Marcos Virgílio da Silva
Doutorando FAU/USP – Bolsita Capes
SIMSON, Olga Rodrigues de Moraes Von. Carnaval em branco e negro: Carnaval Popular Paulistano – 1914-1988. Campinas: Ed. Unicamp; São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, Imprensa Oficial de São Paulo, 2007. v.1, 250p.
Resultante da tese de doutorado da profª Olga von Simson, defendida na FFLCH-USP em 1989, o livro coroa um longo trabalho de pesquisa da autora, que tem se dedicado há pelo menos trinta anos à história do carnaval paulista. Boa parte desta investigação foi ao mesmo tempo produto e desdobramento de um inovador projeto de história oral realizado em meados da década de 1980, cujo objetivo era recuperar a memória do carnaval paulistano. Os vários depoimentos de carnavalescos, sambistas e pessoas comuns recolhidos pela autora no Museu da Imagem e do Som, em São Paulo, serviram de base a esse trabalho1.
A primeira publicação ligada ao tema da autora2 é um trabalho pioneiro de uma linha de pesquisa que ganhou fôlego a partir da década de 1990 e contribuiu para o enriquecimento de uma historiografia da cultura popular brasileira que esteve, por certo tempo, vinculada à herança de folcloristas ou – como é o caso em especial no que diz respeito ao carnaval – a um interesse centrado no Rio de Janeiro3. O livro Carnaval em branco e negro, assim, tem o primeiro inegável mérito de, escapando a esses dois "modelos", tratar do carnaval paulistano em sua própria dinâmica, recuperada através dos depoimentos de seus agentes.
O livro, como o título sugere, se estrutura em torno das manifestações carnavalescas populares de brancos e negros na cidade de São Paulo e do contraste entre elas. A primeira parte trata das manifestações momescas nos bairros operários do Brás, Água Branca e Lapa, especialmente nas primeiras décadas do século XX (a maioria desses folguedos, segundo o livro, virtualmente desapareceu a partir de meados do século); na segunda parte, é narrada a história do carnaval negro, de suas origens rurais (caiapós), passando pelos cordões carnavalescos das primeiras décadas do século XX, até as escolas de samba – tomando como caso exemplar a escola Nenê de Vila Matilde, fundada em 1949 – formadas em moldes inspirados nas escolas cariocas e organizadas institucionalmente a partir do final da década de 1960 (quando passam a contar com o apoio, inclusive financeiro, da prefeitura de São Paulo). Esta segunda parte ocupa, de fato, a maior seção do livro e busca observar de que maneira o carnaval negro se amplia, se estrutura e estabelece relações mais extensas e sólidas (a despeito de dificuldades e revezes sofridos por todo o período abordado) com a "sociedade mais ampla". Na terceira parte, os dois carnavais são comparados, sendo colocada em relevo a questão da (construção de) memória e identidade, e as diferenças entre os agrupamentos ligados ao carnaval branco e o negro. Complementa o livro um riquíssimo anexo fotográfico. As legendas comentadas que acompanham as fotografias ampliam a compreensão de diversos aspectos analisados nos textos a que se referem. De fato, a autora, com extensa produção acerca dos usos de fontes orais e de fotografia na reconstrução de memória, demonstra a utilidade de ambos na reconstituição de uma história que, sabe-se, não mantém numerosos registros documentais por escrito4.
O longo período coberto pela obra a credencia, desde já, como referência fundamental capaz de abrir novos caminhos, sugerindo indagações a outros pesquisadores para avançar a compreensão de questões relevantes em outros recortes. Espera-se que futuras pesquisas possam lançar novas luzes sobre questões que o livro de Simson não privilegiou5.
É possível observar, por exemplo, que o esforço de identificar as origens e o desenvolvimento das manifestações carnavalescas paulistanas deixou pouco espaço para a discussão do que se poderia considerar a crise e declínio de algumas dessas festividades – como o corso, no caso do carnaval branco, e os cordões negros. Evidentemente, essa questão não é desconsiderada: a própria dinâmica urbana, o processo de metropolização de São Paulo nesse século XX e suas implicações na organização do espaço e nas formas de sociabilidade das comunidades que se viam envolvidas nos carnavais retratados, são trazidos ao primeiro plano. Em parte, esta opção está embasada na própria periodização proposta pela autora na introdução ao livro: o marco inicial se insere no que considera o segundo período do carnaval do Sudeste brasileiro (1870-1930) e a maior parte transcorre no longo terceiro período (1930 até a atualidade); recorte que tende a privilegiar problemas da passagem de um período a outro, enfatizando mais os primeiros anos – "heróicos" – do carnaval e menos suas importantes mudanças (que, ainda assim, não são ignoradas) nas duas décadas que se seguem à oficialização dos desfiles, a partir de 1968, e subvenção oficial.
