segunda-feira, 31 de agosto de 2009

A Meu Esmo. 15 Poemas Desgarrados


A formação de um poeta
JÚLIO CASTAÑON GUIMARÃES
no espaço de alguns meses, publicaram-se quatro livros de José Paulo Paes, que, se têm interesse individualmente, em conjunto podem ser vistos numa perspectiva mais ampla. Em ''A Meu Esmo'', reúnem-se, como diz o subtítulo do volume, ''15 poemas desgarrados''. Em ''De Ontem para Hoje'', reúnem-se ainda, como também se lê em seu subtítulo, ''dez poemas desgarrados''. Já ''Gaveta de Tradutor'' apresenta uma série de traduções de poesia realizadas em ocasiões diversas, sem obediência a projetos, sendo algumas inéditas e outras publicadas em periódicos. Um quarto livro, ''Quem, eu? Um Poeta Como Outro Qualquer'', vem a ser uma autobiografia, voltada de modo especial para a atividade literária de seu autor.
Na nota liminar a ''De Ontem para Hoje'', José Paulo Paes assinala que os poemas aí coligidos (e o mesmo se deu com o volume ''A Meu Esmo'') foram escritos em diferentes épocas, sendo que alguns remontam aos anos 40, e que não foram incluídos nas coletâneas que publicou, porque ''destoavam do espírito delas''. Em relação ao volume de traduções de poesia, o autor se refere a ele como ''miscelânea''. A impressão primeira que se poderia ter do conjunto seria a de uma diversidade sem muitos laços de ordenação, a de algumas reuniões circunstanciais. A autobiografia, somando-se a essas como que antologias do disperso, também poderia levar a se pensar numa espécie de apanhado de etapas da vida de um escritor.
No entanto, talvez seja a autobiografia (com sua concisão, sua exposição sintética e direta de episódios, de pessoas, de leituras, enfim daquilo que foi essencial para o desenvolvimento do escritor) que possibilite pensar de forma encadeada, agenciada, os outros três livros _não apenas um em relação ao outro, não apenas ainda em relação à autobiografia, mas em relação mesmo com todo o conjunto da obra de José Paulo Paes. Isto sem dúvida permite uma melhor leitura destas coletâneas recentes, assim como permite manter o contato com uma importante obra que, já se estendendo por cerca de 50 anos, passa pela poesia, pela tradução e pelo ensaio.
Diante da autobiografia, que encadeia de forma clara e simples, o andamento da formação e da realização de um escritor, não se pode deixar de lembrar o texto sempre exemplar do ''Itinerário de Pasárgada'' de Manuel Bandeira. Este permanece como um texto de extrema utilidade para se compreender tanto o percurso de seu autor, quanto uma parcela de nossa história literária e o complexo cultural em que se insere a produção literária de Bandeira. Mesmo com o passar do tempo e com as inumeráveis utilizações que dele já se fizeram, continua como fonte de referência indispensável. Tendo em mente um exemplo fecundo desse porte, não há como deixar de saudar outros empreendimentos do gênero, como este de José Paulo Paes.
Em sua autobiografia, a ênfase muitas vezes é posta nas relações entre a vida prática, por assim dizer, e o empenho necessário para dar realização às intenções do escritor. Talvez este pareça o aspecto mais prosaico da biografia de um escritor, o aspecto tanto menos glamouroso quanto sem dúvida inevitável (salvo casos privilegiados). Há um outro aspecto, mais complexo, que se pode também considerar como mais interno à obra propriamente dita. Trata-se dos nexos que a elaboração de uma obra literária tem em várias dimensões _entre os vários momentos dessa obra, entre esses vários momentos e seus contemporâneos, e assim por diante. Se menos enfatizado na autobiografia de Paes, esse aspecto se insinua com a leitura conjunta dos outros três livros.
Já a coletânea de traduções esparsas, apesar de uma, por assim dizer, dupla interposição _o fato mesmo de ser tradução, isto é, de se compor de textos originariamente de outros autores, e o fato de não ter obedecido a um projeto, ficando aparentemente às ordens do acaso_, não deixa de se aliar firmemente ao contexto da atividade sistemática do autor nesse setor. Vários dos textos traduzidos se relacionam com outros trabalhos de tradução de José Paulo Paes. Além disso, sua noção da atividade de tradução traça uma linha de união entre seus diversos trabalhos nesse campo. Alguns componentes dessa noção estão expostos no texto introdutório a ''Gaveta de Tradutor'': em ''O Tradutor e a Formação do Leitor de Poesia'', fica clara sua compreensão de como essa atividade tem espaço na própria literatura da língua para a qual a tradução é feita. Esse texto dá continuidade a outros similares já publicados por José Paulo Paes e reunidos em ''Tradução: a Ponte Necessária'', entre os quais ''A Tradução Literária no Brasil'', capítulo fundamental da história literária.
No caso dos dois livros de poemas, ''A Meu Esmo'' e ''De Ontem para Hoje'', as inter-relações são mais diretas. Isto no sentido de que é possível associar os poemas ditos desgarrados com vários momentos da poesia de José Paulo Paes. Ou seja, é possível supor tal poema ligado a tal livro, aquele outro poema a outro livro. Um exemplo claro se vê em um poema incluído em ''De Ontem para Hoje'' _trata-se do poema ''Natureza Morta'', que se aproxima de um momento central (pelo menos cronologicamente) da poesia de José Paulo Paes, com a preponderância das possibilidades visuais, como em ''Anatomias'' (1967) ou ''Meia Palavra'' (1973). Desse modo, somos convidados a repercorrer uma das melhores obras poéticas da literatura contemporânea brasileira.
Ampliando o espectro, seria o caso de relacionar essas várias etapas, indicadas pelos poemas desgarrados, com seus contextos. Assim, os poemas dos primeiros livros permitem perceber uma vertente imune ao que se agrupou sob a denominação de geração de 45. Já os poemas com aproveitamento da dimensão visual e ênfase na síntese dialogam diretamente com o concretismo, sendo possível ver aí a contribuição por parte de José Paulo Paes de matizes a um momento programático. Um outro diálogo, que parece bastante proveitoso e interessante, pode estabelecer-se com outro importante poeta da mesma geração, Afonso Ávila, que também seguiu trilha bastante própria na associação com as vanguardas.
Assim, a publicação destes quatro livros de José Paulo Paes, para além de sua significação própria, propicia a sugestão para essas releituras mais amplas _a do conjunto de sua produção e a de alguns percursos dentro da poesia brasileira contemporânea. Só por essa sugestão, para além das qualidades próprias destes livros, já se pode avaliar o alcance instigador da obra de José Paulo Paes.

Júlio Castañon Guimarães é poeta, autor de ''Dois Poemas Estrangeiros'' (Tipografia do Fundo de Ouro Preto) e pesquisador do setor de filologia da Fundação Casa de Rui Barbosa.

Folha de São Paulo

A Natureza do Espaço - Técnica e Tempo, Razão e Emoção


Nasce um clássico da geografia
PAULO CÉSAR DA COSTA GOMES
este livro já nasce com a vocação de se transformar num clássico, tanto pelo projeto a que aspira, quanto pela síntese que ele é da obra de um pensador verdadeiramente original.
De fato, o projeto que inspira esta obra é o de ir, dentro de uma teoria social crítica, às raízes epistemológicas do pensamento geográfico, buscar a essência deste conhecimento, seus fundamentos, e justificar sua importância, sua necessidade e sua oportunidade. Estabelecer a natureza de uma reflexão geográfica significa reconhecer simultaneamente sua especificidade, sua identidade e sua colaboração no seio do conjunto das outras disciplinas. Significa também construir categorias analíticas independentes, dotadas de coerência e de operacionalidade. O recurso fundamental desta busca não é a costumeira reconstituição histórica, mas a discussão a respeito da natureza do objeto sobre o qual a reflexão geográfica deve se concentrar: o espaço geográfico.
Este espaço se define como sendo ''o conjunto indissociável de sistemas de objetos e sistemas de ações''. Trata-se de uma ''forma-conteúdo'', ou seja, pressupõe a inseparabilidade das formas físicas e dos sentidos a elas associados _é um híbrido. Estas formas-conteúdo se transformam continuamente, pois se constituem dentro de um processo sempre em movimento e, nesta transformação, são responsáveis pela criação e pela recriação dos lugares. Segundo Milton Santos, o motor desse movimento é a divisão do trabalho, que a cada momento atribui novos conteúdos e novas funções aos lugares.
Ainda na primeira parte do livro, Milton Santos afirma que este conjunto de objetos e ações tem como principal elemento mediador as técnicas. São elas, enquanto corpo instrumental e social, que intermediam a relação do homem com a natureza. Como o objeto técnico se insere, entretanto, num conjunto ordenado e coerente de objetos, num sistema, a própria técnica constitui um meio. Não há assim um meio técnico que se superpõe ao meio natural, mas há um meio geográfico, uma ordem espacial, que dispõe estes objetos segundo critérios de contiguidade, solidariedade e coerência espacial. Da mesma forma, o fenômeno técnico é ritmo, sucessão e, por conseguinte, é uma medida de tempo. Tempo e espaço são equivalências, quando considerados sob o ângulo dos fenômenos técnicos impressos nos objetos e nas práticas de sua realização. Através desta perspectiva, vemos ressurgir uma nova alternativa na geografia, a de dissolver as recorrentes dicotomias que marcam a história do pensamento geográfico: físico/humano, geral/local, espaço/tempo.
A segunda metade do livro se dedica a aplicar estas categorias ao presente. Desde o final da Segunda Grande Guerra, teríamos entrado em um novo momento histórico, denominado período técnico-científico, o qual se intensificou nos anos 80, ao enxertar o elemento informacional, portador de grandes transformações. Este momento se caracteriza basicamente pelo ritmo frenético da inovação tecnológica, que, uma vez acessível, se legitima como inevitável e irreversível, sob o comando de uma hegemônica racionalidade instrumental. Paralelamente, há um processo de convergência trazido por esta rápida e ubíqua difusão que se estende por áreas cada vez maiores e envolve um número crescente de pessoas, gerando, na expressão do autor, uma multiplicidade de instalações e uma pluralidade de comandos. Tudo isso submetido a uma unicidade das técnicas, dos padrões produtivos, uma unicidade de um mesmo tempo, um tempo da globalidade.
A exposição deste novo momento do mundo, de um meio técnico-científico informacional, possui também o grande mérito de problematizar o fenômeno da globalização, que tem sido frequentemente vítima de raciocínios simplistas e apocalípticos. A descrição da trama dos atores que cooperam neste sistema analítico recoloca em novos patamares a relação dialética mantida entre o local e o global, ao mesmo tempo em que define as esferas destas ordens e suas interdependências. Ou, em suas próprias palavras,''cada lugar é, à sua maneira, o mundo''.
A complexa estrutura deste espaço que funde local/global, o papel das normas, o conflito de diferentes racionalidades sediadas em diferentes espaços, as redes e sua horizontalidade fundada na vizinhança ou ainda a função reguladora da verticalidade, que articula diferentes pontos no espaço, são algumas das idéias mais importantes que animam este fértil e original relato.
Este breve e insuficiente resumo das principais idéias contidas no livro não traduz, nem palidamente, a elegância e a complexidade do sistema analítico proposto por Milton Santos. Tampouco podemos ser enfáticos o bastante a propósito da descrição, efetivamente rica e instigante, que ele nos faz dos tempos atuais, a partir das categorias derivadas desse sistema. Muitas questões surgem da leitura e, sejamos precisos, as hesitações aparecem, sobretudo pelo fato de ser proposto um novo sistema de interpretação, obrigando-nos assim a revisitar algumas recorrentes discussões do pensamento geográfico, sobre a região, a escala, o território, entre outras, vistas agora sob um novo ângulo.
Por isso mesmo, este livro se constitui num convite irrecusável à reflexão, pois reanima o debate epistemológico, atualiza velhas discussões, ao mesmo tempo em que redefine a agenda temática da geografia.
Os novos tempos talvez não nos autorizem a falar verdadeiramente de uma ''Escola Brasileira de Geografia'', mas certamente nos é permitido constatar a emergência de uma comunidade geográfica madura, produtiva, atuante nas principais questões trazidas pelo contexto atual e refletindo sobre recortes temáticos cada vez mais amplos, com grande grau de precisão e justeza. Milton Santos é, sem dúvida, o personagem central desta epifania. Muito mais do que um mandarim local, este autor, internacionalmente reconhecido, é o pioneiro plantador em novas fronteiras do pensamento geográfico. Sua obra não nos convida à consulta, como a um oráculo, mas provoca reações, desafia nossas certezas e incita a abertura de novas frentes de debate e reflexão. O pensamento geográfico tem, sem dúvida, uma dívida irresgatável com Milton Santos, e este seu último livro é mais um testemunho enfático disso.

