sábado, 25 de julho de 2009

OS ESCOMBROS E O MITO


A história do pesadelo
JOSÉ ARBEX JR.
o crítico e tradutor Boris Schnaiderman oferece um raro presente aos leitores. ''Os Escombros e o Mito'' é uma obra de grande alcance, um vôo histórico e analítico sobre um riquíssimo mas pouco conhecido cenário cultural deste século: a extinta União Soviética. Com linguagem simples, às vezes comovente, Schnaiderman apresenta uma multidão de escritores, músicos, poetas, cineastas, artistas plásticos, dramaturgos e intelectuais cuja obra permaneceu, durante décadas, enterrada sob a censura do Partido Comunista. O livro é resultado de uma meticulosa e apaixonada pesquisa, um grande trabalho de garimpo apenas viabilizado a partir dos anos 80, quando o então dirigente Mikhail Gorbatchov iniciou as reformas democráticas que iriam desembocar, em 1991, no fim da URSS.
Para facilitar a vida do leitor, os capítulos são divididos segundo uma lógica temática. Vários tratam de poesia e literatura (''Pisando em Ovos'', ''Os Filhos de Kafka - Escrever e Publicar'' etc.), outros têm o seu conteúdo explicitado pelo título (''A Filosofia'', ''As Artes Plásticas'', ''O Teatro'', ''O Cinema'' etc.). Para complicar a vida do leitor, Schnaiderman adotou normas de transliteração de nomes que, se são mais corretas, fogem às versões comuns na imprensa: Leon Trotski vira Leão Trótzki, Roy Medvedev vira Rói Miedviédiev. Em compensação, somos brindados com uma explicação erudita sobre a origem dos consagrados termos ''glasnost'' e ''perestróika'' (ou ''pierestróika'', segundo o autor).
O livro contempla os mais importantes temas relacionados à arte e à cultura, com uma inevitável e necessária atenção para a atuação da polícia política. ''Com a abertura do 'depósito especial' de obras proibidas, o famoso 'spietzkhran', vieram a público fatos estarrecedores'', diz Schnaiderman. ''Havia ali mais de 300 mil títulos de livros, mais de 560 mil de revistas e pelo menos 1 milhão de jornais. Em cada caso, recolhiam-se aos depósito uns poucos exemplares e queimavam-se os demais''. Sequer Lênin escapa: ''Entre as obras proibidas, estava 'Sobre Trótzki e o Trotszkismo', de Lênin (...)''.
O desabamento do regime soviético permitiu que essa quantidade imensa de obras viesse à tona, revelando fatos históricos inéditos. Feridas mal cicatrizadas são novamente abertas pela grande (e talvez irrespondível) questão: afinal, como isso tudo pôde acontecer? Se na Alemanha Ocidental o fim do totalitarismo, em 1945, permitiu que uma sociedade abalada e doente vomitasse publicamente os seus fantasmas, na URSS isso só se tornou possível muito recentemente. O stalinismo apenas começa a ser exorcizado, ainda ronda as ruas de Moscou.
Esta é uma das razões _talvez a principal_ pelas quais é tão difícil ao observador externo entender o que se passa na Rússia contemporânea. Trata-se de uma sociedade que mal teve tempo de metabolizar o seu passado recente, marcado por uma guerra civil (1917-1921; 10 milhões de mortos), pela coletivização da agricultura (1929-1932; 15 milhões de mortos), pelos campos de concentração dos anos 30 (5 milhões de mortos), pela Segunda Guerra (1939-1945; 30 milhões de mortos), pela deportação de nacionalidades e etnias no pós-guerra e pela ditadura de partido único até o final dos anos 80. É claro que não importa, aqui, se as cifras de mortos são exatas ou não (elas variam, de acordo com o historiador): em qualquer hipótese, são imensas e inaceitáveis.
Este é o contexto concreto que permite dimensionar a importância do garimpo feito por Schnaiderman. Ele ilumina certos porões da história, permite que se recupere um imenso acervo que se julgava perdido ou do qual pouco se conhecia. De fato, se excetuamos as referências aos artistas mais famosos, alguns deles divulgados no Brasil pelo próprio Schnaiderman _como Vladimir Maiakóvski, Sergei Eisenstein, Konstantin Stanislavski, Anna Akhmátova, Bóris Pasternak, Alexander Soljenitsin, Kazimir Malévitch e alguns outros_, pouco se conhece sobre o que foi feito em termos de arte e cultura no período soviético.
Primeiro, porque a sangrenta polícia stalinista destruiu política e fisicamente os artistas qualificados como ''inimigos do socialismo'', atirando suas obras, na melhor das hipóteses, aos ''depósitos'' mencionados por Schnaiderman. Várias gerações foram vítimas do arbítrio, ainda mais porque o critério para separar os ''amigos'' dos ''inimigos'' era vago e amplo o suficiente para permitir todo tipo de brutalidade. Segundo, porque o regime stalinista não se contentava com a punição do artista ''após'' a realização de sua obra: ele introduziu o ''realismo socialista'', norma que deveria nortear o processo de produção.
O ''realismo socialista'' correspondeu a um conjunto de critérios ''estéticos'', adotados em 1934 por um congresso de escritores liderado por Máximo Górki, que fixava rigidamente padrões de linguagem, forma e conteúdo: o artista deveria buscar a inspiração em motivos folclóricos, exaltar as supostas virtudes de operários e camponeses, cantar as glórias da pátria. E como o líder do partido incorporava a luminosa vocação socialista, era apenas natural que a arte fosse dedicada ao culto de sua personalidade. Quem escapasse a esses padrões expunha-se à ira da polícia. É claro que Górki não deve ser responsabilizado pelos crimes de Stalin. O ''realismo socialista'' foi apenas um verniz ''estético'' para o terror político.
O clima de pesadelo que tomou conta da URSS é bem descrito à pág. 60: ''Tratando do ambiente intelectual em Leningrado, onde vivera até 1975, quando emigrou, (Iefim) Etkind lembra que na época uma canção patriótica dizia: 'Nascemos para tornar o fantástico realidade' ('Mi rojdieni chtob skázku sdiélat bíliu'), mas substituindo-se 'skázku' por 'Káfku', apareceu a versão: 'Nascemos para tornar Kafka realidade' ''. Outro trecho, extraído da peça ''Uma Sessão Dedicada ao Riso'', retrata com rara sensibilidade a atmosfera absurda da época. Seus autores, os humoristas Mass e Erdman, seriam presos e deportados para a Sibéria nos anos 30.
''Companheiros! Todos vocês leram certamente nas páginas de nossa imprensa que precisamos de uma arte alegre, cheia de vida, é preciso que o espectador ria no teatro. Sim, companheiros, o proletariado deseja rir! Por isso mesmo, estou me dirigindo a vocês para que discutam essa questão e, por assim dizer, a coloquem nos trilhos práticos. (...) Mas nós sabemos, companheiros, que se o proletariado deseja algo, mesmo que ele queira rir, o caso, companheiros, não é risível. De fato, seria muito ridículo se alguns companheiros quisessem gracejar no momento em que o proletariado deseja rir. Penso que estarei completamente certo se disser que o riso, no 16º aniversário da Revolução, não é brincadeira. Por isso, peço que se trate do riso com a máxima seriedade. Mas do que precisamos, companheiros? Precisamos de que as grandes massas riam o mais possível. Companheiros, precisamos, até as lágrimas, do riso. Vejo que alguns dos presentes estão sorrindo. Isso, companheiros, é uma vergonha! Quando falo de um tema tão sério como o riso, não é o caso de sorrir! Não vejo nisso nada de engraçado. Repito mais uma vez, de modo bem categórico, que nós precisamos do riso. Um riso pensativo, sério, sem o menor sorriso. Era tudo o que eu queria dizer.''
O pesadelo só seria amainado em 1956, três anos após a morte de Stalin, quando Nikita Khruschov, no poder, denunciou alguns dos crimes de seu antecessor, no famoso 20º Congresso do PCUS. Era o ''degelo'': intelectuais e artistas puderam respirar com certa liberdade, surgindo uma importante geração de ''rebeldes'' (como o poeta Eugene Ievtuchenko). Mas o golpe de Estado que depôs Khruschov, em 1964, orquestrado por Leonid Brejnev (que se manteria no poder até morrer, em 1982), assinalou o fim da festa. Começava a ''era da estagnação'' burocrática, que só seria abalada pelas reformas de Gorbatchov, a partir de 1985.
Schnaiderman mergulha nessa história. Utiliza o seu dom narrativo para dar voz e cor a dezenas de artistas pouco ou nada conhecidos. Seu texto, de maneira sutil e humana, solicita do leitor compreensão, simpatia e compaixão para com aquelas pessoas que tiveram um fim tão trágico sem terem cometido crime algum, exceto o de se atreverem a criar. Se Hannah Arendt estava certa ao dizer que a memória é uma arma fundamental contra a tentação totalitária, então ''Os Escombros e o Mito'' é indispensável nestes tempos tão sombrios.

