-62).

Outra colaboração, "As Comissões Parlamentares de Inquérito na Câmara dos Deputados durante a crise político-institucional brasileira (1963-1968)", de Silvio Luiz Gonçalves Pereira, procura relacionar as atividades das Comissões Parlamentares de Inquérito (CPI) da Câmara dos Deputados e a crise político-institucional iniciada após a renúncia de Jânio Quadros, em agosto de 1961 (p.275).

O quarto conjunto temático tem como referencial metodológico a história oral. Tatiana Moreira Campos Paiva, em "Memórias de uma herança: a experiência de filhos de exilados brasileiros da ditadura militar", discute a experiência de exílio de crianças brasileiras, durante a ditadura militar, com base em depoimentos recolhidos (p.136). Esse exílio é identificado pela autora como uma herança caracterizada pela impossibilidade de participação política no processo desencadeado pelas escolhas dos pais, militantes envolvidos com a luta política (p.149). Já o capítulo de Janaína de Almeida Teles, intitulado "Entre o luto e a melancolia: a luta dos familiares de mortos e desaparecidos políticos no Brasil", por meio de instrumental de pesquisa de história oral, recolhe depoimentos de familiares de mortos e desaparecidos políticos. Argumenta que a lembrança do passado, conjugada com o esquecimento das suas fraturas e ausências, registra uma "continuidade aparente" e enfatiza também a sua "perda pela memória" (p.156-9).

Completando esse primeiro volume, outras três colaborações compõem temas à parte e individualmente abordam objetos mais específicos, mas não menos importantes nessa coletânea. Flamarion Maués analisa a relevância histórica e o processo de produção, edição e distribuição do livro Tortura: a história da repressão política no Brasil, do jornalista Antonio Carlos Fon, publicado em julho de 1979 (p.110), no artigo intitulado "A tortura denunciada sem meias palavras: um livro expõe o aparelho repressivo da ditadura". Segundo o autor, esse foi o primeiro trabalho jornalístico, publicado pela grande imprensa no Brasil, a demonstrar que o aparato repressivo da ditadura havia sido uma estrutura pensada e desenvolvida de modo sistemático e organizado de acordo com a Doutrina de Segurança Nacional (p.115-9). Em "Tortura e ideologia: os militares brasileiros e a doutrina de guerre révolutionnaire", o cientista político João Roberto Martins Filho discute a influência das ideias francesas da guerre révolutionnaire sobre o exército brasileiro nos anos 1960 e 1970 (p.182-6). Sublinha que durante muito tempo o estudo do pensamento militar se concentrou na chamada DSN, elaborada pela Escola Superior de Guerra, a partir do final dos anos 1940, sob forte influência norte-americana. Martins Filho retoma sua história e argumenta que essa doutrina francesa forneceu uma base ideológica para a ofensiva das Forças Armadas contra o "inimigo interno", com uso sistemático da tortura, e constituiu inspiração para a construção do aparelho repressivo (p.189).

Por fim, o capítulo intitulado "O passado recente em disputa: memória, historiografia e as censuras da ditadura militar", de Douglas Attila Marcelino, coloca em questão a construção da memória que permeia os estudos sobre a censura exercida durante a vigência da ditadura militar no Brasil, procurando ressaltar a atuação do Serviço de Censura de Diversões Públicas (SCDP). Analisa, por exemplo, a conformação de uma memória que somente privilegia a dimensão política da censura então praticada, chamando a atenção para a importância que teve o plano da defesa da moral e dos bons costumes (p.314). O pesquisador explicita a demanda de determinadas parcelas da população brasileira em favor da censura de costumes e a existência de duas censuras bastante distintas no âmbito das publicações de livros e revistas durante a década de 1970 (p.317-22).

O segundo volume contém treze capítulos e, assim como o primeiro, baliza-se em torno de algumas indagações centrais como "qual o papel hoje desempenhado pela memória dos anos de ditadura e pela justiça?" (p.342). A análise suscitada pelos autores é que a transição política do regime militar ao Estado democrático foi feita com base num consenso que negou o caráter público à memória dos horrores da ditadura. Mais que isso: essa memória foi reduzida ao âmbito privado, à memória de indivíduos ou grupos identitários, não incluídos na negociação do pacto político que estabeleceu os parâmetros da redemocratização (p.342-3).