Paulo César da Costa Gomes é professor do departamento de geografia da Universidade Federal do Rio de Janeiro e autor de ''Geografia e Modernidade'' (Bertrand Brasil).

Folha de São Paulo

Chapéus de Palha, Panamás, Plumas, Cartolas. A Caricatura na Literatura Paulista - 1900-1920


Caricatura e literatura
MARIA CLEMENTINA PEREIRA CUNHA
inovador e ousado na escolha de seu tema, este livro concentra-se na análise dos caipiras de Monteiro Lobato e Cornélio Pires e de obras escritas por jornalistas paulistanos sob os pseudônimos de Juó Bananére e Hilário Tácito, precedida de dois capítulos sobre a caricatura como recurso de escrita e sua presença na literatura paulista do início do século. Autores e obras quase unanimemente considerados ''menores'' pelas abordagens mais consagradas da crítica e da história literárias, tradicionalmente enfeixados pelo rótulo desqualificante de ''pré-modernistas'', ocupam o melhor de suas páginas. O próprio assunto já reveste o trabalho de grande interesse diante da inexplicável anemia das abordagens culturais na historiografia sobre São Paulo.
O propósito da autora é ''compreender a literatura destes escritores sem perder de vista sua motivação e significação no momento em que foi produzida''. Disto resulta a ênfase na contextualização histórica, felizmente cada vez mais comum nas histórias literárias produzidas pelos especialistas da área. O ''pré-modernismo'' transforma-se aí em um problema a ser enfrentado: a autora considera esta uma ''questão mal resolvida'' pelos estudiosos da literatura, e com toda a razão. Tal categoria classificatória parte de uma concepção quase beletrista, que destaca suas reviravoltas estéticas para configurar ''escolas'' ou períodos sucessivos.
Em contraposição, ela propõe uma leitura destas obras a partir de seus contextos para entendê-las plenamente em sua dimensão cultural, objetivo em parte comprometido pela timidez da análise e pela pouca familiaridade com desdobramentos recentes da historiografia sobre o período. Talvez por isso, em suas conclusões, não consiga ir muito além da percepção do caráter pretensamente ''híbrido'' de uma literatura plena de significados históricos cruciais. Apesar disso, o livro é cheio de boas intuições e, sem dúvida, dá muito o que pensar.
Se na busca da historicidade reside um dos mais importantes méritos do trabalho, também podemos apontar aí alguns de seus limites: é difícil contestar os dogmas de uma história convencional da literatura com base em análises produzidas por uma historiografia assentada nos mesmos pressupostos. Podem-se apontar alguns sintomas que sustentem este diagnóstico. Entre outros exemplos, a simetria buscada na escolha de dois autores voltados para temáticas ''rurais'' (Monteiro Lobato e Cornélio Pires) e dois com perfis ''urbanos'' (Juó Bananére e Hilário Tácito) sugere uma visão bastante tradicional da história, centrada na idéia de uma oposição campo/cidade e todas as suas decorrências (como os binômios arcaico e moderno, tradição e mudança etc).
Ao interpretar a ênfase de alguns destes autores na temática rural e caipira, a autora reforça esta impressão. Para ela, em Lobato e Cornélio Pires há sobretudo um ''regionalismo'' que parte da oposição entre campo e cidade, ''sobrelevando-se o primeiro como espaço de reencontro homem-natureza, forma de resgate da integridade perdida na cidade''. No entanto, como a própria autora nota, esta é uma ''literatura sobre o campo, feita na cidade, por e para citadinos'' _e tal observação deveria ter sido levada mais em conta na análise: exatamente por isso, ela não é necessariamente ''passadista e nostálgica'' como a autora sugere. O campo é o próprio centro do poder no período, e a caricatura pode perfeitamente desvelar um olhar crítico (pouco importa se ''urbano'' ou ''rural'') sobre as formas dominantes da política. A leitura pode então aparecer invertida, para tomar estas obras como visões intensamente contemporâneas e destinadas a atacar o próprio núcleo do poder.
Desta forma, a despeito das boas promessas, o livro não deixa de frustrar parcialmente o leitor. A sensação de que havia mais o que ver pode ser exemplificada na maneira de abordar Juó Bananére, uma das mais interessantes caricaturas produzidas nesse período. Não se trata apenas de um personagem literário, pois existiu em duas versões: a escrita, de autoria de um paulista de longo sobrenome _Alexandre Ribeiro Marcondes Machado_, e a gráfica, criada pelo traço de um filho de imigrantes italianos conhecido como Voltolino. As duas versões deste personagem certamente traduzem universos e pontos de vista diversos sobre a imigração e a cultura dos italianos, mesmo quando fazem rir dos mesmos episódios e personagens políticos. Eis aí um aspecto importante, mas bem pouco explorado na análise efetuada a partir deste material extremamente rico para uma história cultural.
Poder-se-ia citar outros exemplos de como velhas interpretações históricas interferem na compreensão destas obras e de questões deixadas à margem, ou apontar alguns erros factuais e inferências apressadas. Mas não vale a pena esmiuçar nestes termos um trabalho que vale pelo que é.
Mesmo saudando o esforço evidente de buscar a interdisciplinaridade, deve-se enfatizar que os nexos entre literatura e história são ainda tomados na análise como relações de exterioridade: se julga que a segunda pode explicar a primeira, a autora não parece concebê-las plenamente como duas aparências do mesmo.
De certa forma, ao tentar acompanhar (e defender diante da crítica literária à velha moda) a dessacralização da literatura empreendida por esses autores, ela não consegue abandonar simultaneamente a crença em seu caráter sagrado. Há sem dúvida aí uma questão de fundo. Preocupada com os impasses vivenciados por intelectuais que experimentavam a dupla condição de ''escritores-jornalistas'', a autora anota a mudança no suporte e na forma da escrita, mas não vai suficientemente fundo na percepção dos novos sentidos da literatura no contexto da massificação da cultura _processo já sensível em período bem anterior ao momento em que está centrada a sua análise.
A ''desliteraturização'' era questão que já ocupara muito das atenções de escritores das últimas décadas do século 19, divididos entre a missão sublime da arte e a sobrevivência nas redações de jornais ou na produção de teatro considerado ligeiro. Se esses literatos trataram de sacralizar sua atividade principal dedicada às musas e de hierarquizar seus textos entre a arte e a sobrevivência, respondiam a contingências históricas e culturais muito precisas.
Isto os diferencia de Lobato e seus contemporâneos em sua busca pela acessibilidade, mas absolutamente não os opõe: a perspectiva pedagógica, a auto-atribuída capacidade de tutela e outras características deste grupo dotado de uma identidade específica foram mantidas naquelas décadas bafejadas pela novidade.
Mas a autora, ao que parece, não problematiza esta auto-imagem dos literatos, ao considerar o jornalismo como esgotamento das possibilidades da literatura séria e canônica, que explicaria o recurso dos escritores que analisa à sátira e outras formas de humor. O próprio campo semântico que utiliza para definir esta intensa produção _com palavras como ''popularização'' ou ''concessão ao gosto do público''_ sugere que esta parece-lhe mesmo uma literatura menos nobre.
Em sua perspectiva, a caricatura estaria ligada às ''novas formas de produção e circulação da cultura que determinam e exigem mudanças'', sobretudo nas linguagens adequadas aos novos suportes. Mas não nos significados _e novamente a massificação perde a importância explicativa que poderia ter diante de questões como as levantadas neste livro. Ao ler os textos dos quatro autores que selecionou, a autora não vê senão ''ambiguidade'', onde, por força desta mesma dinâmica cultural, existia sobretudo polissemia.
Os elos entre eles são percebidos mais nas afinidades de estilo e linguagem humorística que naqueles conferidos pelo próprio tempo em que viveram, compartilhando a busca de caminhos políticos, estéticos e profissionais num processo cultural que pressupõe múltiplas possibilidades de leitura e fruição.
Fica assim a autora, com seu inegável talento, nos devendo investigação e reflexão em torno das formas e possibilidades de recepção destas obras. Procurar o ponto de vista dos leitores certamente traria uma contribuição ainda mais substantiva ao debate em torno dos seus nexos e significados históricos.

Maria Clementina Pereira Cunha é professora do departamento de história da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas).