José Arbex Jr. é doutorando em história na USP

Folha de São Paulo

Crítica da sociedade capitalista


JOÃO SAYAD
Os editores de ''praga'' a definem com uma revista política, de intervenção. A revista tem um subtítulo _''Estudos Marxistas''. Para fazer esta resenha, tive muita dificuldade em defini-la. Será que rejeitaria um bom artigo de crítica ou contestação a um dos seus autores selecionados? Não. Não acho que é política neste sentido. Será que se considera política por não aceitar para publicação um texto econométrico? Mas a Sociedade Brasileira de Econometria aceitaria um texto sobre marxismo? A revista tampouco se restringe a estudos marxistas.
Os textos publicados nos três primeiros números _artigos, entrevistas ou mesmo inéditos, como as cartas entre Marcuse e Adorno_ têm como denominador comum a visão crítica da sociedade capitalista. Nos tempos em que vivemos talvez seja a escolha dessa linha editorial que justifique a autodefinição da revista como política.
O número três traz trabalhos de Chesnais sobre economia, Dalmo Dallari sobre o Estado de direito no governo FHC, um estudo sobre pobreza e política social de Lessa, Salm, Soares e Dain e um artigo de Eugênio Bucci sobre televisão e ideologia.
Se pudesse editar uma revista, jornal ou livro, escolheria apenas autores que escrevem como Otto Maria Carpeaux nesse número três ou que falam e escrevem como Antonio Candido _entrevistado no número um.
No Brasil, como na França, temos intelectuais e acadêmicos que são difíceis de compreender. Carpeaux e Candido são a exceção brilhante entre nós.
A minha competência me restringe a resenhar dois artigos. O primeiro, de Chesnais, não podia ser mais oportuno neste mês de crise financeira.
Chesnais questiona Hirst e Thompson (''Globalization in Question''), para quem a idéia de globalização seria um ''mito'' por várias razões: (1) a internacionalização atual não é inédita nem em volume nem em abrangência, quando se considera por exemplo o período 1870-1910; (2) as multinacionais realmente globais são muito pouco numerosas, tendo a maior parte dos grupos industriais uma forte base nacional; (3) os investimentos diretos no exterior estão concentrados entre países da tríade (EUA, Japão e Europa), sobrando apenas investimentos menores para o Terceiro Mundo; (4) a concentração de todos os fluxos (de mercadorias e de capitais) na chamada tríade triunfa sobre todas as demais formas de mundialização; (5) os países da tríade têm ainda a capacidade de controlar, principalmente se se coordenam entre si, mercados financeiros e outros mecanismos econômicos.
Chesnais concorda com (3) e (4). Concorda também com (2), mas, para ele, mudanças qualitativas na gestão e organização das empresas multinacionais criam diferenças significativas entre a economia mundial do período de vigência do padrão ouro clássico em relação com o período atual. Quanto à possibilidade de controlar mercados e política monetária _ponto (5)_, considera-as absolutamente utópicas.
A diferença básica do momento atual de outros momentos da economia capitalista, para Chesnais, reside no poder e importância das enormes instituições financeiras _bancárias e não bancárias. ''As organizações mais importantes voltaram a ser, como no período entre as duas guerras, as que exercem uma 'preferência pela liquidez' na valorização do capital, ou seja, que o valorizam conservando sua forma de capital-dinheiro.''
A economia capitalista teria entrado numa fase depressiva de longa duração da qual somente transformações muito maiores logo após choque considerados externos (crise financeira ou guerra) poderiam tirá-la.
Qual a relevância da semelhança ou não da economia capitalista atual com o período 1870-1914? Se os períodos forem diferentes, o que podemos dizer sobre a fase atual do capitalismo? Chesnais sugere que a atual fase só pode terminar com crise financeira ou guerra, ou seja, com a demonstração forte dos problemas que estamos vivendo. Etchengreen (Golden Fetters) aponta que a crise de 30 começa a acabar com o abandono do padrão ouro. Não apenas porque as taxas cambiais foram alteradas. Mas porque a desvalorização cambial de março de 1933 determinada por Franklin D. Roosvelt, além de estancar a deflação americana, marca o abandono da política de equilíbrio fiscal e austeridade monetária. E portanto o fim da crise de 1930.
Nesse sentido, o período de acumulação financeira poderia ser comparado com o período do padrão ouro, com várias diferenças, apontadas por Chesnais, mas sobretudo com a diferença cambial. Hoje, taxas de câmbio fixas e equilíbrio no balanço de pagamentos não são requisitos do ''sistema'' de intercâmbio mundial. Os países da tríade não enfrentam problema algum pelo desequilíbrio externo. Os países emergentes, por sua vez, procuram o equilíbrio constantemente, ainda que a liquidez dos anos 90 permita prazo mais longo de desequilíbrio do que os prazos concedidos no início do século.
Etchengreen e Chesnais concordam, entretanto, quando apontam a mudança de ''ethos'' ou da visão do mundo da política econômica como marco de novo período ou do fim da crise. O crash das bolsas que acabamos de observar foi acompanhado de declarações brasileiras e internacionais no sentido de aprofundar o modelo, as receitas de reajuste estrutural geradoras da própria crise. Falta sofrimento e crise para que mudemos de idéia.
Esse número três de ''praga'' também traz estudo de Lessa, Salm, Soares e Dain com cuidadosa análise da pobreza e da exclusão social no Brasil, assim como das políticas públicas a ela dirigidas. Mostram que: (1) os empregos criados no período 91-96 superaram em número os empregos destruídos na indústria; (2) o nível educacional dos novos empregados é maior. Mas no comércio e serviço não há exigência de melhor nível educacional. O maior grau de escolaridade decorre antes de serem empregos ocupados por novas gerações com maior grau de escolaridade; (3) prova disto é que os novos empregos criados pagam salários menores do que os destruídos; (4) aumentou a participação das mulheres no emprego, quase em um por um; (5) os mais velhos (30-59 anos) perderam empregos para os mais jovens (até 29 anos).
Em resumo, a reestruturação da economia brasileira redundou na demissão do trabalhador adulto, homem qualificado, relativamente bem remunerado, mas de baixa escolaridade, e na contratação de jovens e mulheres em ocupações de baixa qualificação e de baixa remuneração, mas de maior escolaridade.
As conclusões da análise são desanimadoras: o problema não é a educação. Ao contrário, é preciso estudar mais para ganhar menos em atividades que não requerem o que você estudou. São semelhantes às de Andrew Hacker acerca da economia americana, elogiada pelo alto nível de emprego, relativamente à Europa.
Os ganhos de renda entre os pobres têm como fator mais importante o aumento dos benefícios da Previdência para a área rural. As principais dificuldades que o Plano Real trouxe para a assistência social foi a prática de contingenciar e não executar os orçamentos. Apesar dessas conclusões, o discurso governamental continua apontando na mesma direção: o problema é apenas de São Paulo, precisamos fazer reformas na previdência e gastar mais em educação primária em detrimento da superior.
''praga'' talvez seja uma revista política por apresentar trabalhos e pesquisas totalmente diferentes dos que se lêem e ouvem na retórica oficial, empresarial e mesmo acadêmica que não se cansam de clamar por reformas constitucionais e menos recursos para a universidade. De qualquer forma, professores mais velhos como eu podem dormir tranquilos. Existe nas universidades estaduais de São Paulo um conjunto de novos professores, entre os quais os editores desta revista, capaz de manter o espírito crítico e a capacidade de investigação. Talvez seja impossível erradicar completamente a liberdade de pensar. Será por isso que a revista se chama ''praga''?

João Sayad é professor da Faculdade de Economia e Administração da USP e ex-ministro do Planejamento (Governo Sarney).

Folha de São Paulo

OBRA AUTOBIOGRÁFICA - CELSO FURTADO


Fantasia e planejamento
ALFREDO BOSI
dentre os muitos leitores de Celso Furtado talvez poucos saibam que o nosso maior economista escreveu, aos 25 anos, um livro de ficção. ''Os Contos da Vida Expedicionária'' saíram em 1945 e só agora voltam a ser editados nesta ''Obra Autobiográfica'' reunida aos cuidados de Rosa Freire d'Aguiar.
Para fazer literatura com experiências de guerra basta muitas vezes a pura memória. A situação existencial do soldado em terra estrangeira tem sempre um ar de insólito, ao menos o bastante para que as pessoas e as coisas vistas ganhem, quando evocadas, uma aparência de realidade imaginada, o que é uma boa definição de literatura. Mas leia-se o que o próprio narrador diz nesta nota que precede os seus textos juvenis:
''Os fatos narrados nestes contos são substancialmente verdadeiros. Mas, porque são traços gerais, não pertencem a ninguém. Muitos nós encontraremos aí; entretanto não nos faltará a certeza de que as experiências gerais couberam a todos nós''.
E qual a verdade da vida no ''front''? Aí a sorte de cada um depende de combinações aleatórias, e o outro pode, de repente, ser o meu assassino ou o meu salvador. ''Deus meu'' _diz uma velha italiana aos pracinhas_ ''jurava que eram tedescos. Assim sérios, bebendo, não há diferença. Todos são altos. A farda é a mesma''...
É este sentimento do arbitrário que dá aos contos do ex-pracinha na Itália o seu tom peculiar. Alguma coisa de estranho sempre pode acontecer em uma terra ocupada por duas forças inimigas, e onde já se borraram os limites entre o citadino e o camponês, o ''partigiano'' ubíquo e solerte e o homem da rua espremido entre o invasor e o libertador, ambos perigosos.
Nesse meio flutuante o soldado reconstruído pelo autor é um jovem intelectualizado capaz de entrever naquela Itália caótica de fim de guerra a agonia de uma civilização para a qual a beleza foi, durante séculos, uma verdadeira religião. A Toscana destas histórias expedicionárias é ocasião de encontros indeléveis. A paisagem, a casa e sobretudo a mulher aqui se perfilam como imagens aureoladas por um olhar que trouxe do seu Nordeste patriarcal e letrado a paixão da cultura européia e o desejo de sublimar aquela sua penosa contingência de artilheiro involuntário. Por isso os contos do moço da farda verde-oliva são histórias de amor e admiração por um mundo que é de sonho mesmo quando mergulhado no pesadelo da violência. Esse é o espírito da quase-crônica ''Um Intelectual em Florença'', tecido de reminiscências eruditas costurado com o fio de uma candura sem pregas. A pureza do homem do agreste se compraz nas linhas sóbrias da paisagem que inspirou a mais antiga das representações modernas da natureza.
O leitor, ainda surpreso de ter descoberto um veio lírico no respeitável estudioso de macroestruturas, deve prosseguir no conhecimento desta obra que se quer autobiográfica. Compreenderá então que tem sob os olhos um itinerário de meio século ao longo do qual a vida do homem Celso Furtado se confunde com o sentido radical da ciência de que ele é mestre: a economia tomada como ferramenta da política; ou, em outras palavras, a teoria e a prática do desenvolvimento.
Ciente de que ''o mundo mudou'', mas que nesse mundo ''globalizado'' o Brasil continua sendo um país de carências e desequilíbrios fundos, Celso Furtado reconstrói o seu percurso de homem público e planejador incansável, agrupando seus momentos cruciais em torno do termo ''fantasia''. A palavra é sugestiva, enquanto variante de ''imaginação''; e um dos adversários teóricos de Celso Furtado, Eugênio Gudin, já lhe censurava nos anos 50 o recurso à imaginação, ''boa para o romancista, mas não para o economista''... Mas sabe-se que, para o ortodoxo Gudin, o mal do Brasil era o hiperemprego (sic) somado à herética pretensão de fazer do Estado o indutor do desenvolvimento e da justiça social.
De todo modo, a fantasia de Celso Furtado vem acompanhada, desde o início, do atributo ''organizada''. A expressão, colhida em uma frase de Paul Valéry (''Ne sommes-nous pas une fantaisie organisée?''), me pareceu feliz quando a vi no título da primeira edição da obra, em 1985. Por trás do seu paradoxo, que alia desejo e ordem, sonho e razão, vigora uma concepção dialética de base. O indivíduo moderno, o sujeito emerso das Luzes, mas logo enredado nas malhas do capitalismo concorrencial, almeja ao mesmo tempo conservar o seu grau de liberdade, duramente conquistado por tantas gerações, e conviver em uma ''polis'' onde os direitos do homem não sejam privilégios de classe, mas o pão cotidiano de todos. Para realizar essa bela fantasia é preciso vencer o insulamento e a dispersão próprios da divisão do trabalho e da descontinuidade social. A fantasia deverá organizar-se em termos políticos. O nome prosaico desse processo é planejamento.
Celso Furtado aprende com Keynes e com a história brasileira e internacional dos anos 30 que cabe ao Estado ''prever para prover'' _fórmula de Comte cara a quantos apostam na ''engenharia social''_ e, assim fazendo, corrigir as distorções do mercado dito livre. Mas a sua verdadeira escola foi a Comissão Econômica para a América Latina (Cepal) e o seu mestre latino-americano, Raul Prebisch, ''que nos guiou a todos'', como reconhece na dedicatória de ''A Fantasia Organizada''. Não por acaso o seu pensamento, embora avance mediante novas análises de conjuntura, volta com insistência ao debate dos anos 50 em torno do subdesenvolvimento, ''fenômeno que acabava de ser descoberto e causava perplexidades''. A partir dessa década decisiva toda a sua biografia intelectual teria como eixo a compreensão das sociedades dependentes e o compromisso ético com o progresso do seu povo, em consonância com o de outros povos ex-coloniais que passaram a ver-se a si próprios como Terceiro Mundo.
A idéia da planificação lhe aparece não só como instrumento econômico e técnica social, mas, na esteira de Mannheim, como um problema político e cultural, consideradas as terríveis experiências do fascismo e do estalinismo que ele rejeita com firmeza. ''Nunca pude compreender a existência de um problema 'estritamente' econômico.'' O convívio de presença estatal e democracia, tal como se esboçou no segundo governo Vargas (1950-54) e nos tempos de Juscelino, foi um tento raro, um exemplo do muito que poderia fazer a vontade política em um contexto internacional tenso ou mesmo adverso. Desejo e imaginação precisaram andar no mesmo passo que a análise racional das possibilidades de cada conjuntura, e foi essa combinação delicada que o nosso estruturalista cepalino procurou aplicar à construção da Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste (Sudene) ao longo dos governos de Kubitschek, Jânio e Goulart. O sumo dessa empresa está contado em ''A Fantasia Desfeita'', que é de 1988, e sai agora antecedido das ''Aventuras de um Economista Brasileiro'', uma bela evocação dos anos de infância nordestina do autor. Aí se encontram o roteiro da sua formação e a síntese das idéias-força às quais ele adere com toda a sua convicção de homem e de intelectual:
''A primeira dessas idéias é a de que a arbitrariedade e a violência tendem a dominar o mundo dos homens. A segunda é a de que a luta contra esse estado de coisas exige algo mais que simples esquemas racionais. A terceira é a de que essa luta é como um rio que passa; traz sempre águas novas, ninguém a ganha propriamente e nenhuma derrota é definitiva''.
Aceitando o teor relativo dos êxitos e dos insucessos, Furtado se reconhece como um pensador imerso na corrente da história, onde, como advertia Maquiavel, cabe à fortuna o que escapa à virtude.
Os três volumes que ora se compõem em uma só grande obra semelham uma longa sinfonia com as múltiplas variantes harmônicas (os contrapontos são as conjunturas diversas) de alguns temas melódicos, que soam cada vez mais intensa e dramaticamente até o advento do clímax para se interromperem de modo abrupto com as dissonâncias ferinas do golpe de março de 64. O que permanece no ouvido do leitor atento é a melodia: a fantasia se desmanchou, mas o Brasil continua a exigir dos brasileiros decentes o projeto de refazê-la.
A pergunta retorna sem cessar: por que planejar? Porque quando não se prevê, as cabeças da hidra renascem nem bem cortadas. A iniquidade irrompe a qualquer momento nas relações internacionais alargando as distâncias entre centro e periferia, entre finança especulativa apátrida e investimentos produtivos orientados nacional ou setorialmente. A outra face do processo é a disparidade no âmbito de cada país e de cada região: aqui a concentração de renda e de poder impede que se edifique uma democracia social de fato. Em termos diacrônicos: à alta produtividade conquistada nos países ricos ao longo dos anos 50 e 60, tantas vezes por obra de um ''protecionismo seletivo'' (como já o percebera Prebisch desde 1949), correspondeu, em geral, a estagnação das economias que ensaiavam, naqueles mesmo anos, os primeiros passos para consolidar seus parques industriais tardios e o seu mercado interno.
Já no seu primeiro estágio chileno Celso Furtado concebia a dependência em um contexto móvel que deveria ser não tanto aceito com resignação (''o mundo é assim mesmo'', dizem os que já desistiram de transformá-lo), quanto enfrentado com ânimo viril. E nisto ele se diferencia até hoje dos burocratas da economia, camaleões conformados e concordes na inglória operação do ajuste à injustiça.
Imperando neste conjunto de textos a mais rigorosa discrição, são raros os momentos em que é dado ao leitor assistir a reações subjetivas do autor. Estas afloram nos episódios que falam de encontros ou em cenas dramáticas que o cidadão Celso Furtado presenciou. Lembro a visita a Getúlio, que apoiou a Cepal em uma fase crítica da instituição, e as conversas com Juscelino, com Jânio, com Goulart, com Santiago Dantas, com Arraes (cuja deposição ele testemunhou), com Kennedy, com Perón, com D. Helder, com Sartre, com Che Guevara... Em todos os diálogos revela-se a inteligência equânime, aberta às diferenças, ciosa de compreendê-las antes de julgá-las e, ao mesmo tempo, o caráter inteiriço que põe no cumprimento de cada missão o cerne da sua identidade moral.

