domingo, 20 de junho de 2010

Retrato e Sociedade na Arte Italiana. Ensaios de história social da arte


Rafael Faraco Benthien
Doutorando em História Social – FFLCH/USP

CASTELNUOVO, Enrico. Retrato e Sociedade na Arte Italiana. Ensaios de história social da arte. trad. Franklin de Mattos. São Paulo : Companhia das Letras, 2006. 263p. (ilustrado).

Enrico Castelnuovo leciona hoje na Scuola Normale Superiore di Pisa, na qual ocupa a cadeira de história da arte medieval. Quando assumiu esta posição, em 1983, já ostentava em seu currículo alguns dos mais inovadores trabalhos sobre a história da arte produzidos na Itália desde a década de 19601. Tendo sido aluno de Roberto Longhi e de outros renomados especialistas italianos, soube se apropriar da erudição característica desta geração para associá-la a preocupações mais próximas da história social. Com efeito, longe de privilegiar apenas dados internos das obras de arte, fez questão de inserir em suas análises todo um novo leque de séries documentais, sejam estas relativas aos objetos retratados, aos artistas, ou aos encomendantes. Castelnuovo dedicou assim a maior parte de sua carreira a resgatar as tensões sociais que também compõem a obra de arte e sua fortuna crítica. Nesse sentido, esteve em perfeita sintonia com o que de melhor se produziu internacionalmente sobre o tema nos últimos 40 anos2.

É por estes motivos que a publicação de Retrato e Sociedade na Arte Italiana chega para sanar uma importante lacuna para o público brasileiro3. O livro é, em verdade, uma coletânea composta de seis textos de diferentes naturezas, todos produzidos no intervalo entre 1973 e 1991. De modo geral, dois eixos temáticos dividem o livro : enquanto os capítulos 1 e 2 têm caráter mais empírico, comportando minuciosa pesquisa e análise documental, os demais são manifestos em defesa da história social da arte, contendo, ora revisões bibliográficas, ora propostas teórico-metodológicas de encaminhamento de estudos. Trata-se, em suma, de um apanhado bastante razoável desta notável produção. Vejamos agora, com detalhes, o conteúdo de cada um destes capítulos.

Comecemos falando dos dois primeiros, nos quais há efetivamente o trato com obras de arte. O capítulo que abre o livro é Retrato e Sociedade na Arte Italiana e tem o mesmo título da coletânea. Ele é de longe o mais extenso e ousado dos textos que a compõem. Originalmente publicado em 1973 como parte de um manual de história da Itália direcionado a alunos do ensino médio, circulou também como livro em outros países4. O interesse que ele vem suscitando desde então está naquilo que Castelnuovo se propôs a fazer : uma história da Itália a partir dos retratos confeccionados desde o século XV (muito embora o autor arrisque palpites que fazem remontar sua análise ao século III). Trata-se aqui, portanto, de isolar e caracterizar as dinâmicas que marcaram a produção e a circulação das obras e dos artistas na Itália. Por certo, isto envolve uma dose de história da arte tradicional, pois requer o exame das soluções expressivas dos retratos (o que é retratado, o modo como o é e o diálogo com formas pictóricas consagradas). Envolve também uma história política, na medida em que a dinâmica da produção artística pode ser subsumida às tensões e acordos entre casas dinásticas, corporações mercantis e outros grupos sociais que eventualmente possam lutar por espaço. Mas, no fim das contas, o que o leitor tem diante de si não é nem só isto, nem só aquilo.

Castelnuovo trabalha aqui com o retrato como um gênero, povoado de subgêneros capazes de nuançar a análise (afinal, por que existem tantas modalidades de retratos?). Escolhido o gênero, ele é alçado à condição de ponto de partida da investigação, tornando palpáveis as várias demandas sociais em jogo no decorrer do tempo. Para tanto, o autor recolhe material que o permita refletir sobre a produção e a recepção dos retratos entre seus contemporâneos. Discernindo o encomendante, o artista e o retratado, desvela algo dos conflitos de interesses inerentes à produção artística (quem presenteia quem, com que intenção e mobilizando quais materiais e artistas). Além disto, consegue vislumbrar algo da dinâmica social e histórica desta produção. Afinal, quais foram os "centros exportadores" de artistas italianos no decorrer do tempo? Quais eram os destinos mais comuns destas obras? De que modo sua produção influenciou, sofreu concorrência ou foi suplantada por aquelas provenientes de outros centros? Com todas estas preocupações orientando sua análise, Castelnuovo reconstrói uma bela imagem da história italiana. Segundo ele, a Itália, alçada a grande centro exportador e consumidor de arte graças ao advento das grandes cortes urbanas e corporações mercantis, transforma-se em periferia importadora em fins do século XVI, quando tal conformação entra em declínio (tornando-se incapaz de competir com a pintura flamenga e com a atração das outras cortes européias). Por fim, já no século XVII, ganha contornos de um mercado bastante restrito de produção interna, regulado por novos e tímidos grupos burgueses.