Folha de Sã Paulo

PEDRO ALEXADRINO


"Prezado mestre"
VICTOR KNOLL
dispomos já de um distanciamento histórico para compreender as manifestações artísticas do último quartel do século 19 e primeira metade do 20, que permaneceram ensombrecidas pela avalanche modernista ao proclamar o ''novo'' e, com ar inteligente, desprezar o ''velho''. Pesquisas recentes contemplam esse propósito. A reedição crítica da obra de Olavo Bilac é um exemplo ao qual se soma o trabalho de Ruth S. Tarasantchi sobre o pintor Pedro Alexandrino.
Nascido em 1856, desde criança trabalha como ajudante de pintor-decorador e, em 1883, torna-se aluno de Almeida Jr., com quem manterá sólida colaboração. Ao longo da década de 1890, passa a expor, desenvolvendo uma atividade artística só interrompida em 1942 ao morrer.
A obra de Pedro Alexandrino é solidária de uma cultura artística já consolidada. Seu realismo vai ao encontro do gosto e das expectativas do público consumidor da época. A sua obra é um espelho da sociedade paulista desse período: uma elite provinciana, impregnada de um verniz afrancesado, que procura marcar a sua diferença dos ''italianinhos''. Entretanto, é junto dessa elite social que irá brotar por sua vez uma elite leitora dos europeus, que propiciará a renovação das artes no Brasil.
Pedro Alexandrino é reconhecido em sua época como um mestre da natureza-morta e sobretudo um especialista no tratamento do metal. Não pinta cenas históricas, e sua incursão no retrato e na paisagem é pequena. Fixa-se no gênero natureza-morta (há quem tenha dito que por inspiração de Almeida Jr.), uma escolha temática já sedimentada quando de sua ida para Paris, em 1896, com uma bolsa do governo do Estado de São Paulo.
Na capital francesa estuda com René Chrétien e em seguida frequenta o ateliê de Vollon, dois pintores acadêmicos que desfrutavam de uma cômoda posição no cenário artístico da Cidade Luz e, como Pedro Alexandrino, eram alheios às transformações estéticas que borbulhavam naquele momento. Em 1907, nosso pintor expõe no "Salon", reduto dos conservadores, ao lado do "Salon d'Automne", que mostrava a obra de Cézanne, na qual aliás a natureza-morta ocupa um lugar de destaque. O compromisso estético de Pedro Alexandrino já está cristalizado e dessa maneira mostra-se refratário às novas concepções pictóricas.
Entretanto, pode-se dizer que no Brasil o academicismo tem uma história própria no panorama das artes plásticas, durante a primeira metade do século 20, ao lado da evolução que o trabalho artístico sofreu com os modernistas. O esforço de Ruth S. Tarasantchi é o de resgatar o valor artístico de um pintor acadêmico.
Assim, a autora procura acompanhar a trajetória biográfica do artista e se propõe a fazer um exame de sua pintura, detendo-se por vezes com habilidade na análise de determinadas obras. Trata-se de uma tentativa ímpar de estabelecer um lugar para ele na história da pintura brasileira. Um resgate que procura corrigir o catálogo da Fundação Bienal de São Paulo a propósito da mostra ''Brasil Século 20'', realizada em 1994 e na qual Pedro Alexandrino está ausente.
Certas circunstâncias da vida artística paulistana, alguns anos antes e depois da semana de 22, se não apontam para uma contradição, no mínimo nos surpreendem e são um indício do perigo das catalogações históricas. A exposição de Anita Malfatti em 1917 é considerada um marco decisivo das transformações estéticas do país e, no entanto, a musa do modernismo, dois anos depois, em 1919, inicia os seus estudos de pintura com Pedro Alexandrino, o ''prezado mestre'', como se lê num cartão que remete a ele.
De seu lado, no mesmo ano em que se dá a exposição-marco de Anita Malfatti, outra musa modernista inicia os seus estudos de pintura com o artista acadêmico: Tarsila do Amaral. Completando este quadro, lembremos que Bonadei, com 19 anos de idade, é aceito por Alexandrino como aluno em 1925, vivendo no ateliê do mestre em metais o seu período de formação básica.
A tarefa à qual Ruth S. Tarasantchi se propôs é difícil, pois trata-se de resgatar uma obra comprometida com um projeto estético cristalizado que, por seu turno, não o destitui de sentido histórico, seja no plano artístico, seja no social. Não nos esqueçamos que Pedro Alexandrino vendeu o que produziu ao longo de seus 86 anos de vida.
Os jornais se referem a sua obra e a suas exposições com frequência _o artista é notícia. Em 1936, o pintor recebe a visita de Tarsila do Amaral, que faz este comentário: ''Pedro Alexandrino tem poucos quadros novos para mostrar. Os colecionadores se apressam em vir buscá-los ainda com tinta fresca''.
O valor estético da pintura de Alexandrino é reconhecido nas pinceladas largas sem a preocupação do detalhe, no fundo escuro que anula a profundidade, no uso expressivo das luzes, na adoção das formas cilíndricas e na exploração do reflexo dos objetos uns nos outros.
Tal enumeração significa que a realidade exterior é apenas o ponto de partida para a confecção da imagem plástica, embora a autora, ao mesmo tempo, sugira que o pintor reproduz com fidelidade o objeto.
Entretanto, mais nos interessa esta observação: ''A importância dada às transparências, aos brilhos, ao fundido, ao efeito de conjunto, será a preocupação do pintor. Uma visão sintética fará surgir de uma penumbra misteriosa objetos e frutos''. Pode-se mesmo vislumbrar em suas telas uma certa herança da pintura holandesa.
Com Pedro Alexandrino cumpre-se um ciclo da pintura no Brasil. Suas naturezas-mortas, agora observadas com a devida distância histórica, são o acabamento de um padrão de gosto. Nele está catalisada uma tradição, os anseios de segmentos sociais abastados, porém sem formação artística apurada, que sentem a necessidade de povoar o seu ambiente doméstico com um imaginário.
A obra de Alexandrino nos mostra, ao considerarmos as quatro primeiras décadas do século 20, o duplo caráter da realidade histórica vivida em São Paulo e talvez, também, em outras cidades como o Rio de Janeiro, onde conviveram as ambições da ''nova arte'' proclamada pelos modernistas e os padrões estéticos estabelecidos no passado. O artista está entre aqueles que viveram a agonia de uma fatura pictórica. Nem por isso destituída de valor artístico.
Homem de vida contida, parece que o único ato de desprendimento que consta em sua biografia foi ter apoiado a Revolução Constitucionalista de 32, doando quadros em benefício dos combatentes. Mais uma vez, temos aí o testemunho de sua presença como pintor na sociedade paulistana da época.
Além da parte ensaística, o livro de Ruth S. Tarasantchi conta com uma detalhada bibliografia sobre Pedro Alexandrino e uma catalogação dos trabalhos do pintor. Essas duas partes do livro são por si só possuidoras de extraordinário mérito, pois temos aí um sólido ponto de partida para quem pretenda estudar a obra de Alexandrino ou esteja em busca do estabelecimento de alguma correspondência.
Comentando a visita que fez ao artista em 1936, Tarsila do Amaral não observa nas telas que estão no ateliê ''sintomas de pesquisa nem de decadência'' e declina que ''a sua arte sem pretensões à genialidade criadora é sólida, por que ele é incontestavelmente um mestre do desenho naturalista, é sincera por que a alegria das cores transborda dos seus quadros em pinceladas firmes conscientes, é honesto por que não transgride na sua arte os princípios que adotou como sendo verdadeiros''.
O incrédulo leitor que faça uma visita à Pinacoteca do Estado, onde algumas telas de Pedro Alexandrino estão expostas.

Victor Knoll é professor do departamento de filosofia da USP.

Folha de São Paulo

FAUSTO NO HORIZONTE


O demônio logrado
PAULO BEZERRA
rico e intrigante tem sido o destino do Fausto desde que a lenda, enraizada em mitos antiquíssimos, ganhou contornos mais amplos a partir da Idade Média e atravessou fronteiras, povoando o imaginário de culturas diferentes e distantes, migrando das narrativas orais para os espaços da pintura, da escultura, da música e da literatura. A investida foi tão ampla, profunda e irresistível que o tema e os motivos fáusticos acabaram por abranger todas as culturas, sendo difícil encontrar uma que não tenha o ''seu'' Fausto.
''Fausto no Horizonte'' parte da tradição européia e passa à latino-americana, trazendo como grande novidade o enfoque do tema na nossa tradição oral, que se estende da literatura de cordel às narrativas gauchescas.
Oswald Spengler vê o Fausto como símbolo de toda a cultura européia. Considera que a alma fáustica ocidental sonha ardentemente com um espaço infinito e, com isso, cria novos meios de expressão para traduzir seu ideal de infinitude espacial. Suas considerações dizem respeito à música, sobretudo à do contraponto, enquanto Jerusa estuda a temática fáustica nas narrativas orais, nelas descobrindo os novos meios de expressão desse sonho de infinitude. Tais meios se traduzem nas múltiplas recriações dessa temática pelas mais diferentes culturas, o que concretiza e pereniza a recriação dos temas e motivos aludidos, superando fronteiras de espaço e tempo. A autora mostra ainda que o tema se perpetua nas ''múltiplas recriações'' e mantém seus motivos fundamentais que se configuram ''num contínuo oral/impresso''.
Contudo, ao pesquisador não basta constatar a presença de elementos constantes em determinadas narrativas. Porque o estudo científico exige mais, requer conceitos e categorias capazes de dar organicidade e coesão lógica ao pensamento, torná-lo inteligível e coerente com o material pesquisado. Daí ser necessário um ponto de partida claramente definido e, no estudo comparado de arte narrativa, uma ''invariante'' geradora de outras variantes de enredo que abranjam espaços culturais diversos e distantes. É na descoberta e incorporação desses conceitos e categorias que o pesquisador-cientista se distingue do simples curioso e diletante.
Neste aspecto, ''Fausto no Horizonte'' se revela à altura da verdadeira investigação científica. Jerusa parte de uma invariante que denomina ''pactos'', ponto de partida de todas as narrativas fáusticas, em torno da qual se articulam variáveis intertextuais combinadas, em maior ou menor grau, com mitos e lendas, resultando num tecido que transborda num grande texto oral. Trata-se daquela ''matriz virtual'', ''que já vem organizada e da qual se fazem desvios e sucessivas oralidades, adaptações e transformações'', as quais ampliam o universo das narrativas fáusticas, mostrando que se constituem de textos contíguos. Tais textos ''vão passando por narrativas escritas e orais que se aproximam e se afastam'', e enfeixam todas essas variedades de motivos e formas de narrar numa categoria que a autora denomina ''tecido fáustico''. É esta categoria que permite acompanhar o movimento da reflexão de Jerusa, verificar que os relatos fáusticos migram de suas matrizes ''originais'', formam um caleidoscópio de narrativas que se sucedem e se auto-recriam em tempos e espaços diversos, e dão conta do grande dilema que sempre moveu o homem: o enfrentamento da ordem cósmica e social do universo.
E tudo isso ela encaixa noutra categoria já consagrada nos estudos da literatura popular como ''ciclo do demônio logrado''. É a partir dessa categoria que a pesquisadora analisa ''O Ferreiro das Três Idades'', folheto do poeta popular paraibano Natanael de Lima, e mostra que este faz parte de uma tradição em que o demônio sempre acaba vencido pela ''astúcia do homem ou da mulher, com ou sem a intervenção divina''. A autora compara o folheto de Natanael de Lima com a história do ferreiro Miséria, de tradição gaúcha; em seguida, incorpora a temática do ferreiro tal como aparece em narrativas portuguesas, francesas, argentinas e outras, mostrando que é dentro desse círculo que algumas variáveis dos motivos fáusticos, intertextuais e mais tardias, se articulam com mitos e lendas; o logro aparece, assim, como meio de que se vale o fraco para enfrentar e vencer o forte, o que situa o tema na remota tradição do folclore e do mito (como se sabe, graças ao logro, Ulisses vence Polifemo, Prometeu vence Zeus e Sísifo engana três vezes a morte).
Para Vladimir Propp, a inteligência e a astúcia constituem a força do fraco e com isso ele vence um inimigo mais forte. O pacto, quase sempre com Satã ou outro representante das forças do mal ou da suprema ordem cósmica, aparece como elemento deflagrador, é movido sempre por uma carência _de fortuna, mocidade, felicidade, saber etc,_ que não pode ser resolvida na ordem social ou cósmica. Por isso, o pobre faz um pacto com o diabo, símbolo maior da rebeldia e da desordem, abrindo um espaço de utopia; só fora da ordem cósmica cristã será possível usufruir o prazer de viver com o mínimo de condição humana.
Portanto, o pacto já se apresenta potencialmente como uma dupla transgressão: primeiro, o pobre transgride a ordem religiosa cristã que só prenuncia o pleno gozo da vida no mundo pós-morte: depois, transgride o próprio pacto, ao lograr o demônio como detentor exclusivo do monopólio da felicidade que motivou o pacto. Entre o pacto e o logro, desenvolve-se a tensão da narrativa, perenizando toda a problemática do Fausto _incluindo-se naturalmente o de Goethe_ nesse ''tecido fáustico''.
Na sua exposição, a autora mostra como as reformulações do tema fáustico incorporam o novo a um contínuo antiquíssimo, o que é muito difícil, porque as mudanças se tornam às vezes irreconhecíveis e só a inserção de um vasto material comparado sobre diferentes povos e diferentes níveis de desenvolvimento pode resolver o problema. É um desafio que Jerusa consegue vencer.
Coerente com a sua metodologia, constrói o sistema de imagens e motivos com uma escrupulosa análise de temas e motivos, que usa como material de reflexão e base segura para conclusões e soluções mais ambiciosas, e vai sedimentando uma poética histórica dos temas e motivos fáusticos, já esboçada na categoria de ''tecido fáustico''. Com isso, deixa a impressão de que ''Fausto no Horizonte'' é o esboço de uma teoria geral dos temas e motivos fáusticos e de sua constituição em sistema. Seu projeto poderá ser uma importante contribuição brasileira para o assunto, quer pela acuidade da investigação, quer pela inserção da produção oral brasileira no universo fáustico. O Fausto está lançado.