Alfredo Bosi é crítico e professor de literatura brasileiro na USP, autor de ''História Concisa da Literatura Brasileira'', entre outros.

Folha de São Paulo

COMO PROUST PODE MUDAR SUA VIDA


CARLOS EDUARDO LINS DA SILVA
de Washington
A leitura integral de ''Em Busca do Tempo Perdido'' é empreendimento sofrido e arriscado. Exige determinação, paciência e esforço intelectual. Mas, quando bem sucedido, muito compensador, como atestarão quase todos os poucos felizes que o realizaram.
Em 1997, duas pessoas inteligentes e sensíveis que escalaram o topo do Everest da literatura escreveram sobre como ''Em Busca do Tempo Perdido'' as afetou.
Um é muito jovem (28 anos), o romancista Alain de Botton, autor de ''How Proust Can Change Your Life'' (Como Proust Pode Mudar Sua Vida). A outra, a crítica literária Phyllis Rose, que assumiu uma cátedra na prestigiosa Wesleyan University no mesmo ano em que Botton nasceu, autora de ''The Year of Reading Proust'' (O Ano de Ler Proust). Seus trabalhos sobre Proust são espirituosos, criativos e muito instigantes.
Mas bastante perigosos. Numa época em que a superficialidade e o modismo são imperativos sociais será muito tentador para milhares de pretensiosos ler Botton e Rose e fingir que enfrentou Proust.
Outro risco desses dois livros é o da banalização de uma das obras de arte mais importantes da história humana. O trivial tende a se tornar mais importante do que o conteúdo. Os detalhes da vida pessoal de Proust, que fazem sentido em biografias exaustivas, como as de Ronald Hayman e George Painter, acabam em trabalhos menores como esses, servindo apenas para cristalizar na imagem do público médio, aquele que identifica o nome de Proust, mas jamais sentirá disposição de sequer iniciar sua leitura, o aspecto bizarro do autor que ficou no imaginário coletivo: o homossexual doentio, cheio de obsessões psicóticas, que quase nunca saía de casa e escrevia compulsivamente até se esvair.
Este caráter de exploração do anedótico em Proust é particularmente sentido em ''How Proust Can Change Your Life''. A idéia de Botton é boa. O título é sedutor. Seu texto é fluido. Mas o resultado final é decepcionante para quem leu Proust. A idéia de que se possa extrair de ''Em Busca do Tempo Perdido'' um receituário genérico para se melhorar a vida só pode ser encarada a sério como brincadeira. Como qualquer grande romance lido por uma pessoa arguta, ''Em Busca do Tempo Perdido'' pode iluminar a mente para o leitor compreender melhor os seus próprios problemas e até tomar eventuais decisões. Mas usar Proust para aprender a ''sofrer com sucesso'', ''ser um bom amigo'' ou ''ser feliz no amor'', francamente é demais. O pobre Marcel perderia a compostura se tivesse sido obrigado a topar com isso.
Muito menos ofensivo ao senso comum é ''The Year of Reading Proust''. Phyllis Rose não se propõe nem a interpretar Proust para os outros nem a mostrar como a leitura de ''Em Busca do Tempo Perdido'' modificou sua existência. Limita-se a contar, com verve, autocrítica e bom humor, como foi o ano em que ela, afinal, após muitos anos de tentativas frustradas, conquistou Marcel ou se deixou conquistar por ele.
Trata-se de um livro de memórias que, apesar de descrever acontecimentos absolutamente banais do cotidiano de uma intelectual de classe média nos EUA do final do século 20, pode _além de constituir passatempo divertido_ criar elos de conexão entre os problemas da autora e do leitor e, com isso, como Proust, clarear pontos obscuros na mente de quem lê.
A presença de Proust no livro de Rose é indireta. Talvez a própria criação do livro e muito do seu estilo e conteúdo se devam a ele. O ano em que se leu Proust é decisivo na vida de quem o fez. Os acontecimentos pessoais conectados a essa extraordinária aventura intelectual ganham dimensão única. É o que Rose deixa transparecer.
Em vez de tentar, como Botton, oferecer técnicas de aprendizado de Proust e de aplicação de seus ensinamentos na vida do leitor, Rose apenas relata o que aconteceu com a sua própria vida enquanto lia Proust, as relações entre os ambientes, os personagens e os pensamentos de ''Em Busca do Tempo Perdido'' e os dela mesma.
Pode-se argumentar que, ao usar o nome de Proust no título de um livro que trata dele apenas marginalmente, Rose tentou _como tantos antes na indústria editorial (há à disposição do apaixonado por Proust desde livros de receitas das comidas citadas em ''Em Busca do Tempo Perdido'' até de crítica musical das peças descritas no livro)_ apenas ganhar destaque às custas de Marcel. Será que com qualquer outro título as memórias de Rose mereceriam resenhas do ''New York Times'' à Folha? Provavelmente não. Mas também é verdade que o uso do nome de Proust corta dos dois lados.
Rose tem sido ridicularizada injustamente em muitas das críticas a seu livro apenas por causa de Proust. O ressentimento intelectual dos que não conseguem ou nem se aventuram a ler Proust contra aqueles que o fizeram é enorme e por vezes se utiliza dos mais baixos padrões retóricos.
De qualquer maneira, os livros demonstram que o trabalho de Proust continua sendo importante e atual. Para os iniciados, ambos são curiosos e merecem a sua atenção. Para os que ainda não leram Proust, é recomendável prudente distância do livro de Botton, que pode estragar a experiência posterior. Cada leitura de Proust é única. Não há regras gerais que se apliquem a ela. Vale a pena esperar, às vezes, os 20 anos aguardados por Rose, até se chegar ao momento certo da vida (ou, quem sabe, aos momentos certos) para se usufruir ao máximo dessa rara experiência existencial.

Folha de São Paulo

sábado, 18 de julho de 2009

HISTÓRIA ARTÍSTICA DA EUROPA - A IDADE MÉDIA (VOL.1)