Uma das mudanças notáveis nesse período é a presença significativa das manifestações populares ligadas aos migrantes (presentes na capital paulista especialmente a partir da década de 1940), mudança pouco explorada no livro6, que enfoca os descendentes de imigrantes operários e de escravos negros. Trata-se, evidentemente, mais de ênfase do que limitação, mas será interessante, futuramente, dar relevo aos "caipiras" e "nordestinos", matizando o esquema em "preto e branco" proposto e revelando novos tons do carnaval paulistano, ou de localidades específicas que não as reveladas no estudo de Simson7.
Só é possível mencionar as localidades não reveladas porque de fato há os territórios revelados pelo livro. A territorialização dessas manifestações é – particularmente para um pesquisador da área de história da urbanização – uma das mais férteis contribuições do trabalho de Simson. Especialmente a primeira parte do livro, o carnaval branco, cujas formas são estreitamente vinculadas às realidades e aos processos de transformação dos (e nos) bairros retratados – Brás, Água Branca, Lapa – e, na segunda parte, ao tratar da relação entre os cordões negros da Barra Funda e Bexiga (berços dos cordões rivais Camisa Verde e Vai-Vai), ou ainda da escola de samba fundada por Seu Nenê no bairro de Vila Matilde, zona leste paulistana. O livro sugere, propondo a outras pesquisas a continuidade desse esforço investigativo, a presença de manifestações carnavalescas em outros bairros da cidade, como Casa Verde ou Cambuci/ Glicério (onde se originou a escola de samba considerada a mais antiga em atividade na cidade, a Lavapés).
Há, no tratamento da relação do carnaval com os bairros, uma diferença entre a parte "branca" e a "negra". Ao tratar do carnaval branco, Simson adota uma estrutura que parte da caracterização dos informantes, passando ao bairro e, em seguida, suas manifestações carnavalescas características. O paralelismo claro conduz o leitor à constatação das similaridades e diferenças com que se constrói a conclusão dessa parte do livro. Na segunda parte, a relação entre cidade e festividades momescas se dá de forma diversa, e a diferença se assenta em dois aspectos: formalmente, a apresentação se dá de modo menos explícito (não há uma caracterização dos bairros que abrigam os caiapós, cordões e escolas de samba8); a segunda diferença diz respeito a uma perspectiva distinta.
Ao tratar do carnaval negro, toma-se a cidade como um todo, e as manifestações carnavalescas negras em seus conjuntos (cordões, escolas), ressaltando a constituição de um carnaval que adquire, progressivamente, uma escala metropolitana. Por essa razão, parece menos importante a caracterização deste ou daquele bairro do que a compreensão de um processo por meio do qual as agremiações travam contato umas com as outras e com a "sociedade mais ampla", de modo a somar forças (a despeito das rivalidades, que se mantém) e angariar apoio para que o carnaval negro e seus elementos (particularmente o samba) sobrevivam à desagregação dos laços comunitários que mantinham coesas as formas do carnaval branco – que, de acordo com o livro, desapareceu virtualmente ou mesmo de fato – e dos cordões carnavalescos negros – muitos dos quais, da mesma forma que os corsos, por exemplo, desapareceram ou perderam relevância com a progressiva "institucionalização" do carnaval dos blocos e escolas de samba.
O livro revela uma maneira pela qual o carnaval negro logrou sobreviver à metropolização paulistana. O que, para muitos, poderia ser interpretado como "diluição" do carnaval negro em um cinza pálido – seja pela presença cada vez maior de brancos (e das classes médias e elites) nos ensaios, desfiles e mesmo na direção de escolas, seja ainda pela assimilação do samba pela "cultura de massas" – emerge, do livro de Simson, como um resultado que não pode deixar de ser reconhecido como sobrevivência, triunfo da população negra paulistana9. Este aspecto, mais subentendido do que explícito no livro, confirmaria a simultaneidade, nas cidades modernas, entre a força desagregadora da metrópole moderna e sua capacidade de produzir novas noções de coletividade – o que Raymond Williams10 associou, em outra imagem dual instigante, com as "trevas" e a "luz" das cidades.
1 O acervo com os depoimentos está depositado em dezenas de fitas magnéticas no Museu da Imagem e do Som, em São Paulo, que colaborou para a realização do projeto.