Paulo Bezerra é professor de russo no departamento de línguas orientais da USP e da Universidade Federal Fluminense

Folha de São Paulo

Imagens da Colonização. A Representação do Índio de Caminha a Vieira

A invenção do índio
JOHN MANUEL MONTEIRO
no primeiro volume de sua ''História Geral do Brasil'', de 1854, o Visconde de Porto Seguro afirmou que, com referência aos índios, ''não há história, há apenas etnografia''. Ao longo dos últimos 150 anos, apesar das notáveis incursões pelo tema por parte de historiadores como Capistrano de Abreu e Sérgio Buarque de Holanda _que aliás buscaram apoio na etnologia alemã_, tem permanecido um artigo de fé a noção de que estudar as sociedades indígenas é mesmo coisa de antropólogo. Este quadro, no entanto, começa a se reverter no Brasil, ainda que de modo tímido, porém muito mais em função da revalorização da história por parte dos etnólogos do que pela iniciativa dos historiadores, que, a despeito do enorme avanço da história antropológica no país, ainda evitam enfrentar o tabu da história indígena.
Neste sentido, o livro do historiador Ronald Raminelli, professor da Universidade Federal do Paraná, preenche desde logo uma enorme lacuna e, portanto, merece as nossas boas vindas. Não tanto pelo material inédito que a pesquisa introduz, mas antes pela abordagem criativa e inovadora de textos e imagens já bastante conhecidos. De fato, ao longo dos cinco capítulos que compõem o corpo principal do livro, o autor realiza uma minuciosa crítica historiográfica dos relatos escritos e uma criteriosa análise iconológica das representações pictóricas dos primeiros dois séculos da colonização européia em terras hoje brasileiras. O objetivo, declarado com elegância e simplicidade, ''é compreender a polissemia da representação do índio e sua relação com os projetos coloniais''. Mais adiante, já na conclusão, arremata o mesmo argumento em outros termos: ''A imagem do índio foi construída a partir da realidade americana e da cultura européia''.
Ao confrontar os textos com as imagens, o autor identifica um claro ''descompasso'', o que se explica a partir de uma leitura fascinante das mediações de ordem cultural _e editorial, diga-se de passagem_ presentes na construção da imagem do índio, tornando-o acessível ao universo simbólico europeu. Daí a bestialização dos embates bélicos, a demonização dos rituais e, ponto central da análise, a hipervalorização das mulheres nos festins canibais. Lançando mão da idéia da ''pseudometamorfose'', introduzida por Erwin Panofsky para explorar a ressignificação de imagens clássicas empregadas na iconografia renascentista, Raminelli busca demonstrar como o conceito de ''bárbaro'' elaborado nas representações tiveram desdobramentos práticos e políticos no âmbito colonial. Trocando em miúdos, as representações do índio, segundo ele, ''sustentaram moralmente a conquista, a catequese, a guerra justa e a escravidão''.
No entanto, esta ligação entre a representação muitas vezes negativa e preconceituosa do índio e o processo de dominação colonial não se revelava tão simples e direta. As imagens retratando as guerras, o canibalismo e os rituais satânicos dos tupinambás circulavam, conforme mostra o autor, sobretudo pela Alemanha, França e Holanda, ao passo que se verificava, na metrópole lusitana, um certo menosprezo pelo Novo Mundo. É preciso lembrar, ademais, que as grandes coleções de narrativas de viagem, acompanhadas da iconografia aqui em questão, como da ''America Tertia Pars'', de Theodor de Bry, foram ao prelo num momento em que os tupinambás do litoral brasileiro (porém não no Maranhão) já estavam praticamente liquidados e a política indigenista portuguesa já firmemente esboçada. Uma leitura mais sistemática da manipulação da imagem do índio na legislação indigenista esclareceria mais pontualmente o laço e o descompasso entre a representação e a realidade colonial.
Se a qualidade da narrativa e a densidade das descrições garantem uma leitura agradável, pode-se cobrar do autor uma conclusão mais contundente. Na verdade, em vez de amarrar e valorizar a contribuição original que o livro traz, Raminelli desvia a discussão para um terreno onde se mostra pouco seguro. No afã de demonstrar a utilidade de uma perspectiva diacrônica para o estudo dos povos indígenas, ponto com o qual concordo plenamente, o autor deixa de destacar a bibliografia significativa já existente sobre o assunto. Ao mesmo tempo, a crítica aos ''tupinólogos'' carece de fundamentos: embora seja verdade que os tupinambás de Florestan Fernandes foram retratados num presente etnográfico abstrato, próprio do método funcionalista, não se pode dizer que as leituras de Alfred Métraux e Eduardo Viveiros de Castro são ''completamente alheias aos princípios da colonização''. Ainda nesta chave da relação entre a antropologia e a história, o apelo a Marshall Sahlins parece-me deslocado, uma vez que não é esta a abordagem que predomina nos capítulos anteriores. O livro de Ronald Raminelli não é, afinal de contas, um estudo sobre os povos indígenas enquanto protagonistas da história. Antes é uma reflexão original sobre a imagem do índio no início da história do Brasil, tema em si da maior relevância para a historiografia do país.
Finalmente, levando em conta o entusiasmo e a perspicácia com que o autor se debruçou longas horas sobre uma iconografia tão expressiva, é pena que a edição traga reproduções cuja qualidade permanece aquém do padrão do mercado.

John Manuel Monteiro é professor da Universidade de Campinas, pesquisador do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento) e autor de ''Negros da Terra'' (Cia. das Letras).

Folha de São Paulo

O BRASIL DO REAL


O que anda pensando a oposição?
RICARDO MUSSE
reunião de apresentações de um ciclo de debates, ''O Brasil do Real'' congrega uma fatia da parcela da intelectualidade que não se alinhou automaticamente com as práticas e o discurso do governo. Economistas e cientistas políticos fazem um diagnóstico do plano de estabilização monetária, avaliando, com notável convergência, os efeitos do Real sobre a macroeconomia, as relações de poder e as condições sociais da população. Apesar do caráter circunstancial e mesmo conjuntural das falas, o conjunto nos fornece uma idéia dos caminhos _teóricos, nem sempre trilhados pelos partidos e movimentos sociais_ da oposição.
Marta Skinner de Lourenço, fugindo às comparações apologéticas que valorizam o sucesso do Real tomando como parâmetro as anteriores tentativas brasileiras de estabilização (Cruzado, Plano Bresser etc.), situa-o como mais um de uma série de planos _latino-americanos sobretudo_ gestados numa conjuntura na qual o êxito tem sido a norma e não a exceção. Num ambiente de abundância de capitais de alta liquidez, a redução das alíquotas de importação e a valorização cambial por si sós garantem uma certa estabilização.
Mas não é apenas no sucesso econômico e político que o Real não é único. Os seus problemas também são os mesmos do outros planos: desemprego crescente, inadimplência, crise bancária, dívida pública e o principal, baixa capacidade de crescimento. A transformação da estabilidade de ponto de partida em ponto de chegada não é, como pensam alguns, uma idiossincrasia da equipe econômica do presidente Cardoso.
A inserção das economias nacionais na ciranda especulativa internacional, a dependência da estabilidade sistêmica, com a concomitante redução da capacidade governamental para implementar políticas públicas nos tornam reféns _como bem lembra Sulamis Dain em outro artigo da coletânea_ de uma lógica especulativa, mundializada, que proclama como virtude a redução das taxas de crescimento.
Reinaldo Gonçalves lista uma série de instrumentos que garantiram o sucesso do combate à inflação: engessamento de preços, basicamente de tarifas públicas e de salários; liberalização comercial, impedindo a redução da oferta de produtos agrícolas; valorização cambial; controle da demanda agregada; e também o impacto positivo da credibilidade do presidente Cardoso _enquanto autêntico representante das classes hegemônicas_ sobre os empresários, principalmente os formadores de preços.
Nestes dois anos e meio de gerenciamento do plano econômico, o governo perdeu gradativamente, por uma série de motivos combinados, o controle dessas variáveis estruturadoras do Real. Só lhe restou um instrumento de política econômica: a retenção da demanda, isto é, a adoção de políticas macroeconômicas recessivas no sentido de contrair consumo e investimento. O que aliás não está em desacordo com o receituário dos organismos internacionais que prescrevem políticas deflacionárias.
Esta política contracionista aumenta o desemprego e o desconforto da sociedade. Diante da necessidade de faturar politicamente os resultados econômicos, o presidente Cardoso adota uma política pendular: ora libera a variável inflação, diminuindo o desemprego, ora aperta o controle aumentando o desemprego, num movimento sincronizado pelas demandas eleitorais. O que, diga-se de passagem, nem sempre dá certo. Nas recentes eleições municipais ressurgiu uma ''oposição'' de direita, já que o PT, sobretudo a ala paulista _ignorando solenemente o que os intelectuais andam dizendo_, preferiu, como penitência pelos erros passados, apoiar o Real.
O saldo global das análises econômicas de Skinner e Gonçalves é que o Real plantou várias bombas de efeito retardado _aumento da dívida pública, desagregação da infra-estrutura social e econômica, desindustrialização, crescente vulnerabilidade externa_, e como contrapartida nos oferece, no máximo, junto com a perspectiva de um baixo crescimento, um modelo de modernização excludente.
Sulamis Dain reconstitui e avalia, um a um, os principais tópicos do ideário político e social do Real. Primeiro, proclamou-se o esvaziamento do Estado desenvolvimentista, visando sua transformação num Estado social. No entanto, como bem alerta Emir Sader em outro artigo, ao jogar para debaixo do tapete o tema da ''privatização do Estado'', da interpenetração entre interesses privados e estatais, o presidente Cardoso recaiu numa visão liberal. No Brasil, isso significa apenas o reforço do Estado ''mini-max'': mínimo para os de baixo, máximo para os de cima.
O Estado previdência só funciona pra valer para as classes empresariais que se apropriam _via incentivos, perdão de impostos, em suma, por meio das várias alternativas de renúncia fiscal_ de cerca de 3,3% do PIB.
Outra premissa não comprovada do Real é que a estabilização seria a pré-condição para o desenvolvimento econômico. Pelos motivos elencados acima, a lógica mundial na qual o plano se insere leva inevitavelmente a taxas medíocres de crescimento, o que reduz a capacidade de financiamento do Estado.
Uma consequência disso é que, ao contrário de outro axioma do Real, a estabilização não amplia a governabilidade. A perda da autonomia governamental no campo da políticas macroeconômicas impede a adoção de uma política social que vá além do mero assistencialismo. Sem poder aumentar a integração dos marginalizados no circuito da produção e do mercado, sem uma política de universalização de direitos, o governo vê crescer _com a degradação da cidadania_ a demanda por assistência social no exato momento em que reduz a capacidade redistributiva do Estado.
Luís Pinguelli Rosa analisa os efeitos da política neoliberal no setor público, em especial a privatização à brasileira. Além da complacência diante dos monopólios privados embutida no discurso antiestatista, acrescente-se que o afã privatizante não está cumprindo nenhum dos seus alegados propósitos: melhorar os serviços, expandir a oferta e a concorrência, diminuir as tarifas, ampliar os investimentos ou abater a dívida pública. Assim, ela só se explica pela necessidade, inerente ao Real, de inserir cada vez mais o país numa órbita na qual predomina o capital financeiro, abdicando, como lembra Francisco de Oliveira, de uma das pouca vias ainda possíveis para um país periférico ensaiar uma política econômica autônoma.
Emir Sader traça um mapa político da nova situação gestada pelo Real. Uma vez que a especulação financeira tornou-se a mola-mestra do processo de acumulação do capital gerenciado pelo Plano Real _daí as famigeradas altas taxas de juros_, cristaliza-se a hegemonia do capital financeiro associado ao grande capital industrial internacionalizado.
Ao substituir a idéia de cidadania e de voto popular soberano pela de consumo (em si assimétrica, pois quem tem mais pode mais), essa hegemonia esvazia não só o Estado _e com ele, parte da esfera pública: instituições como o Banco Central, as universidades e mesmo o Judiciário_ como os partidos políticos, abrindo caminho para formas autoritárias de governo.
Aliás, o mero fato de o plano econômico assentar-se na credibilidade externa junto aos analistas de risco, já indica o veio autoritário. Nessa lógica, o presidente Cardoso deve evitar a todo custo qualquer manifestação _inclusive no campo intelectual_ que sinalize com uma possível quebra de hegemonia.
Francisco de Oliveira enfatiza o papel das (contra-)reformas no longo prazo do Real. A política deliberada de destruição dos direitos sociais passa principalmente pela flexibilização do mercado de trabalho, o que é um espanto se se leva em conta o fato de que o custo por hora trabalhada no Brasil _US$ 2,5 incluindo os pagamentos indiretos e os encargos tributários_ é um dos mais baixos do mundo.
Sader esboça uma alternativa: um projeto nacional-democrático que apresente soluções para a crise fiscal retomando como questão primordial a crise social e redesenhe o Estado, redirecionando a economia para a implantação de um mercado interno de massas. Oliveira ressalta, porém, a presença de um novo elemento complicador para qualquer projeto alternativo: a crise das formas clássicas de representação. A crise social, o desgaste do presidente Cardoso, pouco afetam o jogo entre governo e Congresso. A exclusão da sociedade, o ''cretinismo'' parlamentar, a hegemonia do capital obrigam _como na época do regime militar_ a reinvenção de outros meios de se fazer política.