Entre história e história da arte
LUIZ MARQUES
Não há, salvo engano, nada de comparável na historiografia artística de nosso século ao que representa, para a historiografia da literatura, a síntese de E.R. Curtius, ''Literatura Européia e Idade Média Latina'' (1). É por isso, entre outras razões, muitíssimo bem-vinda a tradução de uma recente coletânea de ensaios, à guisa de síntese da história da arte medieval, posta sob os cuidados de Georges Duby, um dos grandes medievalistas franceses de nosso tempo.
A rigor, trata-se de uma tentativa de síntese que tem a virtude de evitar, pelo seu caráter ensaístico, exploratório, o peso e as dificuldades inerentes a todo grande compêndio. Talvez a história da arte se preste menos a este gênero sistematizante de abordagem que a história da literatura e da filosofia medievais, cuja diversidade se espraia no âmbito de uma unidade de fundo, nem sempre facilmente apreensível nas artes da Europa nascente.
Para além da sempre indispensável atualização do quadro geral, possibilitado pela articulação seletiva dos resultados de numerosas pesquisas pontuais, a síntese de Duby é de valor seguro, seja por saber aliar precisão e concisão, seja pela variedade do mosaico proposto, seja sobretudo porque supre o leitor com uma documentação iconográfica consequente e de ótimo nível gráfico.
O texto de Duby, propriamente dito, traz a marca do grande historiador, com sua insólita capacidade de organização do material histórico em uma prosa que faz quase esquecer, por sua fluidez, os estratos diversos de erudição sobre o qual repousa. O resultado é que o leitor verá surgir um a um os principais elementos que, na história econômica, política, intelectual e religiosa das sociedades medievais, compõem progressivamente o ''humus'' sobre o qual se ergue o florescimento artístico europeu a partir sobretudo da arrancada do século 11.
Evidentemente, Duby não pretende fazer história da arte. Seu texto chama-se justamente ''Arte e Sociedade''. Um texto de um historiador sobre a história da arte medieval não deixa de suscitar ao menos um problema metodológico, mesmo em se tratando de uma introdução a ensaios de caráter propriamente histórico-artístico. Em sua lida virtuosística com o arco histórico milenar que ele abrange em uma centena de páginas, não há uma só passagem onde o fenômeno artístico seja pensado em sua natureza estética, e isto sob a alegação de que as obras que são hoje, ''para nós'', objeto de gozo estético, não o eram para ''eles'', os homens de então, que nelas viam ''imagens antes de mais nada funcionais''. A questão não é tão simples, e por duas razões.
Em primeiro lugar porque parece imprudente, mesmo levando-se em consideração a escassez de testemunhos coevos, subestimar o senso estético do ''homem medieval''. Sempre eficiente, com frequência empolgante, no revelar os diversos modos de pensar e sentir da mente medieval, o texto de Duby cala no que se refere aos modos como tal mente vive a obra de arte enquanto tal. É por que tal dimensão, a da experiência estética, estaria ainda vedada às sociedades ocidentais antes do Renascimento? Nada mais difícil de se provar. Nada menos verossímil. Por que uma fíbula ou uma presilha ornada, uma iluminura carolíngia, um relevo de ouro ou uma plaqueta de marfim, para nos atermos a exemplos típicos da Alta Idade Média, objetos que consideramos hoje obras de arte no sentido mais pleno da palavra, não teriam assim sido considerados pelos artistas e pela sociedade que os criou? É de se indagar se o receio quase religioso do historiador de cometer sacrilégio de anacronismo não acabaria por fazê-lo incorrer em outra forma de ingenuidade, que seria justamente a de negar a uma sociedade do século nove a possibilidade de ser plenamente o que ela foi, isto é, uma sociedade com uma sensibilidade estética própria, que caberia ao historiador investigar, descobrir-lhe os valores morfológicos e espirituais, em vez de remetê-la, escrupulosamente empacotada, aos guichês do sociólogo, do historiador da religião e do antropólogo.
A segunda dificuldade nasce de nós próprios. A seleção pressuposta em qualquer síntese da história da arte medieval é uma operação de crítica, de separação, de diferenciação, de hierarquização. Como toda a crítica, ela emite um juízo estético oriundo de um sistema de valores contemporâneo. É claro que o historiador deve se armar de todo o cuidado para escapar do anacronismo que o espreita de toda a parte. Seu guia, nessa jornada perigosa, é a fonte, o acesso direto à fonte. Mas a fonte, ela própria, nada diz antes de sua interpretação, de sua leitura. Leitura que deve ser feita, evidentemente, com os valores do público para quem ela foi escrita, pintada ou esculpida. Nada mais certo, mais meritório, nem mais difícil.
Mas não se trata aqui de sublinhar as dificuldades da empresa, mas de notar que o problema é logicamente anterior. O problema é que o exercício do relativismo histórico, de onde nasce a esperança (quando não a ingênua arrogância positivista) da objetividade do historiador é, não o esqueçamos, um exercício da modernidade mais recente, não anterior ao século 19. Na realidade, tentar compreender o outro a partir dele próprio é, em si e já completamente, um ato violento de interpretação moderna do passado. Isto para não levar o problema à sua dimensão puramente metodológica, cujo ensinamento é claro: não se pode suprimir a redução do objeto ao ponto de vista do sujeito que o observa, simplesmente porque observar é, em parte, constituir este objeto. Por todas essas razões, a alteridade é sempre ocultamento, opacidade. Ela não se dá ao conhecimento do historiador senão por intermédio de uma interpretação necessariamente redutora. E, se não se pode dela escapar, é então melhor que se a assuma consciente e declaradamente. Ora, não é reduzindo o problema da recepção coeva da obra de arte medieval à condição de objeto funcional que se salvaguardará a objetividade axiomática de qualquer reconstituição histórico-artística do período.
A série de artigos que compõem a segunda parte da obra complementa admiravelmente o ensaio de Duby e confere ao conjunto da obra um notável equilíbrio entre história e história da arte.
O primeiro ensaio, de Gisela Ripoll López, versa sobre a arte visigótica na Península Ibérica. A autora parte das artes dos povos ''bárbaros'', nas quais se incluem as dos reinos visigóticos de Toulouse (418-531) e de Toledo (554-711), para examinar sua progressiva particularização na Península. Uma transição pela grande estação da arte irlandesa, entre os séculos seis e nove, leva a um outro ensaio sobre Aachen, isto é, sobre o coração da arte carolíngia, de autoria de Mario D'Onofrio. Joachim E. Gaede analisa a arte carolíngia por excelência, a iluminura, detendo-se em alguns dos mais extraordinários monumentos produzidos pelos ''scriptoria'' de Aachen, Tours, Reims, Saint-Amand. Seguem-se dois textos sobre a arquitetura (Xavier Barral I Altet) e a iluminura (Ulrich Kuder) otonianas, também enormemente instrutivos. Sobrevém um excurso sobre a arte escandinava, isto é, sobre os dois séculos e meio, de 800 a 1050, da magnificência dos Vikings (texto de Else Roesdahl), com a excepcional complexidade de suas gramáticas decorativas. E chega-se enfim à emergência do mosaico bizantino, pavimentar e parietal, que se expande por toda a Europa para atingir seu ápice, desde o final do século 11, na Itália normanda. Um artigo final sobre o marfim, de autoria de Danielle Gaborit-Chopin, constitui mais uma excelente introdução a este que é um dos mais representativos capítulos da arte decorativa medieval.
A universidade brasileira conta doravante com um instrumento de excepcional qualidade didática e científica para seus cursos de história e história da arte medieval. Mas sobretudo o público cultivado em geral saberá onde ir buscar uma leitura, certamente introdutória, mas não isenta de interesse para o especialista, que lhe facultará uma bela visão da civilização artística do Ocidente medieval.

Nota:
1. A primeira edição alemã é de 1948. A primeira brasileira é de 1957 (Rio de Janeiro, Instituto Nacional do Livro); a segunda é de 1996 (Edusp-Hucitec).

Luiz Marques é professor de história da arte na Universidade de Campinas (Unicamp)

Folha de São Paulo

Fotografia e representação


Fotografia e representação
SOLANGE F. DE LIMA e VANIA C. DE CARVALHO
Desde a sua criação, em 1839, a capacidade referencial da fotografia ''empolga'' seus consumidores. Aliás, tal fato por muito tempo dificultou a sua promoção à categoria de obra de arte. Não há dúvida que, por utilizar o referencial externo como matéria-prima, a fotografia pode servir como documentação de apoio para os estudos daquilo que representa. No entanto, esta característica de maneira alguma faz da fotografia apenas uma janela para o passado, como sugere Victor Knoll em sua resenha ''Um Olho Atrás do Visor'' (Jornal de Resenhas, 8/11/97).
Para aqueles que, como nós, estão empenhados na valorização das dimensões visuais dos processos históricos, o caráter referencial da fotografia interessa somente na medida em que ele é percebido como prova, cuja legitimidade é atribuída socialmente. Desta força persuasiva resultam para a fotografia funções específicas que vão muito além de seu caráter testemunhal. Assim, no livro ''Fotografia e Cidade - Da Razão Urbana à Lógica do Consumo. Álbuns de São Paulo (1887-1954)'', a fotografia foi utilizada não para ilustrar uma história urbana ou econômica. Não se tratou, por exemplo, de mostrar que na fotografia da década de 1950 ''vemos'' uma cidade que oprime seus habitantes ou mascara a especulação imobiliária, mas como a fotografia opera no campo das representações. Suas ''implicações ideológicas'' não são fruto de uma simples aderência à realidade urbana, mas resultados de recursos formais específicos da imagem fotográfica e das circunstâncias em que foi produzida, deste modo participando ativamente da atribuição de sentidos à cidade.
A análise buscou identificar motivos, recursos formais e tipos de narrativa. Quando articulados, estes atributos transpuseram ou inverteram sentidos cristalizados em outros circuitos _como, por exemplo, do desenho técnico para os álbuns do início do século ou das experiências vanguardistas com a linguagem fotográfica para os álbuns da década de 1950.
Eles proporcionaram também migrações de valores entre imagens com temas diferenciados, mas com o mesmo tratamento formal _como aconteceu entre trabalhador e edifício de alto gabarito ou entre as diferentes categorias de trabalhadores. Constituíram noções de conjunto a partir de composições metonímicas _como aquela que transformou o retrato individual em tipologias profissionais ou pulverizou o tecido urbano em unidades imobiliárias autônomas. Neste aspecto, a fotografia contribuiu para a construção de metáforas visuais pertinentes às próprias relações sociais.
Observou-se nos álbuns a presença recorrente de características que nos permitiram falar em padrões visuais, sinalizadores de uma espécie de consenso na abordagem dos temas urbanos. Este traço de natureza social dos álbuns pode ser inferido também na sua edição final. Da produção participaram não só os fotógrafos, muitos anonimamente, mas as editoras, e, por que não, os consumidores que consagraram este tipo de publicação.
Nosso esforço concentrou-se em explicitar mecanismos mediante os quais as fotografias de São Paulo deram visibilidade a conceitos como racionalidade, disciplinamento, profissionalização, progresso, trabalho, modernidade etc. Portanto tornaram palpáveis, inteligíveis, e, mais importante, aceitáveis, noções fundamentais para o funcionamento da sociedade.
Finalmente, estes conjuntos fotográficos foram produzidos para serem comercializados ou circularem em instâncias governamentais, ou seja, fora do circuito artístico, o que não nos autoriza o uso da categoria de ''obra de arte'' para esta produção. Entretanto isso não foi impedimento para buscarmos as matrizes visuais do repertório plástico no qual se movimentaram os fotógrafos, estas sim, por vezes, oriundas de experiências artísticas.
Os álbuns propõem interpretações da cidade. Mediante um tratamento quantitativo e qualitativo sistemático, a análise de mais de 1.600 fotografias permitiu entender aspectos da construção destas interpretações.

Solange Ferraz de Lima e Vânia Carneiro de Carvalho são pesquisadoras no Museu Paulista da USP.

Folha de São Paulo

LUKÁCS - UM CLÁSSICO DO SÉCULO 20


Um pensador radical
CARLOS EDUARDO JORDÃO MACHADO
Atualmente, é quase uma raridade encontrar nas livrarias a obra do filósofo húngaro Georg Lukács _conhecido como um dos fundadores do chamado ''marxismo ocidental'' devido, sobretudo, a ''História e Consciência de Classe'' (1923), seu trabalho mais famoso e influente. Diante deste esquecimento generalizado, o livro de Celso Frederico navega contra a corrente e se lança a uma tarefa para poucos: tentar sintetizar para o público jovem a trajetória intelectual de Lukács (1885-1971).
Trajetória complexa e atribulada que fascina pela sua coerência e radicalidade: um intelectual burguês que estudou com Wilhelm Dilthey, Georg Simmel e Max Weber e que, durante a Primeira Guerra Mundial, muda de campo (de classe social), passando da crítica estética ao mundo moderno à crítica das armas, isto é, se engajando na revolução (proletária). O resultado desta ''traição de classe'' é ''História e Consciência de Classe'', livro profundamente inovador, não só pela revalorização do legado hegeliano na obra de Marx, mas também por se apropriar do que havia de mais avançado na sociologia alemã da época (Simmel e Weber) a fim de formular uma crítica da reificação social. Como aponta Celso Frederico, essa crítica inspirou ''diversas correntes filosóficas a partir dos anos 30: a Escola de Frankfurt (Adorno, Benjamin etc.) e os marxistas independentes (como Lucien Goldmann) etc.''.
O livro de Celso Frederico se debruça, certeiramente, sobre o que há de mais representativo e multifacetado na obra de Lukács: sua crítica literária e sua tentativa de elaborar uma estética sistemática. Lukács retoma suas preocupações estético-literárias a partir dos anos 30, sob a influência dos escritos do jovem Marx, que então são publicados. Com sua teoria do ''realismo crítico'', Lukács articula uma crítica da cultura burguesa e desenvolve sua interpretação extremamente significativa do romance como gênero literário específico.
Vivendo, de um lado, a ascensão do nazi-fascismo na Europa Central e Ocidental e, de outro, o stalinismo, que passa a monopolizar o poder na URSS a partir de 1928, Lukács se esforça por desenvolver uma concepção do realismo que se posiciona, criticamente, seja contra a sociologia vulgar, seja contra as vanguardas históricas. Trata-se _para Lukács_ do realismo burguês pré-1848, dos romances de Goethe, Balzac e Stendhal. Suas posições (antivanguardistas) vão estar no centro do famoso ''debate sobre o expressionismo'' (1937-40), querela ocorrida no seio da imigração alemã antifascista. Para Lukács, tanto a arte como a filosofia burguesa depois das barricadas de junho de 1848, em Paris, seguem um curso descendente. Como mostra Celso Frederico: ''A crítica literária de Lukács na década de 30 decantou os fundamentos de sua concepção mais geral sobre a arte''.
A leitura de Frederico tem ainda o mérito de não reduzir as posições estéticas de Lukács às suas posições políticas. Em contrapartida, não ignora a rica e polêmica interação entre estética e política na trajetória de um marxista como Lukács. Lembra-nos que Lukács elaborou uma concepção original de democracia política nas suas ''Teses de Blum'' (1928), e, sobretudo, não deixa de dar atenção à sua monumental ''Estética'' (1961), analisando, entre outras, categorias fundamentais como vida cotidiana, símbolo em oposição à alegoria (em polêmica com Walter Benjamin _uma das passagens notáveis do livro), a arte como memória da humanidade. No final, há uma pequena e útil antologia de textos, que tem como meta introduzir o jovem leitor às idéias de um dos pensadores mais marcantes (e radicais) deste século.