Três grandes blocos temáticos compõem o segundo volume dessa coletânea: anistia, arquivos e memória. Em "O processo político da anistia e os espaços de autonomia militar", do cientista político Samuel Alves Soares e da advogada Larissa Brisola Brito Prado, toma como objeto de análise o processo de anistia durante a redemocratização, pós-1985. Os autores demonstram que "a postura militar aderiu ao estatuto da nova legalidade, mas manteve a preservação de 'enclaves de autonomia', decorrentes, entre outros fatores, de uma 'transição pelo alto'" (p.345). Isso porque a Lei de Anistia, promulgada em 1979, buscava preservar membros da corporação e por extensão a própria instituição militar de ações que procurassem pagar as dívidas com o passado. Nas palavras dos autores, isso se constituía num muro protetor à autonomia militar (p.356-60). A conclusão a que se chega é de que a anistia de 1979 surgiu de um desdobramento do controle militar sobre o processo de transição e consistiu, segundo os autores, numa medida juridicamente incongruente, eis que a prática de torturas, mortes e desaparecimentos forçados jamais poderia ser considerada conexa à prática de um delito (p.358).

A jornalista Glenda Mezarobba, noutro texto, intitulado "Anistia de 1979: o que restou da lei forjada pelo arbítrio?", constata a expansão das fronteiras legais originais em torno da anistia e indica as mudanças de significado político de um processo que ainda se encontra em desenvolvimento. Destaca que, ao longo desse processo, o Estado investiu sobretudo em uma "justiça administrativa", voltada para a reparação mediante o pagamento de indenizações (p.378). Naquele primeiro momento, em 1979, pode-se dizer que a anistia significou uma tentativa de restabelecimento das relações entre militares e opositores do regime que haviam sido cassados, banidos, estavam presos ou exilados. A legislação continha a ideia de apaziguamento, de harmonização de divergências e, ao permitir a superação de um impasse, acabou por adquirir um significado de conciliação pragmática, capaz de contribuir com a transição para o regime democrático (p.375). No artigo "A anistia brasileira em comparação com as da América Latina: uma análise na perspectiva do direito internacional", de Lucia Elena Arantes Ferreira Bastos, a análise sobre a anistia fundamenta-se a partir da posição do direito internacional a respeito do tema, valendo-se dos relatórios e jurisprudência do sistema interamericano de direitos humanos que integra a Organização dos Estados Americanos, dos tratados multilaterais que versam sobre direitos humanos e das resoluções e recomendações da Organização das Nações Unidas (p.345-6). O capítulo "Anistia anamnese vs. Anistia amnésia: a dimensão trágica da luta pela anistia", de autoria de Heloisa Amelia Greco, procura mapear os diferentes movimentos de luta pela anistia, a partir da perspectiva dos militantes das entidades de anistia como os Comitês Brasileiros de Anistia e o Movimento Feminino pela Anistia (p.525). Em "Anistia e (in)justiça no Brasil: o dever da justiça e a impunidade", o crítico literário Márcio Seligmann-Silva analisa a diferença entre, de um lado, o conceito inicial implícito nas reivindicações da oposição pela anistia e, de outro, a anistia de fato estabelecida em 1979. Argumenta que essa anistia implicou até hoje a impunidade dos crimes praticados pelo terrorismo de Estado (p.551-3).

Noutro conjunto temático, sobressai a discussão sobre a atual situação em que se encontram os arquivos da ditadura e os problemas referentes ao acesso a eles. Marlon Alberto Weichert, procurador de República, a partir dessa perspectiva, aborda a questão do sigilo de documentos e informações produzidos pelo militares durante a ditadura no artigo "Arquivos secretos e direito à verdade" (p.409). No texto aponta inconstitucionalidades e incoerências que comprometem, ainda hoje, o exercício dos direitos fundamentais do cidadão brasileiro. Da mesma forma, a historiadora Ana Maria de Almeida Camargo, no capítulo intitulado "Os arquivos e o acesso à verdade", retoma a análise da relação entre arquivos e direito à verdade a partir da teoria arquivística (p.412-20). A autora procura desfazer uma série de equívocos encontrados na bibliografia corrente, demarcando as condições sob as quais os documentos de arquivo ganham efeito probatório. No último capítulo desse temário, "Do segredo à verdade... processos sociais e políticos na abertura dos arquivos da repressão no Brasil e na Argentina", da antropóloga Ludmila da Silva Catela, a autora perfaz uma análise na qual compara, a partir de uma perspectiva antropológica, as disputas pela definição do lugar político e social dos arquivos da repressão no Brasil e na Argentina. Segundo ela, "o arquivo é uma construção institucional derivada das disputas e lutas de memória travadas entre os agentes que intervieram em suas lógicas classificatórias" (p.356).