Ricardo Musse é professor da Unesp (Universidade Estadual Paulista) e um dos editores da revista ''praga'' (Boitempo).

Folha de São Paulo

NOVAS E VELHAS ORDENS MUNDIAIS


A Guerra Fria acabou?
MARCO AURÉLIO GARCIA
a queda do muro de Berlim, em 1989, e o processo de decomposição do império soviético, que culminou com a autodissolução da URSS, em dezembro de 1991, são apontados como episódios emblemáticos do fim da Guerra Fria.
Entre um acontecimento e outro, ocorreu a invasão do Iraque, comandada pelos EUA. Pouco depois de encerrado o conflito, o então presidente George Bush anunciava que chegara a hora de construir ''uma nova ordem mundial''. Para alguns ideólogos, o mundo que emergia do colapso comunista, no leste da Europa, e da vitória dos EUA e seus aliados, no Oriente Médio, era a consagração da democracia representativa como sistema político e da economia de mercado, generalizada por um processo de mundialização sem precedentes da produção, da circulação e do sistema financeiro. ''Globalização'' passou a ser uma palavra incorporada ao cotidiano das análises sobre a nova cena internacional, que os mais afoitos apresentavam como apontando para o ''fim da história''.
Noam Chomsky, instigado por essas realidades, questiona em sua última obra, com o auxílio de centenas de citações de livros, artigos, documentos, relatórios e amplo material de imprensa, a ''novidade'' da ordem mundial que teria emergido nos anos 90.
Chomsky é um eminente linguista, professor do MIT (Instituto de Tecnologia de Massachusetts), que tem dedicado grande parte de sua atividade intelectual à análise da política internacional, particularmente ao papel nela desempenhado pelos EUA.
Ao revisitar a Guerra Fria, o autor critica as imagens convencionais que foram sendo construídas sobre esse fenômeno histórico. Ele fixa seu início em 1918, quando, ao dissolver a Assembléia Nacional Constituinte, os bolchevistas teriam dado um sinal de que estavam dispostos a assegurar o poder que haviam estabelecido meses antes.
A Rússia soviética era vista pelos círculos governamentais do Ocidente como uma ''maçã podre'', que poderia contaminar, como de fato ocorreu, outros países. Por isso, as potências capitalistas decidiram pela intervenção militar pouco depois da vitória da revolução. Mas o perigo que a União Soviética representava, segundo Chomsky, era menos militar que simbólico.
A URSS era um país da periferia do capitalismo, que se industrializou tardiamente, a partir de um movimento revolucionário que concentrou no Estado um enorme poder de intervenção na economia. Tudo isso contra a vontade das potências hegemônicas à época. Seu exemplo, mais pelo conteúdo nacionalista do que pelo socialismo, poderia influenciar, como de fato influenciou, muitos outros países, estimulando-os a percorrer o mesmo caminho, pelo menos no que se refere à industrialização e ao nacionalismo.
Isso, segundo o autor, era insuportável para as grandes potências. Ele mostra como o Reino Unido no passado frustrou a industrialização da Índia e, mais tarde, do Egito. Aos países periféricos cabia apenas um papel subordinado na divisão internacional do trabalho. E isso era essencial para a expansão do ''livre-comércio''.
No século 20, essa vocação imperial foi assumida crescentemente pelos EUA. A política exterior norte-americana não sofreu modificações muito radicais no período posterior à Guerra Fria, pois esta, segundo Chomsky, é uma ''fase particular nos 500 anos de conquista européia do mundo _a história da agressão, subversão, terror e dominação, agora denominado 'confronto norte-sul' (pág. 98)''.
Mas o fato de impor o livre-comércio _hoje erigido como valor máximo_ ao mundo não significa que as metrópoles tenham abraçado plenamente os dogmas liberais que exportam. Os EUA, sobretudo depois da Segunda Guerra, quando o mundo teve tempo para fazer uma reflexão mais detida sobre o significado da crise de 1929, adotaram um ''keynesianismo militar''.
O denominado ''sistema do Pentágono'', ou o que antes se chamava de ''complexo industrial-militar'', representou uma decisiva alavanca ao capitalismo norte-americano. Essa escolha alterava em boa medida as prioridades do "New Deal". Crescer com o gasto militar era preferível a estimular o gasto social, o que apresentava perigosas consequências sociais e políticas.
Chomsky afirma que para atingir tal fim foi preciso magnificar o poderio militar soviético. O comportamento truculento dos EUA _sobre o qual ele dá dezenas de exemplos_ era exatamente aquele que Washington atribuía à URSS e que justificava a escalada armamentista.
Dissolvida a URSS, um novo inimigo foi criado: o Terceiro Mundo. Este pode aparecer como fonte do terrorismo ou do marcotráfico, mas é sobretudo uma região que disputa com a potência imperial fatias do mercado mundial.
Apesar de, direta ou indiretamente, aconselhar receitas liberais, desindustrializantes e com consequências negativas sobre o emprego, os EUA e os países desenvolvidos praticam fortes políticas industriais.
Quando a industrialização não pôde ser evitada na periferia, os EUA trataram de atrelar as economias nacionais seja por investimentos diretos seja pela ação especulativa.
Mas Chomsky tenta demonstrar que, mais do que o antagonismo países ricos-países pobres, a clivagem principal se dá hoje no interior de cada um dos Estados nacionais. Daí sua idéia de que a nova ordem mundial é na realidade uma ''terceiromundialização'' do planeta.
As políticas econômicas dos países desenvolvidos, não tão liberais quanto anunciadas, e os ajustes aplicados na periferia acabaram por provocar as mesmas consequências em todas as partes: concentração de renda sem precedentes, desemprego e uma crescente exclusão, sobretudo com o desmonte do "Welfare State".
Tudo se passa como se o mundo vivesse, agora em escala global, uma nova revolução industrial com as sequelas de progresso, e de horrores, que marcaram o processo original nos séculos 18 e 19. O retorno à escravidão no Oriente, com a utilização de prisioneiros, mulheres e crianças, os acidentes horríveis nos locais de trabalho e as condições de controle da força de trabalho, mediadas agora por tecnologias sofisticadas, configuram os novos traços da industrialização deste fim de século.
Mas a nova ordem é também a preeminência do capital especulativo sobre o produtivo. Há dez anos, a proporção capital especulativo/produtivo era de um para nove. Hoje ela se inverteu. Uma soma de US$ 1,3 trilhão é diariamente aplicada em bolsas, por meio de modernos instrumentos de comunicação que imprimem ao capital financeiro uma velocidade sem precedentes e o tornam ainda mais incontrolável.
Os capitais produtivos buscam custos de produção cada vez mais baixos. Impõem condições draconianas aos países e regiões para onde se deslocam.
O comércio mundial cada vez mais se dá intrafirmas (cerca de 40%) o que torna a expressão livre-comércio cada vez mais problemática.
Quem perde com esses fenômenos econômicos, que se produzem em um mundo política e militarmente cada vez mais unipolar, é o Estado nacional.
A globalização, para Chomsky, produz um governo internacional ''de fato'', que aparece em instituições como o G-7, o FMI, o Banco Mundial ou a Organização Mundial do Comércio, enquanto as instâncias multinacionais, como a ONU, por exemplo, se esvaziam cada vez mais.
Noam Chomsky retoma em seu livro uma tradição radical que marca desde sempre a dissidência intelectual norte-americana e que é característica desse professor há mais de duas décadas. O tom polêmico, às vezes panfletário, de seu livro não obscurece as duras verdades que traz à tona, apoiado em uma colossal erudição.
Na contracorrente da grande ofensiva conservadora desse fim de século, Noam Chomsky lança sua garrafa ao mar, seguro de que a mensagem chegará a muitas praias.

Marco Aurélio Garcia é professor do departamento de história da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas).