Carlos Eduardo Jordão Machado é professor de história da filosofia na Unesp (Universidade Estadual Paulista).

Folha de São Paulo

MITOS DO INDIVIDUALISMO MODERNO


Mutações do indivíduo
RAQUEL DE A. PRADO
Ian Watt já é bem conhecido entre nós, graças ao seu clássico ''The Rise of the Novel'', traduzido para o português como ''A Ascensão do Romance''. Mais do que da ascensão, trata-se aqui do surgimento do romance moderno, o que os ingleses chamam de ''novel'', caracterizado basicamente pelo seu ''realismo formal'', em oposição ao estilo romanesco do passado, no qual prevalecia o elemento fantástico.
Segundo Watt, as características formais desse novo romance, ou ''novel'', refletem a ''reorientação individualista e inovadora'' _também presente no pensamento filosófico, inaugurado por Descartes_ que resulta da transformação, iniciada no Renascimento, da velha ordem feudal. A maior autonomia concedida ao indivíduo, que se desvincula dos quadros da vida corporativa e comunitária medieval, sua maior indeterminação e, consequentemente, maior responsabilidade pessoal encontram expressão numa forma de romance que privilegia o desenvolvimento de personagens _não mais tipificados, como na tradição anterior_ no curso de um tempo e espaço determinados.
Portanto é centrado nessa questão da formação do indivíduo moderno que Watt vai analisar o surgimento do romance que lhe corresponde, e cujo marco inicial ele situa precisamente no ''Robinson Crusoe'', de Daniel Defoe, obra que ''apresenta uma demonstração única da relação entre o individualismo em suas muitas formas e o surgimento do romance''. São essas ''muitas formas'' do individualismo, econômico, religioso, moral, assim como seus conflitos ideológicos, que Watt tenta cercear na estrutura narrativa dos romances de Defoe, Richardson e Fielding.
O interesse de Watt pela questão do individualismo e de suas implicações éticas não é, pois, uma novidade. Mas enquanto na ''Ascensão'' a matéria literária se restringia a uns poucos romances de um período curto da história da literatura inglesa, nos ''Mitos'' ela se amplia tanto no tempo _do Renascimento ao século 20_ quanto no espaço _seguindo a migração do mito pelas literaturas européias. Já não se trata da análise de uma forma literária bem determinada, mas da reconstituição do processo de mitificação dos personagens do Fausto, Dom Quixote, Dom Juan e Robinson.
Watt já tratara de Robinson enquanto mito, num ensaio de 1951, no qual sua visão das figuras de Dom Quixote, Dom Juan e Fausto ''era uma forma confusa e subliminar de reinterpretação romântica de mitos criados muito antes do romantismo''. Para comprender melhor o sentido histórico das versões originais, de Cervantes, Tirso de Molina e Marlowe, assim como para estabelecer um certo distanciamento da visão romântica, Watt aplica o mesmo método histórico-comparativo da ''Ascensão do Romance''. O mesmo método, a mesma eficiência redundam, no entanto, numa investigação tão mais fascinante que deixa de interessar apenas o público especializado, para embarcar qualquer leitor de alguma sensibilidade literária numa viagem... digamos assim, fáustica, pela história da formação do indivíduo moderno.
Numa primeira parte, Watt examina as primeiras versões de Fausto, Dom Juan e Dom Quixote, que surgem durante um período de 30 a 40 anos: o ''Faustbuch'', em Frankfurt, em 1587 _''The Tragical History of the Life and Death of Doctor Faustus'', de Christopher Marlowe, teria sido escrito em 1952_; ''El Ingenioso Hidalgo Don Quijote de la Mancha'', de Cervantes, publicado entre 1605 e 1615; e ''El Burlador de Sevilla y el Convidado de Piedra'', o ''Dom Juan'' de Tirso de Molina, escrito entre 1612 e 1616.
Os três protagonistas caracterizam-se, diz Watt, pelas energias positivas e individuais do Renascimento, entram em conflito com as forças da Contra-Reforma e são punidos por isso. O mito de Fausto é o único que começa com uma pessoa real e histórica, ''um charlatão gabola e desagradável'' que desgosta tanto humanistas quanto as autoridades religiosas: teriam sido Lutero e seus seguidores os responsáveis pela história da relação entre Fausto e o Diabo, história que vai ser ''reinterpretada através de um longo processo coletivo'', para então ser recolhida por Johann Spies no ''Faustbuch'' _que chega, na sua tradução inglesa, às mãos de Marlowe, então no auge de sua capacidade criadora.
Em seguida, Watt retoma o seu já bem conhecido ''Robinson Crusoe'', e sua análise, aqui, não difere muito daquela em ''A Ascensão do Romance''. Dá o mesmo destaque à tensão entre o individualismo econômico e as sutilezas de interpretação no individualismo da religião calvinista e mostra que ''o aspecto punitivo de 'Robinson Crusoe', embora seja claramente intencional, é largamente contrário à moral operativa no livro''. Quer dizer, já há alguma inflexão no aspecto punitivo do individualismo, nessa sua primeira etapa setecentista.
Mas, se a mutação do mito, de alguma forma, já está em curso, a grande virada vai ser de responsabilidade dos ideólogos do romantismo. Parece exagerado o papel que Watt atribui ao autor do ''Contrato Social'' como ''profeta'' dessa transformação ideológica. Rousseau, é verdade, parece lançar um ''manifesto'' individualista, na abertura das ''Confissões'', porém ele é também o autor de ''A Nova Heloísa'', uma das expressões mais dolorosas de antiindividualismo. Watt nos convence realmente quando destaca a importância de Herder, que, ao introduzir um novo modo de pensar sobre o mito, influenciará toda uma geração de românticos alemães, aparentemente os verdadeiros responsáveis pela mudança radical de leitura dos nossos quatro personagens.
A partir daí, estes já não se definirão negativamente, mas, com o desaparecimento de todo elemento punitivo, encarnarão os valores mais positivos do individualismo. Watt conclui essa segunda parte com uma discussão sobre os conceitos de ''mito'' e de ''individualismo'', após uma análise do que chama ''apoteose romântica dos mitos renascentistas'': o Fausto de Goethe, o Dom Juan de Molière, Mozart, Byron e Zorrilla, e o Dom Quixote romântico _tanto a nova visão crítica da obra de Cervantes como a sua influência em Dostoievski.
Quanto à reflexão sobre o conceito de ''mito'', na sua comparação entre os ''mitos do individualismo'' e os mitos arcaicos, Watt conclui que é possível falar em ''origens e transformações'' da atitude individualista, nos mitos modernos. O que talvez tenha faltado a Ian Watt, na sua análise do conceito de individualismo, é o reconhecimento de alguma possibilidade de conciliação para termos aparentemente antinômicos _indivíduo e sociedade_ que é, por exemplo, o objeto da reflexão de Norbert Elias, quando este se pergunta em que condições pôde chegar a formar-se uma ''sociedade dos indivíduos''. Os nossos quatro mitos poderiam ser pensados como representação das ''origens e transformações'' não apenas de uma atitude individualista, mas dessa nova sociedade.
Nas suas ''Reflexões Sobre o Século 20'', Watt parece aliviado _após enfrentar com algum desconforto o relativismo moral das interpretações românticas_ ao reencontrar o elemento punitivo no ''Doutor Fausto'' de Thomas Mann. Parece que Fausto, ''o mito do intelectual'', é o seu predileto, pelo tom de sóbria paixão com o qual aborda as suas sucessivas versões. A beleza dos ''Mitos do Individualismo Moderno'' reside também nessa entrega que sentimos no autor, que trabalhou na obra durante 40 anos, quase tanto tempo quanto Goethe na sua. Apesar de ''não ter sido abençoado por uma 'anima naturaliter' goetheana'', Watt é tão impenitente (e saudável) elitista quanto o autor de ''Fausto''. Talvez por isso ele não reconheça, na cultura de massas sobre a qual reflete no finzinho do livro, um último e triste avatar dos seus mitos: o herói da ''modernidade'' cult, que, se ainda não encontrou expressão literária à sua altura, é, pelo menos, o rei da mídia. Após escapar das ameaças punitivas nas suas primeiras encarnações, se livrou das exigências românticas de fracasso diante da sociedade: ele hoje é um sucesso.
Caso não tenha sido possível dar uma idéia, aqui, da importância desse novo clássico de Ian Watt, gostaria de repetir o que já disse Edward Said: todos deveriam lê-lo. Se a ''Ascensão do Romance'' é obra fundamental para acadêmicos que se dediquem à história da literatura, os ''Mitos'' também o são, mas são ainda mais do que isso.

Raquel de Almeida Prado é autora de ''Perversão da Retórica, Retórica da Perversão'' (Ed. 34).