2 SIMSON, Olga Rodrigues de Moraes Von. "O Carnaval e O Desenvolvimento de Guaratinguetá na Segunda Metade do Século XIX". Cadernos CERU, v. 1, p. 19-32, 1978. Outros trabalhos relevantes da autora sobre o tema incluem: "Folguedo Carnavalesco, memória e identidade sócio-cultural". Resgate, v. 3, p. 53-60, 1991; "A Dança dos Caiapós: Origem do Carnaval Popular Paulistano". D.O. Leitura, v. 8, n. 93, p. 12-13, 1990; "O Negro Paulistano Enquanto Folião Carnavalesco e Sua Longa Trajetória". Estudos Afro-Asiaticos, v. 13, p. 61-78, 1987; "A burguesia se diverte no Reinado de Momo. O carnaval paulistano do século XIX". Dissertação de Mestrado. São Paulo: FFLCH-USP, 1984; "Espaço urbano e folguedo Carnavalesco no Brasil: uma visão ao longo do tempo". Cadernos CERU, n. 15, p. 297-305, 1981. Vale ainda destacar sua atuação no Centro de Memória da Unicamp (do qual é diretora desde 2005 e diretora associada desde 2001), particularmente no Laboratório de História Oral – do qual é responsável desde 1990 – e ainda na Associação Brasileira de História Oral, que presidiu até 2002 e onde, atualmente, exerce a função de membro da comissão editorial da Revista de História Oral e do Conselho Científico.
3 Parte do interesse pelo Rio de Janeiro se justifica pelo fato de a cidade ter sido capital federal durante a monarquia brasileira e a República até meados do século XX, períodos que correspondem a épocas privilegiadas por estudos recentes sobre a cultura popular, como os de Maria Clementina Pereira Cunha (Ecos da folia. Uma história social do carnaval carioca entre 1880 e 1920, São Paulo, Companhia das Letras, 2001) ou Martha Abreu (O Império do Divino. Festas religiosas e cultura popular no Rio de Janeiro (1830-1900), Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999).
4 Neste sentido, é relevante destacar ainda a contribuição adicional prestada por pesquisas desenvolvidas, fora do âmbito acadêmico, no sentido de recuperar e registrar outra fonte fundamental para a história do carnaval que são as próprias canções carnavalescas (marchas, sambas e outras). Exemplos desses esforços podem ser citados nos documentários cinematográficos dedicados a sambistas paulistanos, como Germano Mathias, Geraldo Filme e Nenê de Vila Matilde, no documentário televisivo Samba à paulista (2007), além de significativa discografia recente.
5 Entenda-se este comentário não como crítica ao trabalho ora resenhado. Mesmo trabalhos da abrangência deste devem ser considerados respeitando-se as limitações a que qualquer estudo está sujeito: recortes temporais ou geográficos, delimitação de uma problemática, fontes eleitas, entre outras. Desta forma, só é possível a indicação de eventuais "lacunas" (na realidade, novas questões suscitadas pelo livro) a partir do pressuposto de que a maior parte delas – a própria existência de uma obra de tal dimensão – está suprida.
6 Que, entretanto, subjaz à caracterização das relações entre os integrantes das escolas de samba – ou daquela destacada, Nenê de Vila Matilde – e os moradores brancos do bairro: fotografias exibidas no anexo permitem cogitar que parte desses seja composta justamente de migrantes, seja do Nordeste, do interior de São Paulo ou de Minas Gerais.
7 Por exemplo, o bairro de São Miguel Paulista, (estudado por FONTES, Paulo. Trabalhadores e cidadãos – Nitro Química: A fábrica e as lutas operárias nos anos 50. São Paulo, Annablume e Sindicato dos Químicos e Plásticos de São Paulo, 1997) ou São Mateus, que recentemente lançou o CD Berço do Samba de São Mateus (SESC-SP, 2007).
8 Explorar esse ponto pode contribuir para suprir a ainda carente história dos bairros periféricos de São Paulo, como a Casa Verde, Vila Madalena, ou enriquecer a daqueles em que a presença negra em bairros mais antigos é ainda pouco notada, como Barra Funda, Cambuci e Glicério, Bela Vista/Bexiga, entre outros.
9 É possível argumentar que esse triunfo não é exclusivo do carnaval e do samba paulistano – no Rio de Janeiro é certamente ainda mais contundente. Contudo, considera-se importante destacar esta constatação, que abre promissores horizontes de investigação para além da perspectiva catastrofista, que vê, nessa expansão, uma deturpação ou enfraquecimento da manifestação "original" – valorizada como mais "pura" ou "legítima" – com que, tão freqüentemente, se tratam as manifestações da cultura popular.
10 WILLIAMS, Raymond. "Cidades de trevas e de luz", in: O campo e a cidade, na história e na literatura. São Paulo: Companhia das Letras, 1989, p. 291-313.
Revista de História - USP
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