Folha de São Paulo

MATÉRIA E PENSAMENTO


A metáfora computacional
MARCOS BARBOSA DE OLIVEIRA
não há maior truísmo hoje em dia do que constatar o enorme impacto do computador na vida prática, em seus múltiplos aspectos. Bem menos evidente é sua influência no domínio da teoria, especialmente do ponto de vista proporcionado pelo ambiente cultural de nosso país. Na região teórica que engloba os fundamentos das várias ciências humanas, bem como uma boa parte das questões centrais da epistemologia e da metafísica, as metodologias, as reflexões sobre a natureza do conhecimento, das emoções e da razão vêm sendo profundamente afetadas pela idéia e realidade dos computadores. No fundo, é a própria concepção de ser humano que está em jogo, ameaçada pela ''metáfora computacional'' _a proposta de que o homem deve ser visto como um computador, vale dizer, como uma máquina.
A instância canalizadora desse impacto é por excelência a ciência cognitiva. Nascida há 35 ou 40 anos, esta nova área do saber apresenta-se hoje como um campo bastante heterogêneo, mal delimitado, marcado por numerosas e profundas tensões internas, porém dotado de um intenso dinamismo que a tem levado a conquistar espaços no mundo acadêmico com uma velocidade espantosa.
Isto vale, entretanto, apenas para seu berço, os Estados Unidos, para o Reino Unido e, em graus variados, para inúmeros outros países ''lá de cima'': Canadá, França, Alemanha etc. No Brasil, para quem vê esse movimento como um avanço, e tomando como parâmetro os Estados Unidos, o atraso é de cerca de 30 anos, já que apenas há uns cinco a nova ciência começou a ter presença institucional entre nós. A ciência cognitiva merece atenção, para ser apoiada ou criticada: na posição que já conquistou, o que não pode é ser ignorada. Isso, aliado a um dos aspectos de nosso atraso, a pobreza da literatura disponível em português, torna bem-vindos estes dois lançamentos, enquanto exemplos da produção francesa na área.
''Matéria e Pensamento'' é um diálogo entre um matemático, Alain Connes, e Jean Pierre Changeux, um dos nomes mais importantes da França nas áreas da biologia molecular e da neurociência (para usar um dos neologismos postos em circulação pela ciência cognitiva), autor do influente ''O Homem Neuronal''. A discussão gira em torno do que se pode chamar de ciência cognitiva do conhecimento matemático, cujos problemas entretanto logo remetem a questões tradicionais da filosofia, sendo a mais central a indagação sobre a natureza das entidades matemáticas. Nesse ponto, observa-se a oposição mais nítida entre o matemático que, não surpreendentemente, adota a perspectiva realista platônica, e o neurocientista, para quem os objetos matemáticos carecem de existência independente, não passando de criações do cérebro humano.
Apesar do que sugere o tipo de ilustração utilizado, não se trata de um livro introdutório, e só poderá ser apreciado por quem possua alguma familiaridade com um número considerável de tópicos, indo dos problemas filosóficos da mecânica quântica ao teorema de Gõdel, da evolução darwiniana às máquinas de Turing. O capítulo final do livro, numa mudança de registro, trata da ética, e aí se manifesta mais claramente o naturalismo que Changeux, especialmente, compartilha com a ciência cognitiva em geral _o ponto de vista que não enxerga outra postura em relação ao conhecimento que não seja a do cientista natural.
O resultado, no campo da ética, é um claríssimo caso do que Moore denominou ''falácia naturalista'', uma vez que a proposta de Changeux é a de construir uma moral fundada ''sobre fatos 'neurocognitivos' com o rigor do método científico''.
O livro de Dupuy trai sua origem já no título, ao utilizar a expressão ''ciência cognitiva'' no plural. Seria interessante, aliás, examinar as razões para tal escolha, investigar até que ponto são análogas às motivações subjacentes à tendência francesa mais geral de preferir ''ciências'' a ''ciência'' em inúmeros contextos _por exemplo, em ''filosofia das ciências''_ em contraste com o uso anglo-saxônico do singular. O Brasil nesse ponto está até agora se inclinando pela segunda alternativa _felizmente, a nosso ver, não apenas por ficar em sintonia com a matriz anglo-saxônica da nova disciplina, mas também porque essa opção permite que se utilize o plural de maneira menos ambígua para designar as várias ciências que confluem para a ciência cognitiva: a inteligência artificial, a neurociência, a psicologia cognitiva, a linguística etc.
O papel principal em ''Nas Origens das Ciências Cognitivas'' cabe à cibernética. O destino desta outra nova ciência é uma história de ascensão e queda. O empreendimento cibernético começou com forte ímpeto em fins da década de 40, atingiu um ápice de popularidade nos anos seguintes, para depois ir decaindo até chegar ao esquecimento quase completo a que se encontra relegada nos dias de hoje, quando o próprio termo ''cibernética'' soa curiosamente fora de moda. Quais as razões desse esquecimento? Esta é a pergunta que Dupuy se coloca. Na resposta que propõe, trata-se de um caso de filha que se envergonha da mãe. A mãe é a cibernética, a filha é a ciência cognitiva, e a motivação da ''démarche'' do autor é bem expressa na seguinte passagem: ''No mundo dos homens, aqueles que se envergonham de seus pais têm poucas possibilidades de se desenvolver harmoniosamente. Não há nenhuma razão para que o mesmo não aconteça no mundo das idéias. A vontade de esquecimento de sua própria história, própria do otimismo cientificista, é o meio mais seguro de se condenar a repeti-la, refazendo os mesmos erros''.
O que Dupuy procura mostrar, em outras palavras, é que a cibernética teve um peso muito maior nas origens da ciência cognitiva que seus adeptos em geral admitem. Trata-se portanto de uma proposta de reabilitação, uma proposta um tanto ambígua, contudo, uma vez que engloba um forte componente crítico em relação a seu objeto. Não há espaço aqui para avaliar os méritos dessa crítica, nem a coerência da posição desconstrucionista defendida pelo autor _a qual seguramente o situa fora da corrente majoritária da ciência cognitiva.
Independente disso, entretanto, o livro tem o mérito de trazer à tona todo um capítulo muito pouco estudado da pré-história da ciência cognitiva, a saber, a série de encontros interdisciplinares que veio a ficar conhecida como ''Conferências Macy'', realizadas em Nova York de 1946 a 1953, e da qual participaram, além de Wiener, McCulloch e von Neumann, um grande número de eminentes pesquisadores das mais diversas áreas. Um dos resultados do estudo de Dupuy é a valorização das idéias de McCulloch, que teria sido vítima de dupla injustiça, uma devida ao esquecimento da cibernética como um todo, outra ao não reconhecimento de sua própria contribuição a ela. O beneficiado no caso teria sido Wiener, visto em geral como o único pai da criança. Entre os vários autores a que Dupuy se refere para estabelecer sua tese, encontra-se Changeux, citado inúmeras vezes ao longo do livro e, no que se refere a McCulloch, criticado por não ter feito menção alguma a ele em ''O Homem Neuronal''.
As traduções são de maneira geral satisfatórias. No livro de Dupuy, entretanto, registra-se um certo número de falhas pontuais que poderiam ter sido eliminadas por uma revisão mais cuidadosa (por exemplo, ''anomal'', em vez de ''anômalo'', na pág. 124).

Marcos Barbosa de Oliveira é professor da Faculdade de Educação da USP.

Folha de São Paulo

O FIM DAS INCERTEZAS


O tempo não é uma ilusão
ANTONIO A. P. VIDEIRA
o nome do físico-químico belga Ilya Prigogine não é desconhecido do público leitor brasileiro. Desde as publicações anteriores dos livros ''A Nova Aliança'' (UnB) e ''Entre o Tempo e a Eternidade'' (Cia. das Letras), ambos escritos em colaboração com Isabelle Stengers, Prigogine vem se tornando uma das referências básicas para todos os que se interessam pela reflexão sobre as novas conquistas científicas, alcançadas nos domínios da física, química, cosmologia e biologia.
Cientista de primeira ordem, com importantes contribuições à termodinâmica de não-equilíbrio _que lhe valeram o prêmio Nobel de química em 1977_, Prigogine não se limita a apresentar, em suas obras não estritamente científicas, os mais recentes resultados nessas áreas. Ele não pretende apenas tornar compreensíveis os novos fatos científicos. Sua intenção é mostrar que, quando devidamente considerados, esses resultados deixam entrever uma estrutura fundamental da natureza, capaz de unificá-los. Para Prigogine, o tempo não é apenas um parâmetro físico; é o conceito fundamental da ciência, principalmente quando pensado a partir de sua mais importante característica: a irreversibilidade.
A proposta de Prigogine nesta obra é basicamente a mesma das duas anteriores: mostrar a um público não especialista que o real, quando analisado em suas estruturas mais profundas e, por isso mesmo, mais efetivas, é um só. Diferentemente do que se pensou durante muito tempo _mesmo que possamos nos lembrar de algumas exceções importantes_, o real não é indiferente à direção em que ocorre o fluxo dos fenômenos naturais. Em outras palavras, a flecha do tempo não se inscreve apenas no nível da descrição de tais fenômenos. Ela se encontra no seu cerne: a irreversibilidade é parte constituinte das leis naturais. Reconhecer essa presença, afirmá-la, enfatizando as suas consequências, que não são poucas, constitui o objetivo (ou a ambição, como diz Prigogine) deste livro.
Fixada a presença da irreversibilidade, ela não é a exceção mas, sim, a regra. As consequências para a representação que temos da natureza são imensas. Até mesmo a concepção do que é a racionalidade precisa ser transformada, à luz desse novo papel atribuído ao tempo. Como se pode facilmente constatar, Prigogine é, de fato, ambicioso em seu projeto filosófico. No entanto, ele tem a preocupação de afirmar que não se encontra sozinho nesse empreendimento. Desde Epicuro, passando por Hegel, Husserl, William James, Bergson, Heidegger e chegando a Whitehead, desenvolve-se uma doutrina filosófica de que o tempo é uma realidade incontornável. Ao contrário do que dizia Einstein, o tempo não é uma ilusão.
Mas quais são as consequências impostas por essa reavaliação do tempo? A mais importante é que o homem reencontrará o seu lugar não apenas na natureza, mas também na própria descrição desta. O homem não mais será aquele que descobre as leis fundamentais da natureza, mas aquele que as constrói. Reconhecendo o seu papel de construtor, o homem tornar-se-á consciente de que a ciência é um diálogo com a natureza. Temporalizando o diálogo, o homem volta a perceber que ''a questão do tempo'' _donde ele mesmo, que é filho do tempo_ ''está na encruzilhada do problema da existência e do conhecimento''. Percebe, então, que tanto ele como o universo e a descrição que faz do universo são fenômenos ou estruturas constituídas pela irreversibilidade ou ainda pela transitoriedade. Negar essas características seria o mesmo que procurar aproximar-se de um ponto de vista divino atemporal. Nada mais artificial, ou irreal, para um ser marcado pela temporalidade.
Apesar de ter sido escrito para um público não-especialista, ''O Fim das Certezas'' não é um livro de leitura fácil. Prova disso são suas referências, listadas em notas de rodapé, que quase sempre incluem revistas e livros técnicos. Seus argumentos e exemplos são estritamente científicos; já suas conclusões inscrevem-se no domínio da epistemologia e da filosofia da natureza. Faz parte da estratégia de Prigogine mostrar que aquilo que ele afirma fora do campo científico não é arbitrário nem fruto de preferências filosóficas. Ele quer mostrar ao seu leitor que as conclusões científicas e epistemológicas a que chega, e que são resultado de 50 anos de trabalho, possuem fundamento suficiente para assegurar a seguinte afirmação: a física de não-equilíbrio já alcançou maturidade suficiente para entrar e permanecer no domínio científico; sua presença é irreversível. Assim sendo, a natureza de Newton, de Einstein, e mesmo de Bohr e Heisenberg, precisa ser radicalmente modificada, dando lugar àquela parcela tida, até pouco tempo atrás, como ilusória: a parcela da irreversibilidade.
Prigogine é um daqueles cientistas, ao lado de Steven Weinberg e Stephen Jay Gould, que vêm procurando mostrar ao público em geral os principais resultados de suas próprias pesquisas científicas, além de suas mais relevantes conclusões epistemológicas. É um interessante exemplo de cientista-filósofo. Sem dúvida, muitas de suas idéias ainda são objeto de vivos debates. Ele mesmo não nega essa situação. Pelo contrário, alegra-se com isso, pois só assim poderá o homem usar de sua criatividade, reaproximando a existência e o conhecimentos humanos, que, para ele, estavam separados até o surgimento da física de não-equilíbrio.
O futuro, não nos sendo dado, deve necessariamente ser construído pelo homem, que lança mão de sua criatividade. É exercendo essa criatividade _que, repetimos, origina-se de uma necessidade, de algo incontornável ao ser humano_ que tomamos plena consciência da liberdade, já que a criatividade nos permite ''construir um caminho estreito entre essas duas concepções (determinismo e acaso) que levam igualmente à alienação, a de um mundo regido por leis que não deixam nenhum lugar para a novidade, e a de um mundo absurdo, acausal, onde nada pode ser previsto nem descrito em termos gerais''.
A obrigatoriedade de ser criativo é um dos melhores exemplos de que o mundo em que vivemos não é regido por leis estritamente deterministas. Ou seja, Prigogine parece defender que estamos condenados a ser livres. Embora não tenhamos outra opção além da liberdade, isso não significa que não há nada a fazer para que a liberdade aconteça. Visto que não podemos conhecer antecipadamente o futuro _o que é equivalente a afirmar, segundo Prigogine, que somos livres_, temos que assumir toda a nossa responsabilidade de principais construtores daquilo que ainda seremos.