Folha de São Paulo

ROBERTO SANTOS - A HORA E A VEZ DE UM CINEASTA


Tramas complementares
JOSETTE MONZANI
A respeito de Leon Hirszman, Carlos Diegues disse: ''Foi ele quem articulou o Cinema Novo e (...) não deixou o Cinema Novo acabar mais cedo. O Leon foi o maior articulador que o cinema brasileiro já fez''. Já Nélson Pereira dos Santos fala de Leon como um perfeccionista na montagem, um perseguidor da precisão. E salienta sua vocação política: ''Estava sempre procurando uma produção ligada a um movimento político (...), tinha uma paixão política fantástica (...). Cheio de Marx, ele delirava, voava, falava horas, bonito''.
Hirszman, Roberto Santos e todo o Cinema Novo sofreram com a censura. A luta por um cinema que mostrasse o homem simples, em luta pela sobrevivência foi a meta comum destes cineastas, perseguida de diferentes modos. Inimá Simões conta, neste sentido, um episódio interessante sobre Roberto Santos: ''Sem suportar mais a reclusão (devido à repressão política), ele começou a circular discretamente pela cidade com o amigo Norberto Nath, evitando os pontos de encontro tradicionais (...). Ouvia-se falar em prisões, gente sendo vigiada, mas como conferir? Restava o programa insuspeito de assistir a filmes nipônicos no bairro da Liberdade, nas mormacentas sessões vespertinas, porque ninguém imaginaria encontrá-lo ali. Quando 'Matraga' estreou, em março de 1966, alguns críticos perceberam claras influências do cinema japonês em algumas passagens do filme''.
Roberto Santos, para sobreviver, fez de tudo: publicidade, documentários para Primo Carbonari, TV etc. E deu aulas de cinema, formando técnicos e diretores. Marcou várias gerações de profissionais paulistas _algo que ainda não foi estudado. Ao retraçar tal trajetória, Simões acaba destacando outras figuras representativas do cinema paulista, hoje pouco lembradas: César Mêmolo Jr., Cyro Del Nero, Chuck Fowle, Luís Sérgio Person, Olney São Paulo.
Como bem situa o autor, Roberto Santos ''era um representante do Cinema Novo no ambiente cinematográfico paulista''. Analogamente, Helena Salem salienta o trabalho de Hirzman em São Paulo. Sem dúvida, estas duas biografias são complementares; juntas, reconstituem o diálogo entre os grupos de cineastas do Rio e de São Paulo. E revelam, ambas, o papel importantíssimo de mediação exercido por Nélson Pereira dos Santos.
Importante observar que estes dois livros se distinguem da proliferação atual de biografias. Estudos biográficos bem-feitos, como estes, servem à apreensão dos processos de criação, segundo a crítica genética, valorizando a pesquisa séria no campo biográfico. Eis dois exemplos:
Segundo Inimá Simões, Roberto Santos, por correr sempre em raia própria, entre o cinema de estúdios e a Embrafilme, ''viu-se marginalizado inúmeras vezes. A falta de atenção o deixava magoado, alimentando um certo ressentimento, inclusive pelo fato de não ser considerado um intelectual do cinema. Perdeu tempo com isso, porque, se não tinha o brilhantismo na explicitação formal das idéias, era incomparável no 'set' de filmagem. Gostava de dizer 'eu não sei nada, sou um ignorante'. No entanto, tinha um conhecimento teórico imenso''.
Também cabe salientar o depoimento de Leon Hirszman a Alex Viany: ''Em 'Pedreira de São Diogo', eu tirava da realidade imagens que estavam em mim, na minha cabeça, no meu coração, em minha forma de sentir. Em 'Maioria Absoluta', deixei que a realidade viesse a mim. A não ser uma visão política minha sobre questões sociais, não tenho nenhuma atitude a priori sobre questões estéticas. Esse foi um filme de caráter direto, com som direto, feito para que outros tivessem voz. (...) No processo de realização descobri a poesia que havia no falar do pobre, do analfabeto, especialmente na gente do nordeste''.
D. Voldman, em seu ensaio ''Definições e Usos'' (1), afirma que o pesquisador (de história oral) não deve, ao realizar entrevistas, ''negligenciar elementos de psicologia, psicossociologia e psicanálise. (Para este) não se trata de propor interpretações da mensagem que lhe é comunicada, mas de saber que o não dito, a hesitação, o silêncio, a repetição desnecessária, o lapso, a divagação e a associação são elementos integrantes e até estruturantes do discurso e do relato''.
Deste modo, os depoentes, como atores que personificam um só personagem (o biografado), criam uma ''trama'' em torno deste. Uma existência vai assim se delineando. É uma intimidade que se vai constituindo. O subjetivo, aliado ao objetivo, não recria a vida, não torna a trama real, mas quase consegue.
Sobre Hirszman depõe Luiz Carlos Melo, entre outros: ''A introspeção psicológica do Leon era uma coisa extraordinária, ele percebia, ele mergulhava mesmo. Porque essas pessoas (os internados no Centro Psiquiátrico, da dra. Nise da Silveira, sobre os quais Hirzman realizou um filme) mergulham profundamente na dimensão do inconsciente, e o Leon tinha total capacidade de fazer essa viagem junto. Ele mergulhou, ele não fez simplesmente filmar. Ele vivenciou esse processo internamente. Foi muito bonito. Uma experiência de vida que foi, acho, para ele e para todos nós, riquíssima''. Acerca deste filme, diz Leon Hirzman: ''Ele me fez mais real, deu espaço ao meu inconsciente, eu apareci; e isso é doloroso, laborioso''.
Apesar dos vários relatos incluídos em ''A Hora e a Vez de um Cineasta'', Simões não se detém muito em detalhes íntimos. Pouco se sabe da vida familiar de Roberto Santos. Nisto Helena Salem é mais generosa. Entretanto uma das histórias interessantes, envolvendo Roberto Santos e relatada por várias pessoas, segundo Simões, é sobre Guimarães Rosa: toda a equipe _e especialmente o cineasta_ estava tensa com a presença de Rosa na projeção de ''Matraga'', todos querendo saber sua opinião. ''A projeção chega ao fim, a respiração pára ... até que... o escritor solta um grito surpreendente: 'Estamos vingados!' (isto porque a adaptação cinematográfica de 'Grande Sertão: Veredas', feita por um outro diretor, havia fracassado)''.
Chegamos assim a uma questão decisiva: os leitores de biografias querem, antes de ver a razão alçar vôo, emocionar-se. Já que, ao abrir as páginas, suplicam de modo parecido ao do narrador da novela ''A Invenção de Morel'', de Bioy Casares: você, escritor, que é solidário conosco, em nosso prazer da leitura biográfica, invente uma máquina que nos faça penetrar na consciência do biografado, não no sentido de fazer parte desta consciência, como queria partilhar o narrador de Casares da consciência de Faustine, mas no de tornar possível compartir, com ele, dos seus desejos.

Nota:
1. In Marieta de M. Ferreira e Janaína Amado (org.), ''Usos e Abusos da História Oral'', Rio de Janeiro, Fundação Getúlio Vargas, 1996.

Josette Monzani é professora de teoria e história do cinema na Universidade Federal de São Carlos (UFSCar).

Folha de São Paulo

Inteligência em Evolução


Oito respostas diferentes
MARCOS BARBOSA DE OLIVEIRA
O título original desta coletânea de artigos provenientes de uma série de palestras realizadas no Darwin College, Cambridge, em 1992, é ''What is Intelligence''. Com que resposta o leitor fica, ao término de sua leitura? Com algum exagero, pode-se dizer, não com uma, mas com oito respostas diferentes _sendo este o número de artigos do volume. Tal constatação implica um questionamento do próprio conceito enquanto componente de qualquer teoria que se pretenda científica.
Uma das contribuições mais interessantes, ''Inteligência em Evolução'', de N. Mackintosh, enfatiza este ponto, chegando a uma conclusão bem radical, que o autor expressa candidamente nas seguintes palavras: ''Eu poderia arguir de modo bem convincente que deveríamos evitar todo uso do termo 'inteligência'. Mas isto poderia colocar-me em dificuldade com outros colaboradores do presente livro''. O artigo versa sobre as capacidades cognitivas dos animais, e começa chamando a atenção para o fato de que a maioria das pessoas não acha nada de errado em perguntas do tipo: quais são mais inteligentes, os pássaros ou os macacos? Embora possa haver divergências sobre os detalhes, por exemplo, se os cães são mais ou menos inteligentes que os gatos, também parece razoável estabelecer uma hierarquia em que o Homo sapiens vem no topo, seguido do chimpanzé, dos outros macacos, de cães e gatos, depois cavalos, e assim por diante. O pressuposto nos dois casos é que a inteligência é uma capacidade simples, que varia apenas em grau de espécie para espécie. Não existe entretanto método algum para aferir diretamente a inteligência concebida dessa maneira; o que os pesquisadores podem fazer é apenas testar o desempenho dos animais diante de problemas particulares e estudar as capacidades cognitivas também particulares subjacentes ao desempenho.
Pode-se sugerir que inteligência é o conjunto, a somatória de tais capacidades; a questão é se alguma vantagem advém de tal operação. Segundo Mackintosh, nenhuma; a popularidade da concepção de inteligência decorrente dela seria antes fruto de uma postura antropocêntrica, que tende a avaliar as outras espécies apenas segundo o grau em que elas seriam inferiores a nós.
Diante da multiplicidade de componentes possíveis, uma alternativa consiste em postular a existência de diferentes tipos de inteligência, como faz Gardner com sua bem conhecida teoria das inteligências múltiplas. A contribuição de S. Arom, ''A Inteligência na Música Tradicional'', se por um lado exemplifica essa estratégia, por outro serve para mostrar suas limitações. A inteligência musical é um dos sete tipos relacionados por Gardner, e o problema é a falta de critérios: se postulamos uma inteligência musical, por que não uma inteligência cinematográfica _ou culinária, ou filatélica? A música tradicional estudada no artigo é a dos povos africanos ao sul do Saara, especialmente da África Central, que o autor vem pesquisando há mais de 30 anos. Os resultados impressionam tanto pela multiplicidade de funções sociais desempenhadas pela música entre eles, como por sua complexidade no que se refere à afinação dos instrumentos, às estruturas rítmicas etc. Mas o que se ganha considerando toda esta riqueza cultural como manifestação de um tipo de inteligência? Aparentemente nada, pois o próprio termo ''inteligência'', além do título, ocorre apenas uma vez no decorrer de todo o artigo, e mesmo essa ocorrência está longe de ser indispensável.
O grande número de concepções diferentes, bem como a vagueza e outros problemas inerentes a cada uma delas, faz com que a inteligência seja um tema muito fraco enquanto princípio unificador. A qualidade das contribuições desta coletânea é bastante variável e, embora muitas sejam por si só excelentes, as interligações são raras e pouco importantes. Em consequência, o nível de sinergia é baixo, não sendo possível afirmar que cada artigo se beneficie significativamente por ser apresentado em conjunto com os demais.
Alguns dos autores _como Richard Gregory, Roger Schank, Roger Penrose e Daniel Dennett_ são figuras bem conhecidas no campo da ciência cognitiva, o que entretanto não significa que suas contribuições estejam em todos os casos entre as melhores. A de Gregory é particularmente problemática: a primeira parte, em que ele introduz a distinção entre inteligência potencial e inteligência cinética é bastante confusa e tem pouca ligação com a segunda, que trata da percepção visual, especialmente as ilusões de óptica. Foram pesquisas sobre este tema que fizeram a reputação de Gregory, mas o artigo em pauta não acrescenta nada de novo em relação a suas obras anteriores.
''Linguagem e Inteligência'', o artigo de Dennett, corresponde à primeira seção do capítulo 13 de seu livro ''Darwin's Dangerous Idea''. Embora bastante abrangente quanto aos tópicos abordados, e escrito com a verve costumeira neste autor, no que se refere ao tema central, mais comumente designado pela expressão ''pensamento e linguagem'', o trabalho tem pouco de interessante a dizer e, o que é pior, ignora totalmente a contribuição de pesquisadores de outras tradições, como Vygotsky, para ficar com apenas um exemplo.
Penrose trata do pensamento matemático, e seu artigo, um dos mais competentes, é estruturado por uma tese bem definida: a de que esse tipo de pensamento não se reduz a operações computacionais. O polêmico argumento baseado no teorema de Gõdel é discutido na parte final; a nosso ver, é a menos convincente das considerações apresentadas a favor da tese.
A defesa da inteligência artificial é empreendida por Schank em seu trabalho, o mais longo da coletânea, escrito em colaboração com L. Birnbaum. Os argumentos de Penrose porém não são considerados, sendo Searle e Chomsky os alvos da crítica. Outro dos objetivos do artigo é o de estabelecer a relevância da inteligência artificial para a educação. A limitação de espaço nos restringe aqui a um mero registro de opinião: a de que nenhum dos objetivos é atingido, dado o simplismo das análises e a duvidosa validade de muitas das implicações em que a argumentação se baseia.
Bem melhor é o artigo de Butterworth, ''A Inteligência Infantil'', cujo tom predominante é de crítica às idéias de Piaget sobre o desenvolvimento cognitivo, no caso, de crianças bem pequenas. Com base na recapitulação de um grande número de resultados experimentais, são questionadas as teses piagetianas sobre o papel da ação no desenvolvimento cognitivo. Outra das implicações dos experimentos citados é a alegação, a esta altura já bastante familiar, de que o aparecimento de diversas aptidões, em especial as perceptuais, se dá nos bebês em idade muito inferior à postulada por Piaget.
E, para terminar, aquele que é também o último trabalho da coletânea: ''Entendendo a Compreensão Verbal'', de Dan Sperber. Sperber é o autor, juntamente com Deirdre Wilson, do influente ''Relevance - Communication and Cognition'', publicado em 1986. O artigo constitui um prolongamento das idéias do livro, e sua tese principal é a de que mesmo as interações verbais mais simples envolvem alguma forma de inteligência em grau muito mais elevado do que se poderia supor. Um exemplo a que o autor sempre retorna é o da afirmação ''É tarde'', que vai recebendo interpretações cada vez mais complexas ao longo do texto. Na etapa final, Sperber sustenta que a atribuição de uma intenção comunicativa a alguém envolve uma meta-representação de quarta ordem; dita por Carol a John (os dois personagens envolvidos nos exemplos) em um determinado contexto, ''É tarde'' é corretamente entendida por John na medida em que ele concebe o seguinte pensamento: ''Ela quer que eu saiba que ela pretende fazer-me acreditar que está na hora de ir para casa''. O fato de esta complexidade passar despercebida na psicologia leva Sperber a concluir com uma pergunta: ''São os humanos inteligentes o bastante para saber quão inteligentes eles são?''.
A tradução, se não é das piores tendo em vista o baixo padrão que prevalece em nosso país, ainda assim deixa a desejar. Um número considerável de frases tem sua compreensão arruinada por falhas inaceitáveis.

Marcos Barbosa de Oliveira é professor da Faculdade de Educação da USP.