O segundo capítulo, Imagens Republicanas, apesar de ter sido publicado quase vinte anos após o anterior, ainda está colado a suas questões. Aqui, porém, é um subgênero dentro do gênero retrato que Castelnuovo quer caracterizar. Ao pensarmos em retratos hoje ilustres, em geral os vinculamos a membros de grandes cortes européias, o que, por sua vez, envolve toda uma série de topoi discursivos (a riqueza de detalhes das feições retratadas e da ornamentação da figura, dentre outros atributos ligados à exaltação do representado). O autor reúne então uma série de retratos nos quais estes traços não são aparentes, ou se desenvolvem em um plano secundário. Eis as imagens republicanas. Passando por Toscana, Veneza e os Países Baixos, só para listar alguns exemplos, Castelnuovo aponta para o fato da função pública do retratado importar mais que a exaltação de sua individualidade (ele torna-se a encarnação de atribuições coletivas). O autor pontua, no entanto, particularidades das produções de cada um destes lugares e tempos estudados, vinculando-as a conformações sociais específicas.

Quanto aos demais textos que compõem a coletânea, neles, ora se apresenta um balanço da história da disciplina, ora se propõem conceitos e problemas para nortearem as pesquisas na área. Em De Que Estamos Falando Quando Falamos em História da Arte?, o terceiro capítulo, Castelnuovo se esmera para desconstruir conceitos e abordagens caros a uma historiografia mais tradicional. Mais que um simples ataque, há aí um visível esforço de autopromoção. O autor parte do questionamento acerca do objeto estudado. Afinal, o que significa estudar arte e a partir de qual perspectiva isto é feito? Uma primeira possibilidade é confundir a história da arte com a dos artistas, uma tradição tão antiga quanto Vasari. Mas se tal procedimento biográfico torna possível algum controle documental, torna também obscuros inúmeros pontos sobre os quais nada se sabe (o que, aliás, é muito comum para períodos mais recuados no tempo). Outra possibilidade é a história estilísco-formal ligada às obras. Neste caso, porém, é difícil delimitar onde começa e termina o corpus a ser examinado. Um exemplo disto está nos rótulos que, de tão usados, foram naturalizados : a arte "romântica", "renascentista", "barroca", entre outras. Ora, diz Castelnuovo, tais termos foram inventados por historiadores e apenas dão conta de modo abstrato de pinturas distintas feitas em condições sociais muito díspares. Diante destas dificuldades, o autor sugere a reunião do maior número possível de fontes (sobre os artistas, o público, os encomendantes, os critérios de composição da obra, o material usado nesta composição, entre outros). Ao cruzar todos estes dados, o pesquisador estaria mais apto a elaborar novos problemas e a responder velhas questões sem perder o controle de suas hipóteses5. Em outras palavras, a história social da arte se destacaria das abordagens tradicionais, tanto por dispor de mais elementos, quanto por fazê-lo de modo mais arrojado.

Publicados em 1985, os capítulos 4 e 5, intitulados Para uma História Social da Arte I e II, apontam para as mesmas questões, embora com uma argumentação mais desenvolvida. No primeiro deles, é o cenário britânico pós-1945 que está em evidência. Por meio de Antal, Klingender e Hauser, o autor aponta para a ampliação das fontes utilizadas na história da arte, bem como para uma significativa mudança no foco analítico – ao invés de substantivar a arte, estes três autores se preocuparam com pensá-la de modo relacional. Ainda assim, a despeito dos méritos destas pesquisas, o cenário acadêmico se mostrou arredio a elas até meados de 1960. Tal dificuldade é explicada por Castelnuovo a partir de Ernst Gombrich, dominante naquele cenário e bastante seletivo ao relacionar arte e sociedade (normalmente ele o faz apenas pensando uma esfera autônoma da produção de arte, desvinculada de questões econômicas e sociais).

A retomada destas questões pela historiografia recente é o tema do próximo capítulo. Nele, porém, Castelnuovo procede num sonolento ritmo de manual, o qual lembra muito os escritos do último Raymond Williams6. O autor se preocupa aqui mais com listar tópicos que ele entende devam ser trabalhados ("clientes", "público", "obras", "instituições" e "artistas"), bem como as pesquisas acadêmicas mais relevantes quanto ao avanço de cada um deles. Vale lembrar que tais generalizações podem parecer muito instigantes e sedutoras quando dispostas assim, como fórmulas prontas descoladas de um trabalho específico. Este não parece ser, no entanto, o verdadeiro desejo de Castelnuovo. Ao invés de se contentar com as informações dispostas no texto, o leitor ganha muito mais ao tomá-lo como um convite para ler os trabalhos ali mencionados. Neste sentido, talvez o mais importante seja atentar para como cada historiador resolveu junto à documentação seus problemas de análise, sem necessariamente ter uma metodologia definida a priori.