Antonio Augusto Passos Videira é professor de filosofia da UERJ (Universidade Estadual do Rio de Janeiro), pesquisador do departamento de astrofísica do Observatório Nacional (CNPq) e organizador, com Ildeu de Castro Moreira, de ''Einstein e o Brasil'' (UFRJ).

Folha de São Paulo

HISTÓRIA DO BRASIL


Histórias do Brasil
MARIA VICTORIA BENEVIDES
lula, Marighella, Jânio, três brasileiros exemplares, são tema de livros recentes que, por vários motivos, merecem a atenção de todos os interessados em nossa história contemporânea. Mas de que serão ''exemplares''? Jânio Quadros é o exemplo do político que, com um estilo autoritário, moralista e mistificador, melhor ilustra o ''populismo de direita'' _militarista, antiparlamentar, associado ao grande capital_ e que, portanto, melhor serve aos interesses das classes dominantes. Carlos Marighella é o exemplo do líder revolucionário, intelectual e guerreiro, que deu a vida por seus ideais, levados às últimas consequências, na luta contra a ditadura e pela libertação dos oprimidos. Luis Inácio Lula da Silva é o exemplo de líder operário que se torna líder de massas e o mais importante político na esquerda nacional. Em comum eles têm a origem humilde, a liderança, o amor e o ódio que provocaram e um lugar garantido em nosso fértil imaginário político.
O depoimento de Carlos Castello Branco refere-se apenas aos momentos imediatos à renúncia de Jânio, em 25 de agosto de 1961. De seu posto privilegiado, como secretário de imprensa da Presidência, acompanhou tudo e anotou as conversas. Não esclarece os motivos da renúncia, mas confirma o que sempre se soube: Jânio contava com a volta triunfal nos braços do povo e não teria escrúpulos em apelar para o golpe. Confiava, para tanto, no apoio explícito dos chefes militares, citados textualmente: ''O presidente que ordenasse as providências que seriam tomadas, intervenção na Guanabara, fechamento do Congresso... mas o governo não poderia passar às mãos de João Goulart''.
Mas contesto a afirmação de que Jânio não cultivava as Forças Armadas. O próprio autor relata como Jânio ''designava sempre militares para as comissões de inquérito''. Ora, como já escrevi em outra ocasião, um dos principais motivos para a hostilidade de parlamentares a Jânio foi a criação de subchefias militares do gabinete presidencial em várias regiões do país e a exclusividade dos oficiais na direção da ''cruzada moralizadora''. Da versão do jornalista resta um drama mesquinho, fruto de intrigas palacianas, nas quais avulta José Aparecido (que parece ter controlado a imprensa da época) e Pedroso Horta. É símbolo de nossa política elitista a frase atribuída ao ministro da Justiça: ''Esse país imenso está em nossas mãos. Somos três ou quatro os que têm as rédeas''.
O livro de Marighella começa com sua prisão, num cinema carioca, em maio de 1965, quando reage e leva um tiro no peito, gritando: ''abaixo a ditadura, viva a democracia''. O autor-personagem relata os interrogatórios (destaque para o caso da ''caderneta de Prestes'') e os métodos da polícia política, discutindo o uso da mentira e das torturas. Analisa o caráter fascista do regime militar desde o Estado Novo e defende a criação de uma frente única pelas liberdades democráticas, insistindo, porém, na necessidade da preparação para a ''luta de massas''. Acredita, ainda _o que explica sua luta futura_, que ''a realidade poderá levar ao aparecimento de guerrilhas'', tomando como exemplo a revolução cubana.
O livro sobre Lula acompanha, sob a forma de entrevistas com ele e seus irmãos, a trajetória de Garanhuns a Vila Euclides (1980). Temos uma história viva e comovente da experiência da seca e da fome, das enchentes e do trabalho pesado, de um pai cruel e de uma ''mãe coragem'' _e também da esperança, do amor e da solidariedade. Esboça-se o metalúrgico que vai adquirindo consciência política; a autora quer mostrar como a família Silva encarna as contradições e complexidades brasileiras e entender como Lula foi capaz de mudar sua vida e de parte da nação. É ele quem diz, aliás: ''Estou convencido de que com esse povo vai dar para mudar o Brasil''. A parte teórica do livro trata da passagem de uma ''cultura da pobreza'' para a ''cultura da transformação'' e ainda aborda, do ponto de vista psicológico, a relação difícil de Lula com o pai.
Como reunir, em um só comentário, livros tão díspares pelos objetivos, pela forma, pela origem dos autores e pela vida dos personagens?
Os objetivos diferem, mas partem de um elemento comum: os três autores estão empenhados, quiseram ''dar um recado''. Castello Branco, que exigiu a publicação somente após sua morte, quis apresentar a sua versão dos fatos. Denise precisava de um tema para sua tese e escolheu, a partir de evidente identidade ideológica, a trajetória de Lula (de quem foi assessora em outros tempos) e de sua família. Marighella quis explicar sua resistência, denunciar o caráter fascista da ditadura e conclamar as ''novas gerações'' para a luta.
As diferenças de forma decorrem, em parte, da origem dos autores e de seus objetivos. O jornalista produz um depoimento quase romanceado com o suspense dos bastidores, além de prudente análise sobre a subjetividade dos atores principais, sempre com o olhar de testemunha discreta e como que emocionalmente distante. Ao contrário de Denise, não demonstra admiração pelo seu personagem, visto como uma ''figura tensa, inexplicada e patética''. Marighella, ao mesmo tempo autor e personagem, escreve com indignação permeada de uma boa dose de humor e ironia; seu livro é um relato autobiográfico apaixonado e apaixonante, além de um manifesto revolucionário. A historiadora, por sua vez, apresenta o resultado de sua pesquisa, escapando do estilo tradicional dos acadêmicos, ao misturar longas entrevistas com a discussão teórica, em texto fluente e agradável. Os três livros têm excelente escolha de fotos.
Quanto à vida dos personagens: é evidente que existe uma distância abissal entre o presidente renunciante e os outros, mas entre estes dois também existem diferenças significativas.
Jânio Quadros foi, sem dúvida, um fenômeno eleitoral e político como nenhum outro no cenário do populismo brasileiro; jogando habilmente com o temor das elites diante da possível ascensão de uma liderança efetivamente popular, com a insegurança das classes médias diante de um suposto comunismo ''proletarizador'' e com a sedução das massas pelo chefe redentor, manteve-se durante um certo tempo no imaginário coletivo, graças ao mito do ''bom pai'' _autoritário, porém ''justo''. A essência de sua política era a manipulação demagógica e o apoio à manutenção, mesmo que sob o disfarce de um voluntarismo imperial, do regime oligárquico. Morreu sem provocar qualquer comoção pública e virou nome de túnel na gestão malufista, sem ter jamais explicado as razões da renúncia, apresentada como ''denúncia'', até hoje não se sabe de quê. Apesar da força inegável de sua imagem popular durante uma certa época, nada mais existe em comum entre ele e Lula ou Marighella.
Carlos Marighella, o personagem histórico, o constituinte de 46 e o revolucionário exemplar na coragem, na persistência e na integridade mesmo diante das prisões e das torturas, é reconhecido como ''herói do povo brasileiro'' por admiradores tão diferentes quanto Antonio Candido (socialista petista) e Jorge Amado (ex-comunista, amigo das oligarquias nordestinas), que escrevem, respectivamente, a apresentação e o prefácio do depoimento. Apesar de partilhar com Lula origens simples _pai operário, imigrante italiano e mãe negra, descendente dos haussás, escravos na Bahia_, dele difere por contar, desde cedo, com o estímulo familiar para estudar e envolver-se com a política. Enquanto Lula não perdoa a ignorância e a violência do pai, que espancava os filhos por qualquer veleidade de frequentar escola, o líder baiano só não conclui o curso de engenharia devido às exigências da militância, em plena efervescência de 1935.
Também ao contrário de Lula, Marighella cresceu politicamente como boa parte da esquerda brasileira, isto é, com uma sólida formação teórica no marxismo e nas fileiras de um partido organizado com rígidas disciplina e hierarquia, como o PCB. Lula surgiu na vida pública praticamente repudiando a política, ainda influenciado pelos valores conservadores do meio rural-popular, bem como pela imagem deletéria da política como ''politicagem'', o que o levava a se orgulhar de ser apenas um torneiro mecânico com liderança sindical... Segundo Denise, Lula nunca leu Marx e, apesar de sua excelente relação com os intelectuais do partido, tem sua militância centrada na riquíssima experiência de fábrica, de dirigente sindical e, posteriormente, já assumidamente ''político'', de dirigente partidário atento à legitimidade das divergências e à voz dos movimentos populares.
Marighella é claramente um exemplo da geração anterior, tributária do clima densamente ideológico dos anos 30. A análise teórica que empreende em seu depoimento revela o espírito da época: uma descrença ''na tão apregoada validez e respeitabilidade da democracia representativa'' e nos sistemas eleitorais nos quais persistiam o abuso e a farsa. Essa sua posição é ainda mais fácil de entender quando se examina a composição do Parlamento conhecido por Marighella, tomado pelos ''interesses mais escusos da classe dominante''. A experiência de Lula, 35 anos mais moço, será radicalmente diferente. É das lutas sindicais _nas quais havia também prisão e resistência, mas sobretudo nas quais grande parte das conquistas se davam num contexto de acordos e negociações_ que ele tira suas principais referências, acreditando que poderia conseguir o mesmo no plano político-partidário.
Os três foram, de fato, líderes populares. Mas foram líderes de quê? Jânio Quadros representou mais um exemplo da vitória das elites plutocráticas por meio de uma liderança boa de voto, no pior estilo do velho populismo. O cerne do projeto oligárquico consiste justamente em permitir a projeção de um demagogo que defenderá aqueles interesses: nada melhor do que um ator histriônico como Jânio, o homem da vassoura e do ''tostão contra o milhão'', (campanhas de 1953, 1954 e 1960), mas que se compõe, atrás da cena, com o milhão contra o tostão.
Há muito tempo a direita se deu conta de que, com a imensa maioria do eleitorado nas chamadas classes C e D (cortejadas e manipuladas por gente como Jânio, Maluf e Collor, mas também por intelectuais sofisticados como Fernando Henrique Cardoso), ela só terá chances apoiada no disfarce do discurso e da prática populistas. Jânio foi ótimo nessa liderança falsamente carismática. Mas, quando quis ''ser independente'' e dispensar o apoio das oligarquias, repudiando o Congresso e ''os ricos'', perdeu. Ao renunciar, não teve o clamor do povo que, supostamente, o endeusava. Com Fernando Collor aconteceria o mesmo, ao desafiar o poder oligárquico; ambos foram Fujimori ''avant la lettre'' e perderam.
Jânio, embora perdedor no segundo round, foi útil para as elites enquanto estas dele precisaram; o provinciano professor de ginásio é tolerado no seleto clube da política brasileira com sua caspa, seu desalinho e seu histrionismo, sobretudo por seu fantástico ''timing'' dos amores e rancores do povão. Marighella e Lula, por sua vez, continuam ''outsiders''; não podem ser aceitos pelo regime oligárquico que sistematicamente teme e exclui as lideranças autenticamente populares. Lula é excluído pela formidável conjugação de forças, naquele arco triunfante que abrange da ''social-democracia'' ao conservadorismo mais arcaico, e que prefere qualquer um _mas ''qualquer um'' mesmo_ que possa derrotar os legítimos interesses populares. Marighella acaba excluído pela violência mais brutal, assassinado ''pelas forças da ordem'' a serviço daqueles mesmos grupos que estão dispostos a pagar qualquer preço _mesmo o de sua dignidade_ para excluir aqueles que podem estragar a festa oligárquico-populista.
Talvez não seja exagero apontar mais uma peculiaridade nas diferenças entre eles. Marighella teria sido um líder ideológico, isto é, mais importante no plano das idéias do que efetivamente na conquista de seguidores pela prática política, apesar de sua intensa atividade como dirigente comunista e como líder de movimento revolucionário, como a ALN (Aliança Libertadora Nacional). Sua preocupação em estudar e discutir o marxismo-leninismo e publicar livros e artigos sobre questões teóricas e a realidade brasileira não encontra paralelo na atuação do torneiro mecânico que disputa a Presidência da República.
Lula foi e continua sendo um líder de massas, de uma expressiva parcela do povo que inclui o velho proletariado _hoje bem mais diversificado, visto como o conjunto dos ''trabalhadores''_ e, também, e isso é o mais importante, as forças progressistas, os movimentos populares e todos os comprometidos com uma efetiva transformação social. Sua sincera e sempre repetida convicção sobre a superioridade do socialismo democrático apóia-se em valores éticos (e até cristãos) e, portanto, nos ideais de justiça e fraternidade, independentemente de uma possível adesão intelectual aos pressupostos marxistas. Aliás, sempre foi um crítico do chamado socialismo real, em defesa da liberdade associada à igualdade. Tenho certeza de que Marighella mantém legião de admiradores (entre os quais me incluo) em todo o país; mas não creio que tenha um número significativo de seguidores. O que, sem dúvida, se justifica no contexto de mudanças radicais nas esquerdas em relação ao marxismo e à revolução.
Finalmente, nunca será demais enfatizar que tanto Marighella quanto Lula encarnam um profundo amor por suas raízes, pelo país, pelo povo brasileiro. Para Jânio Quadros o Brasil terá sido, apenas, o cenário descartável de sua evolução tragicômica.