Folha de São Paulo

Todos os Nomes


A angústia da sequência
ADRIANO SCHWARTZ
De todos os nomes que José Saramago poderia escolher para seu protagonista em ''Todos os Nomes'', seu mais novo romance, parece provável a razão por que ele optou por José. Saramago precisava escrever, em algum momento, ''e agora, José?''. Pode parecer brincadeira, mas não há, a princípio, qualquer motivo específico para se escrever um romance _um motivo é tão bom quanto o outro, mesmo que seja apenas citar um verso. O que importa é o resultado.
E aí está o problema que, de certa maneira, é sintetizado pelo uso do verso de Drummond. Um leitor atento da obra anterior do autor sabia _tinha certeza_, após poucas páginas de leitura, que aquela frase seria citada (ela surge na pág. 105). Um leitor atento ''sabia'' o livro sem tê-lo lido.
Trata-se, ainda assim, de um grande romance. Mas é uma obra-problema, na sequência de ''O Evangelho segundo Jesus Cristo'' e de ''Ensaio sobre a Cegueira''. O primeiro fechou de maneira primorosa um ''ciclo'' na obra do escritor, e ''Ensaio sobre a Cegueira'', como indica este ''Todos os Nomes'', inaugura outro.
Como no ''Ensaio'', Saramago situa ''Todos os Nomes'' em um local inominado, os personagens (exceto o protagonista) também não têm nomes próprios; como no ''Ensaio'', há uma tentativa de questionar o homem a partir de uma perspectiva universalista, genérica _se no primeiro há o permanente e aterrador vazio da não-visão e de todas suas consequências e implicações, neste há uma gigantesca máquina burocrática que a todos cataloga, uma espécie de repartição pública superdimensionada que sabe tudo sem entender nada.
Ou seja, percebe-se uma óbvia continuidade entre ''Todos os Nomes'' e o romance que provocara uma clara ruptura na obra do escritor. Mas acontecem também retrocessos ao que havia de mais criticável em alguns momentos do ''ciclo anterior'': uma certa previsibilidade, um excessivo ''opinionismo'' do narrador, uma incômoda reiteração de lugares-comuns. É mais ou menos o que diz o personagem José em uma reflexão autopunitiva, que pode ser expandida para mais de uma passagem no livro: ''Ela deve ter achado que não valia a pena responder-me, e nisso tinha toda a razão, porque o que eu havia dito não passava duma frase de efeito, oca, dessas que parecem profundas e não têm nada dentro''.
O curioso é que essas restrições são próximas às críticas que o numeroso contingente de não-leitores de Saramago costuma fazer. Sim, porque um escritor como Saramago tem um considerável batalhão de não-leitores extremamente críticos, que se ''apóiam'' principalmente em três pontos: 1) uma impressão provocada pelo conhecimento (se existe e em muitos casos parcial) de uma única obra (normalmente o ''Memorial do Convento''); 2) discordância em relação às tantas _e muitas vezes polêmicas_ declarações e posturas político-sociais de Saramago; e 3) (ainda) preconceito contra um autor de sucesso. Trata-se de um fenômeno que se poderia chamar de ''jorgeamadização'' (e basta ler ''O Milagre dos Pássaros'', conto de Amado recém-publicado pela Ed. Record, para perceber como a comparação é injusta com o português).
Uma vez que Saramago defende a inexistência do narrador (''apropriação, por um Narrador academicamente abençoado, da matéria, da circunstância e da função narrativa, que em épocas anteriores, como autor e como pessoa, lhe eram exclusiva e inapelavelmente imputadas...'', ''Cadernos de Lanzarote 4'', pág. 192, Lisboa, Caminho Editorial), poder-se-ia pensar que esta crítica dos não-leitores é validada pelo próprio criticado: narrador é igual autor, portanto, o que o autor escreve (ficção), representa o que pensa e diz (vida). É a vida (tradição), paradoxalmente, que mostra que nem sempre (quase nunca) esse raciocínio faz sentido (aliás, se se pensar no desenrolar de ''Todos os Nomes'' _e, no caso de Saramago, em todos os seus romances de modo geral_, é nas vezes que esse raciocínio se aplica que o impacto da obra diminui).
Mas o maior problema do livro _que não deixa de ser também uma questão de impacto_ aparece mesmo quando ele é posto em comparação, fato que foi diagnosticado pelo autor pouco antes de começar a escrevê-lo: ''Depois do 'Ensaio', quê? Não o digo como quem decidiu começar a representar o papel do escritor angustiado. Digo-o, sim, com toda a frieza (...) desde que em agosto do ano passado acabei o livro. Mais longe, ou mais alto, ou mais fundo do que isto, sei que não poderei...'' (''Cadernos de Lanzarote 4'', pág. 169).
Caso tenha ainda assim tentado ''ir além'' de ''Ensaio sobre a Cegueira'' (a que posso acrescentar ''O Ano da Morte de Ricardo Reis'' e ''O Evangelho Segundo Jesus Cristo''), Saramago fracassou: não foi nem mais longe, nem mais alto, nem mais fundo. Não conseguiu retirar o que ele mesmo chamou de ''pedra no meio do caminho'' (o retorno é eterno, mas varia...). É, contudo, um fracasso com atenuantes. Mas é preciso pensar no livro isoladamente.
Há, em ''Todos os Nomes'', pelo menos um momento antológico. Trata-se da longa cena no cemitério, já nos instantes finais da intrincada busca que José, um funcionário de baixo escalão da Conservatória Geral do Registro Civil, faz por uma mulher que nunca vira e que se transforma numa espécie de apaixonada obsessão.
A visita ao local instaura de uma vez por todas uma consciência diferenciada em José. Já não resta nada nele da relação passiva e subserviente que mantinha com a Conservatória, relação _igualmente aplicável a todos os seus colegas no trabalho_ que é incrivelmente bem delineada pela seguinte frase de Hannah Arendt: ''Deixaria, por assim dizer, de ser o que era e obedeceria às leis do processo, iria se identificar com forças anônimas a que deveria servir para manter todo o processo em movimento, iria considerar a si próprio uma mera função, e acabaria julgando tal funcionalidade, tal encarnação da corrente dinâmica como sua mais alta realização possível''.
''Todos os Nomes'' narra a paulatina e ambígua destruição das ''leis do processo'' no interior de um indivíduo. É, na verdade, um livro ambíguo em mais de um sentido _desde a epígrafe criada pelo escritor: ''Conheces o nome que te deram, não conheces o nome que tens''.
A fórmula pode ser lida de outras maneiras: nem sempre Saramago conhece Saramago ou, mais precisamente, nem sempre José conhece José. E agora?

Adriano Schwartz é editor-adjunto do caderno Mais!.

Folha de São Paulo

Um tiro de revólver num concerto - Stendhal


Um tiro de revólver num concerto
RENATO JANINE RIBEIRO
Poucos autores modernos tiveram, como Stendhal, o impacto retardado de uma bomba-relógio. Menino, vibrava com a Revolução Francesa e imaginava seus inimigos pessoais, a começar por um pai detestável e detestado, punidos como o rei e a tirania. Moço, lia na Biblioteca Nacional os críticos da superstição e do despotismo com a ambição de se tornar o maior teatrólogo do século que se iniciava: pretendia escrever peças de teatro republicanas.
Mas todo esse sonho de glória imediata ruiu. Sentiu, pelos seus 30 anos, que não era muito mais que um diletante; que gostava da Itália, da arte, do amor (sem muito sucesso neste último); e que, fama mesmo, não teria. Seus livros vendiam pouco, e se resignou à idéia de que somente seria lido depois de morto. Algumas de suas obras dedicou ''to the happy few'', a seus raros leitores. Exultou quando Balzac elogiou a ''Cartuxa de Parma'' e levou tão a sério as sugestões do romancista já consagrado que tentou, sem grande êxito, incorporá-las ao livro.
As ''Crônicas Italianas'' são uma obra menos conhecida, embora esplêndida, de Stendhal. São algumas narrativas, baseadas na história italiana ou evocando-a, que seu parente Romain Colomb reuniu depois de sua morte. Algumas o autor tinha publicado numa revista ou noutra. Outras são inéditas, e três, incompletas. O interesse central está naquilo que Stendhal chama de ''energia'' e que pulsa mais na Itália que na França, mais nas classes baixas que nas altas e mais no século 16 do que ''hoje'', isto é, no 19 (e, por que não, no 20).
Talvez não haja tema tão stendhaliano quanto o da ''energia''. Tem a ver com o desejo, a impulsividade, o entusiasmo. Mas consiste mesmo é na capacidade de pôr os desejos mais fortes, que dizem respeito ao amor e aos ideais de liberdade (e portanto a duas formas de entrega de si), à frente das paixões covardes e mesquinhas, as que se referem à segurança, ao medo, à ambição e à ganância. Em todas as obras de Stendhal aparece essa oposição. A qualidade de Julien Sorel e da sra. de Rênal, no ''Vermelho e o Negro'', de Fabrício e da duquesa Sanseverina, na ''Cartuxa'', está em descartarem, por amor ou convicção, o que é vantagem material ou medo. Nas ''Crônicas'', o mesmo se dá.
Desde o começo lemos uma nostalgia: antes de mais nada, pela Itália dos ''condottieri'', em que ainda não existia o vício moderno por excelência, a hipocrisia, que é essencialmente um uso covarde da palavra. Então se matava por paixão (acrescento que se matava mais até por honra, mas esta, ou sua ilusão, não tem valor positivo para Stendhal). Porém, embora sejam do século 16 a maior parte das histórias, e Stendhal diga, no início da ''Cartuxa'', que depois disso a dominação estrangeira fez decair a península, a Itália mesmo recente continua valorizada, como país ''quente'', passional, acima da França, mesquinha. Assim a crônica ''Vanina Vanini'', que trata do amor de um carbonaro, passa-se na época mesma de Stendhal. E a célebre frase de uma princesa romana que toma sorvete num dia de extremo calor (''Pena que não seja um pecado!'', em ''San Francesco a Ripa''), lamentando que só falte o sacrilégio para o prazer ser completo, dataria do século 18.
O que quero assinalar com isso é que, se a Itália tem para Stendhal a importância que com razão Luiz Costa Lima frisa em seu prefácio, o decisivo em nosso autor é a questão da ''energia''. A seus olhos, o valor da península está em portá-la em alto grau. Mas a mesma energia se encontra nas classes pobres francesas de seu tempo (é só do quarto andar, onde moram os pobres, que as parisienses se jogam por amor). Ou em Julien Sorel, que já tem a absolvição combinada, mas, ao perceber que os jurados o olham com desdém, decide fazer um discurso político _que lhe traz a pena de morte... Morrer é pouco para quem tem energia. Nenhum dos heróis de Stendhal receia a morte, e nas suas obras a violência fatal, privada ou de Estado, aparece com frequência.
Em outras palavras, a modernidade é perda da energia. Há espírito mais nietzschiano que este? Mas não fica só nas marcas que deixou em Nietzsche a capacidade de Stendhal para vencer a barreira do tempo. Quem lhe deve muito, mas raramente confessa o débito, é a história das mentalidades. Porque nos três ou quatro prefácios que escreveu para esta obra, e na abertura da maior parte das crônicas, ele articula os sentimentos com a política.
A matriz é constante: a energia é maior quando a opinião alheia pesa menos. A par dos crimes e da violência, que ele não aprova, havia (há?) na Itália um vigor bem maior que o da França ou dos EUA. A partir disso, Stendhal tece as observações mais refinadas. Gosto em especial do que diz sobre D. Juan, no início da crônica sobre ''Os Cenci'' (história, aliás, retomada no teatro por Gonçalves Dias e Artaud). Afirma Stendhal que essa personagem só foi possível após o cristianismo, porque com este vieram ao mundo o vale de lágrimas e a hipocrisia.
Na verdade, se Stendhal, com toda a ênfase que põe no amor apaixonado, não é romântico, é porque a paixão por alguém (ou pela pátria e a liberdade) serve de excelente revelador da energia. O amor em si mesmo não é o que conta para nosso autor, nem a beleza, mas aquilo que ele prometa, e que numa passagem pouco compreendida de ''Do Amor'' se chama de ''felicidade''. Ora, onde se encontra a energia, quais são as condições sociais e históricas que a produzem? ''That's the question''.
Tomemos, por exemplo, a sua França. Na semi-autobiografia a que chamou ''Vida de Henry Brûlard'', vemos que a Revolução Francesa trouxe, ao menino que tinha seis anos ao cair a Bastilha, a linguagem que permitiu articular sua raiva ao pai e ao padre com a história que rondava na praça defronte de sua casa. Quantos têm a oportunidade de dispor de uma linguagem quase a mesma para pensar a vida pessoal e o mundo, os afetos e a política? Conhecemos, em nosso tempo, muitos que subordinaram a compreensão de sua vida a um jargão político pronto; não é isso o que fez Stendhal.
Sua questão é unir o anseio de liberdade ao de uma vida sem hipocrisia e opressão. Essa aliança não é fácil. Passado o entusiasmo revolucionário, a liberdade que restou à França, à Inglaterra, aos EUA se revelou mesquinha. Já a Itália, tão apaixonada, não conhecia a liberdade. Exigiria a energia apaixonada uma certa burrice? E, por outra, seria o parlamento incompatível com a honestidade dos afetos? O império da lei reforçaria a mentira entre os homens? Estas perguntas são mais pertinentes do que nunca, hoje, quando a vitória de um dos campos, na Guerra Fria, faz soar como fim da História um regime que não é o da verdade afetiva (O outro campo não era melhor, lembro).
Temos, com isso, um autor singular, que pensa na política enquanto fala de paixões (dizia ele que a política num romance era um tiro de revólver num concerto; mas, como amava Rossini, que certa vez fez os músicos baterem o arco do violino contra o porta-partituras, penso que não odiasse tanto o ruído na música). Sua maior preocupação, a felicidade, não é só individual: conecta o amor a uma pessoa com o da verdade, e esta exige o fim da superstição e, com ela, de toda opressão. Sua Itália somente se entende neste quadro.
Três palavras sobre a tradução. Primeira, e principal: é elegante e correta. Sebastião Uchôa é de nossos melhores tradutores. Mas isso não me impede de anotar dois problemas. Um é que provavelmente ele terá usado uma edição francesa à qual faltem certas palavras ou passagens que atestam a ironia, ou sarcasmo, de Stendhal. Por exemplo, na pág. 258, em ''Suora Scolastica'', sumiram a referência ao rei de Espanha como ''tolo'' e à sua noiva como tendo sido encontrada ''num celeiro''.
Mais sério: Stendhal diz no início da primeira crônica que ''temos as idéias mais falsas'' sobre os bandidos italianos do século 16. Acrescenta: ''Pode-se dizer, em geral, que esses bandidos constituíam a oposição contra os governos atrozes que, na Itália, sucederam-se às repúblicas da Idade Média''. A observação é genial: antecede em século e meio a célebre tese de Hobsbawm dos ''Bandidos'' como oposição social. Mas, infelizmente, em vez de ''pode-se dizer'', está traduzido ''diz-se'', o que faz pensar que Stendhal critica esse dizer, ao invés de assumi-lo como seu.
Enfim, último problema: nenhuma das notas de Stendhal aparece nessa edição _e são importantes. É uma lástima, ainda mais sendo esta uma edição cuidadosa, elegante, promovida por uma editora universitária que nos últimos dez anos se firmou como uma das melhores que temos.