O último bloco temático desse segundo volume encerra com quatro contribuições que levantam a discussão sobre a constituição da memória em torno do período autoritário, durante a ditadura militar. O crítico literário Jaime Ginzburg, por exemplo, em "A ditadura militar e a literatura brasileira: tragicidade, sinistro e impasse", examina o modo como a literatura brasileira pode oferecer elementos para se repensar a memória da ditadura. Tal como Seligmann-Silva, em capítulo mencionado anteriormente, Ginzburg encontra nas artes tentativas de suprir a necessidade do trabalho da memória que não tem sido feito na esfera política e jurídica, sobretudo a partir da análise do conto "Os sobreviventes", de Caio Fernando Abreu, e a crônica intitulada "Lixo", de Luís Fernando Veríssimo (p.558). Também o problema da memória e dos mitos fundadores da resistência político-cultural no regime militar é tema no capítulo "História, memória e verdade: em busca do universo dos homens", da historiadora Denise Rollemberg. De um modo amplo, discute as abordagens da historiografia sobre as relações entre sociedade e regimes autoritários. Segundo a autora, os historiadores têm centrado suas análises no Estado e na resistência, com interpretações distorcidas ou parciais sobre a participação da sociedade nos processos autoritários. Rollemberg propõe que os regimes sejam concebidos como um "produto social" (p.570). O capítulo de autoria do organizador da coletânea, Edson Teles, intitulado "Políticas do silêncio e interditos da memória na transição do consenso", também considerando a construção da memória da repressão, apresenta uma crítica da transição política brasileira, pensada com base nos atos de memória e das ações políticas relacionadas à violência política vivida durante a ditadura militar (p.580). No Brasil, segundo o autor, não houve nenhuma iniciativa do Estado de punir os criminosos da repressão política. "Sob o manto silencioso de uma reconciliação extorquida, a transição não atendeu à demanda por mudanças políticas" (p.350). Numa perspectiva que aborda o papel da mobilização jurídica transnacional dos direitos humanos na construção da memória da ditadura militar no Brasil, a socióloga Cecília MacDowell Santos, em "A justiça ao serviço da memória: mobilização jurídica transnacional, direitos humanos e memória da ditadura", analisa a construção dessa memória com base em denúncias de violações dos direitos humanos, cometidas pelo Estado durante a ditadura e que foram encaminhadas à Comissão Interamericana de Direitos Humanos a partir de 1969 (p.473).

E por fim, a historiadora Zilda Márcia Gricoli Iokoi, em capítulo intitulado "A longa tradição de conciliação ou estigma da cordialidade: democracia descontínua e de baixa intensidade", analisa o conceito de "transição", tal como formulado por intelectuais e pelo poderes dominantes ao longo de transformações políticas no Brasil, desde a Monarquia até a contemporaneidade (p.499-503). Para a autora, a transição "pelo alto", na versão construída tanto pelas forças repressivas como pela intelligentsia das classes dominantes, serve para arrefecer e encobrir as demandas de sujeitos sociais oprimidos (p.504-9).

Numa perspectiva abrangente e multifacetada, a coletânea contempla inúmeros enfoques sobre um tema caro à sociedade brasileira: a ditadura militar e a (in)existência de reparos às vítimas da repressão. Mais que isso: as colaborações definem e ampliam a discussão em torno da invenção de uma memória em torno das resistências das esquerdas políticas e da fabricação de discursos coesos e legitimadores a partir dos aparelhos repressivos do Estado. Não há perspectiva que sobreponha as demais, logo, o extenso trabalho dá voz às inúmeras intervenções oriundas tanto da academia quanto do espaço público e convergem para esse objetivo comum que é de percorrer os labirintos da memória e identificar sua matéria a partir dos objetos tomados para análise nessa coletânea.

Miliandre Garcia é pós-doutoranda em História pela Universidade de São Paulo (USP) e professora adjunta da Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri (UFVJM), em Diamantina/MG. @ - milidesouza@yahoo.com.br
Revista Estudos Avançados - USP