Maria Victoria de Mesquita Benevides é socióloga, professora titular da Faculdade de Educação da USP e diretora da Escola de Governo.

Folha de São Paulo

O TEATRO DAS IDÉIAS - PROSA CRÍTICA DE BERNARD SHAW


Coletânea traz inteligência de Shaw
MARILENE FELINTO
da Equipe de Articulistas
George Bernard Shaw (1856-1950) é tudo o que muito crítico, prefaciador de livro e escrevinhador de jornal brasileiro ainda gostaria de ser.
Cada comentário que se faz por aqui a respeito do crítico, ensaísta e dramaturgo irlandês escorrega para o tom de adulação, compreensão superficial e falso distanciamento de uma obra que causa sobretudo excitação intelectual.
O lançamento dessa coletânea de prosa crítica é mais uma oportunidade de observar esse espetáculo de bossalidade e pedantismo.
O livro reúne cartas, resenhas e artigos do autor de ''Major Barbara'' (1905) sobre teatro, música, política e temas variados.
Shaw foi um gênio das idéias e da argumentação, em cujo exercício era ligeiro, caudaloso e pessoal _tudo isso com um toque de irreverência que ainda hoje confunde leitores e apreciadores, que tratam dele como se fosse uma grande brincadeira.
Mas Shaw era seriíssimo. Ele foi o grande inovador do teatro inglês da época vitoriana, introduzindo neste o drama de idéias.
A maior parte de suas peças _entre elas as conhecidas ''Santa Joana'' (1924), ''Homem e Super-Homem''(1905) e ''Pigmalião''(1912) _satiriza o conservadorismo da sociedade inglesa.
Nos longos prefácios de Shaw a ''Major Barbara'' e ''Super-Homem'', incluídos nessa ''Prosa Crítica'', é possível acompanhar o trabalho de transposição das idéias do crítico e jornalista para o universo do teatro, sempre com humor e surpresa.
Pensador visionário e homem de opiniões intrépidas, ele transformou seu trabalho num grande ''quem sou e o que penso'' (título de uma espécie de entrevista dada a um editor, também incluída no livro), com direito a expor detalhes de suas excentricidades e idiossincrasias. Exemplo disso é o artigo ''Ir à Igreja'' e todas as considerações em defesa do vegetarianismo, de que era adepto.
O melhor de ler Shaw é acompanhar as circunvoluções de sua inteligência acelerada e profunda. É ver as assertivas de seu pensamento, às vezes paradoxais, se transformarem em dogmas filosóficos.
Um dos melhores textos dessa coletânea é ''As Ilusões do Socialismo'', em que o socialista Shaw traça os rumos do socialismo _''Ninguém questionará que o socialismo, se é que ele deve ser visto com seriedade e atenção em nossos dias, tem de consolidar-se no campo das ciências políticas e não no dos dogmas sentimentais.''_, mas não sem antes tratar da felicidade humana e de centenas de outros caminhos.
Sobre escrever, o dramaturgo é cético como se deve ser: ''Nunca senti inclinação para escrever (...) o amador, o colecionador, o entusiasta de uma arte é o homem que não tem a faculdade de produzi-la.''
''Os filósofos já nos avisaram de que, dentre todas as buscas, a da felicidade é a mais desafortunada, e que a própria felicidade nunca foi encontrada, salvo no caminho de algum outro objetivo.''

Livro: O Teatro das Idéias - Prosa Crítica de Bernard Shaw
Organização: Daniel Piza
Tradução: José Viegas Filho
Editora: Companhia das Letras

Folha de São Paulo

O TEATRO DAS IDÉIAS


Um gênio duro de aguentar
MARCELO COELHO
da Equipe de Articulistas
Há um tipo de pessoa que costuma aparecer em reuniões familiares, viagens de avião, festas onde não conhecemos ninguém, e que parece, no início, ser a grande salvação da noite. Sorridente, puxa conversa conosco. Interessa-se por tudo, leu tudo, tem opiniões sobre tudo, é inteligente e além disso está de ótimo humor. Uma bela companhia, pensamos.
Pergunta-nos alguma coisa, parece querer ouvir nossa opinião. Mas aí percebemos que, mal abrimos a boca, ele já começou a falar de outro assunto. Interessa-se por tudo, menos pelo interlocutor. É simpático, mas nada afável. Seu bom humor é uma forma de esmagar o ouvinte. Ele tem outras. Sente-se superior a nós pelos mais variados motivos: o de entender de automóveis tão bem quanto de música, o de ter ótima saúde ou um filho cancerologista, o de só beber cerveja ou o de não comer carne vermelha, o de nunca ter tido cáries ou o de ir ao dentista cinco vezes por ano. Dedica-se à conversa com a mesma energia férrea com que faz pesca submarina, estuda saxofone ou exporta suco de laranja. Caímos em sua rede; teremos de ouvi-lo, até que jogue fora nosso bagaço.
Um dos maiores dramaturgos deste século, George Bernard Shaw (1856-1950) parece ter sido esse tipo de pessoa. A reunião de cartas, ensaios, prefácios, resenhas e críticas que Daniel Piza apresenta ao público brasileiro traz um Bernard Shaw em excelente forma; seria preferível, talvez, um pouco menos do que isso.
O primeiro ensaio já dá idéia do que vem pela frente. Tem por título ''Como Tornar-se um Gênio'', e começa assim: ''No fundo, o grande segredo é o seguinte: não existem gênios. Eu sou um gênio e portanto sei. O que há é uma conspiração para fazer de conta que os gênios existem e uma escolha das pessoas certas para assumir o papel imaginário de gênio''.
Encontraremos muitos exemplos dessa mistura de bravata e de trivialidade mascarada em paradoxo. Shaw escreve um prefácio, por exemplo, para ''ajudar meus críticos de 'Major Barbara', explicando-lhes o que comentar a respeito da peça''. Eis como inicia uma carta a T.E. Lawrence: ''Como todos os heróis, e devo acrescentar como todos os idiotas, você exagera fortemente seu poder de moldar o universo segundo suas convicções''. A uma mulher que o abandonou: ''Pois vá: o meu ar puro queima os seus pulmõezinhos... você feriu minha vaidade: audácia inconcebível. Crime imperdoável''.
O fato de ele saber dos seus truques autopropagandísticos torna-o mais irritante ainda. Bernard Shaw diz, de Bernard Shaw: ''Não existe tal pessoa... eu o inventei, divulguei, promovi e personifiquei e agora estou aqui... dando um toque adicional em minha maquiagem por intermédio de minha máquina de escrever''. Imagine-se o impacto disto numa sociedade ainda presa ao convencionalismo vitoriano. Shaw foi um grande iconoclasta em seu tempo, mas hoje estamos diante de um dramaturgo que criou uma personagem de segunda ordem, para os mass media da época; algo mais próximo de Camille Paglia do que de Voltaire. Pois é vítima da afoiteza, do excesso de opiniões; parece tão preocupado em tê-las a qualquer custo que cada artigo é mais uma autocongratulação pelos próprios achados do que um caminho em que pudéssemos acompanhá-lo.
O diabo é que Bernard Shaw não é o exportador de suco de laranja a que me referi no começo do artigo. Ele nos esmaga tanto quanto, mas saímos ganhando. Basta ler o que ele escreve sobre arte moderna (contestando um filósofo alemão, Max Nordau, que 40 anos antes de Hitler já falava de ''degeneração da arte''); sobre homens e mulheres (os homens talvez nunca foram vencedores no duelo dos sexos); sobre a pobreza (dizer que alguém é pobre, mas honesto, é tão intolerável e imoral quanto dizer que alguém é um esplêndido criminoso). Ele defende até a novidade do ''imposto de renda negativo''. É contra qualquer pena de prisão. É, como se sabe, um excelente crítico de música. Você só ganhará se ler este livro; mas é quase certo que, fazendo isso, poderá perder sua paciência.

Folha de São Paulo