Renato Janine Ribeiro é professor de filosofia na USP e autor de vários ensaios sobre Stendhal.

Folha de São Paulo

Antropologia da ficção


Antropologia da ficção
MARCOS MAZZARI
Elucidar antropologicamente o fenômeno literário é o ambicioso objetivo a que Iser se lança em ''O Fictício e o Imaginário'', cujo original alemão é de 1991. Obra de plena maturidade, vem consolidar a eminente posição que seu autor ocupa no âmbito dos estudos literários do pós-guerra já que, ao lado de H.R. Jauss, é o principal representante da chamada Escola de Constança, onde se desenvolveu a ''estética da recepção'', cujo marco pioneiro é o opúsculo de Jauss ''A História da Literatura como Provocação à Teoria Literária'' (1967), e a ''teoria do efeito estético'', fundamentada sobretudo em ''O Ato da Leitura'' (1976), outra obra de Iser já editada entre nós.
Conceitos como ''leitor implícito'', ''estrutura apelativa do texto'', ''indeterminação'', ''espaços vazios'', ''constituição de sentido'' podem por si sós sugerir a fecundidade dessa ''teoria do efeito'' que, se não inova propriamente em termos de história literária ou de uma sociologia da literatura (uma vez que não se alicerça nos ''juízos históricos'' de leitores empíricos, como procede a ''estética da recepção''), abre ampla perspectiva para um confronto crítico com os textos, e mesmo aqueles que ainda não se integraram no contexto histórico de tradição e exegese.
Demonstrando a coerência de seu pensamento estético, Iser agora retoma e desdobra linhas teóricas traçadas ou apenas esboçadas na obra anterior, como se depreende, entre tantas passagens, desse trecho extraído do prefácio ao ''Ato da Leitura'': ''Se é correto que através dos textos algo nos acontece, e que aparentemente não podemos nos separar das ficções _independentemente do que pensamos delas_, surge a pergunta pela função da literatura para a 'constituição humana'. As idéias aqui desenvolvidas sobre o efeito estético lançam apenas um primeiro olhar a esse objetivo antropológico das análises literárias. Sua função é, no entanto, chamar a atenção para esse horizonte já aberto''.
Os vínculos que o novo livro estabelece com a obra anterior _e sobretudo a ''teoria do efeito estético''_ resultam assim do objetivo de elaborar a heurística específica para uma antropologia literária. Contudo, se na passagem acima Iser parece apontar para planos distintos ao falar em literatura e constituição humana, agora propõe que a heurística almejada se apoie ''em disposições humanas que são ao mesmo tempo também constitutivas para a literatura''. O ''fictício'' e o ''imaginário'' seriam então as vigas-mestras dessa construção teórica preliminar, uma vez que se manifestam na vida real e, no texto literário, fundem-se num amálgama organizado pela ''estrutura do jogo''. Mas antes de tudo é preciso considerar que Iser postula substituir a relação opositiva entre ficção e realidade, baseada numa espécie de ''saber tácito'', por uma relação mais complexa e nuançada entre o fictício, o real e o imaginário. A substantivação dos adjetivos não é fortuita: exprime a intenção de apreender ''qualidades'' de um objeto que se constrói a partir de relações recíprocas, substituindo-se a determinação de posições (ou oposições) fixas pela busca de relações em constante dinamismo.
De forma sumária, pode-se dizer que o ''real'' designa o mundo ''extratextual'' (podendo englobar outros produtos linguísticos), que constitui os campos de referência do texto; o ''fictício'' é entendido eminentemente como ''ato intencional'', definição que se elucida pelo contraste com o outro elemento da tríade, para cuja designação Iser prefere afastar-se de termos já carregados de tradição, como fantasia, imaginação, faculdade imaginativa: com o ''imaginário'' entende-se algo difuso, fluido, informe, que na vida real penetra em nossa experiência sob forma de sonhos, devaneios, alucinações.
A fundamentação das ''perspectivas de antropologia literária'' leva Iser, nos capítulos centrais, a examinar o fictício e o imaginário numa dimensão histórico-filosófica. O terceiro capítulo concentra-se em quatro modelos teóricos (F. Bacon, J. Bentham, H. Vaihinger, N. Goodman) que explicitariam paradigmaticamente como manifestações e formas diversas da ficção são condicionadas por necessidades históricas diferenciadas. Mas uma vez que, no livro em questão, o fictício só possui relevância à medida que interage com o imaginário, abre-se em seguida uma perspectiva não menos ampla para a discussão da história que o respectivo conceito _cuja terminologia sempre oscilou entre ''imaginatio'' e ''phantasia''_ registra na tradição ocidental. Coleridge, Sartre e Castoriadis constituem aqui as principais referências; em plano secundário, Iser aborda outras vertentes teóricas, estabelecendo uma interessante aproximação entre Hume e Goethe, à base das precauções que ambos tinham em relação à imaginação.
Só pelos nomes citados já se terá percebido a densidade teórica que impregna as páginas desse livro. De fato assim é, mas para amenizar os esforços da leitura, o segundo capítulo descortina um amplo panorama da bucólica renascentista, para Iser um discurso privilegiado, uma vez que ''tematiza o fingimento e contribui, desse modo, para que a ficcionalidade literária se faça perceptível''. Transcendendo gêneros e com duração incomparável na história da literatura (o nosso arcadismo serviria aqui de exemplo), a bucólica oferece o contexto adequado para a observação do ''ato de fingir''; na teoria de Iser, este significa sempre transgredir fronteiras, num movimento que se dá tanto como ''irrealização'' do mundo extratextual, repetido em signo para outra coisa, como ''realização'' do imaginário que, engastado no fictício, perde seu caráter difuso e indeterminado.
Ainda no campo bucólico, em especial no romance pastoril de Montemayor, Sannazaro e Sidney, Iser antecipa o estudo do procedimento que no sexto (e último) capítulo irá dar contornos mais nítidos às perspectivas de antropologia literária: trata-se da ''encenação'' que, no espaço lúdico do texto, evidenciaria ''a extraordinária plasticidade dos seres humanos, pois, precisamente porque parecem não possuir uma natureza determinável, podem expandir-se no raio praticamente ilimitado dos padrões culturais''. Isto equivale a dizer que somente pelo ''medium'' da literatura o homem confere expressão, ainda que mediante ''simulacros'', à sua posição ''excêntrica'' (ser, mas não possuir a si mesmo), vivenciando possibilidades não apenas inesgotáveis como também inacessíveis à consciência e a qualquer forma de conhecimento. Entre estas Iser inclui as ''experiências de evidência'' que, mesmo se caracterizando por uma certeza instantânea (e representando assim o contrário da inacessibilidade), seriam igualmente impermeáveis à consciência: ''O amor é talvez a experiência mais intensiva de evidência, fornecendo, porém, ao mesmo tempo, o tema básico da encenação literária''. Sendo assim, encenações literárias se oporiam às profecias religiosas e aos mitos etiológicos, empenhados em ocupar maciçamente os pontos cardeais da existência, início e fim, enquanto àquelas seria intrínseco o fato de que tudo o que ''despertam'' em imagem não faz senão descortinar uma visada transitória ao ''inacessível''.
A apresentação da encenação como ''categoria antropológica'' vem precedida, neste capítulo de fecho, de uma instigante discussão do conceito de ''mimesis''. Também aqui a argumentação tem o seu ponto de partida em Platão e Aristóteles, mas a perspectiva antimimética de Iser o faz acentuar, já nessas reflexões seminais, a idéia de ''performance'', que redimensiona as concepções tradicionais de imitação. Assim, o leitor logo depara com um texto do sofista Filostrato, a quem já Gombrich atribuíra a mais profunda reflexão sobre ''mimesis'' realizada na Antiguidade. Iser não apenas encampa esse juízo, como também procede a uma densa síntese das concepções estéticas de Gombrich e em seguida de P. Ricoeur e T. Adorno, para demonstrar como o papel da ''performance'' se acentua à medida que a referência da representação vai se tornando cada vez mais indistinta.
O projeto de lançar as bases para uma antropologia literária autônoma faz desse livro sobre o fictício e o imaginário, sobretudo em seus trechos mais especulativos, uma leitura envolvente. Talvez por isso mesmo seja tanto mais necessário acolher criticamente as hipóteses desse discurso da encenação, da performance, do ludismo. Isto significa ainda refletir sobre os limites do modelo teórico de Iser: este pode aplicar-se à bucólica, ao ''Tristram Shandy'', de Sterne, ou ainda a Joyce e Beckett, que são as suas grandes referências. É nítida, aliás, a preferência de Iser, na literatura mais recente, pelos textos herméticos, que ''exibem uma dinâmica rica em turbulência que fascina à medida que se trata de descobrir as 'regras' segundo as quais tal jogo do texto se realiza''. Mas, em relação a muitos outros escritores (e os exemplos aqui se multiplicam), seria tarefa das mais problemáticas pretender demonstrar que se valem de encenações literárias para dar expressão à descomunal ''plasticidade'' do substrato humano ''excêntrico'' e, assim, presentificá-lo mediante ''simulacros''.

Marcos Mazzari é doutor em germanística pela Universidade Livre de Berlim e professor de teoria literária na USP.

Folha de São Paulo