Por fim, chegamos ao capítulo 6, A Fronteira na História da Arte. Único em todo livro, nele o autor propõe o conceito de "fronteira" para iluminar a dinâmica da produção artística renascentista. A proposição é tanto mais interessante quando mais leve o conceito : com ele se quer mapear quais eram os centros produtores e difusores de arte, na figura dos próprios artistas. Tal preocupação é estratégica, pois muito se debate sobre o quanto a influência artística de uma cidade se estende a outras. Para melhor demarcar tais fronteiras no âmbito da produção artística, vale então mapear que artistas estão trabalhando, onde estão cediados, por onde transitam e como transmitem seus estilos a sucessores. As fronteiras assim delimitadas até podem se mostrar pouco definidas; mas mesmo se o resultado for este, ele certamente revela muito do estabelecimento de redes de aliança e de competições políticas entre cortes e/ou grupos financiadores de arte. O que parece mais promissor neste último texto, no entanto, é a possibilidade de transpor tal temática para outras áreas da história. Com efeito, muito da história intelectual padece de problemas semelhantes sobre como mensurar a influência de um grupo de letrados sobre outros, ou mesmo a competição entre eles. Pensar as atuações dos agentes em termos de fronteiras pode ajudar neste ponto específico7.

Ao fim desta resenha, ressaltamos os motivos que tornam bem vinda a publicação destes trabalhos de Castelnuovo. Embora Retrato e Sociedade na Arte Italiana apresente diferenças qualitativas entre suas partes constitutivas, o conjunto ajuda a humanizar a produção artística, tão refém de abordagens apegadas a algo supostamente inefável, a-histórico. De fato, resgatar as dimensões sociais da arte (se é que existe uma dimensão não-social) nada tem de constrangedor e está longe de ser um rebaixamento da arte. Se a arte comunica e significa algo, é social, produto de relações entre os homens. Desvelar a dinâmica destas relações não é apenas iluminar conformações sociais particulares, mas também, ainda que a contrapelo, nós mesmos. Quanto mais consciência temos disto, maior o controle analítico e a responsabilidade social de qualquer pesquisa histórica.

1 Em especial, CASTELNUOVO, E. Un pittore italiano alla corte di Avignone. Turim : Einaudi, 1962 (com uma re-edição ampliada em 1991) e Idem. Arte, industria e rivoluzioni. Turim : Einaudi, 1985.
2 Pensamos aqui nos trabalhos de Baxandall e Clark. Destes autores, traduzidos em português, temos BAXANDALL, M. O Olhar Renascente. Pintura e experiência social na Itália da Renascença. Rio de Janeiro : Paz e Terra, 1991 [1972]; Idem. Sombras e Luzes. São Paulo : Edusp, 1997 [1995]; Idem. Padrões de Intenção. A explicação histórica dos quadros. São Paulo : Cia das Letras, 2006 [1985]; e CLARK, T. J. A Pintura da Vida Moderna. Paris na arte de Manet e de seus seguidores. São Paulo : Cia das Letras, 2005 [1984].
3 Antes dele, o único estudo de Castelnuovo traduzido em livro para o português foi o longo ensaio em co-autoria com Carlo Ginzburg sobre a relação entre os centros e as periferias na produção artística da Itália renascentista. Trata-se de História da Arte Italiana, publicado em GINZBURG, C. A Micro-história e outros ensaios. Rio de Janeiro : Bertrand Brasil;Lisboa : Difel, 1989, p. 5-117.
4 Ele apareceu pela primeira vez em Stória d'Italia. Turim : Einaudi, 1973 (volume 5/2). Na França, este texto foi publicado como livro, CASTELNUOVO, E. Portrait et Société dans la Peiture Italienne. Paris : Gérard Monfort, 1993.
5 Um destes velhos problemas que a história social poderia resolver com estas novas abordagens seria o da datação, tão problemático quando o tema é Renascimento Italiano. Um interessante exemplo de como este procedimento pode ser colocado em prática pode ser visto em GINZBURG, C. Considerações sobre Piero. Rio de Janeiro : Paz e Terra, 1989.
6 Sobretudo WILLIAMS, R. Cultura. Rio de Janeiro : Paz e Terra, 1992.
7 No âmbito de uma história social dos intelectuais, as análises de Vougt e Boschetti permitem este tipo de leitura. Veja-se BOSCHETTI, A. Sartre et Les Temps Modernes. Paris : Minuit, 1985; e VOUGT, W. P. Identifying Scholarly and Intellectual Communities : a note on french philosophy. In : Theory and History, 21/2, 1982, p. 267-278.

Revista de História - USP

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